Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1800/13.7TBVCT.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: CADUCIDADE DA ACÇÃO
DIREITO DE ACÇÃO
CADUCIDADE
RECONHECIMENTO DO DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido constitui causa impeditiva da caducidade.
II - Destinando-se a caducidade a tornar certa, dentro de certo prazo, determinada situação jurídica, o reconhecimento impeditivo da caducidade tem de ter o mesmo efeito de tornar certa a situação.

III - Assim, esse reconhecimento deve ser concreto, preciso e inequívoco.

Decisão Texto Integral: I – Relatório;

Apelante: AA AUTORA);
Apelada: BB. (RÉ);

*****

Nos presentes autos de acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, a autora, aqui recorrente, demandou a ré, pedindo a sua condenação a:
- reconhecer os defeitos dos carregadores fornecidos como abrangidas pela assistência em período de garantia;
- proceder à reparação, substituição e devolução dos montantes sem quaisquer custos à Autora;
- ressarcir a Autora pelos prejuízos patrimoniais causados pela sua conduta faltosa ao manter os carregadores paralisados e com eles funcionários de armazém, no montante de € 20.479,28;
- ressarcir a Autora pelo pagamento de trabalho suplementar, no valor de € 6.107,64;
- ressarcir a Autora pelos prejuízos não patrimoniais causados pela sua conduta faltosa, no montante estimado de € 100.000,00;
- ressarcir a Autora pelas penalizações aplicadas pelos seus clientes por falta de entrega de produto ou reagendamento de encomendas num montante de € 1905,60, acrescido dos respectivos juros;
- pagar à Autora uma indemnização por todos os prejuízos patrimoniais que vierem a ser apurados e que ainda não são passíveis de ser aferidos, a liquidar em execução de sentença.
Fundamentou estes pedidos na avaria de dois carregadores fornecidos pela ré à Autora, na recusa da ré em repará-los nas instalações da Autora e nos prejuízos daí advenientes com a paralisação dos ditos carregadores na actividade daquela (diminuição na produção e na satisfação dos clientes).
A ré invocou a excepção da caducidade.
Em resposta a autora sustentou que a excepção invocada deveria improceder, uma vez que:
- a ré reconheceu o direito da Autora, facto que constitui causa impeditiva da caducidade;
- um dos pedidos formulados não contende com o regime da compra e venda defeituosa, não se lhe aplicando o prazo de caducidade invocado pela autora.;
- interpelou a ré, fixando-lhe um prazo razoável para o cumprimento da obrigação pelo que a falta de reparação conduziu à perda do interesse na realização do negócio, assistindo-lhe, assim, o direito à resolução do contrato e, como tal, é aplicável o prazo geral de prescrição de vinte anos.

Em sede de audiência prévia, foi proferida decisão a conhecer da excepção de caducidade, sendo a ré absolvida dos pedidos.

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs o presente recurso de apelação, de cujas alegações se extraem, em súmula, as seguintes conclusões:
A) Dos factos alegados pela recorrente, em resultado da denúncia realizada pela recorrente das avarias em dois carregadores fornecidos pela aqui recorrida (Carregador HF alta frequência PSW24 V 120T, nº 2867411; Carregador HF alta frequência PSW48 V 120T, nº 2868711) e, imediatamente comunicadas à recorrida a fim de esta providenciar pela competente assistência técnica.
B) Perante tal solicitação, representantes da recorrida deslocaram-se às instalações da recorrente - cfr.
doc 5 a) junto à petição Inicial do qual se reproduz “O facto de nos termos deslocado ai prova a nossa vontade em cooperar com a vossa Empresa.“ – tendo aqueles, constatado in loco os problemas do equipamento fornecido e a necessidade da sua reparação.
C) A recorrida reconheceu os vícios de que padeciam os carregadores fornecidos e da necessidade de reparação dos mesmos (cfr. também artigo 39.º da douta contestação), certo é que mesmo após as promessas de reparação, a Ré adotou um comportamento em nada condizente com aquele que havia manifestado aquando da sua visita às instalações da recorrente.
D) Na sua defesa, pugnou a recorrida pela procedência da excepção da caducidade, considerando ter decorrido mais de seis meses desde a data da denúncia dos defeitos e, nessa medida, caducado o seu direito de ação.
E) Com a realização da audiência prévia teve a recorrente possibilidade de se pronunciarem quanto à exceção invocada pela Ré, pugnado pela improcedência da mesma porquanto deveria operar uma causa impeditiva da caducidade, nos termos do artigo 331.º, n.º 2 do Código Civil, uma vez que houve reconhecimento do direito da Autora à reparação por parte da Recorrida.
F) Aliás, o reconhecimento do direito ocorreu em data anterior à data em que a recorrida alega ter caducado o direito da recorrente.
G) Ora, o reconhecimento do direito da recorrida com promessas de solucionar as avarias constitui um impedimento da caducidade, evitando que se considerem válidas situações violadoras do princípio da boa fé, nomeadamente do non venire contra factum suum.
H) Decorre tal reconhecimento do teor dos documentos n.º 5 a) da petição inicial e doc.n.º 2 da Contestação e do teor do artigo 39.º da douta contestação da recorrida.
I) Face à admissão da existência de avarias no equipamento fornecido e da disponibilidade em reparar,
constitui essa admissão um reconhecimento do direito para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 331.º do CC, sendo que com o reconhecimento do direito ficou afastada a caducidade.
J) O reconhecimento deve, pois, ser expresso, concreto ou preciso, de modo a não subsistirem dúvidas sobre a aceitação, pelo devedor, dos direitos do credor, não sendo suficiente a simples admissão vaga ou genérica desse direito; mas não será exigível que tenha de revestir o mesmo valor do ato que deveria ser praticado – como efectivamente o foi no caso decidendo.
K) Violou, assim o Tribunal a quo os artigo 9.º, 331.º ambos do CC; os artigos 591.º, 595.º do CPC.
L) Decidiu o Tribunal a quo o mérito da causa sem realização de julgamento. Porém em caso de dúvida, deveria o processo seguir os seus trâmites normais, seguindo para realização de julgamento e com a necessária produção da prova.
M) Da factualidade trazida para os articulados, bem como dos documentos juntos decorrem factos cuja produção de prova a realizar-se em sede de julgamento foi travada devido à precoce decisão de mérito proferida. E, tais factos, nomeadamente a deslocação de técnicos da Ré às instalações da Autora (cfr. doc n.º 5 a) junto da petição inicial), a forma como decorreu tal deslocação, o que foi discutido e acordado, as promessas de reparação do equipamento por parte da Ré (cfr. doc n.º 5 a) junto da PI e doc n.º 2 junto com a contestação, o alegado/confessado no artigo 39.º da contestação pela Ré.
N) E daí que, na dúvida, deva o processo prosseguir os seus normais termos, com a passagem à instrução e produção das provas, apresentando-se excecional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.
O) Estava, por isso, vedado ao Tribunal a quo a antecipação do conhecimento do mérito não se mostrando dispensável a audiência de discussão e julgamento, sendo que, neste domínio, o Juiz se deve nortear por um critério de extrema prudência, por forma a obviar a decisões precipitadas.
P) Violou assim o Tribunal a quo o artigo 9.º do CC, 331.º do CC, os artigos 591.º, 595.º do CPC.
Pede que se revogue o despacho recorrido, seguindo-se os demais trâmites até final.

Houve contra alegações, pugnando-se pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questão a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão a apreciar é a seguinte:

a) Verifica-se a caducidade do direito de acção?

Colhidos os vistos, cumpre decidir:


III – Fundamentos;

1. De facto;

Têm-se em conta os elementos com incidência jurídico-processual constantes do relatório supra e a factualidade vertida nos articulados pelas partes, cujo teor se dá por reproduzido, nomeadamente que:
1. A ré forneceu à autora dois carregadores (Carregador HF (alta frequência) PSW24 V 120T, nº 2867411 e Carregador HF (alta frequência) PSW48 V 120T, nº 2868711), tendo o equipamento em causa sido fornecido e entregue pela ré, na sede da autora, em 29 de Novembro de 2011.
2. A autora denunciou avarias/defeitos em tais peças, em 14 de Dezembro de 2012 e em 21 de Dezembro de 2012.
3. A presente acção deu entrada no Tribunal no dia 27 de Junho de 2013.
4. No dia 20-12-2012 e no dia 21-12-2012, a ré enviou à autora, por via electrónica, a correspondência constante dos seguintes documentos, cujo teor se transcreve:
Documento nº 5 a) (que acompanha a petição inicial):
“(…)
Passo a transmitir
Ponto 1
Como bem sabem não existe qualquer obrigatoriedade da nossa parte de nos deslocarmos ás vossas instalações.
O facto de nos termos deslocado ai só prova a nossa vontade em cooperar com a Vossa Empresa. (…)
Ponto 2
As garantias serão por nós avalizadas, e se for caso disso serão dadas.
Ponto 3
A garantia é dada sobre o produto (se ficar provado que não houve nenhum mau funcionamento do mesmo e que foi devido a problemas de fabrico).
Ponto 4
A garantia cessa assim que qualquer entidade proceda á sua reparação sem indicação expressa da fábrica.
Ponto 5
Mais uma vez indico que todos os custos associados á reparação do(s) mesmo(s) serão naturalmente imputados á vossa Empresa e pagos no acto.
Desta forma queiram por favor encaminhar o(s) carregador(s) até ás nossas instalações para verificação do(s) mesmo(s).
Se for possível reparar aqui os mesmos, optimo, caso contrário terão que ser enviados para a fábrica para reparação.
(…)”.
E documento nº 2 (que acompanha a contestação)
“(…) Agradecemos o envio do mesmo o tão pronto possível para as nossas instalações para verificação.
Após análise será enviado um relatório indicando se o problema encontrado está dentro da garantia ou não.
A garantia como sabe apenas abrange os componentes, assim como todos os custos inerentes serão reportados e devidos. (..)”.


2. De direito;

a) Da excepção de caducidade do direito de acção;

A questão jurídica que é objecto do presente recurso respeita à decretada caducidade do direito de acção por parte da apelante.

Mas mais propriamente prende-se com o alegado reconhecimento do direito por parte da apelada, como forma de impedimento da caducidade.

Ou seja, dando-se como assente que a presente acção foi proposta após o decurso do prazo de seis meses, a que alude o artº 921º, nº4, do Código Civil (CC), invoca a apelante que existe causa impeditiva dessa caducidade, à luz do disposto no artº 331º, nº2, do CC.

Para tal, aduz que a recorrida reconheceu os vícios de que padeciam os carregadores fornecidos e da necessidade de reparação dos mesmos, conforme resulta do artº 39º da contestação e decorre do teor do documento nº 5, a) da petição inicial e documento nº2 da contestação.

Carece, porém, de razão.

O artº 331º, nº2, do CC, estabelece como causa impeditiva da caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.

Tem-se entendido que «a caducidade é estabelecida com o fim de, dentro de certo prazo, se tornar certa, se consolidar, se esclarecer determinada situação jurídica; por isso, o reconhecimento impeditivo da caducidade tem de ter o mesmo efeito de tornar certa a situação» (Vaz Serra, in RLJ, ano 107º, pág. 24).

E se se trata do prazo de proposição de uma acção judicial, como in casu, o reconhecimento «deve ser tal que torne o direito certo e faça as vezes da sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido» (Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, nº 118, in BMJ nº 107º).

No caso em apreço, o alegado no artº 39º da contestação não tem a virtualidade de consubstanciar um motivo impeditivo dessa caducidade, na medida em que nele não se reconhece qualquer direito à existência de defeitos e eliminação destes, relativamente aos carregadores vendidos.

De facto, se atentarmos no seu conteúdo (“Foi a passividade da Autora, a não enviar os carregadores para análise/reparação, que originou que, segundo esta, os mesmos estejam inutilizados”), necessariamente concluímos que aqui a ré não reconhece, assume ou aceita sequer o direito da autora à reparação dos defeitos invocados, já que imputa a eventual inutilização da coisa (os carregadores) à conduta daquela, ao usar inclusive expressões como “para análise/reparação que originou que, segundo esta, os mesmos estejam inutilizados “(sublinhado nosso).

Depois, como a decisão recorrida bem analisa, o teor dos assinalados doc. 5 a), junto com a p.i. e doc. 2 com a contestação, é elucidativo no sentido de a ré, ao invés de reconhecer qualquer direito à reparação à autora, refutar ab initio a sua responsabilidade a tal, ao declarar, além do mais, o seguinte:

Doc. 5:

Ponto 2

As garantias serão por nós avalizadas, e se for caso disso serão dadas.
Ponto 3
A garantia é dada sobre o produto (se ficar provado que não houve nenhum mau funcionamento do mesmo e que foi devido a problemas de fabrico). (sublinhados nossos).
Doc. 2:
“(…) Agradecemos o envio do mesmo o tão pronto possível para as nossas instalações para verificação.
Após análise será enviado um relatório indicando se o problema encontrado está dentro da garantia ou não. (sublinhados nossos).

É assim manifesto que a ré não reconheceu, explícita ou implicitamente, a existência de avarias no equipamento fornecido, nem tão pouco o direito da autora à sua concreta eliminação: a ré condicionou sempre a sua intervenção à verificação da situação/cobertura de garantia de funcionamento.

Daí que, sendo patente que o reconhecimento impeditivo da caducidade deve ser tal que torne o direito do credor certo, no caso concreto, pelo que se deixa exposto, a atitude da ré não só é duvidosa e incerta, como traduz um comportamento adverso ao de qualquer acto de reconhecimento a favor da ré.

Acresce que, emergindo de tal troca de correspondência entre as partes um litígio, desde logo, quanto ao local de análise e eventual reparação daquelas peças, mais se consolidam os fundamentos para a autora antever que não havia qualquer reconhecimento desse direito à reparação por si invocado por banda da ré. Ou seja, mais uma razão para a recorrente considerar que não havia reconhecimento de direito algum.

Aliás, a autora afirma-o - até contraditoriamente ao agora invocado reconhecimento dos defeitos - no artº 20º da petição inicial, ao articular que a ré não assumiu o defeito do equipamento nem tão pouco apresentou qualquer intenção de resolver o problema.

Logo, também não se descortina aqui qualquer comportamento abusivo por parte da recorrida, já que a sua postura foi sempre a de sujeitar a garantia de funcionamento ao pressuposto da sua verificação, isto é constatação da existência de defeitos garantidos.

Por último, cabe dizer que colhe a argumentação da apelada no sentido de que, nem na petição inicial, nem na resposta à contestação a autora alegou que os representantes da recorrida se deslocaram às instalações da recorrente, de modo a constatar in loco os problemas do equipamento fornecido e a necessidade da sua reparação.

Também não se extrai tal do apontado documento nº 5, quando nele se afirma que “ O facto de nos termos deslocado aí só prova a nossa vontade em cooperar com a Vossa Empresa. (…)”, já que tal asserção deve ser contextualizada com o restante Ponto 1, onde preliminarmente se diz que “Como bem sabem não existe qualquer obrigatoriedade da nossa parte de nos deslocarmos ás vossas instalações” e com os Pontos 2 e 3 seguintes, onde se diz consequentemente que “As garantias serão por nós avalizadas, e se for caso disso serão dadas” (ponto 2) e “A garantia é dada sobre o produto (se ficar provado que não houve nenhum mau funcionamento do mesmo e que foi devido a problemas de fabrico)” (ponto 3).

Isto é, tais proposições e comportamento da ré não manifestam um direito à reparação reconhecido à autora, antes o afastam liminarmente.

Em suma, inexistiu um reconhecimento do direito por parte da ré, de molde a impedir a caducidade por si invocada e judicialmente declarada.

Porquanto se deixa exposto, improcede a apelação.

Sintetizando:

I - O reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido constitui causa impeditiva da caducidade.

II - Destinando-se a caducidade a tornar certa, dentro de certo prazo, determinada situação jurídica, o reconhecimento impeditivo da caducidade tem de ter o mesmo efeito de tornar certa a situação.

III - Assim, esse reconhecimento deve ser concreto, preciso e inequívoco.


IV – Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juizes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Guimarães, 12.03.2015
António Sobrinho
Isabel Rocha
Jorge Teixeira