Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
106/09.0TBPCR-B.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: LITISPENDÊNCIA
INVENTÁRIO
ACÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não se verifica a excepção de litispendência entre a reclamação que o credor de uma herança, ao abrigo do disposto no art.º 1348.º, apresenta em sede de inventário (para que de tais créditos sejam relacionados como dívidas da herança para posterior aprovação ou verificação) e a acção executiva em que o mesmo credor, munido de título executivo, instaura ou prossegue contra os herdeiros do inventariado, para obter o pagamento efectivo dos mesmos créditos através da execução do património da herança.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO
Em 31 de Maio de 2009, Banco… , SA, intentou no Tribunal Judicial de Paredes de Coura, acção executiva contra António… e mulher, Maria… , para pagamento da quantia de € 49.900,44, relativa às prestações, não pagas, respectivos juros de mora e imposto de selo, que ambos se obrigaram a pagar em virtude de dois contratos de mútuo que celebraram com a exequente e garantidos por hipoteca sobre um bem imóvel, juntando com a petição inicial as escrituras públicas em que foram exarados tais contratos.
Em 08/04/2010, tendo sido atestado nos autos o falecimento do executado marido ocorrido em 17 de Dezembro de 2007, o exequente deduziu incidente de habilitação de herdeiros na referida execução, pedindo que se declarasse a habilitação das requeridas e únicas herdeiras do falecido executado, Maria… , viúva do mesmo e suas filhas, Maria… , Maria… e Joana… , para, em lugar daquele, intervirem na mesma execução.
O incidente de habilitação foi julgado procedente.
Veio então Maria… deduzir oposição á dita execução onde é executada, por si e na qualidade de herdeira do falecido executado que foi seu cônjuge, arguindo a excepção de litispendência entre tal execução e o inventário instaurado por morte do executado António, a correr termos no 4.º Juízo Cível da Maia sob o número 1776/08.2TBMAI, por ali terem sido reclamados os mesmos créditos pelo exequente.
Efectivamente, neste inventário, o Banco… , SA, por requerimento entrado em juízo a 18 de Junho de 2009, veio, na qualidade de credor, reclamar os seus créditos, designadamente e para além do mais, os que são objecto da execução em causa, pedindo:
Que se admita a reclamação nos termos do disposto no art.º 1348.º do CPC;
Que se verifiquem e reconheçam os referidos créditos sobre a herança.

Sobre a presente oposição foi proferido despacho de indeferimento liminar, “… por não se verificar (entre a execução e o inventário onde ocorreu a dita reclamação) um dos pressupostos da litispendência, ou seja, a identidade de pedidos, pelo que carece de qualquer fundamento a oposição deduzida…”.

Inconformada, a oponente apelou de tal despacho, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1- O Tribunal a quo entendeu não se encontrarem verificados os pressupostos da litispendência invocada.
2- Considerou não existir identidade de pedidos.
3- O recorrido – Banco… , S.A – interveio, reclamou a quantia exequenda no processo de Inventário que se encontrava a correr termos.
4- Existe identidade de sujeitos.
5- Existe igualmente identidade de causa de pedir quanto á pretensão deduzida nas duas acções, pois procedem do mesmo facto jurídico.
6- De igual forma também idênticos são os pedidos formulados, uma vez que o efeito jurídico pretendido é o mesmo.
7- Numa e noutra acção o que o exequente ora recorrido pretende é o pagamento do crédito que detém sobre o executado.
8- O pedido formulado não tem que ser exactamente o mesmo, para efeitos de litispendência.
9- Basta que o efeito jurídico pretendido seja o mesmo.
10- A prosseguir a presente execução, o exequente ora recorrido será pago duas vezes pelo mesmo crédito.
11- O exequente deveria ter optado por uma das vias, uma vez que aprovado o passivo no inventário, o ora exequente poderá exigir o pagamento imediato da dívida.
12- Vai receber duas vezes pelo mesmo facto jurídico.
13- A correrem paralelamente ambas as acções é manifesto o risco de contradição de julgados que a excepção de litispendência tem por fim evitar.
14- A decisão do Tribunal a quo, violou as disposições dos arts. 494º al.i), 497º, 498º todas do C.P.C

O apelado não respondeu ás alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II FUNDAMENTAÇÃO
Objecto do recurso
Tendo em conta o objecto do presente recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, a questão a decidir é a de saber se se verifica a excepção de litispendência arguida, entre a execução de que estes autos são apenso e a reclamação de créditos efectuada pelo exequente nos identificados autos de inventário do executado.

O circunstancialismo fáctico e processual a ter em conta na decisão é o descrito supra no relatório.

O DIREITO APLICÁVEL
A excepção dilatória da litispendência tem por finalidade evitar que o Tribunal possa debruçar-se, duplamente, sobre a mesma pretensão, correndo o risco desprestigiante, de se contradizer, tornando assim precário o valor da segurança e certeza do direito. CF, Ac. do STJ de 13/04/2010, proferido no processo 707/09.7TBVR.P1.S1, relatado pelo Cons. Fonseca Ramos, em www.dgsi.pt.
O art. 497º do Código de Processo Civil define os conceitos de litispendência e caso julgado, dispondo que:
“1 – As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado.
2 – Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
…”.
O art.º 498.º do mesmo diploma define o conceito de “repetição da causa”, estatuindo:
“1 – Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 – Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 – Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 – Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.

No caso dos autos, a decisão recorrida julgou manifestamente improcedente a invocada excepção de litispendência por não se verificar um dos requisitos referidos, a saber, a identidade de pedidos entre as duas acções em causa: a execução a que a apelante se opõe e a reclamação de créditos exequendos, efectuada pelo exequente em inventário instaurado por morte de um dos executados.
A existência de identidade de sujeitos (os interessados no inventário são executados na acção executiva por terem sido habilitados como herdeiros do inventariado e o exequente é reclamante no inventário) e da causa de pedir (as duas pretensões em causa emergem dos mesmos contratos de mútuo) constatadas na decisão recorrida e não posta em causa pela apelante são questões que, neste momento, não importa decidir.

Analisemos então a questão que constitui o cerne do presente recurso, ou seja, a alegada identidade de pedidos.
Como escreve o Prof. Manuel de Andrade, Noções elementares de Processo Civil, pag. 127. “pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar. Não se confunde com o objecto material da acção (corpus)”. Por exemplo, sobre ou acerca do mesmo prédio pode haver acções diversas, consoante o direito invocado e a providência jurisdicional requerida.
Assim, a identidade do pedido quer dizer a identidade da providência jurisdicional solicitada pelo autor.
A lei processual refere que há identidade do pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico, isto é, quando está em causa a obtenção de um certo efeito jurídico concreto. Cf. Alberto dos Reis Código de Processo Civil anotado, 1950, vol. III pag. 108.
Ora, no caso concreto, o efeito jurídico concreto pretendido pelo Banco… , SA, exequente na execução para pagamento de quantia certa que instaurou, é tornar efectivo o direito de crédito que o devedor não satisfez, através da penhora e venda dos bens dos devedores.
Já no inventário aberto por morte do mesmo António… , o mesmo Banco ao abrigo do disposto no art.º 1348.º do CPC, apenas reclamou os mesmos créditos, a fim de serem relacionados, como dividas da herança do inventariado, com vista á sua aprovação ou verificação nos termos do disposto nos art.ºs 1354 e 1355 do mesmo diploma. Por ora é apenas este o pedido formulado, sendo certo que, ainda que as dívidas em causa venham a ser relacionadas, daí não se segue, como consequência necessária, que o seu pagamento seja efectuado em sede de inventário, já que, para tanto, será necessário que o Banco credor da herança formule um novo pedido expresso nesse sentido, conforme decorre do disposto no art.º 1357.º n.ºs 1 e 2 do CPC, que dispõe que as dívidas vencidas e aprovadas por todos os interessados só devem ser pagas de imediato se o credor exigir esse pagamento, podendo, nesse caso, haver lugar á venda dos bens da herança se não houver na herança dinheiro suficiente e não acordando os interessados noutra forma de pagamento.


Por isso, não pode proceder, no actual contexto processual, a razão invocada pela oponente e apelante para sustentar a identidade de pedidos nas duas acções: que o efeito jurídico pretendido numa e noutra é o de obter o pagamento dos créditos do exequente sobre a herança do inventariado, correndo-se pois o risco de, a prosseguir a execução o exequente vir a ser pago duas vezes pelo mesmo crédito.
Tal risco não existe uma vez que o pagamento não foi ainda exigido pelo credor Banco… no inventário, sendo que não é sequer certo que os créditos / dívidas em causa venham a ser aprovadas pelos interessados ou verificadas pelo juiz.
É certo que, ao reclamar os créditos em causa e ao pedir que os mesmos sejam reconhecidos ou verificados em sede de inventário, pretende no fundo o credor acautelar a satisfação do seu crédito.
Contudo, sobre o mesmo direito de crédito e com a finalidade de o preservar e satisfazer, podem existir acções diversas, sem que, necessariamente, se verifique a repetição de uma causa, pois tudo depende da concreta providência jurisdicional requerida em cada uma delas. Como se exemplifica no processo julgado neste tribunal com o n.º 106/09.0C Relatado pelo Desembargador Canelas Brás. em que a presente relatora interveio como adjunta, se o credor intentar uma acção de impugnação pauliana para reaver o prédio objecto da hipoteca, estará também em causa a protecção e a satisfação do seu crédito, mas é evidente que, nesse caso, nunca “ninguém, iria dizer que havia litispendência” relativamente a qualquer das acções em causa nos autos”.
No caso concreto, não são coincidentes as providências concretamente requeridas pelo Banco credor nas duas acções, como já demonstrado.
A litispendência em sede de acção executiva só terá lugar se o mesmo bem for penhorado em dois processos, ou seja, na medida em que, em dois processos, se exerça actividade executiva quanto ao mesmo bem, ainda que por créditos e com exequentes diferentes.Cf. Lopes Cardoso Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pág. 526, Anselmo de Castro, “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª edição, pag. 173 e Ac. de Relação de Lisboa de 23/09/2003, proferido no P.º n.º 4019/2003-7.


Nessa conformidade e como se escreve no despacho recorrido, “…conforme se alcança da análise do requerimento de fls. 37, de onde constam os pedidos deduzidos pela aqui exequente no referido inventário, visam os mesmos a verificação e reconhecimento do crédito da reclamante, do que decorre revestir o incidente assim suscitado natureza essencialmente declarativa.
Pelo contrário, nos presentes autos de execução, pede o exequente que, no uso da faculdade conferida pelo art. 817.º do Código Civil, se execute o património do devedor a fim de se conseguir a realização coactiva da prestação a que aquele se encontrava vinculado.
De tal resulta ser inequívoca a diversidade dos pedidos deduzidos numa e noutra acção.”

Acresce ainda que a ora oponente é executada na acção executiva, não apenas na qualidade de herdeira do falecido seu marido António… , mas também por ter celebrado com este os contratos de mútuo exarados em escritura pública e que constituem os títulos executivos que fundamentam aquela acção, pelo que, de qualquer modo, a execução sempre deveria prosseguir quanto a ela.
Não se verifica pois a arguida excepção de litispendência, devendo pois improceder o recurso.

Em conclusão:
Não se verifica a excepção de litispendência entre a reclamação que o credor de uma herança, ao abrigo do disposto no art.º 1348.º, apresenta em sede de inventário (para que de tais créditos sejam relacionados como dívidas da herança para posterior aprovação ou verificação) e a acção executiva em que o mesmo credor, munido de título executivo, instaura ou prossegue contra os herdeiros do inventariado, para obter o pagamento efectivo dos mesmos créditos através da execução do património da herança.

III DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela apelante.
Notifique.
Guimarães, 30 de Junho de 2011
Isabel Rocha
Manuel Bargado
Helena Melo