Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CARVALHO GUERRA | ||
Descritores: | RESERVA DE PROPRIEDADE SUB-ROGAÇÃO EMPRÉSTIMO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/26/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I. O disposto no artigo 409º, n.º 1 do Código Civil, que permite que, nos contratos de alienação o alienante reserve para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento é um direito atribuído apenas ao titular do direito de propriedade. II. Em favor de um terceiro alheio ao contrato de alienação, só pode ser reservada a propriedade se por qualquer modo ele adquirir esse direito do alienante. III. É o que sucede quando o devedor cumpre a sua obrigação com dinheiro emprestado por terceiro, em que aquele pode sub-rogar este nos direitos do credor sem necessidade do seu consentimento, desde que haja declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor. | ||
Decisão Texto Integral: | Recorrente: “B… – Sucursal Portuguesa”. Recorrida: “BI, Ldª”: * Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães: * Nos presentes autos de processo de insolvência de “BI, Ldª”, o administrador da insolvência procedeu à apreensão do veículo de marca BMW, modelo X3, com a matrícula 65-BU-53 (folhas 179). O credor “B… Sucursal Portuguesa”, que celebrara com a devedora um contrato mediante o qual financiou a aquisição deste veículo, no montante de euros 33.388,88, tendo-se a devedora obrigado a restituir ao credor esse montante em prestações mensais no valor de euros 393,57, ficando acordada a reserva de propriedade do veículo a favor do credor, a qual está devidamente registada na Conservatória do Registo Automóvel, requereu que o tribunal se pronunciasse sobre a sua posição em relação à propriedade do veículo. Foi então proferido despacho que declarou nula a cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo apreendido. É deste despacho que vem interposto o presente recurso pela Requerente, que conclui a sua alegação da seguinte forma: - por despacho de 20.07.2011, declarou o Tribunal a quo nula a cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor da ora Recorrente relativa ao veículo objecto do contrato celebrado com a Insolvente, aqui Recorrida; - dispõem os artigos 589° e 593°, ambos do CC, que “O credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus direitos (.J””’O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam”. - a entidade vendedora do veículo objecto dos presentes autos e credora do crédito ao preço da compra e venda do veículo, tendo recebido directamente da aqui Recorrente o valor da respectiva prestação, expressamente sub-rogou a mesma nos seus direitos; - tal sub-rogação, nos termos do artigo 582°, aplicável por remissão do artigo 594°, ambos do Código Civil, implicou a transmissão pelo fornecedor do veículo a favor da entidade mutuante, ora Recorrente, da reserva de propriedade acordada entre a mutuária, ora Recorrida e o fornecedor”; - acresce que, como resulta expressamente do disposto no artigo 12° das Condições Gerais do Contrato de Crédito, conjugado com as condições particulares, a ora Recorrida reconheceu e aceitou tal sub-rogação, com as devidas consequências; - sendo ainda certo que resulta expressamente dos artigos 1° e 2° das mesmas Condições Gerais que a coisa, leia-se o montante financiado, se destina ao cumprimento da obrigação do mutuário; - aceitar a nulidade da cláusula de reserva de propriedade em crise evidencia uma interpretação claramente restritiva, limitativa do âmbito de aplicação do artigo 409° do Código Civil, a qual não se adapta à realidade da prática comercial actual, particularmente no âmbito do sector de venda de veículos automóveis; - o artigo 409° do Código Civil, constituindo uma excepção à regra prevista no artigo 408° do mesmo diploma legal, tem como efeito suspender a transmissão do bem, permitindo assim ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador; - a reserva da propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objecto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem, ou seja, quando existe uma clara interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda; - o próprio diploma legal que regula o crédito ao consumo (Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Setembro, entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.° 133/2009, de 2 de Junho, mas aplicável ao contrato objecto dos autos) prevê no número 3 do seu artigo 6° que (O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento de aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda. (...) f) O acordo sobre a reserva de propriedade” (...); - por outro lado, do disposto no artigo 9º do Código Civil, resulta que na actividade interpretativa deve o intérprete atender à vontade do legislador, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, as condições especificas do tempo em que é aplicada; - a própria lei expressamente determina que, se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro, pode subrogá-lo nos direitos do credor (artigo 591° do Código Civil); - de acordo com o disposto no artigo 582° do mesmo diploma legal, aplicável ex vi do artigo 594°, a sub-rogação importa a transmissão, para o sub-rogado, das garantias e acessórios do direito transmitido; - nos casos em que a aquisição do veículo é feita através de financiamento de terceiro, a estipulação da cláusula de reserva da propriedade só assume efectivo sentido quando estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento, uma vez que quem efectivamente corre o risco de incumprimento é o mutuante e não o vendedor do veículo; - o accionamento da reserva de propriedade pode, assim, ter lugar em consequência do incumprimento do contrato de financiamento, no âmbito do qual foi constituída; - atento o exposto e na esteira do que é defendido pela recente e ampla jurisprudência, é de entender como admissível a cláusula de reserva de propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, quando este está intensamente conexionado com o contrato de compra e venda; - o despacho em crise violou, assim, o disposto nos artigos 9°, 405°, 408°, 409°, 582° (aplicável ex vi 594°) e 591°, todos do Código Civil e bem assim os artigos 6°, n.° 3 e 12° do DL 359/91. Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, ordenando-se a revogação da decisão recorrida e, consequentemente, ser considerada válida a cláusula de reserva de propriedade em crise, ordenando-se ainda, o prosseguimento dos autos até final. Não foram oferecidas contra alegações. Cumpre agora decidir. * Sendo certo que o objecto do recurso se encontra delimitado pelas conclusões da alegação – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – a questão que se nos coloca consiste em saber se a entidade que apenas financia o comprador de um veículo automóvel pode reservar a propriedade do mesmo até ao cumprimento do contrato de financiamento. Dispõe o artigo 409º, n.º 1 do Código Civil que, “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento”. Em princípio, celebrado um qualquer contrato de alienação, a propriedade da coisa transmite-se imediatamente por efeito do próprio contrato, como acontece no contrato de compra e venda – artigo 879º, a) daquele diploma. O n.º 1 do artigo 409º vem, assim, introduzir um desvio a este princípio, permitindo que o alienante impeça a transmissão imediata da propriedade da coisa por efeito do contrato, reservando para si a propriedade dela até à ocorrência de um qualquer evento. Trata-se, parece-nos evidente, de um direito atribuído ao titular do direito de propriedade, pois só quem detém este direito o pode reservar para si; em favor de um terceiro alheio ao contrato de alienação, só pode ser reservada a propriedade se por qualquer modo ele adquirir esse direito do alienante. Com esta última asserção parece concordar a Apelante, quando se estriba no disposto no disposto no artigo 589º do Código Civil para justificar a validade da reserva de propriedade a seu favor. “O credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus direitos …”; a quantia mutuada destinou-se ao cumprimento da obrigação do devedor resultante do contrato de compra do veículo, foi entregue à vendedora e, assim, a mutuante ficou sub-rogada no direito desta de reservar para si a propriedade do mesmo. Mas a construção esbarra com uma dificuldade inultrapassável e que se não compadece com qualquer interpretação mais ou menos actualista do preceito: é que a entrega da quantia mutuada não é feita em cumprimento da obrigação do comprador, mas para cumprimento da obrigação deste; ela é efectuada em cumprimento da obrigação do próprio mutuante emergente do contrato de mútuo, destinando-a embora o mutuário ao cumprimento da sua obrigação de comprador e as coisas não mudam de figura pelo facto de o mutuante entregar directamente a quantia mutuada ao vendedor. Mas quando assim é, isto é, quando o devedor cumpre a sua obrigação com dinheiro emprestado por terceiro, pode sub-rogar este nos direitos do credor, sem necessidade do seu consentimento, mas a subrogação só ocorre quando haja declaração expressa, no documento de empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor – artigo 591º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil – ver neste sentido o acórdão desta Relação de 21/05/2009 (curiosamente citado na decisão recorrida em prol da tese aí defendida) em www.dgsi.pt. Ora é isto mesmo que resulta das cláusulas 1ª e 2ª e 12ª do contrato de mútuo celebrado entre a Apelante e o adquirente do veículo: que a quantia mutuada se destinou ao pagamento do preço do veículo e que o mutuário declara conhecer e aceitar a sub-rogação nos direitos da vendedora, pelo que se terá de concluir que a reserva da propriedade do veículo apreendido a favor da Apelante é plenamente válida e eficaz. Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso e se revoga a decisão recorrida, declarando-se válida a cláusula de reserva de propriedade sobre o veículo que foi apreendido a favor da Apelante, “B…Sucursal Portuguesa”. Sem custas. Guimarães, 26.10.2012, Carlos Guerra Maria Conceição Bucho Antero Veiga |