Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
604/07.0TMBRG-B.G1
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
CUMPRIMENTO COERCIVO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A mera circunstância de o vencimento, salário ou pensão sobre o qual irá incidir o desconto da prestação de alimentos – ao abrigo do disposto no art. 189º da OTM – não atingir o valor necessário para que, após esse desconto, reste ainda o valor que se reputa como necessário para a satisfação das necessidades essenciais do devedor, não é bastante para que tal desconto não seja efectuado.
II - Embora se admita que o princípio da dignidade humana, constitucionalmente garantido, exige e impõe que ao devedor de alimentos seja garantido o rendimento necessário para a satisfação das suas necessidades essenciais – admitindo-se, por isso, que não possa ser obrigado a prestar alimentos com ofensa dessa parcela de rendimento – é por via da alteração do regime de alimentos oportunamente fixado que o devedor pode obter o reconhecimento da sua impossibilidade de continuar a cumprir (no todo ou em parte) a obrigação a que está vinculado.
III - O procedimento a que alude o citado art. 189º corresponde apenas à execução coerciva de uma obrigação de alimentos judicialmente fixada que, enquanto não for alterada (podendo sê-lo a qualquer momento, com base na alteração das circunstâncias que a determinaram e ponderando as necessidades do alimentando e as efectivas possibilidades do obrigado), tem que ser cumprida e executada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I.

O Ministério Público, em representação da menor M… (nascida em 26/05/1996), veio instaurar a presente acção de regulação das responsabilidades parentais contra os progenitores da menor, J… e M…, melhor identificados nos autos, alegando que, apesar de casados, estes já não vivem em comunhão de cama e mesa.
Em 09/03/2010, foi realizada a conferência prevista no art. 175º da OTM, à qual compareceram ambos os progenitores (acompanhados dos respectivos mandatários) e pelos mesmos foi dito que estavam de acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais nos seguintes termos:
1º - A guarda da menor é atribuída ao pai a quem fica também atribuído o exercício das responsabilidades parentais;
2º - A mãe poderá visitar e contactar a menor sempre que quiser, sem prejuízo dos interesses desta e desde que combine previamente com o pai;
3º A título de alimentos, a mãe pagará a quantia de 100,00€ mensais, a actualizar anualmente segundo o índice de preços ao consumidor publicado pelo INE, mas nunca inferior a 3%, iniciando-se a actualização em Janeiro de 2011.
Tal acordo foi homologado por sentença nessa data proferida.
Em 14/09/2010, foi junta aos autos uma carta subscrita pela progenitora da menor, onde dá conta da impossibilidade de pagar e do seu sofrimento pelo facto de não ver a filha desde Abril.
Tal carta foi notificada ao mandatário da progenitora que, na sequência desse facto, veio – em 18/10/2010 – apresentar requerimento onde pede que aquela carta seja recebida como um pedido de alteração do regime de alimentos, pedindo – sem alegação de quaisquer factos relevantes – que tal regime seja alterado em conformidade com as disponibilidades da requerente e o grau de dignidade da menor no cumprimento dos deveres para com a mãe.
O progenitor da menor respondeu e, em 10/11/2010, a progenitora apresenta nova carta – por ela subscrita – em que, no essencial e apesar de aludir às suas dificuldades económicas, se queixa da sua solidão e tristeza e pela forma como é tratada pelas filhas.
Desta carta foi dado conhecimento ao mandatário da progenitora da menor, que veio apresentar requerimento onde remete para o requerimento de 18/10/2010 e onde afirma a sua incapacidade para auxiliar à correcção das condutas e relações sócio-parentais.
Posteriormente, e no que toca a essas cartas e requerimentos, foi proferido despacho que, acolhendo a promoção do Ministério Público, determinou que se informasse a progenitora que, querendo, deveria e poderia instaurar acção própria, por apenso, de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Mais se designou data para conferência de pais face ao incumprimento do regime de visitas, tendo sido igualmente solicitado à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens e à Segurança Social a avaliação da situação da progenitora e a adequação ou não da educação e cuidados que estão a ser prestados pelo pai à menor.
Em 22/03/2011, a progenitora, M…, vem alegar que, auferindo apenas o rendimento mensal de 294,00€, deixou de cumprir a prestação de alimentos e requer a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores para que, em sua substituição, proceda ao pagamento dessa prestação.
Na conferência de pais – realizada em 05/05/2011 – não existiu qualquer acordo.
Em 16/05/2011, o progenitor, J…, veio apresentar requerimento, onde, invocando o incumprimento do regime de alimentos e alegando os seus rendimentos e despesas, pede a fixação da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, solicitando que tal prestação seja fixada em 150,00€ mensais ou, no mínimo, a quantia de 103,00€, mais requerendo que se dê por verificado o incumprimento com as consequências legais, designadamente, as preconizadas no art. 189º c).
Em resposta, a progenitora veio dizer que não se opõe à intervenção do Fundo de Garantia, mas apenas pela quantia de 100,00€ que corresponde à prestação de alimentos judicialmente fixada.
O Ministério Público, por seu turno, veio requerer que, ao abrigo do disposto no art. 189º da OTM, se procedesse ao desconto, no salário da progenitora, das prestações vincendas e de uma quantia adicional até perfazer o valor das prestações em dívida.
Na sequência desses factos, veio a ser proferida decisão – em 09/09/2011 – que, declarando incumprido o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais por parte de M…, no que toca à prestação de alimentos, determinou, em conformidade com o disposto no art. 189º, nº 1, alínea a) da OTM, a notificação da entidade processadora do vencimento para proceder ao desconto no vencimento da quantia mensal de 103,00€, acrescida da quantia de 20,00€ por conta das prestações vencidas e até perfazer a quantia em dívida no valor de 724,00€.

Inconformada com tal decisão, a progenitora da menor, M…, veio interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1ª - A recorrente em 18.Out.2010 apresentou nos autos um pedido de alteração ao regime de alimentos fixados à menor, em virtude da alteração da situação económica, que reafirma com nova alegação em 10.Nov.2010 e com a acrescida comprovação através da junção por sua iniciativa, em 22.Março.2011, do comprovativo do rendimento único proveniente do trabalho.
2ª - O tribunal jamais decidiu, até ao presente momento, o pedido de alteração do regime de alimentos.
3ª - Em 16.Maio.2011, o requerente pai deduz o incidente de incumprimento do pagamento da prestação alimentícia previsto no artº 181, OTM, para obtenção de uma decisão de cumprimento coercivo.
4ª - Após a dedução do incidente para cumprimento coercivo o tribunal não convocou a conferência de pais, não determinou a notificação para alegações, conforme prescreve o artº 181, nºs 1 e 2, OTM.
5ª - O tribunal havia convocado uma conferência de pais anteriormente em 4.12.2010!
6ª - O tribunal declara incumprido o acordo da regulação do exercício das responsabilidades parentais, sem decidir o pedido anterior e pendente de alteração de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
7ª - O tribunal omitiu uma sucessão de actos nulos que influem no exame e decisão da causa, nulidades que se invocam – artº 201, CPC, a saber:
- omissão da autuação por apenso dos requerimentos da requerente mãe, de 14.9.2010 e 18.10.2010, a requerer a alteração do regime de alimentos fixados, em violação do artº 182, nº 2, OTM;
- omissão de citação do requerido pai para, no prazo de oito dias, alegar o que tiver por conveniente, em violação do artº 182, nº 3, OTM;
- omitida pronuncia, em violação do artº 182, nº 4, OTM;
- omissão da convocação da conferência de pais subsequente ao requerimento em que o pai requerente pai deduz o incidente de incumprimento previsto no artº 181, OTM;
- omissão da notificação da requerida mãe para querendo alegar, em violação do preceituado no artº 181, nº 2, OTM;
- nulidade da decisão que declara o incumprimento por violação no artº 181, nº 2, OTM (ausência de convocação de conferência de pais e notificação para alegar.
8ª - A recorrente aufere um vencimento líquido mensal, incluindo o subsídio de alimentação e deduzida a TSU de € 259,12.
9ª - O valor do desconto que foi determinado de € 123,00, não permite que lhe seja assegurado o mínimo de subsistência, tendo como referência o rendimento social de inserção que é de € 189,52, porquanto a recorrente por efeito desse desconto passa a dispor para si de um rendimento mensal aquém do rendimento mensal de inserção, pelo que o desconto nunca deve ser superior ao valor de € 69,60, sendo a norma do artº 189, nº 1, al. b), inconstitucional quando interpretada no sentido da que seja salvaguardado um rendimento mensal inferior ao R.S.I..
10ª - O tribunal deve considerar que a recorrente para obter o rendimento mensal de € 259,12, gasta pelo menos o valor de € 33,10 na compra do passe para transporte, importância que deve ser deduzida ao rendimento, pois sem tal dispêndio não lhe é possível obter aquela quantia como proveito.

O Ministério Público apresentou contra-alegações, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
• Saber se ocorrem ou não as nulidades processuais a que alude a Apelante e decorrentes de alegadas omissões de actos ou formalidades legais com influência na decisão;
• Saber se a circunstância de a Apelante auferir um salário, cujo valor, após o desconto da prestação de alimentos a que está obrigada, não atinge o montante necessário para a satisfação das suas necessidades, constitui impedimento à efectiva realização do desconto, nos termos do art. 189º da OTM, por alegada inconstitucionalidade desta norma quando interpretada no sentido de não permitir salvaguardar um rendimento mensal correspondente ao R.S.I..
III.
Apreciemos, pois, as questões suscitadas pela Apelante, sendo que os factos a considerar são aqueles que, no essencial, ficaram vertidos no relatório.

A Apelante começa por invocar uma série de omissões que, na sua perspectiva, correspondem a nulidades processuais por terem influência na decisão da causa.
Analisemos, pois, essas alegadas omissões, tendo presente o disposto no art. 201º do Código de Processo Civil, nos termos do qual a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Invoca a Apelante a omissão da autuação por apenso dos requerimentos que apresentou em 14.9.2010, 18.10.2010 e 10.11.2010, a requerer a alteração do regime de alimentos fixados, em violação do artº 182, nº 2, OTM, e a consequente omissão dos actos processuais inerentes a tal pedido de alteração (citação do requerido e decisão, nos termos dos nºs 3 e 4 do citado art. 182º).
O alegado requerimento de 14/09/2010 é apenas uma carta subscrita pela Apelante que apenas contém um desabafo – referente, sobretudo, ao facto de não ver as filhas – e um pedido de ajuda – cujo objecto não se encontra claro. Nessa carta, a Apelante, embora diga que não pode pagar e peça ajuda, não pede nada em concreto e muito menos pede a alteração do regime fixado relativamente às responsabilidades parentais. O mesmo acontece com a carta de 10/11/2010 onde, no essencial, a Apelante se limita a manifestar a sua tristeza pelo tratamento que recebe das filhas e pela ausência de visitas e telefonemas (embora faça alusão às suas dificuldades económicas), imputando aquele facto ao respectivo progenitor, sem que nada de concreto peça ou solicite ao Tribunal.
É evidente, por isso, que esses alegados requerimentos nunca poderiam ser considerados e autuados como um pedido de alteração do regime fixado, no que toca, aos alimentos.
Mas, eventualmente admitindo que pudesse ser essa a intenção da Apelante, o Tribunal deu conhecimento desses factos ao respectivo mandatário que, em 18/10/2010, apresentou um requerimento onde – sem alegação de quaisquer factos concretos – pede que seja alterado o regime de alimentos, em conformidade com as disponibilidades da requerente e o grau de dignidade da menor no cumprimento dos deveres para com a mãe.
Ora, um tal requerimento – subscrito por advogado – também dificilmente poderia ser considerado um pedido de alteração do regime, efectuado ao abrigo do disposto no art. 182º da OTM, porquanto, além de não conter qualquer pedido expresso, não contém, sequer, como devia, os fundamentos do pedido e, designadamente, as circunstâncias supervenientes que tornavam necessária a alteração daquele regime.
De qualquer forma, e ainda que tal requerimento pudesse ser configurado como um pedido de alteração do regime fixado, a verdade é que o despacho de 03/12/2010 – que acolheu a promoção anterior do Ministério Público e foi notificado à Apelante – determinou que a Apelante fosse informada que, querendo, poderia e deveria instaurar acção própria e por apenso de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
Ora, com este despacho ficou claro que o Tribunal não considerava aqueles requerimentos como pedidos de alteração do regime fixado e ficou claro que não lhes iria dar prosseguimento, pelo que, a eventual irregularidade praticada teria ficado a ser conhecida da Apelante com a respectiva notificação e, como tal, era nessa ocasião que deveria tê-la invocado (art. 205º, nº 1).
Não o tendo feito oportunamente, a irregularidade que, eventualmente, tenha sido praticada ficou sanada, não podendo agora ser invocada.

Invoca também a Apelante a omissão da convocação da conferência de pais subsequente ao requerimento em que o pai requerente pai deduz o incidente de incumprimento previsto no artº 181 da OTM, bem como a omissão da notificação da requerida mãe para querendo alegar, em violação do preceituado no artº 181, nº 2, OTM e a consequente nulidade – por força dessas omissões – da decisão que declara o incumprimento.
Dispõe o art. 181º da OTM que, se, relativamente à situação do menor, um dos progenitores não cumprir o que tiver sido ordenado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa e em indemnização, dispondo o nº 2 que, autuado ou junto ao processo o requerimento, o juiz convocará os pais para uma conferência ou mandará notificar o requerido para alegar o que tiver por conveniente.
No que toca especificamente ao incumprimento da prestação de alimentos, dispõe o art. 189º do mesmo diploma que, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfazer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, será ordenado o desconto dessas quantias no vencimento, salário e demais rendimentos aí referidos.
Ora, a progenitora – ora Apelante – foi notificada do requerimento apresentado pelo pai da menor e veio tomar posição expressa sobre o mesmo, confirmando – o que, aliás, já havia alegado em momento anterior – o incumprimento dessa prestação e alegando apenas que a prestação de alimentos fixada era de 100,00€ e não a de 150,00€, cujo pagamento o progenitor havia solicitado que ficasse a cargo do Fundo de Garantia.
Ora, porque a Apelante tomou posição sobre aquele requerimento e confirmou o incumprimento em que alegadamente incorrera, é manifesto que não lhe assiste qualquer razão no que toca à nulidade que vem alegar, já que, tendo sido notificada e tendo respondido ao requerimento em causa, não faz sentido vir agora dizer que não foi notificada para alegar o que tivesse por conveniente e que tal facto teve influência na decisão. Por outro lado, e como resulta do disposto no art. 181º, nº 2, a conferência de pais não é obrigatória, porquanto o que aí se dispõe é que, na sequência da apresentação do requerimento, será convocada conferência de pais ou será notificado o requerido para alegar. Ora, se a Apelante já havia respondido ao requerimento e já havia confirmado o seu incumprimento, não vislumbramos qual seria a utilidade ou relevância da conferência.
Além do mais, importa dizer que a decisão recorrida limitou-se a declarar o incumprimento do regime no que toca à prestação de alimentos que estava a cargo da Apelante e, nesse ponto, limitou-se a declarar aquilo que claramente resultava dos autos e era confirmado por todos os intervenientes (incluindo a própria Apelante) e a ordenar o desconto das prestações no salário da Apelante, ao abrigo do art. 189º da OTM e na sequência do que havia sido requerido pelo Ministério Público, já que a obrigação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos (cuja fixação havia sido requerida por ambos os progenitores) pressupõe que não seja possível, por essa via, a cobrança coerciva dos alimentos.
Não existe, pois, qualquer nulidade.

Alega ainda a Apelante que aufere um vencimento líquido mensal, incluindo o subsídio de alimentação e deduzida a TSU de € 259,12, sendo que o valor do desconto que foi determinado – 123,00€ –, não permite que lhe seja assegurado o mínimo de subsistência, tendo como referência o rendimento social de inserção que é de € 189,52, porquanto a recorrente por efeito desse desconto passa a dispor para si de um rendimento mensal aquém do rendimento mensal de inserção, pelo que o desconto nunca deve ser superior ao valor de € 69,60, sendo a norma do artº 189, nº 1, al. b), inconstitucional quando interpretada no sentido da que seja salvaguardado um rendimento mensal inferior ao R.S.I.; além disso, alega, o tribunal deve considerar que a recorrente para obter o rendimento mensal de € 259,12, gasta pelo menos o valor de € 33,10 na compra do passe para transporte, importância que deve ser deduzida ao rendimento, pois sem tal dispêndio não lhe é possível obter aquela quantia como proveito.
No que toca à penhora de vencimentos, salários, pensões e outras prestações de natureza semelhante, o art. 824º, nº 2, do Código de Processo Civil determina a sua impenhorabilidade no montante equivalente a um salário mínimo nacional, desde que o executado não tenha outro rendimento.
Todavia, ressalvando expressamente a situação em que o crédito exequendo seja de alimentos, é evidente a sua inaplicabilidade ao caso sub júdice.
No que toca concretamente à situação em análise nos presentes autos, o Tribunal Constitucional – no Acórdão nº 306/2005 (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt) - julgou inconstitucional “…por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais”, tendo considerado que o valor correspondente ao rendimento social de inserção se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.
Não discordamos, em tese, das razões e argumentos que sustentaram essa decisão, na medida em que o princípio da dignidade humana a que se alude exigirá, efectivamente, que a ninguém seja negado o rendimento indispensável para a satisfação das suas necessidades básicas e essenciais.
Mas, importa notar o seguinte:
• A prestação aqui em causa é uma prestação de alimentos, que, dada a sua natureza, foi expressamente ressalvada do regime de impenhorabilidade parcial a que o legislador submeteu os salários e outros rendimentos que se consideram necessários à sobrevivência condigna do devedor e tal ressalva decorre precisamente da circunstância de essa prestação se destinar também a permitir a sobrevivência condigna do credor que, por força do mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, também não poderá ser privado do rendimento necessário para aquele efeito;
• Por outro lado, a prestação de alimentos aqui em causa é fixada de acordo com as necessidades do alimentando, mas atendendo também aos meios daquele que está obrigado a prestá-los e não é uma prestação estática e imutável, podendo ser alterada, a qualquer momento, em função da alteração dos factos ou circunstâncias que determinaram a fixação do respectivo valor e, designadamente, em função da alteração da situação económica do respectivo devedor;
• Acresce que a salvaguarda do rendimento necessário para a satisfação das necessidades essenciais do devedor da prestação de alimentos – que constitui o pressuposto da declaração de inconstitucionalidade acima mencionada – não poderá ser concretizada através da mera retenção da parte do vencimento, salário ou pensão sobre o qual vai incidir o desconto e que se considera necessária para a satisfação daquelas necessidades, porquanto a legitimidade da retenção desse valor pressupõe sempre a demonstração de que o mesmo é efectivamente necessário para aquele efeito, o que implicará a demonstração de que, além desse vencimento, salário ou pensão, o devedor não aufere qualquer outro rendimento que lhe permita prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade.
Assim, embora se admita que o princípio da dignidade humana a que acima se fez referência exige e impõe que ao devedor de alimentos seja garantido o rendimento necessário para a satisfação das suas necessidades essenciais – admitindo-se, por isso, que não possa ser obrigado a prestar alimentos com ofensa dessa parcela de rendimento – consideramos que a impossibilidade de cumprir a prestação de alimentos a que o progenitor está obrigado – e que foi judicialmente fixada – e a consequente redução (ou mesmo eliminação) dessa prestação deverá ser averiguada e demonstrada no âmbito do procedimento próprio com vista à alteração do regime de alimentos fixado. É nessa sede que deverão ser alegados, averiguados e demonstrados os factos necessários que permitirão depois concluir se ocorreu ou não alteração superveniente e se, em última análise e ponderando também as necessidades do alimentando, o progenitor tem ou não capacidade económica para suportar a prestação a que estava obrigado, aí se determinando também – em função da totalidade dos rendimentos auferidos – se pode ou não contribuir para o sustento do filho e em que medida.
Vejam-se, a este propósito, os votos de vencido apostos no Acórdão do Tribunal Constitucional acima citado, onde se refere:
“Votei contra a tese da inconstitucionalidade que fez vencimento, no essencial, porque entendo que, no conflito entre dois direitos de igual natureza, não pode fazer prevalecer-se o direito do titular que, simultaneamente, está adstrito, como se escreveu no acórdão, ao “dever fundamental (...) de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial”.
O julgamento de inconstitucionalidade equivale, no fundo, por um lado, a dispensar do pagamento de alimentos o progenitor que, na acção própria, foi condenado a prestá-los, assim inutilizando a avaliação que, pela via adequada, se fez quanto à sua capacidade de os prestar; note-se, aliás, que a sentença de condenação na prestação de alimentos pode ser alterada, nomeadamente por modificação da possibilidade de os prestar por parte do correspondente obrigado…”.
Com efeito, o que está aqui em causa é o cumprimento coercivo de uma prestação de alimentos que foi fixada por acordo dos progenitores e que foi judicialmente homologada, pressupondo-se, por isso, que o valor fixado era o adequado em face das necessidades da menor e em face das possibilidades económicas da progenitora que ficou vinculada à prestação.
O incumprimento dessa prestação (com a qual a menor contava porque assim estava fixado) e a negação do direito de cobrar coercivamente, ao abrigo do disposto no citado art. 189º, o valor total ou parcial dessa prestação, por via do direito – reconhecido à progenitora – de reter o rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais, poderá pôr em risco, pelo menos em termos imediatos (e enquanto não accionar outro meio de angariar o rendimento que aquela prestação lhe proporcionava), a sobrevivência da menor já que, pela aplicação do mesmo princípio da dignidade da pessoa humana, esta também não deverá ser privada do rendimento necessário para a satisfação das suas necessidades essenciais e – importa não esquecer – a progenitora estará sempre em melhores condições que a filha menor para angariar outros rendimentos que lhe permitam satisfazer tais necessidades.
Estando em causa, como se referiu, uma obrigação que pode sempre ser alterada em função da alteração dos pressupostos que a determinaram, parece-nos que o progenitor, sabendo e não podendo ignorar os rendimentos que aufere e a impossibilidade de satisfazer a prestação a que está vinculado, deverá, logo que ocorra essa situação, solicitar ao tribunal a alteração do regime fixado, alegando e demonstrando a impossibilidade de continuar a satisfazer a prestação que, oportunamente, foi fixada e não se nos afigura legítimo que, ao invés de assim proceder, o progenitor se limite a uma situação passiva, deixando de cumprir a sua obrigação para com o filho e aguardando passivamente que sejam accionados os mecanismos previstos no art. 189º, para vir então invocar – em face do valor do vencimento, salário ou pensão – que o desconto não pode ser efectuado por pôr em causa a satisfação das suas necessidades essenciais.
Assim, e na sequência do que referimos, afigura-se-nos que o procedimento pré-executivo a que alude o citado art. 189º não será o lugar adequado para recusar o pagamento da prestação alimentar – ou de parte dela – com base na mera circunstância de o vencimento, salário ou pensão sobre o qual irá incidir o desconto não atingir o valor necessário para que, após esse desconto, reste ainda o valor que se reputa como necessário para a satisfação das necessidades essenciais do progenitor e sem que se saiba, sequer, se aufere ou não outros rendimentos.
Tal procedimento corresponde apenas à execução coerciva de uma obrigação judicialmente fixada que, enquanto não for alterada, tem que ser cumprida e executada. Só assim será possível garantir o direito do alimentando à sua própria subsistência (direito que também decorre do princípio da dignidade humana), sendo certo que o direito do devedor a reter a quantia necessária para satisfação das suas necessidades essenciais (imposto pelo mesmo princípio) estará sempre garantido pela possibilidade de requerer e obter – com observância do contraditório – a alteração dessa obrigação de forma a que a mesma não afecte a parcela de rendimento de que carece para a sua própria subsistência.
Regressando ao caso sub júdice, constatamos que:
• A prestação de alimentos aqui em causa foi fixada por acordo dos progenitores, judicialmente homologado, pressupondo-se, por isso, que era a adequada, atendendo às necessidades da menor e às possibilidades dos respectivos progenitores;
• Apesar de aludir – nas cartas que juntou aos autos – às suas dificuldades económicas e à dificuldade de pagar a prestação de alimentos (que, apesar de tudo, vinha pagando), a Apelante nunca requereu ou solicitou expressamente a respectiva alteração, com alegação dos factos respeitantes aos seus rendimentos e à eventual alteração da situação que existia aquando da fixação da prestação de alimentos que, a partir de determinado momento, deixou de cumprir (embora seja certo que a dada altura – no requerimento apresentado em 22/03/2011 – veio alegar que o único rendimento que auferia era o valor do salário de 249,00€, que era imprescindível para a satisfação das suas necessidades, pedindo, com base nesses factos, a intervenção do Fundo de Garantia para que, em sua substituição, procedesse ao pagamento da prestação de alimentos e sem que pedisse a alteração da prestação de alimentos a que estava obrigada);
• Por outro lado, não obstante a alegação da Apelante de que aquele vencimento é o seu único rendimento – e apesar de não existirem indícios de que tal não corresponda à verdade – o certo é que, em rigor, tal facto não está demonstrado e, portanto, não será possível afirmar, com certeza, que o desconto ordenado pela decisão recorrida seja susceptível de privar a Apelante dos rendimentos necessários para as suas necessidades essenciais.

Afigura-se-nos, pois, que, por ora, não existem razões que impeçam o desconto da prestação alimentar no salário auferido pela Apelante, desconto esse que corresponde apenas à execução coerciva da obrigação de alimentos que foi judicialmente fixada e que, enquanto não for alterada, tem que ser cumprida e executada.
Caso esteja efectivamente impossibilitada de pagar tal prestação, a Apelante deverá solicitar a respectiva alteração, nos termos legais e com alegação dos factos correspondentes, em conformidade com o disposto no art. 182º da OTM, requerendo a sua redução ou supressão, de forma a que a menor – eventualmente privada dos alimentos por parte da sua progenitora – possa solicitá-los a qualquer um dos demais obrigados a essa prestação.
Enquanto tal não suceder, mantém-se a obrigação de alimentos fixada e, portanto, nada obsta à sua cobrança coerciva nos termos do citado art. 189º.

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
I - A mera circunstância de o vencimento, salário ou pensão sobre o qual irá incidir o desconto da prestação de alimentos – ao abrigo do disposto no art. 189º da OTM – não atingir o valor necessário para que, após esse desconto, reste ainda o valor que se reputa como necessário para a satisfação das necessidades essenciais do devedor, não é bastante para que tal desconto não seja efectuado.
II - Embora se admita que o princípio da dignidade humana, constitucionalmente garantido, exige e impõe que ao devedor de alimentos seja garantido o rendimento necessário para a satisfação das suas necessidades essenciais – admitindo-se, por isso, que não possa ser obrigado a prestar alimentos com ofensa dessa parcela de rendimento – é por via da alteração do regime de alimentos oportunamente fixado que o devedor pode obter o reconhecimento da sua impossibilidade de continuar a cumprir (no todo ou em parte) a obrigação a que está vinculado.
III - O procedimento a que alude o citado art. 189º corresponde apenas à execução coerciva de uma obrigação de alimentos judicialmente fixada que, enquanto não for alterada (podendo sê-lo a qualquer momento, com base na alteração das circunstâncias que a determinaram e ponderando as necessidades do alimentando e as efectivas possibilidades do obrigado), tem que ser cumprida e executada.
IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Guimarães, 27/02/2012
Maria Catarina Ramalho Gonçalves
António M. A. Figueiredo de Almeida
José Manuel Araújo de Barros