Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
607/12.3GBVLN.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CRIME
AMEAÇA
MEDO OU INQUIETAÇÃO
ART.º 153.º DO CÓDIGO PENAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Após a revisão do Cód. Penal de 1995, o crime de ameaça não exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afetada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja suscetível de a afetar.
II) O crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães´

No no ex Tribunal Judicial da Comarca de Valença, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 607/12.3GBVLN), foi proferida sentença que decidiu (transcreve-se):
a) Condenar o arguido, Fernando S, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 6.00 (seis euros), no montante global de € 360.00 (trezentos e sessenta euros), pela prática, como autor material, de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1, do Código Penal;
b) Condenar o arguido, Fernando S, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 6.00 (seis euros), no montante global de € 360.00 (trezentos e sessenta euros), pela prática, como autor material, de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal;
c) Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, fixar a pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6.00 (seis euros), perfazendo um total de 720.00 (setecentos e vinte euros).
(…)
e) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil e, em consequência, condenar o arguido/demandado Fernando S, a pagar, ao demandante civil, Artur J., a indemnização no montante de 500.00 (quinhentos euros), acrescido dos juros legais, a contar da notificação daquela para contestar o pedido de indemnização civil e até integral e efetivo pagamento, a título de danos não patrimoniais, absolvendo-a na parte restante do pedido.
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O arguido Fernando S interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- impugna a decisão sobre a matéria de facto, visando, alterada esta, a sua absolvição;
- alega que a decisão sobre a matéria de facto se baseou em depoimentos indiretos – art. 129 do CPP;
- alega que o bem jurídico protegido pelo art. 153 do Cod. Penal (que prevê o crime de ameaça) não foi violado porque o assistente não sentiu medo ou inquietação.
Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido e o assistente Artur J. defenderam a improcedência do recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1 – No dia 09 de setembro de 2012 ( domingo ), cerca das 09.15 horas, na via pública, em frente à residência do assistente Artur J., sita na Travessa…., …, Valença, o arguido Fernando S., por questões relacionadas com a divisão dos bens por morte do pai do assistente, dirigiu a este, a seguintes expressão: “ vigarista, filho da puta, vou-te dar uma coça se te apanhar na rua “, por forma a intimidá-lo e a criar naquele desassossego e receio que aquele atentasse, pelo menos contra a sua integridade física.
2 – Aquela expressão proferida pelo arguido gerou no assistente um sério e justificado receio de que aquele, mais tarde viesse a concretizar tais intentos e atentar contra a sua integridade física.
3 – Ao atuar da forma supra descrita, o arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito concretizado, de provocar medo e inquietação ao ofendido, fazendo-o recear pela sua integridade física e vida, bem sabendo que tal conduta era adequada e idónea a provocar no ofendido um estado de espírito redutor e constrangedor da sua liberdade de circulação e de autodeterminação, inerente a qualquer pessoa, o que de facto, aconteceu.
4 – O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5 – Com as expressões mencionadas em 1), o arguido bem sabia que ofendia a honra e consideração do assistente, denegrindo a imagem que o mesmo goza no meio social que integra.
6 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de injuriar o assistente, ao formular sobre o mesmo um juízo ofensivo da sua honra e consideração social, apesar de bem saber que tal conduta é proibida e punida por lei.
7 – O arguido é tio do assistente.
8 – Com a atuação do arguido supra descrita, o assistente sentiu vergonha, humilhação e passou evitar passar em locais onde o arguido se encontrasse.
9 – O arguido é casado, comerciante, possuindo um estabelecimento comercial de …, atividade da qual tem prejuízos; recebe duas pensões de reforma, uma no valor de € 153,00 e outra no valor de € 353,00.
10 – Vive em casa própria com a esposa.
11- Completou o 6º ano de escolaridade.
12 - Não lhes são conhecidos antecedentes criminais.

Considerou-se não provado que:
- Que o arguido seja uma pessoa mal formada, com mau carater e violento.
- Que o assistente se sentisse constrangido, embaraçado e angustiado.

Transcreve-se igualmente a motivação da decisão sobre a matéria de facto
A factualidade dada como provada resultou do conjunto da prova produzida em julgamento, designadamente:
Na apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido, que negou a prática dos factos, confirmando apenas que se deslocou à residência do assistente para falar com ele, tendo este lhe dito que não tinha nada para falar com ele, nada mais se tendo passado.
As declarações prestadas pelo assistente, que descreveu de uma forma pormenorizada como os factos ocorreram, confirmando os factos de que o arguido vem acusado.
As testemunhas Helena M., esposa do arguido e José R., amigo do assistente que se encontrava a pernoitar na casa à data dos factos, presenciaram os factos e confirmaram as expressões utilizadas pelo arguido.
Tais depoimentos apesar da proximidade que os une ao assistente, foram no seu conjunto, coerentes entre si, descrevendo pormenorizadamente os factos, tornando-se dessa forma credíveis.
Os seus depoimentos também foram atendidos quanto ao pedido de indemnização civil, tendo referido como o assistente se sentiu envergonhado, com medo e inquieto, passando a evitar passar por locais onde o arguido se encontrasse, manifestando a sua preocupação quanto a sua segurança e à segurança da sua família, em consequência da conduta assumida por este e em causa aqui nos autos.
A testemunha Eva M., irmã do arguido e a testemunha Artur G., referiram a passagem do arguido pela casa do assistente, mas pelos contornos do seu depoimento, ficou o tribunal com muitas dúvidas que o tenham feito no dia que está em discussão nos autos, desde logo, a irmã do arguido, de forma espontânea, nunca confirmou em que dia é que se deslocou na companhia do seu irmão à casa do assistente e a testemunha Artur G. foi perentório em afirmar que quando viu o arguido e uma senhora, que achou ser irmã do arguido, junto à residência do assistente, foi um dia de semana, com toda a certeza, em meados de setembro, confirmando ainda que se deslocavam num mercedes verde, ao contrário da versão do assistente e das testemunhas acima mencionadas que afirmaram que o arguido se deslocava sozinho numa carrinha vermelha … de dois lugares, referindo ainda esta ultima testemunha que quer o arguido, quer a irmã se encontravam no exterior do veículo, contrariando a versão da testemunha Eva, que afirmou não ter saído do carro.
Assim, nos termos expostos, não foram as testemunhas Eva M. e Artur G. consideradas, face às dúvidas criadas quanto à sua presença no local no dia em questão nos autos.
As testemunhas Armando R. e Mário M., foram atendidas quanto à forma como o arguido é visto no meio onde vive.
Quanto aos aspetos da vida familiar e económica do arguido atendeu-se às declarações deste.
O Tribunal atendeu ainda ao teor do CRC junto aos autos.

FUNDAMENTAÇÃO
1 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O arguido impugna em bloco os factos provados sob os nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8, mas o modo como a impugnação é feita parte de um equívoco.
A relação nunca faz um novo julgamento da matéria de facto, decidindo, através da consulta do registo da prova e dos elementos dos autos, quais os factos que considera «provados» e «não provados». Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99. É que “o julgamento a efetuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso… Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…” – ac. TC de 18-1-06, DR, iiª série de 13-4-06.
Por isso é que as als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa (é mesmo este o verbo - «impor» - utilizado pelo legislador) e em que sentido devia ter sido a decisão. É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Não concretiza aquele Professor a que “vícios” se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.
Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiro e este não tiver sido chamado a depor. Aqui poderemos estar perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação. Poderá ainda afirmar-se a existência de um “vício” no julgamento da matéria de facto, quando a decisão estiver apoiada num depoimento cujo conteúdo, objetivamente considerado à luz das regras da experiência, deva ser considerado fruto de pura fantasia de quem o prestou.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto direto) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a atuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.
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A argumentação da motivação do recurso consiste na análise da prova produzida no julgamento e na extração das conclusões que a recorrente tem por pertinentes.
Na realidade, o recorrente faz a sua própria análise crítica da prova para concluir que o essencial dos factos que o responsabilizam deveria ter sido considerado não provado. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360 do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se o arguido/recorrente tivesse sido o juiz do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar. Verdadeiramente, nesta parte, a procedência do recurso implicava que a relação censurasse o tribunal recorrido por, cumprindo a lei, ter decidido segundo a sua livre convicção, conforme lhe determina o art. 127 do CPP.
O arguido limita a sua argumentação à indicação das razões porque entende que deveriam ter sido descredibilizados os depoimentos do assistente e das testemunhas Helena Maria Rodrigues e José Rodrigues Querido e valorizados positivamente os das testemunhas Eva Rodrigues e Artur Fernandes.
Alega, também, que os depoimentos das testemunhas Helena M. e José R. devem ser considerados depoimentos indiretos (art. 129 do CPP) apesar “das referidas testemunhas referirem nas suas declarações que presenciaram os factos investigados nestes autos”, o que não teria ocorrido. É uma opinião, certamente respeitável, mas a decisão que deverá prevalecer é a da julgadora, que lhes deu credibilidade na parte em que declararam terem presenciado os factos.
Mantém-se, assim, a matéria de facto fixada na primeira instância.
2 – Os elementos do tipo do crime de ameaça
Alega o recorrente que “o bem jurídico protegido pelo art. 153 do Cod. Penal (que prevê o crime de ameaça) não foi violado porque a testemunha Helena Rodrigues referiu no seu depoimento que o assistente não sentiu medo ou inquietação”.
Seria facto irrelevante.
Citando-se Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 2ª edição, p. 185: «Como desde logo se alcança, parece-nos não se tratar agora, e ao invés do que sucedia no texto anterior, de um crime de resultado. Na verdade, enquanto no número um do art. 155º do texto de 1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação. Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime». No mesmo sentido se pronunciou Figueiredo Dias no seio da Comissão Revisora do Código Penal - cfr. Acta n.º 45”.
Na realidade, após a revisão do Cod. Penal de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afetada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja suscetível de a afetar. O crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano.
Ora, no caso em apreço, tratou-se de dois adultos, havendo um que dirigiu impropérios a outro. Neste enquadramento, o facto de o que proferiu os impropérios ter afirmado que iria dar uma coça ao outro, não pode deixar de ser considerado «adequado» a causar medo, inquietação e a prejudicar a liberdade de determinação do visado. É isso que indicam as regras da experiência e a normalidade do acontecer das coisas da vida.
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Não vêm questionadas as penas singulares e única, para o caso de se manter a condenação.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso.
O recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça