Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1939/10.0TBFAF-A.G1
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
DOCUMENTO PARTICULAR
ASSINATURA
PROVA PLENA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - Ainda que seja defensável sustentar-se que é sobre o credor que recai o ónus da prova de ter efectuado a entrega de um exemplar do contrato de crédito ao consumo ao consumidor, nada obsta porém a que o tribunal dê como provado tal facto unicamente em razão de declaração do aderente [ de ter recebido o duplicado do contrato ] inserta no documento que titula o referido contrato;
2. - É que, porque na presença de um documento particular, e estando a respectiva autoria reconhecida nos termos do artº 374º, do CC, faz ele prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor , isto por um lado , e , por outro, os factos compreendido na declaração referida consideram-se provados, desde que contrários aos interesses do declarante ;
3. - Ademais, não obstante estar em causa um contrato de adesão, nada justifica que se considere que a declaração nele inserta e supra referida não reflicta ou traduza, em rigor, a emissão de uma declaração de vontade do aderente/consumidor.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 2ª Secção CÍVEL Do Tribunal da Relação de GUIMARÃES
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1.Relatório.
Na sequência da instauração de acção executiva movida por B.. - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, SA, contra F.., com vista à cobrança coerciva da quantia de 19.181.81€, proveniente e titulada por Livrança, veio o executado deduzir oposição à execução, pugnando pela respectiva desobrigação de efectuar o pagamento da quantia referida e respectivos juros.
Para tanto, alegou, em síntese, que :
- Sendo a livrança apresentada à execução relativa a um contrato de venda a crédito, sucede que nunca lhe foi entregue quaisquer duplicados dos documentos assinados, mormente do aludido contrato, não lhe tendo ainda sido comunicadas e explicadas quaisquer das cláusulas constantes do mesmo;
- De resto, a exequente aplica genericamente as cláusulas do referido contrato a todos os seus contraentes e sem que tenham elas resultado de negociação prévia entre as partes, não tendo inclusive a exequente facultado ao oponente um seu exemplar , nem cumprido os deveres de comunicação e informação previstos nos artigos 5º e 6º do DL n.º 446/85, de 25/10 ;
- Em razão do referido, e como consequência, nos termos do art. 8º, al. a) do mesmo diploma, tais cláusulas consideram-se excluídas do contrato, pelo que carece do devido suporte o preenchimento da livrança, a qual foi entregue em branco, pelo que o seu preenchimento foi abusivo ;
- Ademais, não foi ainda o executado o beneficiário do aludido contrato de venda a crédito, tendo-se limitado “emprestar” o seu nome a um seu amigo V.., a que acresce que na livrança apresentada à execução não foi aposto qualquer valor, nem indicada qualquer data de emissão ou vencimento, como também não foi convencionado a taxa de juro ou prazo de vencimento;
- Destarte, a livrança em branco foi preenchida após ter sido assinada em branco e sem o consentimento do executado, que desconhece os seus elementos essenciais, não tendo concedido qualquer autorização para o seu posterior preenchimento, razão porque o preenchimento da livrança foi abusivo, excepção que invoca.
1.1. - Notificada a exequente da oposição, apresentou ela contestação , no essencial por impugnação motivada, explicando que celebrou com o executado um contrato de financiamento de aquisições a crédito , e no âmbito do qual o oponente acordou e comprometeu-se a efectuar o pagamento do crédito concedido em 72 prestações mensais, no valor de €.369,22 cada, sendo que, então, um dos exemplares do contrato foi entregue ao oponente, o qual de resto nunca a contactou informando-a de que não tinha ficado com uma cópia do contrato.
1.2. - Após resposta da exequente, proferiu a Exmª Juiz titular despacho saneador tabelar, enveredando pela não fixação/selecção da matéria de facto relevante para a boa decisão da causa, assente e controvertida, e , finalmente, realizada que foi a audiência de discussão e julgamento, com observância do seu formalismo legal, conforme tudo consta da respectiva acta, veio no seu final a Exmª Juiz a proferir decisão sobre a matéria de facto, não tendo sido apresentadas quaisquer reclamações .
1.3. - Finalmente, conclusos os autos para o efeito, foi proferida sentença, sendo o respectivo excerto decisório do seguinte teor :
“ (…)
IV- DECISÃO:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julga-se a oposição à execução procedente e, em consequência, determina-se a extinção da execução a que o presente incidente se encontra apenso.
Mais se decide julgar o pedido de condenação do executado /oponente em multa e indemnização por litigar de má-fé improcedente e, em consequência, absolve-se aquele do mesmo.
A requerida/exequente suportará as custas do processo, atento o seu decaimento - cfr.446º, n.º1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique.”
1.4.- Inconformada com a procedência da oposição, veio então a exequente da referida sentença interpor recurso de apelação, que admitido foi e com efeito devolutivo, formulando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões:
I) A Mma. Juiz do Tribunal a quo julgou a oposição à execução procedente por entender que não ficou provada a entrega de duplicado ao mutuário do contrato de mútuo (“Contrato de financiamento para Aquisição a Crédito”) celebrado entre Recorrente e Recorrido.
II) A decisão do Tribunal a quo: (i) não respeitou as normas legais sobre o valor probatório dos documentos juntos pelo Recorrente, daí resultando a incorrecta distribuição do ónus da prova, (ii) não interpretou devidamente o disposto na lei quanto ao abuso de direito e (iii) não especificou os fundamentos de facto e direito referentes à decisão sobre os efeitos da nulidade do contrato, nem assegurou o cumprimento do artigo 289, n.º 1 do CC.
III) No “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” celebrado entre as partes, o Recorrido declarou, de forma expressa e inequívoca “ (…) ter recebido o duplicado do presente contrato e ter tomado conhecimento e aceite plenamente as Condições Particulares acima em Condições Gerais constante do verso que assino(amos)/subscrevo(emos)”, conforme resulta do doc. de fls. 121 dos autos e cujas declarações aí apostas se deram por integralmente provadas.
IV) O Recorrido não impugnou (i) a letra ou assinatura do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” (ii) a exactidão da sua reprodução mecânica, (iii) a negação das instruções a que se refere o artigo 381.º do Código Civil, nem (iv) declarou não saber se a letra ou a assinatura desse contrato é verdadeira.
V) O Tribunal não podia ter formado a sua convicção quanto ao quesito 3.º com recurso à prova testemunhal e, em bom rigor, o facto referente à entrega de duplicado do contrato nem sequer devia ter sido considerado como controvertido – pelo que foi também errada a sua selecção para a base instrutória !
VI) Atento o disposto nos artigos 376.º, n.º 1 e 392.º, n.º 2, ambos do CC, o documento particular cuja autoria seja reconhecida pelo autor faz prova plena quanto às declarações que lhe são atribuídas, na medida em que são contrárias ao seu interesse.
VII) Foi feita incorrecta repartição das regras do ónus da prova: era ao Recorrido que cabia provar qualquer circunstância referente a falta ou vício da vontade na declaração que prestou perante o Recorrente: até lá, ou havia prova em contrário, ou atenta a força probatória plena da declaração do mutuário, dava-se por provada a entrega de duplicado do contrato!
VIII) O Recorrente fez prova plena da entrega de duplicado do contrato ao Recorrido, pelo que não havia dúvidas quanto a este facto, logo, não havia lugar à aplicação do artigo 516.º do CPC.
IX) Face à força probatória plena do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, o Tribunal a quo estava obrigado a dar por provadas as declarações aí apostas.
X) Sem prejuízo da deficiente elaboração do quesito 3.º - a utilização do advérbio “nunca” não favorece em nada a clareza da resposta à matéria de facto – fica claro, por decorrência da prova documental, através da sua valoração, que a resposta ao quesito 3º impõe-se como não provada.
XI) Sem prejuízo, mal andou igualmente o Tribunal a quo ao não incluir na decisão da matéria de facto todos os factos relevantes para a decisão da causa: esta injustificada limitação da matéria de facto originou a restrição de elemento coadjuvante na qualificação da conduta do Recorrido enquanto um abusivo exercício do direito.
XII) Atento o disposto no artigo 712.º, n.º 1, alínea b) do CPC, os elementos fornecidos pelo processo impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, razão pela qual deverá proceder-se à ampliação da matéria de facto assente, aí incluindo o seguinte facto, que resulta de prova documental junta pelo Recorrente que se deve considerar admitido por acordo:
(i) Em data posterior à resolução do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, o Executado pagou à Exequente a quantia de € 700,00 (setecentos euros).
XIII) Diga-se, contudo, que os factos indicados na decisão da matéria de facto são mais do que suficientes para subsumir a conduta do Recorrido à previsão do disposto no artigo 334.º do CC.
XIV) Fica clara a manifesta e ilegítima contradição da conduta do Recorrido: foi pagando as prestações devidas ao Recorrente em resultado da celebração do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, ao mesmo tempo que utilizava o veículo automóvel adquirido graças a esse financiamento.
XV) Deixou de pagar as prestações devidas mas, após a resolução do contrato, ainda efectuou um pagamento parcial ao Recorrente.
XVI) Em momento algum solicitou/pediu/exigiu do Recorrente qualquer explicação do teor do clausulado.
XVII) Após milhares de oportunidades para arguir o que quer que fosse sobre as agora invocadas nulidades que entende terem sido cometidas aquando da celebração do contrato com o Recorrente, o Recorrido nada fez!
XVIII) Como é óbvio, a arguição da nulidade do contrato por falta de entrega de duplicado constitui ilegítimo e abusivo exercício do direito pelo Recorrido, razão pela qual deverá negar-se ao executado/opoente a produção dos respectivos efeitos, por constituir um claro abuso de direito.
XIX) Por último, quanto aos efeitos da declaração de nulidade do contrato celebrado entre as partes, é insuficiente a fundamentação de facto e direito da sentença quanto às consequências para as partes da nulidade declarada, pelo que se verifica a nulidade prevista no artigo 668.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
XX) Ora, o artigo 289.º, n.º 1 do CC é claro: a declaração de nulidade do negócio tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
XXI) “No contrato de mútuo nulo por falta de forma, a restituição a cargo do mutuário só abrange o capital mutuado e os juros legais a contar da citação”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.11.2005, Proc. 1963/05.
XXII) Presume-se que o Tribunal pretendeu aplicar o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, que reputa de nulo o contrato de compra e venda financiando sempre que entre vendedor e financiador tipo de colaboração na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.
XXII) Todavia, o Recorrido não invocou qualquer facto adstrito a essa colaboração nem o Tribunal deu por provado qualquer facto nesse sentido.
XXIV) O ónus de alegação e prova dos factos referentes à colaboração entre credor e vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito cabia ao mutuário, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1 do CC.
XXV) Uma vez que não ficou provada qualquer colaboração entre Recorrente e vendedor, a putativa nulidade do contrato de mútuo celebrado entre Recorrente e Recorrido deverá resultar na restituição de tudo o que foi prestado pelas partes, atento o disposto no artigo 289.º, n.º 1 do CC.
XXVI) A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 289.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e 393.º, n.º 2, todos do CC, bem como o disposto no artigo 511.º.º, n.º 1 do CPC. e é nula atento o preceituado no artigo 668.º, n.º 1 alínea c) do CPC.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser julgado procedente e provado, com as legais consequências, procedendo à peticionada alteração da matéria de facto e à revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine a improcedência da oposição à execução.
Assim se fazendo justiça!
1.5.- Tendo o apelado F.. apresentado contra-alegações, na respectiva peça recursória aduziu as seguintes conclusões :
1- O presente recurso visa tão-somente a reapreciação da matéria de direito aplicável ao caso dos autos.
2- A recorrente começa por atacar a douta sentença apelada invocando uma errada distribuição do ónus da prova esquecendo-se, porém, que existe um princípio básico legalmente consagrado de que a lei especial prevalece em relação à lei geral, e o certo é que O DL nº 359/91 resulta de uma mera transposição para o direito interno das Directivas n.ºs 87/102/CEE, de 22/12/1986, e 90/88/CEE, de 22/02/1990, com o propósito de conceder protecção aos consumidores como de resto transparece do regime legal em causa.
3- Ora, conforme resulta do disposto no n.º 4 do art. 7.º do DL nº 359/91, “A não observância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor”.
4- Porém, a única testemunha que teve intervenção directa nos factos, “ficou na dúvida se terá entregue (o contrato) logo ao executado, ou se seria o B.. a fazê-lo em momento ulterior”, daí resultando evidente que a exequente não logrou ilidir a presunção estabelecida no n.º 4 do referido artigo 7.º, não restando outra alternativa ao tribunal “a quo” que não fosse a de dar uma resposta restritiva ao quesito 3.º da BI.
5 - Quanto ao alegado abuso de direito invocado pela apelante, dir-se-á que a expressão legal contida no art. 6.º do diploma legal em análise "sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura" consagra a imperatividade da entrega de um exemplar do contrato como pressuposto para a constituição do contrato de crédito, que tem por objectivo o conhecimento pleno e efectivo dos termos do contrato e que está, outrossim, intimamente ligada ao período de reflexão estipulado no art. 8° do mesmo diploma.
6- Ora, não tendo a apelante logrado fazer prova da entrega de um exemplar do contrato de crédito ao consumo ao apelado não foi, consequentemente, acautelado o dever de reflexão que assistia ao consumidor/apelado, pelo que sempre teria de proceder a invocada nulidade.
7- Por outro lado, o que se infere do art. 334.º, sobretudo da expressão manifestamente, é que o exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, isto é, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299 e Vaz Serra, in "Abuso de Direito", BMJ nº 85, pág. 253(sublinhado nosso);
8- Todavia, é jurisprudência e doutrina dominante que a possibilidade de invocação do abuso de direito só opera quando as circunstâncias do caso concreto apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade o que, manifestamente, não é o caso dos autos;
9- Na verdade, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, até porque as regras imperativas visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral;
10- Ora, no caso sub judice, não existe qualquer fundamento para sustentar a tese que a conduta do apelado tenha criado na apelante a plena certeza (confiança) de que nunca viria a invocar a nulidade do contrato celebrado entre ambos, mas, em contrapartida, já se pode conceber a ideia de que a apelante sabia da necessidade de entrega da cópia do contrato de crédito ao apelado, desde logo, atenta a sua posição contratual mais forte e, também, por forma a ser respeitado o período de reflexão e o dever de comunicar e informar o teor das cláusulas contratuais gerais.
11- O apelado agiu, portanto, dentro dos limites e de acordo com os juízos de valor normativamente consagrados relativamente à invocação da nulidade do contrato, não podendo, por isso, concluir-se pela verificação no caso dos pressupostos do abuso do direito, razão pela qual não pode sustentar-se que o apelado, ao invocar a nulidade do contrato de crédito ao consumo, está a exercer o seu direito em termos clamorosa e intoleravelmente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
12- Por fim, quanto à questão dos efeitos da declaração da nulidade do contrato celebrado entre as partes, o apelado não consegue alcançar a pretensão da apelante, pois que, conforme resulta da factualidade dada por provada, este já procedeu à entrega do veículo que esteve na origem do contrato de mútuo em análise, tanto mais que a apelante já procedeu à venda do mesmo a terceiro – cfr. pontos 18 e 19 dos factos provados -, ficando,portanto, a dúvida se a apelante, defende que o tribunal seja de sobremaneira rigoroso que, a par de declarar extinta a execução, a condene a entregar ao apelado as 11 prestações já pagas?!...
13- Assim, e em suma, dir-se-á que a douta sentença apelada fez um enquadramento correcto dos factos ao direito, não merecendo, portanto, qualquer censura.
Termos em que deve a apelação ser julgada improcedente, mantendo-se a douta sentença apelada nos seus precisos termos e com as consequências legais.
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Thema decidendum
1.6. - Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações ( daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória , delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem) do recorrente (cfr. artºs. 684º nº 3 e 685º-A, nº 1, ambos do Código de Processo Civil anterior ao aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a apreciar e a decidir resumem-se a saber:
I - Se a sentença recorrida se encontra ferida de nulidade, nos termos da alínea c) , do nº1, do artº 668º, do CPC ;
II - Se deve ser alterada a decisão proferida pelo tribunal a quo e relativa à matéria de facto, por força e ao abrigo do disposto no artº 712º, nº1, alínea b), do CPC ;
III - Se em face da factualidade assente e sobretudo em resultado das alterações introduzidas por este Tribunal da Relação na decisão proferida pelo a quo sobre a matéria de facto, se impõe revogar a sentença apelada, sendo a oposição à execução julgada como improcedente, e considerando ainda que :
a) a arguição da nulidade do contrato por falta de entrega de duplicado constitui um ilegítimo e abusivo exercício do direito pelo Recorrido/apelado ;
IV - Se a sentença apelada incorre em error in judicando no tocante ao “decidido” quanto aos efeitos da “declarada” nulidade do contrato de mútuo celebrado entre Recorrente e Recorrido.
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2.Motivação de Facto.
Mostra-se fixada pelo tribunal a quo a seguinte factualidade :
2.1.- A requerida/exequente, B.., S.A., intentou a execução com o n.º 1939/10.0TBFAF, a que o presente está apenso, contra o requerente F.., para cobrança da quantia de € 18.308,91, acrescida de juros vencidos até 05-11-2010, calculados à taxa de 4%, no valor de € 822,90, e vincendos desde tal data até efectivo e integral pagamento (fls. 2 e segs. do processo principal);
2.2. - A requerida/exequente deu à execução a livrança constante de fls. 5 do processo principal, assinada pelo requerente/executado no lugar destinado à assinatura do subscritor e entregue à requerida/exequente sem estar preenchida em qualquer outro espaço ;
2.3. - A referida livrança foi preenchida pelo requerido/exequente nos lugares destinados à identificação do valor, local e data de emissão, data de vencimento, nome e morada dos subscritores e local de pagamento e domiciliação;
2.4. - Em tais espaços da livrança consta o seguinte:
a) local e data de emissão: Lisboa / 2009-10-12,
b) importância, em numerário e extenso: € 24.417,11,
c) data de vencimento: 2009-10-22,
d) nome e morada do subscritor: F... Rua ..,Moreira de Rei;
2.5 - Na mesma livrança consta a inscrição "contrato vendas crédito nº 34433 ", aposta pela requerida/ exequente;
2.6 - O requerente/executado assinou, no espaço destinando à assinatura do mutuário, o documento cuja cópia consta de fls. 121 dos autos, denominado “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” com o n.º 34433, datado de 18-05-2007, que foi impresso por B.., S.A. com o respectivo clausulado;
2.7.- Em tal documento, o requerente figura como mutuário e a requerida/exequente como entidade mutuante;
2.8. - No mesmo documento consta a referência ao veículo de matrícula ..-DM-.., como a viatura cuja aquisição seria financiada pela requerida/exequente ao requerente/executado;
2.9. - No aludido documento constam, no item “Condições Particulares”, além do referido, as seguintes inscrições:
a) Fornecedor do bem: A.., Lda.
b) Descrição do Bem: automóvel, marca Renault, modelo Megane, 1.5 DCI, (…);
c) Preço do bem: € 17.500;
d) Montante do empréstimo: € 17.855,31;
e) Despesas de dossier: 100,00
f) Imposto de Abertura de crédito: € 107.31;
g) Taxa de juro 13.19% e TAEG: 15,02%;
h) Número de prestações: 72;
i) Periodicidade: mensal, com início em 27-06-2007;
j) Montante de cada prestação: € 369,22;
2.10 - Consta da cláusula 1 das Condições Gerais vertidas no verso do documento acima mencionado, o seguinte:
“1- O presente contrato de mútuo é celebrado tendo em vista a aquisição, pelo(s) Mutuário(s), do bem identificado nas Condições Particulares;
2- (…);”
2.11- Consta da cláusula 2: “O(s) Mutuário(s) autorizam irrevogavelmente a B.., S.A. a pagar à entidade indicada nas condições particulares como fornecedor do bem, cuja aquisição é agora financiada, a quantia referida nas condições particulares ;
2.12 - Consta da cláusula 3:
“1- O empréstimo será reembolsado em prestações mensais, iguais e sucessivas, cujo número, valor e data estão fixados nas Condições Particulares deste Contrato.
2- O(s) Mutuário(s) fica(m) obrigado(s) ao pagamento das prestações do presente Contrato através de uma Instrução Permanente de Transferência Bancária por débito na sua Conta de Depósitos à ordem e crédito na conta da B.., S.A., nos termos definidos em documento contratual anexo.(…) ”
2.13. - Consta da cláusula 7 das Condições Gerais vertidas no verso do documento acima mencionado, o seguinte:
“ Resolução
1- O não pagamento pontual de qualquer uma das prestações deste Contrato, o incumprimento em geral das obrigações do mesmo resultantes, a manifesta deterioração da situação económica, (…), constituem fundamento para a sua resolução e o imediato vencimento das prestações vincendas.
2- O B.., S.A., no caso previsto no número anterior terá direito a:
a) Declarar resolvido o presente Contrato.
b) Ao pagamento, à data da resolução das prestações vencidas e não pagas acrescidas dos respectivos juros de mora e encargos, bem como de todas as prestações vincendas.
c) (…)
d) Executar o presente Contrato ou qualquer garantia adicional ou autónoma que tenha exigido ao (s) Mutuário(s) Avalista(s).
(…)”
2.14- Consta da cláusula 9 das Condições Gerais vertidas no verso do documento acima mencionado, o seguinte:
“Garantias e Pacto de Preenchimento
1- Como garantia das obrigações assumidas no presente Contrato poderão ser constituídas a favor da B.., S.A. quaisquer garantias nos termos que vierem a ser ajustados entre as partes.
2- No caso de ser entregue uma Livrança esta deverá ser emitida com valor, data de emissão e vencimento em branco, subscrita pelo (s) Mutuário(s) com o Aval dado ao (s) Subscritor(es) pelo(s) Avalista(s), que a B.., S.A fica desde já, autorizada a preencher pelo montante correspondente ao somatório das prestações vencidas e não pagas, somatório das prestações vincendas, juros e demais encargos e despesas, incluindo as despesas do seguro, judiciais, extrajudiciais e imposto de selo dos títulos, a fixar a data de emissão e vencimento, bem como a designar o local de pagamento, no caso de este contrato não vier a ser integral e pontualmente cumprido em todas as suas cláusulas e obrigações, fazendo deste título o uso que melhor entender na defesa dos seus interesses e sem que, por este facto, se opere a novação do crédito ora concedido”.
2.15 - A livrança dada à execução foi entregue à requerida/exequente no estado referido em 2.2. para garantir o pagamento do mútuo a que respeita o documento referido em 2.6 e 2.9 ;
2.16 - A requerida/exequente entregou à entidade vendedora do veículo referido em 2.6 e 2.9. o montante do empréstimo aí mencionado;
2.17 - O requerente/executado pagou à requerida/exequente, a título de cumprimento do acordo a que respeita o documento acima referido, as primeiras 11 prestações mensais referidas em 2.9. e cessou o pagamento das mesmas;
2.18 - O requerente/executado, após , entregou à requerida/exequente o veículo automóvel referido em 2.9. ;
2.19 - Após, a requerida/exequente procedeu à venda a terceiro do veículo mencionado em 2.6 a 2.9. pelo preço de € 6.100,00;
2.20 - (…) e enviou carta registada com A/R, datada de 02 de Julho de 2010, com o seguinte teor: “Assunto: Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito nº 34433 Venda do Bem recebido em Dação.
Relativamente ao assunto em epígrafe, vimos pela presente informar Vª Exª, que, após a dação em pagamento, foi-nos possível vender o bem dado em pagamento por Eur. 6.100,00.
Assim, o valor da dívida ficou reduzido a Eur. 19.534,62, deduzida a quantia por nós recebida com a referida venda, liquida despesas.
Deve aquela quantia ser liquidada no prazo de 10 dias, findo o qual, caso a mesma não seja liquidada nem exista plano de pagamentos acordado para a regularização, o contrato transitará definitivamente para cobrança judicial (…)”
2.21 - Antes da assinatura do documento referido em 2.6 a 2.9, a oponente tomou conhecimento do referido seu conteúdo designadamente do referido em 2.10 a 2.15 ;
2.22- Antes da assinatura referida em 2.6., o documento referido em 2.6. a 2.9. foi explicado ao oponente na frente e verso ;
2.23 - Pelo menos aquando do momento da assinatura do documento referido em 2.6, o oponente não recebeu duplicado do mesmo ;
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3.- Se a sentença recorrida se encontra ferida de nulidade, nos termos da alínea c), do nº1, do artº 668º, do CPC.
Na respectiva peça recursória, invoca a apelante a nulidade da sentença recorrida, alegando para tanto que a mesma padece do vício a que alude a alínea b), do artº. 668° do CPC , pois que , justifica a recorrente, é exígua e insuficiente a fundamentação de facto e de direito quanto às consequências para as partes da nulidade declarada pelo Tribunal a quo.
Reafirmando tal nulidade de sentença em sede de conclusões da apelação ( ainda que, quiçá por mero lapso, alude na conclusão XXVI à alínea c), do nº1, do artº 668º ) , e importando decidir, adianta-se desde já que de todo não padece a sentença apelada do vício apontado pela apelante.
Senão, vejamos.
Antes de mais, importa começar por reconhecer que do disposto no artº 158º, do CPC (nº1), decorre um comando expresso no sentido de que as decisões proferidas sobre um qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas , e , bem assim (nº2), que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
Em causa está, em rigor, a consagração na Lei adjectiva do princípio constitucional vertido no artº 205º da Lei Fundamental, no sentido de que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Aludindo a tal exigência constitucional, diz-nos v.g. Jorge Miranda e Rui Medeiros (1) que, em causa não está uma mera exigência formal, pois que, a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objectivo - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e de carácter subjectivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários, sendo que, para a cumprir, há-de a “ fundamentação ser expressa, clara e coerente e suficiente, ou seja, não deve ser deixada ao destinatário a descoberta das razões da decisão; os motivos não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos ; a fundamentação deve ser adequada à importância e circunstância da decisão.”
Já José Alberto dos Reis (2), referindo-se à referida exigência, explica que importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser.
E, adianta o mesmo Prof. José Alberto dos Reis (3), “ Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão, o tribunal tem de justificá-la , pela razão simples de que uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valeram os seus fundamentos . Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão ; mas mal vai à força quando não se apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que a decisão é conforme à justiça”.
Concluindo, e como o refere ainda José Alberto dos Reis (4), sendo a função própria do Juiz a de interpretar a lei e aplicá-la aos factos da causa, “ (…) deixa de cumprir o dever funcional o Juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto “.
Em suma, inequívoco e manifesto é que o nosso legislador, e como regra, proíbe a fundamentação passiva, maxime por simples adesão/remissão, impondo que o julgador/decisor enuncie as razões subjacente ao comando decisório que emite, o que deve fazer/expor num discurso próprio, ancorado numa análise e ponderação também próprias.
É assim que, e no que à sentença diz respeito, é o artº 659º , do CPC, expresso em dizer/exigir que , após a identificação das partes e do objecto do litígio - fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar - , seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final ( cfr. nº2 ), sendo que, no seguimento das apontadas exigências de fundamentação, mais adiante diz-nos o art.º 668, n.º 1, b), do mesmo diploma legal, que é nula a sentença (5) quando não especifique ela os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Finalmente, e no que concerne ao vício de nulidade de sentença, por ausência de fundamentação, importa porém atentar que, como é jurisprudência uniforme sobre tal matéria, apenas a falta absoluta de motivação o integra , ou seja , verificar-se-á ele quando ela - a motivação - não existe de todo, mas , existindo ela, ainda que escassa, deficiente ou mesmo pobre (6), já não faz sentido em aludir à existência de uma nulidade adjectiva (6).
Do mesmo modo, e a propósito do apontado vício, é a doutrina também unânime em considerar que importa (7) distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada . É que, adverte José Alberto dos Reis (8), o que a lei considera nulidade é “(…)a falta absoluta de motivação ; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Chegados aqui, e analisada a decisão/sentença que é objecto da apelação, manifesto é que não padece a mesma da ausência - in totum - de fundamentação de facto e de direito, e , mesmo no tocante ao segmento atinente à explicação da ratio da sustentada nulidade do contrato outorgado entre apelante e apelado, é clara a Exmª Juiz a quo em precisar que resulta/decorre o referido vício do facto de não ter havido o cumprimento do dever de entrega do exemplar do mesmo contrato, e tendo presente o disposto no art. 7º, nº1, do DL. 351/91, de 21.8.
E, mais adiante, abordando quais as consequências da declarada nulidade do contrato, volta a Exmª juiz a quo a precisar quais são elas, precisando v.g. que não obstante o disposto no artº 289º,nº1, do CC, certo é que não pode o executado devolver a utilização ( que não do veículo ) que fez do veículo por si.
Em suma, se algum vicio formal se pode assacar à sentença da primeira instância, ele não será certamente a ausência de fundamentação , tão evidente e manifesto é o cumprimento pelo tribunal a quo do disposto no artº 659º, nºs 1, 2 e 3, do CPC, ou seja, a indicação das questões a solucionar/decidir, a indicação dos factos provados , a subsunção dos mesmos ao direito aplicável, e , finalmente , o indicação do comando decisório .
Dir-se-á, assim, e com todo o respeito, que apenas não vislumbra a recorrente, e na sentença apelada, a respectiva fundamentação de facto e de direito, porque não o quer ver, ou , o que de resto é vício recorrente em sede de instâncias recursórias, com tal fundamentação não está de acordo.
Sucede que, a apontada discordância, porque tem já que ver com eventuais erros de julgamento, de facto ou tão só de direito, designadamente a não conformação da sentença com o direito substantivo aplicável, não integra em rigor o vício/nulidade de sentença a que alude a alínea b), do nº1, do CPC.
Destarte, no seguimento do acabado de expor, e mais não se justifica dizer, não enfermando portanto a sentença apelada de um qualquer vício formal de nulidade, por falta de fundamentação, improcedem, assim, as conclusões da apelação atinentes à invocada nulidade subsumível à alínea b), do nº1, do artº 668º, do CPC
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3.1. - Da “impugnação” da decisão do a quo e relativa à matéria de facto.
Decorre das alegações e conclusões da apelação da recorrente que a mesma se insurge contra a decisão do a quo relativa à matéria de facto, maxime não aceita a recorrente que tenha o tribunal a quo considerado provado - em resultado e com base na prova testemunhal produzida - que “Pelo menos aquando do momento da assinatura do documento referido em 2.6 , o oponente não recebeu duplicado do mesmo “, antes considera a exequente/apelante que fez prova plena da entrega do duplicado do contrato ao recorrido.
Em rigor, portanto, almeja a apelante que o tribunal ad quem modifique a decisão proferida pelo a quo sobre a matéria de facto e no tocante ao concreto ponto de facto supra referido.
Ora, sendo inquestionável que a recorrente, para alcançar o desiderato referido, não se socorre do meio a que alude o artº 685º.B, do CPC [ que é o mesmo que dizer que não invoca a apelante um qualquer erro do a quo em sede de apreciação das provas ] , temos para nós que nada obsta porém a que este tribunal se debruce sobre a pertinência de se introduzir na decisão do tribunal de 1ª instância a alteração pretendida pela recorrente, e isto tendo em consideração que as razões para tanto invocadas são prima facie susceptíveis de se subsumirem à previsão da alínea b), do nº 1, do artº 712º, do CPC, ou seja , em causa está aferir se efectivamente os elementos fornecidos pelo processo não impunham uma decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
É que, sendo a referida alínea b), do nº 1, do artº 712º, do CPC, utilizável quando na presença de ponto de facto cuja demonstração/prova estava sob a alçada de prova legal ou tarifada, isto é, “ aquela cujo valor de convencimento é imposto pela lei ao Juiz “ (9) , então a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso de uma regra de direito probatório material ( cfr. artº 364º,nº1, do CC ) , impondo-se ( ex officio ) a mesma ao Tribunal da Relação e sem que para tanto tenha ela, sequer, sido solicitada pela parte interessada . (10)
De resto, como bem nota A.Geraldes ( ibidem ) ao acórdão da Relação aplicam-se “ (…) as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artº 659º,nº3, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação os factos admitidos por acordo e os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito. Por outro lado, nos termos do artº 646º,nº4, devem ter-se por não escritas as respostas do tribunal sobre factos que só possam provar-se por documentos ou que estejam provados por documentos, por acordo ou por confissão das partes “.
Dito isto, é vero que in casu provado está que o executado/apelado assinou , e no espaço destinado à aposição da assinatura do mutuário, um documento intitulado de “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, datado de 18-05-2007, nele figurando o executado como o mutuário e, a ora exequente, como a entidade mutuante.
Igualmente inquestionável é que, no documento referido, consta a declaração, atribuída ao mutuário e ora executado, de “(…) ter recebido o duplicado do presente contrato e ter tomado conhecimento e aceite plenamente as Condições Particulares acima em Condições Gerais constante do verso que assino(amos)/subscrevo(emos)”.
Finalmente, pacifico é que o ora apelado, notificado da respectiva apresentação pela ora apelante, e confrontado com o referido teor, não impugnou a veracidade da assinatura aposta no referido documento/contrato e a si atribuída , limitando-se tão só a alegar que “ o oponente impugna o teor dos documentos juntos (…) “.
Ora, sendo in casu o supra referido documento um documento particular ( cfr. artº 363º,nºs 1 e 2, do CC ), impõe-se desde logo considerar como verdadeira a assinatura nele aposta pelo executado, porque não impugnada, e isto porque, o nº1, do artº 374º, do CC, diz-nos que “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.”
Por sua vez, e no que à respectiva - do documento particular referido - força probatória diz respeito, rezam os nºs 1 e 2, do artº 376º, do CC, que “ 1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (…). ”
Com interesse para a questão ora em apreço, estipula ainda o nº 2, do artº 393º, do CC, que “ (…) não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena “.
Finalmente, reza já o artº 347º, do CC, sob a epígrafe de “Modo de contrariar a prova legal plena“ , que “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”.
Em razão do conjunto das disposições legais acabadas de referir, explicando-as, diz Lebre de Freitas (11) que a respectiva ratio parte do pressuposto de que, contendo a apresentação de um documento a afirmação - expressa ou implícita - de que provém ele da pessoa a quem é imputado, e caso a parte contrária não impugne a respectiva assinatura, tal aceitação ( expressa ou tácita ) tem todos os efeitos da confissão ou da admissão processual e, assim sendo, estabelecida a veracidade da sua subscrição pela pessoa a quem é atribuído, dela resulta a veracidade do respectivo contexto, ou seja, a respectiva força probatória “ circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações ( de ciência ou de vontade ) que nele constam como feitas pelo respectivo subscritor”.
Por outra banda, sendo efectivamente questão diversa o da validade e/ou eficácia da declaração de ciência constante do documento, enquanto meio de confissão dos factos que dele são objecto, e sendo a norma do artº 376º,nº2, do CC uma aplicação dos princípios que regem a confissão (12), temos assim que a confissão [ que é o “ reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” - cfr. artº 352º, do CC ] extrajudicial escrita ( encarada como declaração receptícia) só tem porém força probatória plena quando feita à parte contrária ou a quem a represente - cfr. artº 358º,nº2, do CC. (13)
Já relativamente ao verdadeiro/correcto alcance do supra citado nº2, do artº 393º, do CC [ o qual, recorda-se, reza que “ (…) não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena “ ], ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, que (14) “É necessário interpretar nos seus justos termos a doutrina do nº2, cingindo-nos aos factos cobertos pela força probatória plena do documento. Assim, nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou os vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.”
E logo de seguida, acrescentam Pires de Lima e Antunes Varela, que “ O documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações dele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, quando desfavoráveis ao declarante . Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro, dolo ou coacção ou simuladas. Por isso mesmo a prova testemunhal se não pode, neste aspecto, considerar legalmente interdita “.
Aqui chegados e apetrechados da pertinente informação normativa e doutrinal, e aplicando-a ao caso dos autos, tudo aponta para que a declaração inserta no “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” subscrita pelo apelado, no sentido de que recebeu o duplicado do referido contrato , porque efectuada perante a parte contrária ( cfr. artº 358º,nº1, do CC) , consubstancia em rigor o reconhecimento pelo declarante de um facto que lhe é desfavorável, ou seja, equivale a uma confissão extrajudicial vertida em documento particular, e , assim sendo, em face do disposto na referida disposição legal, goza ela de força probatória plena.
Porque in casu, como vimos já outrosssim, não invocou ( e portanto nada provou a tal respeito ) o apelado quaisquer factos relacionados com pertinentes vícios da declaração/confissão, e ademais, em razão do preceituado nas disposições conjugadas dos artºs 347º, 376º, nº2, 358 nº2 e 393 nº2 , todos do C. Civil , “obrigado” estava o tribunal a quo a considerar como provado o facto compreendido na declaração confessória ( ou seja, ter o apelado recebido o duplicado do contrato), estando-lhe por outra banda vedado, e socorrendo-se para tanto da prova testemunhal produzida, responder, como respondeu, ao quesito 3º tal como o veio a fazer.
Em razão do acabado de expor, e tendo presente o disposto nos artºs 646º, nº 4, 713º, nº2, e 659º, nº3, todos do CPC, prima facie tudo aponta para que ao ad quem se exija/imponha, não apenas considerar como não escrita a resposta ao quesito 3º, como por outra banda considerar como integrando facto provado a alegada - pela apelante - entrega ao oponente/apelado, aquando da respectiva assinatura, de um exemplar do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” [ cfr. alegação da exequente inserta nos artºs 8º a 10º da oposição e declaração confessória do apelado ]. (15)
O apontado “desfecho”, porém, admite-se, não é aquele que foi seguido/sufragado em algumas decisões de tribunais de segunda instância que sobre a questão foram já chamados a pronunciar-se.
É assim que, v.g. em Ac. de 26/2/2008 (16), veio o Tribunal da Relação de Coimbra a decidir/concluir que “ Impendendo sobre o credor a prova de ter efectuado a entrega de um exemplar do contrato ao subscritor/consumidor, no momento da respectiva assinatura (artigos 6º, nº 1 e 7º, nº 4, do DL nº 359/91), e traduzindo essa entrega um acto material posterior e exterior à elaboração (preenchimento e assinatura) do documento, não pode essa prova decorrer do simples funcionamento de regras probatórias estruturadas em função do conteúdo do próprio documento (caso do artigo 376º do CC), que prescindam da demonstração concreta dessa entrega.”
É assim também que, o mesmo tribunal da Relação, alinhando pelo entendimento referido, veio muito recentemente (17) a decidir/concluir que:
“ Em contrato de crédito ao consumo que é simultaneamente um contrato de adesão, a cláusula onde conste que a adquirente recebeu cópia do contrato, não faz prova plena da efectiva entrega do mesmo ao consumidor, ainda que não tenha sido arguida a falsidade quer do contrato quer da assinatura nele aposta e notarialmente reconhecida
Efectivamente, nos casos sobreditos, tal cláusula previamente elaborada não pode ser tida como declaração da contraente adquirente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 376.º, n.º 1, do CC.
Na verdade, atenta a prévia elaboração do contrato pela financiadora, as cláusulas contratuais gerais ali apostas, só podem valer como “declarações atribuídas ao seu autor” relativamente a esta.
Como tal, é admissível a prova testemunhal sobre tal questão e que levou a julgadora a considerar como não provada tal entrega.”
Pela nossa parte, porém, não obstante os sabedores entendimentos subjacentes a tais decisões (17-A), não se nos afigura serem eles suficientemente determinantes a ponto de merecerem a nossa adesão , e isto apesar de, reconhece-se, nada obstar à qualificação jurídica operada pela primeira instância no tocante ao contrato outorgado entre apelante e apelado ( sendo ele um “Contrato de Crédito ao Consumo”, subordinado à data da respectiva celebração ao regime do DL 359/91 de 21/09 ), e bem assim, não existirem outrossim razões - antes pelo contrário - para que as respectivas cláusulas não devam reger-se pelo DL nº 446/85, de 25 de Outubro, sabido como se sabe que os contratos de crédito ao consumo, quais contratos de adesão, integram no essencial estipulações elaboradas sem a prévia negociação individual pelo financiador, limitando-se o consumidor a elas aderir sem possibilidade de discutir , casuística ou globalmente, o seu conteúdo. (18)
Para tanto, e desde logo, importa não olvidar que a declaração de vontade ( cfr. artº 217º, do CC) pode revelar-se por qualquer meio, ou seja, qualquer processo de expressão directa ou indirecta da vontade é, em tese geral, relevante (19) , e , ademais, como o refere expressamente o artº 4º, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, a cláusula e ou declaração negocial do aderente inserida em proposta de contrato singular inclui-se no mesmo, para todos os efeitos, pela aceitação.
Tal equivale a dizer que, ainda que inseridas em contrato de adesão, e porque como não pode deixar de ser, a declaração da respectiva aceitação pelo destinatário pressupõe sempre a verificação de todos os requisitos de esclarecimento e liberdade, nada obriga portanto a considerar que as “declarações” e/ou comportamentos declarativos nele inseridas não reflictam ou traduzam sequer e em rigor a emissão de uma efectiva declaração de vontade do aderente/aceitante. (20)
Acresce que, pressupondo necessariamente a outorga de um negócio jurídico a existência de declarações de vontade negociais, e impondo o artigo 232º , do CC, a coincidência entre a aceitação e a oferta relativamente aos elementos essenciais do negócio, sob pena de não conclusão do contrato, precisa o STJ que “ Nas cláusulas contratuais gerais, por constarem de modelos pré-elaborados, a adesão faz- se na emissão da proposta e na aceitação do modelo “, ou , dito de uma outra forma, “o acordo de vontades, no caso, obtém-se por simples adesão às cláusulas predetermidadas , com exclusão de negociação prévia “. (21)
Em face do referido, e não existindo quaisquer razões [ recorda-se que da motivação de facto decorre que (2.21) “Antes da assinatura do documento referido em 2.6 a 2.9, a oponente tomou conhecimento do referido seu conteúdo designadamente do referido em 2.10 a 2.15 e (2.22) antes ainda da referida assinatura o documento referido em 2.6. a 2.9. foi explicado ao oponente na frente e verso“ ] que apontem para que a cláusula e/ou declaração do oponente tenha sido manifestada sem o respectivo conhecimento completo e efectivo, a ponto de se justificar dever ela considerar-se como excluída do contrato pelos artºs 8º e 9º, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro (22), não se descortinam fundamentos pertinentes para que a declaração do oponente/contraente e os factos nela compreendidos não deva ser valorada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 376.º, n.ºs 1 e 2 do CC.
Ademais, como bem se chama a atenção no Ac. do STJ de 20/3/2012 [ in Proc. nº 1557/05.5TBPTL.L1, e acessível in www.dgsi.pt ], e importa não descurar , o compreensível regime proteccionista e de favor que enforma o DL nº 446/85, de 25/10, “ não dispensa o consumidor de uma conduta diligente, zelosa e cuidada, que a boa fé aconselha e exige, como também não onera o promotor das cláusulas de adesão com incumbências de tutela sobre o mesmo consumidor que o resguardem de negligência ou descuido “.
Depois, não descurando que o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura, e que, a inobservância do referido presume-se imputável ao credor ( artºs 6º,nº1, e 7º,nº4, ambos do DL 359/91, de 21 de Setembro), o certo é que o dispositivo legal referido em último lugar ( qual presunção legal ), além de não dispensar a prova do facto-base ( a não entrega de um exemplar do contrato ao consumidor ) , não opera sequer e expressis verbis uma qualquer modificação dos princípios relativos à distribuição do ónus da prova ( como o faz expressamente o artº 5º, nº3, do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, e com referência à comunicação - pelo contraente proponente em relação ao aderente - adequada e efectiva das cláusulas contratuais gerais ), assim se compreendendo que, a propósito de tal questão, e a despeito do entendimento em contrário de Gravato Morais (23), tenha o Tribunal da Relação de Lisboa (24) sustentado já que os supra “mencionados normativos não impõem ao credor o ónus da prova da entrega de um exemplar do contrato ao consumidor, nem estabelecem qualquer presunção dessa não entrega”.
Seja como for, ainda que assim não se entenda, o que importa é que in casu o facto-base ( a não entrega de um exemplar do contrato ao consumidor ) da presunção legal de imputabilidade, e independentemente do respectivo ónus de prova incumbir, ou não, ao financiador ou ao consumidor, não se provou, antes provou-se ( em razão do preceituado nas disposições conjugadas dos artºs 347º, 376º, nº2, 358 nº2 e 393 nº2 , todos do C. Civil ) que não se verificou ele, ou seja, ao oponente foi entregue pela exequente um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura .
É que, insiste-se, e no seguimento do ensinamento de Vaz Serra [ in RLJ, ano 114º,pág. 204 ] “ o declarado pelos contraentes no clausulado de um contrato (documento particular) assinado por ambos, e que se mostra contrário aos respectivos interesses, deve considerar-se confessado, logo assente nos autos “.
Em conclusão, e nos termos do art. 376º nº 2 do Código Civil , e ainda que tendo como objecto os factos compreendidos em declaração inserta em contrato de crédito ao consumo [ que o oponente assinou, e de cujo conteúdo foi informado, razão porque não pode de todo desconhecer tal declaração, agindo claro está com a normal diligência ], devem eles considerarem-se provados na medida em que são contrários aos interesses do declarante .(25)
E, assim sendo, com base nas razões acabadas de descrever e impondo-se a procedências das conclusões V a IX da apelação, ou seja, devendo considerar-se como não escrita a resposta do a quo ao quesito 3º, e , por outra banda, estando o ad quem “obrigado” a ( cfr. o disposto nos artºs 646º, nº 4, 713º, nº2, e 659º, nº3, todos do CPC ) considerar como integrando facto provado a entrega ao oponente/apelado, aquando da respectiva assinatura, de um exemplar do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, a apelação tem necessariamente que proceder in totum, pois que não decorre da factualidade provada, antes pelo contrário, fattispecie subsumível à previsão dos artºs 6º, nº 1 e 7º,nº4, ambos do DL nº 359/91, de 21 de Setembro.
Estando prejudicadas todas as demais questões elencadas no item 1.6., II e IV, do presente Acórdão, ainda assim reputamos como conveniente tecer algumas considerações no tocante ao decidido pelo a quo relativamente á questão do
“ abuso de direito” , sendo nossa convicção que, apesar de não considerada e valorada - no despacho a que alude o nº2, do artº 653º, do CPC, e como se impunha que tivesse sido, por integrar factualidade relevante para a decisão da oposição e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito - ,toda a pertinente factualidade alegada pela apelante [ maxime nos artºs 42º a 45º da contestação ] , ainda assim dispõem os autos dos elementos necessários para o conhecimento da excepção em causa e sem necessidade de lançar mão do nº4, in fine, do artº 712º, do CPC..
É que, como nota Abrantes Geraldes (26) “ É de todo inadmissível que a Relação anule a decisão da matéria de facto por alegada omissão do juiz de 1ª instância no que concerne à enunciação dos factos que determinados documentos revelem “
Senão. Vejamos.
3.1.- Se a arguição da nulidade do contrato por falta de entrega de duplicado constitui in casu um ilegítimo e abusivo exercício do direito pelo Recorrido/apelado.
No tocante ao invocado abuso do direito, considerou a Exmª Juiz a quo que, apesar de resultar da factualidade provada que “ o executado terá utilizado a viatura vários meses já que pagou muitas das prestações mensais (onze prestações) que deveria pagar, ou seja, o total de 72 prestações “, sopesada porém a “ a gravidade do comportamento da exequente, profissional no mercado de crédito com o arsenal de meios logísticos, marketing, publicidade, de que dispõe, o quadro factual em que o executado (a parte mais fraca no contexto negocial, repetimos) invocou a nulidade, não exprime abuso do direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa-fé.”
Tal entendimento, a nosso ver, e com todo o respeito, peca por algum “facilitismo”, apenas compreensível/aceitável à luz de uma exacerbada protecção do consumidor/aderente, e não obstante sobre o mesmo recair outrossim, recorda-se, o dever de manter uma conduta diligente e pautada pela observância dos mais elementares princípios da boa-fé que sobre todos os contraentes impendem, maxime em obediência ao poder jurisgénico da pessoa na conformação das sua relações, e à sua autodeterminação e autoresponsabilidade .
Ora, com referência a tal matéria, é hoje praticamente unânime o entendimento de que nada obsta a que o financiador se socorra do instituto do abuso do direito para, através dele, se paralisar os efeitos da invocação pelo consumidor da nulidade formal do contrato de crédito ao consumo, sendo v.g. e em rigor “ legitima a pretensão do financiador que sustenta que a arguição da nulidade formal ou procedimental pelo consumidor configura um venire contra factum proprium já que o direito está a ser exercido em contradição com a sua conduta anterior ( por exemplo o pagamento das prestações do mútuo durante um longo período )”.(27)
No essencial, socorre-se a doutrina e a jurisprudência da concretização do “venire contra factum proprium” nas inalegabilidade de vícios formais, caracterizando-se então o comportamento do consumidor pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente, ou seja, como ensina o Prof. Menezes Cordeiro (28), em causa estão então dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo, sendo que o primeiro - o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.
Para tanto e ainda segundo o mesmo Professor (29) o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível.”
Isto dito, e mais não se justifica dizer, e incidindo agora sobre o caso dos autos, verifica-se que o titulo executivo ( uma livrança ) entronca a respectiva justificação em contrato de financiamento para aquisição a crédito - aquele cuja nulidade é invocada pelo consumidor/apelado - datado de 18/5/2007 , e relativamente ao qual, antes da respectiva assinatura, tomou o oponente conhecimento do respectivo conteúdo e foi-lhe explicado a frente e o verso ( cfr. factualidade inserta em 2.6., 2.21 e 2.22 ) .
Obrigando-se o apelado ao pagamento à apelante de 72 prestações mensais de € 369,22 cada uma, pagou o primeiro as 11 primeiras prestações, e , cessando doravante tal pagamento, entregou à requerida/exequente o veículo automóvel objecto do financiamento, vindo a 02 de Julho de 2010 a ser informado da respectiva venda e da persistência de uma dívida de € 19.534,62, sendo-lhe então exigido a respectiva liquidação no prazo de 10 dias.( cfr. factualidade inserta em 2.16. a 2.20 ).
Na sequência da referida interpelação da apelante, dirige o ora apelado à primeira pelo menos duas comunicações escritas ( cfr. documentos particulares juntos aos autos, imputados ao apelado e cuja assinatura não foi impugnada - limitando-se o oponente a impugnar o respectivo teor - , nos termos do artº 374º, do CC ) , de Maio de 2010 e de Março de 2011, mas, do respectivo teor, não se descobre uma única linha/queixa relacionada com a não disponibilidade de um qualquer exemplar/cópia do contrato de crédito, e isto alegadamente por não lhe ter sido entregue pela ora apelante.
Tendo sido instaurada a execução pela ora apelante, é em Maio de 2011 ( cerca de 4 anos após a outorga do contrato de crédito) , já no âmbito obviamente da cobrança coerciva do título de crédito dado à execução, é que vem o apelado invocar a nulidade do contrato, pretendendo através da arguição do referido vício obstar ao pagamento da livrança.
Ora, como se nos figura algo clarividente, não pode de todo a conduta do apelado, por acção e omissão, deixado de ter suscitado, criado e alimentado junto da apelante, a manutenção de uma efectiva expectativa e sã confiança de que nada obstava à validade do contrato de crédito, maxime não enfermava ele de todo de quaisquer vícios que gerassem a respectiva nulidade.
Vir agora, em sede de oposição à execução, suscitar pela primeira vez a nulidade do contrato, cerca de 4 anos após a sua outorga, e após o seu cumprimento efectivo no decurso do primeiro ano da sua vigência, configura em rigor o exercício ilegítimo de um direito, excedendo o apelado, e manifestamente, os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e/ou económico do direito, o que tudo preenche a fattispecie do art. 334º do Código Civil.
Em razão do exposto, temos para nós que, não fora a procedência da apelação pelas razões explicadas em 3.1., sempre in casu se imporia o reconhecimento do abuso de direito [ tal como em situação cujos contornos se aproximam da provada nestes autos foi decidido por este mesmo Tribunal da Relação de Guimarães (30) ], nos termos do art. 334º CC, o que conduziria à paralisação dos efeitos decorrentes da nulidade do contrato, e , consequentemente, à procedência da instância recursória e ao prosseguimento da execução.
Em suma, impondo-se a procedência da apelação, importa portanto revogar a decisão/sentença apelada, determinando-se em consequência o prosseguimento da instância executiva.
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4- Sumariando:
4.1 - Ainda que seja defensável sustentar-se que é sobre o credor que recai o ónus da prova de ter efectuado a entrega de um exemplar do contrato de crédito ao consumo ao consumidor, nada obsta porém a que o tribunal dê como provado tal facto unicamente em razão de declaração do aderente [ de ter recebido o duplicado do contrato ] inserta no documento que titula o referido contrato;
4.2. - É que, porque na presença de um documento particular, e estando a respectiva autoria reconhecida nos termos do artº 374º, do CC, faz ele prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor , isto por um lado , e , por outro, os factos compreendido na declaração referida consideram-se provados, desde que contrários aos interesses do declarante ;
4.3. - Ademais, não obstante estar em causa um contrato de adesão, nada justifica que se considere que a declaração nele inserta e supra referida não reflicta ou traduza, em rigor, a emissão de uma declaração de vontade do aderente/consumidor.
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5.- Decisão.
Em face de tudo o supra exposto,
acordam os Juízes na 2ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Guimarães, em , concedendo provimento à apelação :
5.1. - Revogar a sentença da primeira instância ;
5.2. - Determinar o prosseguimento da execução quanto ao oponente.
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Custas pelo apelado ( sem prejuízo do apoio judiciário).
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(1) In CRP , Anotada, Tomo III, pág. 73.
(2) In Comentário ao Código de Processo Civil, 1945, Volume 2º, págs. 172 e segs.
(3) In Comentário ao Código de Processo Civil,1945,Volume 2º, pág. 172 .
(4) Ibidem , pág. 172.
(5) “acto pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresentar a estrutura de uma causa “ - cfr. artº 156º,nº2, do CPC.
(6) Cfr. o Ac. do STJ de 5/5/2005, in www.dgsi.pt.
(7) Cfr. J.O.Cardona Ferreira, in “ Guia de Recursos em Processo Civil, 5ª Edição, pág. 71.
(8) Cfr. José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, 1984, anotado, Volume V, pág. 140.
(9) Cfr. João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil, 1980, III, 196.
(10) Cfr. A. Santos Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, pág. 310/311.
(11) In “A Falsidade No Direito Probatório”, Almedina, 1984, pág. 52 e segs..
(12) Cfr. ainda Lebres de Freitas, ibidem, pág. 56.
(13) A ratio da força probatória plena atribuída nos termos do nº2, in fine, do artº 358º, explica-se, segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in CC anotado, 2 dª Edição, vol. I, pela circunstância de serem maiores as garantias de seriedade e de ponderação que a confissão oferece quando efectuada à parte contrária.
(14) Ibidem, pág. 318.
(15) Cfr. v.g. o decidido nos Acs. do STJ de 29/11/2005 ( Proc. nº 05A3283), de 7/5/2009 (Proc. nº 09A0664), de 6/12/2011 (Proc. nº 2916/06.1TACB.C1.S1) e de 26/1/2012 (Proc. nº 2036/07.1TBFAF.G1.S1).
(16) Do Tribunal da Relação de Coimbra, in Proc nº 295/06.6TBCNT.C1, e acessível in www.dgsi.pt.
(17) In Ac. de 10/9/2013, in Proc. nº 968/09.1TBCBR-A.C1 e acessível in www.dgsi.pt.
(17-A) Perfilhando o entendimento vertido no Ac. do TRC de 26/2/2008, destaca-se ainda o Ac. deste mesmo Tribunal da Relação, de 25/5/2012, Proc. nº 3808/09.8TBBRG-A.G1 e acessível in www.dgsi.pt.
(18) Cfr. Fernando de Gravato Morais, in “Os Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, págs. 135 e segs..
(19) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC anotado, 2 dª Edição, vol. I, pág. 194.
(20) Cfr. Ana Prata, In “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais “, 2010, Almedina , pág. 204.
(21) Cfr. Ac. de 18/4/2006, in Proc. nº 06A818, e Ac. de 20/19/2011, Proc. nº 1097/04.0TBLLE.E1.S1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
(22) Cfr. Ana Prata, In “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais “, 2010, Almedina , pág. 205.
(23) Ibidem, pág. 101.
(24) In Ac. de 27/10/2009, in Proc. nº 24199/07.6YYLSB-A.L1-1 e acessível in www.dgsi.pt.
(25) Cfr. Ac. do TRL de 27/10/2009, já citado.
(26) Ibidem, pág. 334
(27) Cfr. Fernando de Gravato Morais, in “Os Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, págs. 108 e segs..
(28) In Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 742 e segs..
(29) Cfr. citação - que se transcreve - inserta no Ac. do STJ de 7/7/2009, Proc. nº 369/09.01YFLSB , in www.dgsi.pt.
(30) In Ac. de 27/10/2011, Proc. nº 693/10.0TBBRG-A.G1, e acessível in www.dgsi.pt.

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Guimarães, 12/ 11/ 2013
António Santos
Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte