Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
880/15.5T8VNF-B.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: CIRE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
APRESENTAÇÃO TARDIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- Ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei visa os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles que originem novos débitos, a acrescer aos que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer.

II- São comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, os que, a verificarem-se na conduta do devedor, impedem que a este seja reconhecida a possibilidade de, preenchidos os demais requisitos do preceito, se libertar de algumas das suas dívidas, para dessa forma lograr a sua reabilitação económica.

III- E o que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: AAA e BBB.

Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, Instância Central – Secção de Comércio.

Nos presentes autos de insolvência de pessoa singular, viram os Insolventes AAA e BBB, no requerimento inicial, declarar pretenderem a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 235.º e segs. do CIRE.

Por decisão proferida nos autos, o tribunal “a quo”, ao abrigo do disposto no referido art. 238.º, nºs 1, al. d), do CIRE, indeferiu o pedido de exoneração do passivo.

Inconformada com tal decisão, dela interpuseram recurso os Insolventes, de cujas alegações extraíram, em suma, as seguintes conclusões:

“1º- A exoneração do passivo restante é um regime particular de insolvência que redunda em benefício das pessoas singulares, com vista à obtenção do perdão da quase totalidade das suas dívidas remanescentes, mas que não tem por objectivo específico as dívidas da massa insolvente, representando um desvio enorme na finalidade, última do processo de insolvência, da satisfação dos interesses dos credores.

2º- No caso em concreto dúvidas não se colocam de sob o aqui insolvente não recair o ónus de apresentação à insolvência nos termos do artigo 18º n. º 2 do CIRE.

3º- O deferimento do pedido de exoneração do Passivo restante depende da não verificação cumulativa dos requisitos taxativos previstos no n. º 1 do artigo 238º do CIRE.

4º A alínea d) do n. º 1 do artigo 238º do ClRE exige para o indeferimento com fundamento na mesma o preenchimento de três requisitos cumulativos.

I) O devedor ter incumprido o dever de apresentação à insolvência

i. Com prejuízo para os credores

ii. E sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica.

Ou

II) Não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência

i. Com prejuízo para os credores

ii. E sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica.

5º- Os requisitos previstos na alínea d) do artigo 238º do CIRE constituem factos impeditivos do direito à exoneração dos aqui Apelantes.

6º- Porquanto, não se verificam, no caso em concreto, cumulativamente, desde logo padece de insuficiências ao nível da concretização efectiva dos prejuízos, considerando como tais, única e exclusivamente os juros de mora.

7º- Sendo conditio "sine quo non" do vencimento de qualquer obrigação pecuniária a existência de juros então o indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, seria como que uma consequência inultrapassável.

8º- Desde logo o aqui insolvente não tomou real consciência da verificação da situação de insolvência no momento em que foi declarada a insolvência da "Barbosa e Lopes Construções Lda. - Obras Públicas", isto porque, apenas era gerente de direito e porque entre a declaração da insolvência e a liquidação dos bens da empresa mediou ainda um lapso de tempo considerável.

Consequentemente compete aos credores a alegação e prova da verificação dos prejuízos, mormente, a comprovação efectiva do prejuízo sério causado aos credores.

Os credores dos recorrentes tendo alegado tal prejuízo, não provaram, quaisquer factos concretos que permitissem demonstrar encontrar-se preenchido algum dos requisitos exigidos no n. º 1 do artigo 238º do CIRE.

11º - Não se encontrando por isso preenchido o conceito normativo de “prejuízo” pressuposto da al. d) do n. º 1 do artigo 238º do CIRE.

12º - Tal prejuízo não se presume nem decorre automaticamente do atraso na apresentação à insolvência.

13º - Os juros moratórios não integram o conceito de prejuízo pressuposto da al. d) do n. º 1 do artigo 238º do CIRE.

14º - O prejuízo a que se refere o artigo 238º n. º 1 al. d) do CIRE, deve ser irreversível e grave, como acontece com aquele que resulta da contracção de dívidas, estando já o devedor em estado de insolvência, da ocultação do seu património ou de actos de dissipação dolosa, constituindo um patente agravamento da situação dos credores, de modo a onerá-los pela atitude culposa do devedor insolvente, evidenciando que este não merece o benefício da segunda oportunidade ("fresh start").

15º- Não pode deixar de considerar-se face à idade dos ora aqui recorrentes, ainda em início de vida e com um filho com 3 anos de idade, que os mesmos têm ainda na presente data perspectivas sérias da melhoria da sua situação económica.

16º - Nem tão pouco os respectivos credores alegaram, sequer provaram, factos que contrariassem tais perspectivas dos Recorrentes, a não ser os juros moratórios que como vimos não integram o conceito de prejuízo na acepção do artigo 238Q n. º 1 al. d).

17º - A decisão de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante viola assim o disposto no n.º 1 do artigo 238º do CIRE.

18º - Porquanto, não se verificam cumulativamente os pressupostos da al. d) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE.

19º- Ora não ocorrendo qualquer uma destas circunstâncias, de natureza cumulativa, e basta a não verificação de uma delas para que tal aconteça, deve o pedido ser, liminarmente, admitido”.

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Não foram apresentadas contra alegações.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, a questão decidenda é, no caso, a seguinte:

- Apurar se se verificam ou não os pressupostos legais para o indeferimento liminar o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Insolvente Apelante, nos termos do artigo 238º, nº 1, al. d), do C.I.R.E..

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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

Além dos factos que constam do relatório que antecede, e com relevância para a decisão do recurso, consta da fundamentação de direito da decisão recorrida o que a seguir se transcreve:

(…)

Os requerentes AAA e BBB, vieram apresentar-se à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante.

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Por sentença de 3.02.2015, foram declarados insolventes.

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Pelo senhor administrador da insolvência foi elaborado o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, dando parecer no sentido desfavorável à exoneração do passivo restante.

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Na assembleia para apresentação do relatório, o credor CCC, pronunciou -se contra o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, aderindo, em suma, aos fundamentos apresentados pelo AI constantes do relatório apresentado.

O Ministério Público requereu fossem verificados os pressupostos a que alude o disposto no Art. 245º, al. d) do CIRE.

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Face aos elementos que agora constam dos autos, cumpre decidir.

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Nos termos do disposto no art. 235.º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto, Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, Decreto-Lei n.º 282/2007, de 07 de Agosto e Decreto-Lei n.º116/2008, de 04 de Julho), “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.

Resulta do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março que se está na presença do “princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a possibilidade de os devedores singulares se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”, o chamado fresh start, concedendo-lhe a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste, restando-lhe uma nova oportunidade de vida – cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-01-2006, proferido no processo n.º 0556158, na base de dados da DGSI.

Tal exoneração traduz-se “na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de «passivo restante»” – vide L.A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa, 2008, p. 778.

Como consta dos artigos 236.º a 239.º do CIRE, a aceitação do pedido de exoneração do passivo restante depende da verificação de requisitos procedimentais e substantivos. Nos termos do disposto no n.º 3 do art. 236.º do CIRE, do requerimento do devedor referido no n.º 1 tem de constar expressamente “a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”. Considera Assunção Cristas, in “Novo Direito da Insolvência”, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, que, para ser proferido despacho inicial, é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, com ponderação de dados objectivos “passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta”.

Se o pedido de exoneração não for liminarmente indeferido, o juiz profere um despacho inicial que determine que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário durante o período da cessão, ou seja, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo – artigo 239.º n.º 1 e n.º 2 do CIRE.O art.º 237.º do mesmo diploma, referindo-se aos pressupostos para a concessão efectivada exoneração do passivo restante, menciona, sob a al. a), como primeiro pressuposto, que “não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte”.

As situações que constituem motivo para o indeferimento liminar do pedido são as descritas no n.º 1 do art.º 238.º do CIRE:

“a) For apresentado fora de prazo;

b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;

f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”

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Relativamente às condições expressas nas alíneas a), b), c), e), f) e g) da mencionada norma, é manifesto que as mesmas não levantam particulares questões a apreciar, porquanto não existem indícios da sua verificação no caso concreto.

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No que respeita à verificação da circunstância prescrita na alínea d), apesar de em concreto não ser possível precisar a data exacta a partir da qual os devedores se encontravam na situação de impossibilidade de cumprir com as suas obrigações económicas, há que atentar no que a doutrina vem dizendo a este respeito:

Carvalho Fernandes e João Labareda, em C.I.R.E, Anotado, vol. II, pág. 190, acentuam que as alíneas do art.º 238º n.º 1, do CIRE, embora pela negativa, enumeram os requisitos a que deve sujeitar-se a verificação das condições de exoneração e incluem a al. d) dentro do quadro daquelas que respeitam a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.

O prazo de seis meses referidos na al. d) do artigo 238.º conta-se a partir do momento da verificação da situação da insolvência.

A lei não fala em apresentação à insolvência, pedido de insolvência ou declaração de insolvência, mas antes em verificação da situação de insolvência, como se referindo ao momento em que tal percepção e conhecimento são do próprio insolvente.

Volvendo ao caso concreto, temos que, dos créditos existentes, os devedores/insolventes tiveram conhecimento de que seriam responsáveis pelas dívidas em causa e de que se encontravam impossibilitados de as pagar, pelo menos desde Fevereiro de 21012, data em que foi decretada a insolvência da sociedade «DDD», à qual foram prestados os avais subscritos pelos ora insolventes. Nessa data, e com a decisão de liquidação do activo da sociedade, venceram-se todas as dívidas da massa, designadamente as asseguradas pelos avais prestados pelos insolventes.

Conclui-se, assim que, desde pelo menos início de 2012 os insolventes tinham conhecimento da sua situação financeira gravosa, do seu elevado passivo, de que não demonstravam capacidade para o liquidar e que não perspectivavam qualquer melhoria da sua situação económica, como aliás, veio a suceder.

Não resulta dos autos que os insolventes estivessem obrigados ao dever de apresentação à insolvência nos termos do artigo 18.º, n.º 2 do CIRE). Porém, o artigo 238.º, n.º 1, d) refere-se também ao devedor que “não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência”.

Resta acrescentar que os insolventes apenas se apresentaram à insolvência a 30/01/2015, isto é ultrapassado em muito o referido prazo dos 6 meses.

Em face do exposto, concluímos estarem reunidos os pressupostos previstos no art.º 238º, nº 1, al. d) do CIRE.

Termos em que indefiro o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.

(…)”

Fundamentação de direito.

Como é consabido e comummente afirmado, o regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art. 235º e seguintes do C.I.R.E., específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, “tributário da ideia de fresh start”, sendo o seu objectivo final “a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica” Cfr. Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pp. 102 e 103..

Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante - que, nos termos do art. 235º do C.I.R.E., é constituído pelos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento - apresentado pelo devedor, o juiz proferirá despacho inicial (art. 239º nº 1 e 2 do C.I.R.E.) determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art. 241º do C.I.R.E..

No final do período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, nº 1 do C.I.R.E.) e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º do C.I.R.E.).

Sob a epigrafe de “indeferimento liminar”, preceitua o artigo 238º, nº 1, do C.I.R.E., que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

(…)

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

(…)

Ora, directamente relacionada com a questão que agora nos ocupa, poderá começar por dizer-se que é hoje orientação dominante e pacífica a que vai no sentido de que, configurando os requisitos da norma do artigo 238.º, do C.I.R.E., um impedimento ao exercício do direito de exoneração do passivo restante, a primeira conclusão que se impõe é a de que, face ao estabelecido no art.º 342º, nºs 1 e 2 do Código Civil, não cabe ao insolvente alegar ou demonstrar que não se verificam aqueles requisitos”.

Aliás, que isto assim será, incontroversamente se depreende do disposto no art.º 236º, nº 3 do C.I.R.E., que apenas impõe que o requerente faça expressamente constar do requerimento ”a declaração de que… preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”.

Mas, embora daí se não possa, sem mais, concluir que cabe aos credores e ao administrador alegar e provar o preenchimento daqueles requisitos, porque da análise da norma substantiva - o artigo 238.º, n.º 1 - indubitavelmente decorre que nela se constrói uma previsão de factos que impedem o deferimento do pedido, pensamos não oferecer grandes dúvidas que, tratando-se, portanto, de factos impeditivos do benefício que, por via dele, o insolvente pretende alcançar, será sobre os credores que impende o ónus de provar que o insolvente não se encontra em condições de beneficiar da exoneração, em conformidade com o que se dispõe no artigo 342.º, n.º 2, do CC.

Com efeito, conforme se decidiu no acórdão do S.T.J., de 19/06/2012, “Tratando-se de factos que, de acordo com a norma substantiva que serve de fundamento à pretensão de cada uma das partes, se destinam a inviabilizar o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor-insolvente, são susceptíveis de obstar a que esse direito se tenha constituído, validamente, cabendo, assim, aos credores ou ao administrador demonstrar a sua existência, sendo certo, a este propósito, que “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento, em conformidade com o preceituado pelo artigo 236º, nºs 1 e 4, do C.I.R.E.. STJ de 19 de Junho de 2012, proferido no processo 1239/11.9TBBRG-E.G1.S1, in www.dgsi.pt.

E se dúvidas se não suscitam com relação a este aspecto, parece-nos no entanto, que nada obsta a que, para concluir pelo preenchimento de qualquer das situações previstas em qualquer da alíneas do nº 1, do artigo 238º, do C.I.R.E., o tribunal se possa servir elementos que constem do processo, sem que tenha havido a alegação e prova de uma qualquer situação por algum dos sujeitos processuais legitimados para o efeito.

Na verdade, a este propósito escreveu-se no acórdão da Relação de Coimbra, de 16/04/2013, que “porque, devendo o despacho sobre o pedido de exoneração, ser proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes - arts. 238º, n.º 2 e 239º - e, como tal, já depois da declaração de insolvência, muitos daqueles requisitos impeditivos - caso existam - constarão já do processo - cfr. art. 238º, n.º 2, in fine -, quer seja na sentença de insolvência, quer seja no relatório do administrador, quer nos documentos juntos, sem necessidade da sua específica alegação e prova – será o caso, por exemplo, dos consignados nas als. a), e) e g) e, pelo menos parcialmente, da al. d) - cumprimento do prazo de 6 meses para apresentação à insolvência.

Quanto aos demais requisitos afigura-se-nos que a sua alegação e prova cabe aos credores e/ou ao administrador da insolvência, sempre sem prejuízo de poderem constar dos autos os respectivos elementos e dos poderes inquisitórios do juiz conferidos no art. 11º do C.I.R.E., ao abrigo dos quais o juiz não está limitado aos factos alegados pelas partes.

Podemos, assim, concluir que cabe ao insolvente declarar que preenche os requisitos para que seja concedida a exoneração do passivo restante, competindo aos credores e/ou ao administrador alegar e provar os factos impeditivos, podendo todavia o juiz, mesmo na falta daquela alegação e prova, fundamentar a sua decisão em factos não alegados, nos elementos constantes do processo, naqueles que tenha averiguado, nos factos notórios, bem como nos que sejam do seu conhecimento por via das funções que exerce - ao objectivo que o legislador pretende atingir (que é o de filtrar os devedores insolventes que não merecem à partida o beneficio que está em causa) corresponde mais razoavelmente que o encargo de alegação e prova em apreciação incida sobre a parte contrária ao insolvente” Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, 16-04-2013; Acórdão da Relação do Porto de 19.12.2012 e o Acórdão do STJ de 14.3.2012, in www.dgsi.pt..

E inquestionavelmente se nos afigura ser este o melhor entendimento por ser o que melhor se articula e compraz com os interesses substanciais e de coerência processual em causa.

Na verdade, como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 06/06/2013, “Sabendo-se que as regras do ónus da prova apenas determinam a parte contra a qual, havendo dúvidas quanto à demonstração de um determinado facto, o tribunal deve decidir, e não propriamente que a demonstração do facto só possa ser feita por essa parte, antes de discutir a quem cabe o ónus da prova do prejuízo para os credores, deve verificar-se se os autos revelam ou não a existência desse prejuízo, já que só na falta deste se coloca a questão de quem tinha o ónus de o demonstrar”. Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 06/06/2013, in www.dgsi.pt.

E isto assim será, tendo, desde logo em atenção o disposto no artigo 11.º do C.I.R.E. que sob a epígrafe “princípio do inquisitório” estabelece o seguinte: “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”. Por via desta norma o tribunal não está dependente da alegação das partes e pode servir-se perfeitamente de factos que não hajam sido alegados por estas e resultem apenas da instrução do processo e dos seus incidentes”.

Em decorrência e com os mesmos fundamentos, perfilhamos também o entendimento de que nada obsta ou impede, mas, e bem pelo contrário, até se impõe, que, dos factos averiguados na instrução do processo, o tribunal possa concluir, se disso for caso, oficiosamente, se se verifica ou não uma qualquer das situações previstas nas alíneas do nº 1, do artigo 238, do C.I.R.E., independentemente da alegação e prova desses factos por parte de algum dos credores.

E isto assim terá de ser, como se refere no último dos mencionados acórdãos, por duas razões básicas.

“A primeira é a de que o processo de insolvência não é um puro processo de partes, subordinado ao princípio do dispositivo, mas um processo que como tende a fazer intervir a universalidade dos credores e os vincula a todos, mesmo que optem por não intervir, carece de normas e procedimentos que abstraiam da iniciativa de cada um dos credores e desenhem um figurino que tenda a permitir a satisfação do que se presume serem os interesses comuns a todos.

A segunda é a de que face à necessidade de acautelar os interesses da generalidade dos credores, nomeadamente públicos, interesses esses não necessariamente convergentes, bem como à tendência do processo de insolvência para a liquidação coerciva e universal do património, se torna necessário definir um regime que zele pela igualdade dos credores, independentemente da sua capacidade de expressão ou intervenção no processo, e isso consegue-se precisamente através do reforço da intervenção (oficiosa) do juiz”.

E assim sendo, o que haverá é de indagar se em razão dos elementos probatórios constantes dos autos resultam ou não demonstrados os aludidos requisitos ou factos impeditivos do direito da Requerente, independentemente de quem os alegou ou arrolou a respectiva prova para os autos.

À luz de quanto se acaba de expender, passamos agora à análise da questão suscitada pelos Recorrentes, que consiste em apurar se, na concreta situação, se verificam ou não os pressupostos legais de que depende o indeferimento liminarmente, nos termos do artigo 238º, nº 1, als. d), do C.I.R.E., do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos Insolventes Apelantes.

O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art. 235º e seguintes do C.I.R.E., específico da insolvência das pessoas singulares, que é um instituto novo, tributário da ideia de fresh start, ou novo arranque, que tem o propósito de libertar o devedor das suas obrigações, de dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero’ Cfr. Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 4ª edição, p. 133., que já tinha sido indicada pela Comissão Europeia, no seu relatório de síntese de Setembro de 2003 (relacionado com o Projecto Best sobre Reestruturação, Falências e Novo Arranque) como um instrumento importante para a revitalização da economia europeia, assente num novo espírito empresarial, depois de ter constatado que, de um modo geral, os empresários que passaram por processos de falência aprendem efectivamente com os seus erros e são mais bem sucedidos no futuro Cfr. Ac. R. Porto de 12/05/2009, in www.dgsi.pt..

A exoneração do passivo restante constitui, para o devedor insolvente, uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente regulado nos art. 235º e seguintes do C.I.R.E..

Daí falar-se de passivo restante Carvalho Fernandes e João Labareda, C.I.R.E. Anotado, reimpressão, Quid Iuris, Lisboa 2009, p. 778, anotação 3 ao artigo 235º., que, nos termos do art. 235º do C.I.R.E., é constituído pelos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.

A exoneração do passivo restante, tendo por objectivo promover o ressarcimentos dos credores, confere, por outro lado, aos devedores singulares insolventes a possibilidade de se libertarem dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, com vista a permitir a sua reabilitação económica Cfr. o considerando nº 45 do preâmbulo do diploma que aprovou o C.I.R.E. – DL 53/2004, de 18/03., e apenas se justificará se ele observar a conduta recta subjacente ao cumprimento dos requisitos legalmente previstos, que a medida pressupõe - cfr. o art. 239º do C.I.R.E..

Na verdade, como vem sendo insistentemente afirmado, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido Cfr. Ac. R. Coimbra de 17/12/2008, no sítio www.dgsi.pt.. Catarina Serra, obra citada, pp. 133/134, fala, a este propósito, dos ‘abusos de exoneração’. , sendo por isso que logo na fase liminar de apreciação do pedido se instituem os requisitos mais apertados a preencher e a provar, devendo a conduta do devedor ser analisada através da ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta Cfr. Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, p. 170..

A prolação de despacho inicial está, pois, dependente de se poder concluir ter tido o devedor um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência Cfr. Assunção Cristas, ob. cit., pg.170..

A esta luz devem entender-se os requisitos enunciados no nº 1 do art. 238º do C.I.R.E. para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, tenham eles incidência processual (como é o caso da alínea a) do preceito), tenham eles natureza substantiva – aqueles que respeitam a situações ligadas ao passado do insolvente (alíneas c) e f) do preceito), aqueles que concernem a condutas observadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no processo de insolvência (alínea g) do preceito) ou aqueles que se reconduzem a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram (alíneas b), d), e e) do preceito).

Ora a decisão recorrida, indeferiu o pedido de exoneração, considerando estarem verificados os aludidos requisitos enunciados na alínea d), do nº 1 do art. 238º do C.I.R.E. –, ou seja, por os Insolventes terem incumprido o dever de apresentação no prazo referido, advindo desse atraso prejuízo para os credores e sendo manifesto que a conduta dos requerentes agravou a dívida.

No que concerne à questão de apurar quando pode considerar-se existir prejuízo para os credores a jurisprudência tem-se dividido:

- Enquanto uma corrente defende que a omissão do dever de apresentação atempada à insolvência torna evidente o prejuízo para os credores pelo avolumar dos seus créditos, face ao vencimento dos juros e consequente avolumar do passivo global do insolvente Cfr., entre outros, Ac. R. Porto de 9/12/2008, Ac. R. Porto de 15/07/2009, Ac. R. Porto de 14/01/2010, Ac. R. Lisboa de 24/11/2009, Ac. R. Guimarães de 3/12/2009 e Ac. R. Guimarães de 30/04/2009, todos no sítio www.dgsi.pt.;

- Defende uma outra que o conceito de prejuízo pressuposto no normativo em causa consiste num prejuízo diverso do simples vencimento dos juros, que são consequência normal do incumprimento gerador da insolvência, tratando-se assim dum prejuízo de outra ordem, projectado na esfera jurídica do credor em consequência da inércia do insolvente (consistindo, por exemplo, no abandono, degradação ou dissipação de bens no período que dispunha para se apresentar à insolvência) Cfr. Ac. R. Porto de 12/05/2009, no sítio www.dgsi.pt..

Assim, para esta última corrente, não integra o “prejuízo” previsto no art. 238º, nº 1, d), do C.I.R.E., o simples acumular do montante dos juros Cfr. Ac. R. Porto de 11/01/2010, Ac. R. Lisboa de 14/05/2009 e Ac. R. Coimbra de 23/02/2010, no sítio www.dgsi.pt. ou seja, não é pelo facto do devedor se atrasar na apresentação à insolvência que se poderá concluir imediatamente que daí advieram prejuízos para os credores Cfr. Ac. S.T.J. de 21/10/2010, no sítio www.dgsi.pt..

E pensamos ser esta última a melhor interpretação, pois que, como se refere no mencionado acórdão da R. do Porto de 11/01/2010, o “atraso implica, sempre, um avolumar do passivo”. Por isso, parece-nos inquestionável que legislador “não pode ter querido prever naquela alínea d) como excepção aquilo que é o normal ocorrer”, donde legitimo se nos afigura concluir que o conceito de prejuízo aí previsto constitui algo mais do que já resulta do demais previsto nesse dispositivo – esse prejuízo não pode consistir no aumento da dívida e atraso na cobrança dos créditos por parte dos credores, pois que tal já resultava da demais previsão dessa alínea.

Como é óbvio, de modo algum o intérprete pode deixar de ter em consideração que o legislador do C.I.R.E. estava plenamente consciente de que os créditos vencem juros com o simples decorrer do tempo. E, representando a insolvência uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas (art. 3º, nº 1 do C.I.R.E.), inevitável será concluir que, com o decurso do tempo, tais obrigações vencem juros (arts. 804º e ss do C.C.), que, assim, aumentam, quantitativamente, o passivo do devedor.

E assim sendo, incontroverso resulta que não bastará o simples decurso do tempo (seis meses contados desde a verificação da situação de insolvência) para se poder considerar verificado o requisito em análise (pelo avolumar do passivo face ao vencimento dos juros), pois que, perfilhar um tal entendimento, representaria valorizar um prejuízo ínsito ao decurso do tempo, comum a todas as situações de insolvência, o que se nos não afigura compatível com o estabelecimento do prejuízo dos credores enquanto requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente.

Como requisito autónomo do indeferimento liminar do incidente, o prejuízo dos credores acresce, ou é um pressuposto adicional aos demais requisitos, que comporta exigências distintas das pressupostas por estes últimos, não podendo, por consequência, considerar-se preenchido com circunstâncias que já estejam forçosamente contidas noutro desses requisitos.

Com efeito, entendido daquela outra forma, este segundo requisito, em que consiste o prejuízo para os credores “dilui-se no primeiro e fica esvaziado de sentido útil”, passando a “consubstanciar um efeito necessário da não apresentação à insolvência”, não fazendo sentido a alusão (autónoma) a ele feita pela norma Cfr. Catarina Serra, obra citada, pp. 138/139..

Destarte, deve valorizar-se a conduta do devedor no sentido de esclarecer se o seu comportamento foi pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica, devendo a exoneração ser liminarmente coarctada caso seja de concluir pela negativa.

Ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei não visa mais do que os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles comportamentos geradores de novos débitos (a acrescer àqueles que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer).

São estes comportamentos desconformes ao proceder, honesto, lícito, transparente e de boa fé cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade (verificados os demais requisitos do preceito) de se libertar de algumas das suas dívidas, e assim, conseguir a sua reabilitação económica.

O que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem. Cfr. Catarina Serra, obra citada, p. 140.

Face ao exposto, concluímos que não integra o conceito normativo de “prejuízo” pressuposto pelo art. 238º, nº 1, d) do C.I.R.E. o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros.

Ora, como se deixou dito, nos termos do artigo 237.º a concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe, desde logo, que não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, prescrevendo-se, por seu lado, no artigo 238.º, que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se se verificar alguma das circunstâncias indicadas.

Deste modo, em vez de definir os requisitos em resultado de cuja ocorrência o pedido deveria ser admitido liminarmente, as normas legais seguem um percurso inverso: por regra o pedido é admitido sem mais e só assim não sucederá (sendo indeferido) na hipótese excepcional de ocorrer alguma das situações taxativamente indicadas, cujo apuramento e demonstração é particularmente difícil e complexa, uma vez que as normas não regulam sequer o processo para fazer esse apuramento e demonstração e, pelo contrário, apontam para a decisão mediante simples despacho a proferir na assembleia de credores, ouvidos os interessados.

Como refere Assunção Cristas, “o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos substantivos que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável. Sendo certo que esse desfecho favorável depende totalmente da sua actuação.” Cfr. Assunção Cristas, ob cit., pg 191.

Tecidos estes breves considerandos, e revertendo agora à análise da situação vertente, cumprirá indagar se se verifica, ou não, o requisito consagrado na alínea d), do n.º 1 do artigo 238.º, do C.I.R.E., e cuja constatação motivou o despacho de indeferimento liminar recorrido.

A este propósito alega a Recorrente, em síntese, por um lado, que o facto de o devedor se abster de se apresentar à insolvência não é conclusivo de daí advirem prejuízos para os seus credores, e, por outro, que não sendo a insolvente titular de uma empresa, não tinha qualquer obrigação de se apresentar à insolvência, face ao disposto no nº 2, do art. 18º, do CIRE.

Para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, a alínea d) do nº 1, do art. 238º, do C.I.R.E., prescreve cumulativamente três requisitos negativos:

1- Que o devedor se haja abstido de se apresentar à insolvência nos seis meses posteriores à verificação da situação de insolvência;

2- Que dessa abstenção (de apresentação à insolvência no semestre posterior à verificação da situação de insolvência) resulte um prejuízo para os credores;

3- Que o devedor saiba (ou pelo menos não possa ignorar, sem culpa grave) não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Como é consabido esta última norma consagra duas situações distintas.

A primeira é a de o devedor estar obrigado a apresentar-se à insolvência, associando ao incumprimento do dever de apresentação dentro do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 18.º a consequência da recusa da exoneração.

A segunda situação é a de o devedor não estar obrigado a apresentar-se à insolvência.

No termos do artigo 18.º do C.I.R.E. o devedor tem a obrigação de se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, isto é, o conhecimento de estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecer essa situação.

Segundo o n.º 2 da mesma norma apenas se exceptuam do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.

Todavia, se as pessoas singulares, que não sejam titulares de uma empresa, ficaram excluídas do dever de apresentação na data em que incorram na situação de insolvência, sem que daí lhes advenham consequências de índole punitiva, essa falta de apresentação obsta, contudo, ao prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante desencadeado pelo devedor.

Assim, em qualquer caso, mesmo não sendo os insolventes titulares de qualquer empresa e, consequentemente, não impendendo sobre eles a obrigação de se apresentarem à insolvência, sempre deveriam, no entanto, para poderem beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante, apresentar-se à insolvência no prazo de seis meses a contar da situação de insolvência.

Acresce que, e não obstante o acabado de expender, como resulta dos elementos constantes dos autos e se refere no próprio requerimento inicial, o insolvente foi, conjuntamente com outras duas pessoas, sócio e gerente de uma sociedade comercial.

Salvo melhor opinião, tal situação, no que tange à exploração de uma actividade económica (não já quanto aos bens que respondem pelas dívidas societárias) não é distinta daquela que se verificaria caso a insolvente, ao invés de sócio-gerente da Barbosa Lopes Construções, Lda., fosse empresária em nome individual.

Como tal, não existe, no entender deste tribunal, qualquer motivo justificativo para não considerar ser o insolvente titular da empresa, sendo que, ante a expressa previsão do art. 18.º, nº 3. do CIRE, não pode afirmar-se que se encontrava desobrigado de se apresentar à insolvência, devendo fazê-lo nos 60 dias (ante a data do conhecimento da situação de insolvência), como abaixo se verá, face à redacção do art. 18.º CIRE.

De tudo resulta que, ainda que se entendesse que a insolvente não se encontrava obrigada a apresentar-se à insolvência, o certo é que, ante a redacção dada ao art. 238.º, nº1, al. d), do CIRE deveria tê-lo feito nos 6 meses subsequentes à verificação dessa situação.

Mas se se nos afigura como evidente, em face do circunstancialismo demonstrado, o mesmo assim já não sucede com relação à existência de um prejuízo para os credores, pois que, tratando-se de um requisito autónomo deste indeferimento liminar, que acresce aos demais requisitos, surge, como um pressuposto adicional, que traz exigências distintas das pressupostas pelos outros, não podendo, para se aquilatar da sua eventual existência, deixar de se dar ênfase particular à conduta dos devedores, devendo apurar-se se esta se pautou pela licitude, honestidade, transparência e boa fé, no que respeita à sua situação económica.

Ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei visa, como se deixou dito, os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles que originem novos débitos, a acrescer aos que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer.

São, assim, estes comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, os quais, a verificarem-se na conduta do devedor, impedem que a este seja reconhecida a possibilidade, preenchidos os demais requisitos do preceito, de se libertar de algumas das suas dívidas, para dessa forma lograr a sua reabilitação económica.

Ora, por inquestionável, não se pode deixar de concordar como o que se refere na decisão recorrida, no sentido de que, “dos créditos existentes, os devedores/insolventes tiveram conhecimento de que seriam responsáveis pelas dívidas em causa e de que se encontravam impossibilitados de as pagar, pelo menos desde Fevereiro de 21012, data em que foi decretada a insolvência da sociedade «DDD», à qual foram prestados os avais subscritos pelos ora insolventes. Nessa data, e com a decisão de liquidação do activo da sociedade, venceram-se todas as dívidas da massa, designadamente as asseguradas pelos avais prestados pelos insolventes”.

E igualmente resulta incontroverso que, como igualmente se concluir nessa decisão, “desde pelo menos início de 2012 os insolventes tinham conhecimento da sua situação financeira gravosa, do seu elevado passivo, de que não demonstravam capacidade para o liquidar e que não perspectivavam qualquer melhoria da sua situação económica, como aliás, veio a suceder”.

Todavia, com fundamento apenas numa tal factualidade poder-se-á afirmar ter existido prejuízo para os credores desta ausência de apresentação à insolvência?

E em face do que se demonstrou e que a própria decisão recorrida teve em consideração, parece-nos de todo evidente que a resposta a uma tal questão não poderá deixar de ser negativa, pois que, embora resultado demonstrado que, pelo menos, “desde pelo menos início de 2012 os insolventes - Já que em Fevereiro desse mesmo ano foi declarada a insolvência da empresa «DDD», à qual foram prestados os avais subscritos pelos ora insolventes - tinham conhecimento da sua situação financeira gravosa, do seu elevado passivo, de que não demonstravam capacidade para o liquidar e que não perspectivavam qualquer melhoria da sua situação económica”, o certo é que, dos autos não constam elementos que permitam concluir que, apesar do conhecimento e plena consciência que possuíssem dessa situação, os insolventes, posteriormente a essa mesma data, tenham contraído, assumido ou simplesmente garantido novos compromissos, da empresa ou pessoais, que soubessem que, com grande probabilidade, que a empresa não teria possibilidades de cumprir, e, se isso assim viesse a suceder, também por eles, dados os avultados montantes envolvidos, não poderia ser garantido esse cumprimento, por manifesta falta de rendimentos ou de bens para o efeito, pondo desta forma em causa e comprometendo os interesses dos seus credores.

Na verdade, se por um lado, não pode ser assumida uma obrigação que se sabe não poder ser cumprida, por outro, também uma garantia não pode ser encarada apenas como um meio de natureza meramente formal, com vista ao possibilitar da obtenção de crédito, e que se sabe de início que, na hipótese de incumprimento por parte do devedor originário, o seu exercício nunca poderá proporcionar a satisfação do crédito que através da sua instituição se teve em vista garantir.

Mas na presente situação à evidência resulta que, a partir do momento em que demonstrado ficou que os Insolventes tinham plena consciência da difícil situação financeira da aludida empresa, do seu avultado passivo e de que não demonstravam capacidade para o liquidar e que não perspectivavam qualquer melhoria da sua situação económica, pelos insolventes não foi assumido qualquer compromisso, pessoal ou da empresa, bem sabendo que, com grande probabilidade, não teriam possibilidades de o cumprir.

E assim sendo, mais não restará do que concluir, em contrário do que fez o tribunal a quo, que se nos afigura encontrarem-se verificados os pressupostos da alíneas d), do n.º 1, do artigo 238.º, do C.I.R.E., para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, razão pela qual, a presente apelação não poderá deixar, senão, de ser julgada procedente, com a consequente revogação da decisão recorrida, determinando-se seja substituída por outra que, admitindo a requerida exoneração do passivo, determine o perseguimento dos subsequentes termos deste processo.

Sumário – artigo 663, nº 7), do C.P.C.

I- Ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei visa os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles que originem novos débitos, a acrescer aos que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer.

II- São comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, os que, a verificarem-se na conduta do devedor, impedem que a este seja reconhecida a possibilidade de, preenchidos os demais requisitos do preceito, se libertar de algumas das suas dívidas, para dessa forma lograr a sua reabilitação económica.

III- E o que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar a apelação procedente, e, em consequência, decidem revogar a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que, admitindo a requerida exoneração do passivo, determine o perseguimento dos subsequentes termos deste processo.

Sem custas.

Guimarães, 24/09/2015.

Jorge Alberto Martins Teixeira

Jorge Miguel de Pinto Seabra

José Fernando Cardoso Amaral

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Cfr. Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pp. 102 e 103.

STJ de 19 de Junho de 2012, proferido no processo 1239/11.9TBBRG-E.G1.S1, in www.dgsi.pt.

Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, 16-04-2013; Acórdão da Relação do Porto de 19.12.2012 e o Acórdão do STJ de 14.3.2012, in www.dgsi.pt.

Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 06/06/2013, in www.dgsi.pt.

Cfr. Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 4ª edição, p. 133.

Cfr. Ac. R. Porto de 12/05/2009, in www.dgsi.pt.

Carvalho Fernandes e João Labareda, C.I.R.E. Anotado, reimpressão, Quid Iuris, Lisboa 2009, p. 778, anotação 3 ao artigo 235º.

Cfr. o considerando nº 45 do preâmbulo do diploma que aprovou o C.I.R.E. – DL 53/2004, de 18/03.

Cfr. Ac. R. Coimbra de 17/12/2008, no sítio www.dgsi.pt.. Catarina Serra, obra citada, pp. 133/134, fala, a este propósito, dos ‘abusos de exoneração’.

Cfr. Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, p. 170.

Cfr. Assunção Cristas, ob. cit., pg.170.

Cfr., entre outros, Ac. R. Porto de 9/12/2008, Ac. R. Porto de 15/07/2009, Ac. R. Porto de 14/01/2010, Ac. R. Lisboa de 24/11/2009, Ac. R. Guimarães de 3/12/2009 e Ac. R. Guimarães de 30/04/2009, todos no sítio www.dgsi.pt.

Cfr. Ac. R. Porto de 12/05/2009, no sítio www.dgsi.pt.

Cfr. Ac. R. Porto de 11/01/2010, Ac. R. Lisboa de 14/05/2009 e Ac. R. Coimbra de 23/02/2010, no sítio www.dgsi.pt.

Cfr. Ac. S.T.J. de 21/10/2010, no sítio www.dgsi.pt.

Cfr. Catarina Serra, obra citada, pp. 138/139.

Cfr. Catarina Serra, obra citada, p. 140.

Cfr. Assunção Cristas, ob cit., pg 191.