Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
365/13.4TJVNF-A.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: COMPETÊNCIA
ACÇÃO DECLARATIVA
VALOR DA CAUSA
CONSTITUCIONALIDADE
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Tendo a ação declarativa valor processual não superior a €50.000,00, o seu julgamento compete à secção da instância local e não à secção cível da instância central, mesmo que, face à legislação anterior à atual lei da organização judiciária, o julgamento coubesse ao juiz de círculo e para este tivessem os autos chegado a ser remetidos.
II. As normas da lei da organização judiciária que determinam esta solução não são inconstitucionais.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:


O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social demandou, pelos Juízos de Competência Cível do tribunal judicial de Vila Nova de Famalicão e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, AA e Outros.
Em 28 de janeiro de 2014 realizou-se a audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador que concluiu pela regularidade da instância, se definiu o objeto do litígio e os temas da prova, e se mandou concluir o processo à Mmª juiz de Círculo “com vista a designar data para a audiência de julgamento”.
À causa foi fixado, por despacho passado em julgado, o valor processual de €34.291,00.
Vindo o processo a ser enviado para a entretanto criada secção cível da instância central de Guimarães, foi proferida, em 28 de outubro de 2014, decisão a julgar incompetente o tribunal. Considerou-se ser competente, ao invés, a secção cível da instância local de Vila Nova de Famalicão, isto pelo facto do valor da causa não ser superior a €50.000,00.

Inconformado com o assim decidido, apela o Réu AA.

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

A) O despacho do tribunal “a quo” não mereceria qualquer reparo, caso não houvesse que atender, no caso presente, à problemática da aplicação da lei no tempo; às expectativas jurídicas e direitos adquiridos constituídos na esfera pessoal do recorrente; bem como, aos princípios de direito constitucional que deva mostrar a interpretação jurídica da L.O.S.J.
B) A fundamentação do recurso assenta em três vectores essenciais, distribuídos no corpo das alegações do seguinte modo:
1º argumento: itens 5 a 11
2º argumento: itens 12 a 23
3º argumento: itens 24 a 37
No que concerne ao 1º argumento
C) Tendo em consideração que estamos no domínio da competência determinada em função do valor da causa, verificando-se uma incompetência, o seu regime é o da incompetência relativa – artigo 102º a 108º do C.P.C.
D) Decorre do regime da incompetência relativa que o tribunal poderá conhecer dela, oficiosamente; porém, “até ser proferido despacho saneador” – artigo 105º n.º2 do C.P.C.
E) No caso dos autos, quando o meritíssimo juiz “a quo” proferiu o despacho recorrido, já havia sido transcorrida a fase do saneamento. O processo encontrava-se – e encontra-se – na fase de Audiência de Discussão e Julgamento.
F) Assim sendo, a decisão em crise no presente recurso, já não poderia ser conhecida nem decidida. Foi proferida extemporaneamente.
No que tange ao 2º argumento
G) A situação do autor, quanto à problemática da aplicação da lei no tempo, não encontra precisão normativa, no âmbito do direito transitório de L.O.S.J.
H) Deste modo, se fizermos um raciocínio simplista (destituído do enquadramento jurídico-constitucional) aplicaremos – como foi julgado – a regra da aplicabilidade imediata aos processos pendentes.
I) Porém, o recorrente entende que as situações correspondentes ao jaez daquela que está em causa aqui nos autos, não têm previsão normativa e deveriam tê-la. Assim, estamos perante uma lacuna jurídica, a qual deverá ser integrada nos termos do artigo 10º do C.C.
J) Para integração da lacuna jurídica constatada, indicamos o artigo 5º n.º5 da Lei 41/2013, de 26 de Junho, que deverá funcionar como norma modelo ou padrão para o julgado proceder à integração da lacuna.
K) Assim, dever-se-á ler o referido artigo 5º n.º5 de forma adaptada: “nas acções pendentes em que, na data da entrada em vigor da L.O.S.J., já tenha intervindo o juiz de categoria equivalente ao juiz de círculo, o julgamento realizar-se-á, por um juiz correspondente a esta categoria; ou seja, um juiz afecto a uma instância central.”
L) E pugnamos por esta solução porque o processo, no caso presente, já se encontrava na fase da Audiência de Discussão e Julgamento, afecto a um juiz de círculo, antes de ser migrado, ao abrigo da L.O.S.J.
No que respeita ao 3º argumento
M) A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, nos termos do artigo 2º da C.R.P.
N) Tal princípio impõe a protecção de valores jurídicos fundamentais, como a protecção da boa-fé, da confiança e de direitos adquiridos. E como direitos de natureza análoga a direitos fundamentais e da respectiva eficácia e protecção (artº. 18 da C.R.P.).
O) Está decidido nos autos, com valor de caso julgado, não só que a audiência de julgamento, temporalmente, ocorreria, em primeira marcação, a 30/06/2014 como que tal audiência seria presidida por um Juiz de Circulo. Decisão que tem o valor de caso julgado formal.
P) As partes têm uma legítima expectativa, fortíssima, segundo os princípios da boa-fé e da confiança, e, até, um direito adquirido (por força de decisão transitada) que o julgamento seja presidido por um “Juiz de Círculo”.
Q) As expectativas legítimas e os direitos a proteger, segundo os princípios da boa-fé e da confiança “maxime” se já concretizados por decisão judicial – não podem, num Estado de Direito democrático, ser ofendidos retroactivamente. Como valor jurídico que resulta dos conteúdos normativos dos artºs. 2º e 18º, nº 3 da C.R.. E, muito menos se já há decisão transitada (artº. 205º, nº 2, da C.R.).
R) A nova L. O. S. J. não pode ofender tais expectativas, se não mesmo direito adquirido – de que o julgamento desta causa seja presidido por um “Juiz de Circulo”, uma vez que tal já estava decidido pelo dito despacho judicial. E, como se expressa Antunes Varela, por um lado, “trata-se de acautelar uma necessidade vital de segurança jurídica e de certeza do direito” (Man. de Proc. Civil, 2ª ed., p. 309).
S) Há que interpretar e aplicar a nova L. O. S. J., dentro dos seus comandos, mas em concatenação e, nomeadamente, “tendo em conta” os valores jurídicos da unidade do sistema jurídico. E, maxime, Constitucionais. E, assim, com respeito dos referidos valores fundamentais do Estado de Direito, da protecção da boa fé, da confiança e do acatamento (do conteúdo normativo) das decisões judiciais e dos direitos adquiridos – como impõem os artigos 2º, 18º, nº 3, e 205º da C.R., de obediência cogente (artº. 203º).
T) O que nos reporta à conclusão de que o julgamento do caso dos autos, extinto que foi o referido 5º Juízo Cível e o Juiz de Círculo – terá que caber a outro Tribunal, na nova orgânica estabelecida pela nova L. O. S. J., mas que não poderá ser um Tribunal ou Juiz de categoria inferior ao correspondente “Juiz de Círculo”, da anterior organização do sistema judiciário português.
U) Sob pena, também, de que a referida nova L. O. S. J., interpretada e aplicada com sentido diferente do antes proposto, ou seja de que tal competência caberá à Instância Local - Secção Cível – se o valor do processo for inferior a 50.000,01€ - é inconstitucional, por ofensa, então, dos referidos e citados preceitos da C.R.P.

Termina dizendo que deve ser revogado o despacho recorrido, a ser substituído por decisão que determine a manutenção da competência do Tribunal na Instância Central de Guimarães – 2ª Secção Cível – J2.

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Não se mostra oferecida contra alegação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

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É questão a conhecer:
- A da competência ou incompetência do tribunal recorrido.

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Quanto a nós, improcede a apelação.
Vejamos:
A presente ação foi distribuída e tramitada em juízo cível (5º) da então comarca de Vila Nova de Famalicão.
Uma vez que o respetivo valor excedia a alçada da relação, o julgamento da causa competiria sem dúvida ao juiz de círculo. Tudo conforme, e designadamente, a lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais (Lei nº 3/99) e respetivo regulamento (DL nº 186º-A/99) então em vigor. E foi nesta base que o processo chegou a ser apresentado ao juiz de círculo.
Porém, na pendência da ação entraram em vigor a lei da organização do sistema judiciário (Lei nº 62/2013) e seu regulamento (DL nº 49/2014). Face à nova legislação, em geral de aplicação imediata às situações preexistentes, ficaram extintos o 5º juízo cível de Vila Nova de Famalicão e o círculo judicial de Vila Nova de Famalicão. Também face à nova legislação, a competência das secções cíveis da instância central das comarcas ficou reservada ao julgamento das ações declarativas de processo comum de valor superior a €50.000,00 (art. 117º nº 1 a) da Lei nº 62/2013), enquanto a competência para o conhecimento de ações declarativas de processo comum de valor inferior ficou atribuída às secções da instância local (art. 130º nº 1 a) da Lei nº 62/2013).
Ora, em matéria específica de sucessão de leis no tempo sobre a competência dos tribunais, rege atualmente a norma do art. 38º da lei da organização do sistema judiciário (e no mesmo sentido regia o art. 22º da anterior LOFTJ, vigente à data da propositura da presente ação), que estabelece, como regra geral, que a competência se fixa no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito (perpetuatio iurisditionis). Todavia, mais decorre desta norma, há exceções. E uma delas é a seguinte: as modificações de direito que se traduzam na supressão do órgão judiciário a que a causa estava afeta são atendíveis. A este propósito, aduzem Antunes Varela et alli (Manual de Processo Civil, 2ª ed., pp. 51 e 52): “Neste caso, a competência do tribunal cessa no momento em que a lei extintiva do órgão jurisdicional entra em vigor, não se prolongando a existência e funcionamento dele para levar até final as ações que lhe estivessem afectas. Estas ações (…) devem ser oficiosamente remetidas para o órgão jurisdicional que passa a ser competente segundo a nova lei”.
Isto posto:
Diz o Apelante que se deve atender no caso às normas (art. 102º e seguintes) do CPC que regem para a incompetência relativa em função do valor da causa. Mas não é assim, visto que tais normas regulam simplesmente para a repartição da competência entre tribunais preexistentes e que não se extinguem, enquanto in casu o que está em questão é a aferição da competência em decorrência da sucessão de leis (em matéria de competência dos tribunais). Trata-se de assuntos muito diferentes.
Donde, improcedem as conclusões C) a F).
Mais diz o Apelante que, face ao novo ordenamento (que não prevê a figura do juiz de círculo), estamos perante uma lacuna a preencher por recurso ao art. 5º nº 5 da Lei nº 41/2013. Mas também aqui carece de razão, na medida em que não existe lacuna alguma. Pois que, repete-se, do que se trata é de uma situação de sucessão de leis em matéria de competência dos tribunais, determinando a nova lei a extinção do órgão judiciário a que a presente causa estava anteriormente afeta, do mesmo passo que indica o novo tribunal que é competente. É neste quadro regulador que temos de nos mover, inexistindo pois lacuna a preencher.
Improcedem assim as conclusões G) a L).
Diz ainda o Apelante que são inconstitucionais as normas da nova legislação aí onde, conforme a interpretação do despacho recorrido, direcionam o julgamento da presente causa para um «tribunal ou juiz de categoria inferior ao correspondente “juiz de círculo” da anterior organização do sistema judiciário português». Segundo o Apelante, tais normas estariam a dar azo á violação de disposições da CRP respeitantes à salvaguarda do caso julgado, à proteção da boa-fé, da confiança e dos direitos adquiridos.
Não concordamos com esta visão das coisas. A circunstância dos presentes autos terem estado destinados a julgamento perante o juiz de círculo, para quem chegaram inclusivamente a ser remetidos, reflete apenas a tramitação tabelar que à data era estabelecida na legislação vigente, e isto não nos parece que tenha a ver com a temática do caso julgado em matéria de fixação da competência do tribunal (aliás, a valer aqui o caso julgado, então a presente ação teria que ser julgada necessariamente pelo juiz de círculo - e não por outro órgão previsto na legislação sucedânea - apesar de se tratar de uma categoria orgânica extinta pela nova lei, e isto é um absurdo). De outro lado, não encontramos que seja direito constitucional das partes ver assegurada uma organização judiciária imutável ou equiparável (em termos de competência do órgão judiciário) ao longo do processo. A reorganização judiciária visa supostamente melhorar o sistema, e essa melhoria é uma eventualidade legislativa com a qual os cidadãos sempre têm de contar. Como assim, não parece que haja de falar aqui em salvaguarda de expetativas, de confiança e de direitos adquiridos, de modo a que a nova distribuição de competências tenha obrigatoriamente de assegurar o julgamento dos processos pendentes através de tribunais com um perfil técnico (“categoria”, nas palavras do Apelante) igual ao que vigorava na lei anterior. Seria irrazoável o contrário, na medida em que amarraria o legislador à produção de uma organização judiciária decalcada em perfis iguais aos da legislação anterior, ou então a manter os processos pendentes afetos a órgãos judiciários que precisamente se entendeu serem escusados.
Improcedem pois as conclusões M) a U).
Como acima se disse, a presente causa declarativa tem o valor processual de €34.291,00. Face à mencionada lei da organização judiciária, a competência para o julgamento da causa cabe à secção cível da instância local de Vila Nova de Famalicão, e não à secção cível da instância central de Guimarães. Improcedendo, como improcedem, os óbices que o Apelante veio aduzir contra esta afetação de competência, resta concluir que o despacho recorrido se apresenta insuscetível de censura.
Improcede pois a apelação.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Regime de custas:
O Apelante é condenado nas custas da apelação.

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Sumário (art. 663º nº 7 do CPC):
I. Tendo a ação declarativa valor processual não superior a €50.000,00, o seu julgamento compete à secção da instância local e não à secção cível da instância central, mesmo que, face à legislação anterior à atual lei da organização judiciária, o julgamento coubesse ao juiz de círculo e para este tivessem os autos chegado a ser remetidos.
II. As normas da lei da organização judiciária que determinam esta solução não são inconstitucionais.

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Guimarães, 30 de abril de 2015
José Rainho
Carlos Guerra
José Estelita de Mendonça