Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
621/17.2T8BCL-A.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
LIMITES DO APERFEIÇOAMENTO
CAUSA DE PEDIR
NOVO PEDIDO
SERVIDÃO PREDIAL VOLUNTÁRIA
SERVIDÃO LEGAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Cabendo ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, devem estes ser expostos na petição inicial e nela formular-se o pedido – artºs 5º, nº 1, e 552º, nº 1, alíneas d) e e), CPC. A forma e o conteúdo de tal exposição devem observar requisitos jurídicos, técnicos e linguísticos, de modo a não comprometerem a sua inteligibilidade, coerência, plausibilidade, suficiência e concludência. Devem, especialmente na vertente fáctica e descritiva, apresentar-se em apurados termos concretos, claros, precisos, concisos e objectivos, como a Doutrina e a Jurisprudência preconizam. Quando a parte tal não consiga por si, deve o juiz providenciar por que ela aperfeiçoe o seu articulado, convidando-a a suprir as insuficiências ou as imprecisões na exposição ou na concretização da matéria de facto alegada – artº 590º, nºs 2, alínea b). Sujeita-se, porém, a uma restrição estabelecida no nº 6: as alterações a tal pretexto e com tal finalidade promovidas no âmbito da matéria de facto não podem ultrapassar os limites estabelecidos no artº 265º.

2) Se, por um dos modos legalmente admissíveis, o autor alega estar já constituída em benefício do seu prédio (dominante), uma servidão de passagem e o dono do outro prédio (serviente) não a respeita nem reconhece e se opõe mesmo ao respectivo exercício, a acção é de mera declaração ou apreciação e condenatória. Se, diferentemente, apenas invoca os factos concretos justificativos do seu direito potestativo a constituir tal servidão e pretende que o tribunal, julgando-os procedentes, a declare constituída, assim provocando através da sentença uma alteração na ordem jurídica pré-existente com a criação ex novo de tal encargo sobre o prédio vizinho em proveito do seu, a acção é constitutiva.

3) A esta luz, a causa de pedir na acção real de condenação que tenha por objecto servidão de passagem consiste na factualidade relativa ao contrato, à disposição testamentária, ao exercício da posse ou à destinação por pai de família, que tenha concretamente sido alegada, enquanto facto jurídico de que deriva o direito real existente mas ofendido cuja tutela jurisdicional se requer. Ao passo que, na acção real constitutiva baseada, apenas, no direito potestativo pressuposto destinada a obter do tribunal a constituição ex novo do direito, a causa de pedir consiste no facto concreto invocado (v.g., encravamento, necessidade de aproveitar águas para gastos domésticos) que faculta a obtenção do direito mediante sentença judicial.

4) Tendo a autora, na primitiva petição, formulado o pedido de que seja a ré condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem já constituída por acordo e existente a favor do seu prédio sobre o prédio daquela e a abster-se de continuar a conduta lesiva do seu direito, não pode, a pretexto de aceder ao convite e de aperfeiçoar a petição, nos termos do artº 590º, nº 6, CPC, acrescentar um novo pedido subsidiário de constituição da servidão.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A autora C. OLIVEIRA intentou ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO, sob a forma de processo comum, contra a ré M. OLIVEIRA.

Na petição inicial alegou:

“Dos factos:

1. A A. é dona e legítima possuidora do prédio rústico, composto por terreno de lavradio […]

Sucede o seguinte:

9. A A. e a R. são irmãs.
10. A R. é proprietária de uma habitação com logradouro, que confronta com o prédio rústico da A., melhor identificado supra.
Sucede que,
11. O prédio da A. está encravado.
12. Por essa razão, aquando da partilha de bens por óbito da mãe de ambas, a A. e a R. acordaram a área que corresponderia ao caminho de servidão a constituir a favor da A.
13. Dado o facto de o prédio da A. não ter qualquer acesso à via pública.
14. Assim, tal passagem foi delimitada, com estacas, tendo cerca de três metros de largura e oito metros de extensão.
15. Acontece que, a R. procedeu à vedação do seu prédio, derrubando todas essas estacas.
16. A R. construiu um muro de blocos fora dos limites da sua propriedade, num total de
50,00m² […]
17. Fê-lo com o desconhecimento da A., contra a sua vontade, e aproveitando a ausência
desta.
18. E com tal comportamento, fechou a única entrada que a A. tem para o seu prédio e única forma de aceder ao caminho público.

Como se disse,
19. Com esta divisória a R. fechou a única entrada que permitia à A. aceder ao seu prédio.
20. De facto, o prédio da A. não tem qualquer confrontação com o caminho.
21. Ou tão pouco um acesso direto.
22. Encontrando-se, assim, o prédio encravado, sem qualquer meio que permita à sua proprietária, a A., aceder-lhe.
23. Não obstante, conforme se disse, a A., desde a aquisição do imóvel, por si e em continuação dos respetivos antecessores, numa posse de boa-fé, titulada e pacífica, tem vindo a usar e fruir do referido prédio ininterruptamente.
24. Uso e fruição esse que implica ter a servidão de passagem para, livremente, aceder ao dito prédio.
25. Tal servidão de passagem é imprescindível, pelo facto de o prédio da A. estar encravado entre o prédio da Ré e o prédio de R. Oliveira.
26. De facto, sem tal servidão de passagem a A. estaria impedida de, livremente, aceder ao prédio identificado em 1.º.
27. Tal servidão terá cerca de três metros de largura e oito metros de extensão.
28. Sendo que a A. sempre utilizou tal extensão de terreno para, de boa-fé, ignorando lesar o direito de quem quer se fosse, de forma pacifica, à vista de todos e sem a oposição de terceiros, aceder ao seu prédio.
29. Dispõe o artigo 1550.º do Código Civil que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.”
30. Retira-se do mesmo que existindo encrave de um prédio, que tanto pode ser absoluto (se não tiver qualquer comunicação com a via pública), como relativo (se não tiver condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio ou a comunicação que tem com a via pública se mostrar insuficiente), o seu dono pode impor coativamente a passagem e a servidão daí resultante é considerada legal.
31. Pelo que, o pressuposto de exigir o acesso à via pública através do prédio vizinho é a situação de encrave (absoluta ou relativa).
32. O que, desde logo, se constata no caso em apreço, já que o prédio de A. não tem qualquer confrontação com o caminho, tão pouco um acesso direto ao mesmo.
33. A única forma de A. aceder ao prédio é através do acesso que a R. entende ser terreno seu.
34. Sendo facilmente percetível que o prédio da A. está encravado.
35. Não tendo outra entrada que não aquela que se tem vindo a referir.
36. Direito este que a R. insiste em não reconhecer à A., justificando a presente lide.
Nestes termos em que, E nos mais de Direito que V.ª Exª doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência:

- Ser a R. condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem da A. sobre a parcela identificada em 27.º, abstendo-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito;
Para tal, Deve a R ser citada para contestar, querendo, no prazo e sob a cominação legal, seguindo-se os ulteriores termos do processo.”

Em 13-09-2017, foi proferido o seguinte “DESPACHO DE APERFEÇOAMENTO:

“C. Oliveira intentou a presente acção de processo comum contra M. Oliveira, peticionando que esta seja condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem da Autora sobre a parcela de terreno com cerca de três metros de largura e oito metros de extensão, abstendo-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte tal direito.

Analisada a factualidade alegada em sede de petição inicial para sustentar o peticionado, ficou o Tribunal com dúvidas acerca da real pretensão da Autora.

Alega esta, em sede de petição inicial, factos conducentes a que seja peticionada a constituição de uma servidão legal de passagem, mas depois termina pedindo o reconhecimento de uma servidão de passagem.

Em face disso, ficamos sem perceber se a Autora, que alega que o seu prédio está encravado, pretende que o Tribunal, em caso de procedência da acção, conclua pela constituição de uma servidão legal de passagem ou, ao invés, a Autora pretende o reconhecimento de uma servidão de passagem já constituída por uma das formas legalmente previstas (vide artigo 1547º, nº 1, do Código Civil).

Assim, revela-se essencial para o Tribunal poder apreciar da bondade do pedido formulado, que a Autora esclareça as dúvidas supra enunciadas.

Caso a Autora pretenda o reconhecimento de uma servidão de passagem já constituída, deverá aquela descrever o prédio serviente – o que não se acha feito de forma especificada em sede de petição inicial -, bem como esclarecer por onde e em que termos se processa a alegada servidão de passagem, o que, “in casu”, não sucede, já que a Autora não descreve o trajecto desta – onde começa, por onde segue, onde acaba.

Pelo que, em cumprimento da disciplina consagrada no artigo 590º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil, convida-se a Autora a, no prazo de dez dias, apresentar nova petição inicial onde supra as deficiências acima explanadas.”

Acedendo a tal convite, a autora apresentou a nova petição seguinte:

1. A A. é dona e legítima possuidora do prédio rústico, […]

Sucede o seguinte:

11. A A. e a R. são irmãs.
12. A R. é proprietária de uma habitação com logradouro, que confronta com o prédio rústico da A., melhor identificado supra.

Sucede que,
13. O prédio da A. está encravado.
14. Por essa razão, aquando da partilha de bens por óbito da mãe de ambas, a A. e a R., para que dúvidas inexistissem acerca da servidão de passagem sempre existente no prédio da Autora, chegaram a um entendimento sobre a área que corresponderia ao dito caminho de servidão.
15. A Ré reconheceu, à data, que sempre existiu a servidão de passagem da qual o seu prédio, melhor descrito anteriormente, é serviente.
16. Assim, tal passagem foi delimitada, com estacas, tendo cerca de dois metros e meio de largura e 4,5 metros de extensão.
17. Tudo, como se disse, para que dúvidas não existisse acerca da existência da servidão de passagem para o prédio da Autora.
18. Servidão esta que sempre existiu.

Acontece que,
19. A R. procedeu à vedação do seu prédio, derrubando todas essas estacas.
20. Construiu um muro de blocos fora dos limites da sua propriedade. – Conforme documentos 4, 5, 6, 7 e 8 que se juntam e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
21. Fê-lo com o desconhecimento da A., contra a sua vontade, e aproveitando a ausência desta.
22. E com tal comportamento, fechou a única entrada que a A. tem para o seu prédio e única forma de aceder ao caminho público.
23. Em plena violação de um direito real existente, a servidão de passagem.
24. E em violação do ónus que impende sobre o seu imóvel.

Como se disse,
25. Com esta divisória a R. fechou a única entrada que permitia à A. aceder ao seu prédio.
26. De facto, o prédio da A. não tem qualquer confrontação com o caminho.
27. Ou tão pouco um acesso direto.
28. Encontrando-se, assim, o prédio encravado, sem qualquer meio que permita à sua proprietária, a A., aceder-lhe.
29. Não obstante, conforme se disse, a A., desde a aquisição do imóvel, por si e em continuação dos respetivos antecessores, numa posse de boa-fé, titulada e pacífica, tem vindo a usar e fruir do referido prédio ininterruptamente.
30. Uso e fruição esse que sempre implicou ter a servidão de passagem para, livremente, aceder ao dito prédio.
31. Até ao muro realizado pela Ré, tal servidão de passagem sempre havia sido reconhecida por todos.
32. Há várias décadas.
33. Tal servidão de passagem sempre foi imprescindível, pelo facto de o prédio da A. estar encravado entre o prédio da Ré e o prédio de R. Oliveira.
34. De facto, sem tal servidão de passagem a A. estaria impedida de, livremente, aceder ao prédio identificado em 1.º.
35. Tal servidão terá cerca de um a dois metros e meio de largura e uma extensão de cerca de quatro metros e meio. – tudo conforme ata do Processo n.º 3353/13.7TBBCL, que aqui se junta sob o n.º 9 cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
36. O prédio rústico da Autora confronta com o prédio rústico da ré, dividindo tal confrontação, em toda a sua confrontação, em toda a sua extensão, um muro de blocos em cimento.
37. O prédio da Autora não tem acesso direto à via pública, como se disse.
38. Está encravado entre os prédios urbanos de R. Oliveira e da Ré.
39. Por sua vez, o prédio da Ré deita diretamente para a Travessa ..., sem que, numa extensão de cerca de 4 metros, o mesmo é constituído por logradouro sem qualquer construção, designadamente o posso aí existente.
40. A travessa ..., na zona onde se situa o logradouro do prédio da Ré, tem cerca de 2,5 metros de largura.
41. O logradouro junto ao muro que o divide do prédio da Autora tem uma extensão de cerca de 4,5 metros.
42. O piso em questão é em terra, com algumas pedras.
43. No local descrito, designadamente, no logradouro do prédio da Ré, com cerca de 2,5 metros de largura e 4,5 metros de extensão, existe a servidão de passagem que permite aceder ao prédio da Autora.

Reiterando:
44. A A. sempre utilizou tal extensão de terreno para, de boa fé, ignorando lesar o direito de quem quer se fosse, de forma pacifica, à vista de todos e sem a oposição de terceiros, aceder ao seu prédio.
45. Já os antepassados o haviam feito.
46. Devendo, por conseguinte, ser a ré condenada a reconhecer tal servidão de passagem, nos moldes descritos, abstendo-se de praticar quaisquer atos que colidam com tal direito real.

No entanto,
Mesmo que não seja esse o entendimento de V. Exa. Subsidiariamente,

47. Dispõe o artigo 1550.º do Código Civil que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.”
48. Retira-se do mesmo que existindo encrave de um prédio, que tanto pode ser absoluto (se não tiver qualquer comunicação com a via pública), como relativo (se não tiver condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio ou a comunicação que tem com a via pública se mostrar insuficiente), o seu dono pode impor coativamente a passagem e a servidão daí resultante é considerada legal.
49. Pelo que, o pressuposto de exigir o acesso à via pública através do prédio vizinho é a situação de encrave (absoluta ou relativa).
50. O que, desde logo, se constata no caso em apreço, já que o prédio de A. não tem qualquer confrontação com o caminho, tão pouco um acesso direto ao mesmo.
51. A única forma de A. aceder ao prédio é através do acesso que a R. entende ser terreno seu.
52. Sendo facilmente percetível que o prédio da A. está encravado.
53. Não tendo outra entrada que não aquela que se tem vindo a referir.
54. Requerendo-se a V. Exa. a constituição da servidão de passagem, com as características descritas ao longo do presente articulado.

Nestes termos em que, E nos mais de Direito que V.ª Exª doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência:

- Ser a R. condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem da A. sobre a parcela identificada supra, abstendo-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito;

Caso não seja esse o entendimento,
Subsidiariamente,

- Requer-se a V. Exa. a constituição de servidão de passagem da Autora, melhor identificada no articulado.
- E nesse caso, requer-se a V. Exa. A condenação da Ré do reconhecimento do direito de servidão de passagem da autora, bem como a sua abstenção da prática de quaisquer atos lesivos de tal direito.

Para tal,
Deve a R ser citada para contestar, querendo, no prazo e sob a cominação legal, seguindo-se os ulteriores termos do processo.”

Na sequência, em 13-10-2017, foi proferido o seguinte despacho:

I – Por despacho exarado a fls. 54 – 55, o Tribunal convidou a Autora a apresentar nova petição inicial, onde esclarecesse a sua real pretensão, já que peticionava que a Ré fosse condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem da Autora sobre a parcela de terreno com cerca de três metros de largura e oito de extensão e depois alegava factos conducentes a que fosse constituída uma servidão legal de passagem.

A Autora deu cumprimento a tal despacho de aperfeiçoamento, mas extravasou o seu âmbito, já que acrescentou um pedido subsidiário.
Na verdade, na petição inicial originária a Autora a Autora formulou um único pedido – o supra referido – e na aperfeiçoada pediu, subsidiariamente, a constituição de uma servidão de passagem.
Ora, uma vez que o convite ao aperfeiçoamento se limitou a que a Autora esclarecesse qual a sua pretensão, ao formular um outro pedido, ainda que a título subsidiário, a Autora extravasou os limites fixado no dito despacho, não sendo assim admissível tal pedido subsidiário.
Notifique.
*
II – Pedido Reconvencional

Na contestação ou independentemente dela pode o réu deduzir pedido reconvencional contra o autor – cfr. artigo 583º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Na reconvenção é formulado pelo réu (reconvinte) um pedido autónomo contra o autor (reconvindo).
A reconvenção depende, como qualquer acção, da verificação dos pressupostos processuais gerais. Para além disso, depende da verificação dos requisitos de ordem processual previstos no artigo 93º, do Código de Processo Civil e dos de ordem substantiva previstos no artigo 266º, do mesmo diploma legal.
O tribunal da acção é também competente para as questões deduzidas na reconvenção, desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

Deve existir uma certa conexão entre o pedido formulado pelo autor na acção e o formulado pelo réu na reconvenção.

Dispõe o nº 2, do artigo 266º, do Código de Processo Civil, que a reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

A Ré, em sede de contestação, deduziu reconvenção, peticionando, caso se considere que o pedido formulado pela Autora configura um pedido de constituição de uma servidão de passagem, que lhe seja atribuída uma indemnização não inferior a € 25.000 pelos prejuízos sofridos com tal constituição.
Ora, considerando o que acima já se deixou dito, o pedido formulado pela Autora é o de reconhecimento de uma alegada servidão de passagem e não o de constituição de uma servidão de passagem. Assim sendo, não tem fundamento a reconvenção deduzida, a qual não se admite.
Notifique.”.

A autora não se conformou e apelou, apresentando-nos, para fundamentar o pedido de revogação do despacho (seu ponto I), argumentos que sintetizou nas seguintes conclusões:

1. Por despacho proferido a 13 de Outubro de 2017, o Tribunal convidou a Autora a apresentar nova PI, esclarecendo a sua real pretensão “(...) já que peticionava que a Ré fosse condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem da Autora sobre a parcela de terreno com cerca de três metros de largura e oito de extensão e depois alegava factos conducentes a que fosse constituída uma servidão legal de passagem”.
2. A autora apresentou articulado de aperfeiçoamento da PI.
3. Posteriormente a isso, o Tribunal entendeu que a Autora “extravasou o seu âmbito, já que acrescentou um pedido subsidiário (...) na petição inicial originária a Autora formulou um único pedido – o supra referido – e na aperfeiçoada pediu, subsidiariamente, a constituição de uma servidão de passagem”.
4. Não se concorda com a decisão de julgar inadmissível o pedido subsidiário formulado pela autora, pelo que se visa decisão diversa, no sentido da aceitação do pedido de constituição da servidão de passagem, pois tal pedido foi exposto ao longo de todo o petitório inicial, muito embora viesse a ser posteriormente esclarecido na petição aperfeiçoada.
5. O juiz pode providenciar o aperfeiçoamento dos articulados, nos termos do artigo 590.º, n.º 2 al. b) do CPC.
6. E convida as partes ao suprimento das irregularidades dos articulados fixando um prazo para o suprimento ou correção do vício que entende existir – quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
7. Existem limites impostos ao aperfeiçoamento dos articulados, desde logo, caso a parte aceite o convite ao aperfeiçoamento do articulado, e altere a matéria de facto, deverá fazê-lo observando determinadas regras impostas pelo CPC.
8. No caso estamos perante a alteração da PI, pelo que teremos de atentar ao preceituado no artigo 265.º ex vi do artigo 590.º, n.º 6.
9. No caso em concreto não houve qualquer ampliação da causa de pedir, visto que na primeira petição apresentada, a Autora elenca uma série de factos que permitem aferir que sempre existiu servidão de passagem.
10. Elenca, também, factos que permitem aferir que tem de existir servidão de passagem, considerando que o prédio da mesma se encontra encravado.
11. O próprio Tribunal reconhece que a Autora “(...) em sede de petição inicial, (alega) factos conducentes a que seja peticionada a constituição de uma servidão legal de passagem, mas depois termina pedindo o reconhecimento de uma servidão de passagem.

Em face disso, ficamos sem perceber se a Autora, que alega que o prédio está encravado, pretende que o Tribunal em caso de procedência da acção, conclua pela constituição de uma servidão legal de passagem ou, ao invés, a Autora pretende o reconhecimento de uma servidão de passagem já constituída por uma das formas legalmente previstas (vide artigo 1547.º, n.º 1 do Código Civil).”
12. A causa de pedir é aquela que resulta da petição inicial originária: defende-se que a Autora só tem aquele acesso ao prédio, não tem qualquer outro, visto que o seu prédio está encravado. Sempre entrou por ali, e de facto, estando o prédio encravado tal não poderia ser de forma diferente.
13. Porventura não fará a petição originária a clara distinção entre os pedidos, mas é indubitável que a causa de pedir não se alterou.
14. No caso em apreço, o Tribunal nem sequer convidou a apenas que a parte concretizasse certos pontos da petição que reportasse de imprecisos ou confusos, pelo contrário, o Tribunal convidou a aperfeiçoar a petição inicial, apresentando uma nova.
15. Algo que a Autora fez, concretizando certos aspetos do articulado e sendo clara na parte final do novo articulado – subsidiariamente peticionando a constituição de servidão legal de passagem, algo que, já estava, ainda que subentendido, na petição inicial originária e tanto assim é que a contraparte inclusive deduziu reconvenção partindo desse pedido.
16. Viola o princípio do dispositivo a decisão de que se recorre, pois não pode o Tribunal, após o convite a aperfeiçoamento da petição inicial e sendo que a mesma agora é clara e concretiza os factos e os pedidos da petição inicial originária, fazer cair o pedido de constituição da servidão de passagem e o pedido reconvencional da contraparte – esta que, em resposta à petição inicial aperfeiçoada nem sequer entende existir ampliação do pedido, pelo que nem se pronuncia quanto à admissibilidade ou não deste (artigo 265.º, n.º 1 do CPC).
17. Os factos essenciais que constituem a causa de pedir foram expostos na petição inicial originária (ainda que, de forma deficitária), e a Ré contestou e partindo dos mesmos deduziu pedido reconvencional.
18. Na Réplica, antes do despacho que convida ao aperfeiçoamento, a Autora reitera que foi acordado por ambas as partes a constituição de uma servidão, ou seja, quando as partes se entendiam, foi estipulado, para que dúvidas não existisse, que se deveria ali constituir uma servidão de passagem.
19. Em face de tal realidade, em contrário a tudo o que a parte defendeu ao longo dos articulados é totalmente incompreensível que o Tribunal – sem mais – considere que a parte está a extravasar o convite ao aperfeiçoamento e não permita o aperfeiçoamento de escrita do que já anteriormente havia sido defendido pela parte.
20. Não houve qualquer alteração do peticionado ou da causa de pedir, sendo que o articulado de aperfeiçoamento, no caso em concreto, serviu apenas para concretizar deficiências formais, nomeadamente quanto ao pedido, sendo que no articulado de aperfeiçoamento limitou-se a concretizar uma via subsidiária – no fundo, apenas definindo o que já estava exposto na petição originária.
21. A decisão de que ora ser recorre viola o princípio do dispositivo e o princípio da estabilidade da instância, pelo que deverá ser alterada por uma outra no sentido da admissibilidade de tudo o peticionado na petição originária.

Termos em que,
Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, e em consequência deve a decisão aqui colocada em crise ser substituída por uma outra que vá no sentido da admissibilidade de tudo o peticionado pela Autora.
Cumprindo-se, assim, a almejada Justiça!”.

A contrapôs-se-lhe, defendendo a bondade do decidido.

No entanto, para o caso de o recurso da autora obter provimento, interpôs recurso subordinado, incidente sobre o ponto II do mesmo despacho, alegando e concluindo quanto a ele que:

1. A questão da procedência, ou improcedência, do recurso interposto pela Autora contende com a questão da admissibilidade, ou inadmissibilidade, do pedido reconvencional deduzido pela Ré em sede de contestação.
2. A Ré deduziu nos presentes autos pedido reconvencional, pedido reconvencional esse que não foi admitido com os seguintes fundamentos: “o pedido formulado pela Autora é o de reconhecimento de uma alegada servidão de passagem e não o de constituição de uma servidão de passagem (…)não tem fundamento a reconvenção deduzida, a qual não se admite”.
3. A considerar-se que face à matéria de facto alegada o pedido subsidiário formulado pela Autora é admissível, e que os factos alegados pela Autora poderão conduzir à constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio que é propriedade da ora Ré, terá que ser admitido o pedido reconvencional formulado pela ora Recorrente, pois só assim a ora Recorrente poderá fazer valer o seu direito a ser ressarcida de todos os prejuízos resultantes da constituição da servidão legal de passagem.
4. Na hipótese de ser julgado procedente o recurso interposto pela Autora, e, consequentemente julgar admissível in casu a dedução de pedido subsidiário, deverá ser admitido o pedido reconvencional deduzido pela Ré, porquanto o mesmo emerge de facto jurídico que serve de fundamento à acção (art. 266º, nº1, al. a) do CPC), uma vez que, o mesmo se consubstancia num pedido de atribuição de indemnização caso seja decretada pelo Tribunal a constituição de uma servidão de passagem que onere o prédio que é propriedade da ora Ré.
5. Em caso de admissão do pedido reconvencional deduzido pela Ré deve ser alterado o valor da causa, somando-se ao valor da acção, o valor da reconvenção, devendo atribuir-
se à mesma o valor de € 30 000, 01.
A decisão recorrida violou os art.s 266º, nº 1, al. a) e 297º, nº 2, do CPC.

Termos em que Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser admitido o pedido reconvencional formulado pela Ré, pois só assim se fará Justiça!”.

Foram admitidos ambos os recursos como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir:

a) Se a nova petição respeitou e não excedeu os limites do aperfeiçoamento, devendo revogar-se a parte I do despacho.
b) Na afirmativa, se deve revogar-se a sua parte II e admitir-se a reconvenção.

IV. APRECIAÇÃO

Cabendo ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, devem eles ser expostos na petição inicial e nesta formular-se o pedido – artºs 5º, nº 1, e 552º, nº 1, alíneas d) e e).

A forma e o conteúdo de tal exposição devem observar requisitos jurídicos, técnicos e linguísticos, de modo a não comprometerem a sua inteligibilidade, coerência, plausibilidade, suficiência e concludência.

Devem, especialmente na vertente fáctica e descritiva, apresentar-se em apurados termos concretos, claros, precisos, concisos e objectivos, como a Doutrina e a Jurisprudência preconizam.

Quando a parte tal não consiga por si, deve o juiz providenciar por que ela aperfeiçoe o seu articulado, convidando-a a suprir as insuficiências ou as imprecisões na exposição ou na concretização da matéria de facto alegada – artº 590º, nºs 2, alínea b), e 4.

Sujeitando-se, porém, a uma restrição estabelecida no nº 6: as alterações a tal pretexto e com tal finalidade promovidas no âmbito da matéria de facto não podem ultrapassar os limites estabelecidos no artº 265º.
Ou seja: por efeito de tais alterações ou aperfeiçoamentos fácticos, a causa de pedir não pode ser alterada ou ampliada, salvo se for consequente a confissão feita pelo réu e aceita pelo autor ou se para tal entre eles houver acordo. O artº 265º prevê outras circunstâncias e condições em que pode ser feita a alteração do pedido e da causa de pedir.

Muito menos, no quadro do aperfeiçoamento, alterar-se o pedido.

A causa de pedir, como se define no artº 581º, nº 4, nas acções reais, é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas, é o facto concreto que se invoca para obter o efeito pretendido.

A acção real, em primeira linha, é a que visa obter tutela para a ofensa de um direito dessa natureza (propriedade, servidão, etc.). Pressupõe a existência na ordem jurídica do direito respectivo e a sua titularidade pelo autor.

No conceito se inclui geralmente, não obstante, aquela que, ao invés, visa apenas constitui-lo. Não existindo ainda, tal como está ordenado juridicamente o domínio dos bens, o direito real almejado, o autor é titular apenas do direito potestativo a que o tribunal o declare e a obtê-lo.

A diferença espelha-se no tipo de acção adequada: a declarativa de condenação ou a constitutiva – artºs 2º, nº 2, e 10º, nº 2, alíneas b) e c).

E reflecte-se precisamente na causa de pedir: como se viu, na primeira, é o facto jurídico de que deriva o direito real (v. g., contrato, usucapião); na segunda, é o facto concreto invocado para se obter o efeito pretendido (v. g., o encravamento).

No que tange às servidões prediais (que não são propriamente um direito mas um encargo imposto sobre um prédio em proveito de outro e, por isso, inseparáveis deste e não tituladas autonomamente pelo respectivo dono nem por ele negociáveis), a Doutrina costuma distinguir entre as voluntárias e as legais, a partir do modo como elas se constituem.

Nos termos do nº 1, do artº 1547º, CC, as servidões podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família.

Trata-se aí, segundo P. Lima e A. Varela, das “constituídas por facto do homem” (expressão do Código de 1867) e a que alguns autores também chamam de “voluntárias” ainda que – salientam aqueles –, sem grande rigor precisamente por causa das nascidas por usucapião. Ob. citada, página 627.

Estas, com efeito, dependem da vontade do homem na medida em que, como decorre dos artºs 1316º, 1317º, 1287º, 1288º e 303º, do CC, emergindo embora de uma situação de facto (possessória) que, no caso de preencher certos requisitos legalmente exigidos, faculta àquele a quem aproveita (ao possuidor) a aquisição do direito (real) a cujo exercício corresponde tipicamente a sua actuação, carecem de ser invocadas, judicial ou extrajudicialmente, retroagindo os efeitos de tal invocação ao início da posse respectiva.

Radicando, pois, a aquisição do direito real por usucapião no exercício da posse pelo lapso de tempo para cada caso legalmente exigido, e remontando tal aquisição pelo possuidor ao início daquela actuação, é, porém, no acto (livre e voluntário) de invocação de tais circunstâncias, seja em juízo ou fora dele, que a sua eficácia se manifesta obstando ao exercício por qualquer sujeito oponente do direito prescrito assim tornado incompatível ou excluído (aí se operando a prescrição aquisitiva) e reflecte o seu vigor absoluto, transformando em jurídica e introduzindo na respectiva ordem a situação de facto que só na aparência o era.

Como a este respeito ensinavam aqueles insignes mestres, a lei “não diz que pela posse se adquirem direitos, mas sim que a posse faculta ao possuidor a sua aquisição. A nova redacção provém do facto de a usucapião, para ser eficaz, necessitar de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (…). Não há, portanto, uma aquisição ipso jure, mas uma faculdade de adquirir atribuída ao possuidor…”. Ob. citada, página 65.

As servidões legais, conforme nº 2, do artº 1547º, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa.

É o caso da servidão legal de passagem – artº 1550º, nº 2. Os proprietários de prédios encravados têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.

Assim, ante a acima referida dicotomia acções declarativas/acções constitutivas especificada no artº 10º, do CPC, se, por um dos modos admissíveis, o autor alega estar já constituída a seu favor, ou melhor, em benefício de prédio dominante de que é dono, uma servidão de passagem e o dono do prédio serviente não a respeita nem reconhece e se opõe mesmo ao respectivo exercício, a acção é de mera declaração ou apreciação e condenatória.

Se, diferentemente, apenas invoca os factos concretos justificativos do seu direito potestativo a constituir tal servidão e pretende que o tribunal, julgando-os procedentes, a declare constituída, assim provocando através da sentença uma alteração na ordem jurídica pré-existente com a criação ex novo de tal encargo sobre o prédio vizinho em proveito do seu, a acção é constitutiva.

Até aí, apesar da situação de encravamento existente, ela “não constitui ainda verdadeira servidão”, pois, como dizem aqueles autores, “trata-se, em bom rigor, de direitos potestativos, que têm de característico o facto de facultarem ao respectivo titular a constituição de um direito real de servidão, independentemente da vontade do dono do prédio serviente”.

“A vida das servidões legais desdobra-se, como é sabido, numa dupla fase, percorrendo dois momentos sucessivos. Num primeiro momento, trata-se de um simples direito potestativo, que confere ao respectivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste” e “Num segundo momento, exercido o direito potestativo e constituída assim, por acordo das partes, ou, na falta de acordo, por sentença ou acto administrativo, a relação de carácter real a que tendia esse direito, a servidão legal converte-se numa verdadeira servidão, ou seja, num encargo excepcional sobre a propriedade. Quer isto dizer que, nas servidões legais, a verdadeira servidão só mediatamente é imposta por lei; a fonte imediata desta reside na vontade das partes, na sentença constitutiva ou no acto administrativo”. Ob. citada, página 636.

A esta luz, a causa de pedir na acção real de condenação que tenha por objecto servidão de passagem consiste na factualidade relativa ao contrato, à disposição testamentária, ao exercício da posse ou à destinação por pai de família, que tenha concretamente sido alegada, enquanto facto jurídico de que deriva o direito real existente mas ofendido cuja tutela jurisdicional se requer.

Ao passo que, na acção real constitutiva baseada, apenas, no direito potestativo pressuposto destinada a obter do tribunal a constituição ex novo do direito, a causa de pedir consiste no facto concreto invocado (v.g., encravamento, necessidade de aproveitar águas para gastos domésticos) que faculta a obtenção do direito mediante sentença judicial.

A causa de pedir e o pedido definem o objecto do processo, que não pode modificar-se salvas as possibilidades consignadas na lei – artºs 260º, 264º e 265º, CPC.


Tal objecto caracteriza-se e diferencia-se também em função do entendimento que, quanto à causa de pedir, se adoptar.

Contrapondo-a à da individualização, em que, segundo A. Anselmo de Castro Direito Processual Civil Declaratório, I, Almedina Coimbra, 1981, página 205 e seguintes., “a alegação dos factos é apenas condição do êxito da acção, não elemento individualizador”, para a teoria da substanciação, a causa de pedir, enquanto “facto gerador do direito”, tem uma função distintiva, “divergindo a acção sempre que seja diferente o facto constitutivo invocado (diferente como acontecimento concreto)” e, assim, à luz dela, “todas as acções se configurarão por ambos os elementos: pedido e causa de pedir concreta.” Direito Processual Civil Declaratório, III, Almedina Coimbra, 1981, páginas 392 e 393.

Para Lebre de Freitas Idem, nota 37., que considerava ser a teoria da substanciação a inequivocamente adoptada pela nossa lei, “a afirmação da situação jurídica tem de ser fundada em factos que, ao mesmo tempo que integram, tal como os outros factos alegados pelas partes, a matéria fáctica da causa, exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito de conformação do objecto do processo.

Também A. Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, 1 e 2, Almedina, Coimbra, 1997, página 176 e 187. entendia, à luz do nº 4, do artº 498º, do Código anterior, hoje reproduzido no artº 581º, nº 4, do Código actual, que é clara a opção legislativa pelo sistema da substanciação da causa de pedir em detrimento do da individualização.

Neste, “bastaria a indicação do pedido, devendo a sentença esgotar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica enunciada pelo autor, impedindo-se que após a sentença houvesse alegação de factos anteriores e que porventura não tivessem sido alegados ou apreciados”.

Naquele, é necessário “articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada”.

Assim, “a causa de pedir é integrada pelo facto ou factos produtores do efeito jurídico pretendido (…) é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte”. Idem, página 177.

Cabendo às partes alegá-los, e estando o juiz a eles sujeito, segue-se que o tribunal, olhando à pretensão formulada, não é livre de escolher, de entre os vários fundamentos que porventura haja e a ela conduzam, aquele que entender como o mais adequado.

Mesmo o actual artº 5º, nºs 1 e 2, conjugado com o artº 552º, nº 1, d), CPC, preserva e consagra, como núcleo essencial constitutivo da causa de pedir, os factos concretos cujo ónus de alegação (e prova) impende sobre as partes no âmbito do princípio dispositivo, e apenas admite, em determinadas condições, que os instrumentais ou os complementares e concretizadores daqueles (não os substancialmente diversos) possam ser considerados oficiosamente, nisto operando marginalmente o princípio inquisitório.

Vamos ao caso presente.

Na primitiva petição, formulou a autora o pedido de que seja a ré condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem a favor do seu prédio sobre o desta e a abster-se de continuar a conduta lesiva do seu direito.

Explicou, é certo, a causa deste (o encravamento) e a razão (necessidade de aceder à via pública não havendo outro modo de o fazer) que estiveram na base da sua constituição (por acordo), mas alegou a factualidade de que deriva o direito real existente de que se afirmou e pressupôs titular e que a ré “insiste em não reconhecer”.

Com efeito, alegou claramente que, aquando da partilha de bens por óbito da mãe de ambas, acordaram a área que corresponderia ao caminho de servidão a constituir a favor do seu prédio. Tanto que delimitaram tal passagem com estacas, na extensão de cerca de três metros de largura e oito metros de comprimento.

E, segundo acrescentou, desde então, sempre tem exercido a posse do seu prédio “que implica ter a servidão de passagem”, por “imprescindível” e sem a qual “estaria impedida” de lhe aceder, bem como a utilização da extensão de terreno definida como serviente “para, de boa-fé, ignorando lesar o direito de quem quer se fosse, de forma pacifica, à vista de todos e sem a oposição de terceiros, aceder ao seu prédio”.

O equívoco gerou-se a partir da invocação do artº 1350º, CC, que respeita à constituição de servidão legal de passagem, como argumento de que se verificavam as condições nessa norma previstas e, por isso, esta tinha sido constituída, existia e vinha sendo exercida.

Não o invocou como fundamento para constituir inovatoriamente uma tal servidão.

Claramente, não foi isto que pediu ao tribunal.

Na nova petição, explicitou e concretizou que ela e a irmã, nas antes referidas circunstâncias, “chegaram a um entendimento sobre a área que corresponderia ao dito caminho de servidão”; que a ré “reconheceu, à data, que sempre existiu a servidão de passagem”; que a delimitaram “para que dúvidas não existisse acerca da existência da servidão de passagem”.

“Servidão esta que sempre existiu” – disse.

Mantendo que sempre existiu e sempre utilizou a passagem como de servidão, reiterou os factos relativos ao encravamento e às características e localização dela.

Reafirmou que deve “ser a ré condenada a reconhecer tal servidão de passagem, nos moldes descritos, abstendo-se de praticar quaisquer atos que colidam com tal direito real.”

No entanto, subsidiariamente, acrescentou que “Mesmo que não seja esse o entendimento de V. Exa”, nos termos do artº 1550º, face à situação “Requerendo-se a V. Exa. a constituição da servidão de passagem, com as características descritas ao longo do presente articulado.”

E, por fim, formulou o novo pedido, cumulando um principal ou prioritário e um subsidiário, assim:

“deve a presente ação ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência:

- Ser a R. condenada a reconhecer e respeitar a servidão de passagem da A. sobre a parcela identificada supra, abstendo-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito;

Caso não seja esse o entendimento,

Subsidiariamente,
- Requer-se a V. Exa. a constituição de servidão de passagem da Autora, melhor identificada no articulado.
- E nesse caso, requer-se a V. Exa. A condenação da Ré do reconhecimento do direito de servidão de passagem da autora, bem como a sua abstenção da prática de quaisquer atos lesivos de tal direito.”

Em face disto, não há dúvidas que a autora invocara primeiramente a servidão existente constituída e reconhecida por acordo e pediu que o tribunal tal declarasse e condenasse a ré a respeitá-la.

A factualidade substanciadora da causa de pedir radica naquele consenso – no acordo que, segundo as alegações, diz ter reiterado na própria réplica – que levou à demarcação e ao exercício até que a ré alterou a sua conduta. É nela que fundamenta o direito e a origem deste.

Depois, a pretexto de aceder ao convite e de assim aperfeiçoar a petição, não apresentou uma mais perfeita. Apresentou uma diferente.

Alterou, condicionalmente, a factualidade de maneira a fundamentar o direito potestativo à constituição ex novo da servidão legal (já não voluntária).

Aditou, como subsidiário, de que o tribunal, caso entenda não existir já a servidão constituída, então que a constitua.

Invocou, pois, novo, diverso e autónomo pedido (só processualmente ligado pela ordem por que foi pedida a pronúncia sobre ele), fora das condições em que tal é legalmente possível – artºs 264º e 265º.

E alterou concomitantemente a causa de pedir, ao invocar, para o efeito, factualidade diversa cuja relevância jurídica em termos de consequências é obviamente outra, que não a pedida ab initio.

Não se limitou ao aperfeiçoamento da exposição fáctica, nem se confinou à causa de pedir.

Por ser subsidiário e destinado apenas a ser tomado em consideração somente no caso de não proceder o primitivo, a factualidade essencial inerente invocada como seu fundamento e a tomar em conta é substancialmente diversa e a eventual improcedência do anterior e consideração deste não respeitam apenas a uma questão de entendimento do tribunal mas de prova de circunstâncias diferentes, umas conducentes à demonstração da titularidade de um direito anterior constituído por acordo e outras conducentes à constituição de um novo direito.

O mecanismo do aperfeiçoamento só pode operar no âmbito da mesma causa de pedir, esclarecendo, completando ou corrigindo os factos respectivos. Não serve para modificar o objecto do processo.

Mesmo que de uma mesma causa de pedir se tratasse, o pedido subsidiário só poderia ser formulado nos termos e condições previstos nos artºs 264º e 265º, o que não sucede nem é processualmente oportuno por tal via.

Afigura-se-nos, pois, irrepreensível o despacho recorrido.

Não pode a apelante argumentar que o novo articulado apenas serviu “para concretizar deficiências formais, nomeadamente quanto ao pedido” nem que tal não briga com o princípio da estabilidade da instância.

A invocação da nova causa de pedir e a formulação do novo pedido alteram a estrutura da causa. Não podem produzir-se por tal modo.

Os comentários doutrinais por ela citados vão precisamente no sentido aqui preconizado, não colhendo o argumento de que, caso o convidado opte por petição nova, na qual insira as correcções, tal autoriza a modificação da causa de pedir e o aditamento de novo pedido, mesmo que a título subsidiário.

O direito processual tem natureza pública. Nele preponderando como princípio o dispositivo, não ficam, por isso, as partes eximidas do cumprimento das regras adjectivas disciplinadoras inerentes e garantes da certeza, da segurança e da igualdade de armas.

Como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra, de 11-01-2011, relativamente a simples ampliação do pedido tentada a pretexto de novo articulado aperfeiçoada na sequência de convite: “1. Na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, não pode o autor apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial, que conduza a uma alteração do pedido ou da causa de pedir, não sendo admissível, por esta via, o suprimento de uma petição inepta, nem a convolação para uma causa de pedir diferente da inicialmente invocada.
2. O aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões, ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo, o que justifica as limitações restritivas, imperativamente impostas pelo n.º 5 do artigo 508.º do CPC.
3. Deve considerar-se não escrito tudo o que no segundo articulado apresentado vai para além do que foi determinado no despacho de aperfeiçoamento (esclarecimento do pedido), com manifesta violação dos parâmetros imperativos enunciados no n.º 5 do artigo 508.º do CPC.” Processo nº 506/09.6T”ILH.C1 (Teles Pereira), em cujo texto se cita: “Como refere Lopes do Rego[1], o n.º 5 do artigo 508.º do CPC estabelece claramente os limites ao aperfeiçoamento “substancial” da matéria de facto alegada, não podendo o autor, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial, que conduza a uma “alteração unilateral” do pedido ou da causa de pedir, em colisão com o preceituado no art. 273.º, que apenas a admite na réplica, e não em fases ulteriores do processo.

Conclui o autor citado, que não é admissível, por esta via, o suprimento de uma petição inepta, nos termos do art.º 193.º, nem a convolação para uma causa petendi diferente da invocada pelo autor como suporte da petição[2].
O aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo (artigos 264º e 664º), o que justifica as limitações impostas pelo n.º 5 do artigo 508.º do CPC[3].
Como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 16.06.2009[4], não pode «invocar-se ‘ex novo’ por ocasião da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, pois que este não está previsto na lei com o objectivo de suprir uma qualquer omissão factual de que dependesse, na acção, o reconhecimento do direito invocado (…) a nova petição há-de ser um aperfeiçoamento da anterior, de modo que entre uma e outra só devem existir as diferenças destinadas a corrigir com a segunda o vício da primeira…».
Ainda no sentido de que o convite ao aperfeiçoamento dos articulados abrange apenas deficiências meramente formais na exposição da matéria de facto e não serve para suprir omissões relativas ao ónus de alegação em matéria de facto, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 17.11.2009[5].”.

Deve, pois, improceder o recurso independente.

Uma vez que o subordinado foi interposto para a hipótese de aquele proceder e tinha por fundamento a eventual admissão do pedido subsidiário em conexão com o qual foi deduzida reconvenção mas rejeitada por o ter sido aquele, o que ora se confirma, tornou-se inútil o conhecimento do recurso subordinado.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso independente da autora e, em consequência, negando provimento à sua apelação, confirmam a decisão recorrida.
Julga-se extinta a instância relativamente ao recurso subordinado interposto pela ré.

Custas de ambas as apelações pela recorrente principal autora, vencida e causadora da inutilidade – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
Guimarães, 01 de Fevereiro de 2018

José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
João António Peres de Oliveira Coelho


1. O artº 265º prevê outras circunstâncias e condições em que pode ser feita a alteração do pedido e da causa de pedir.
2. Ob. citada, página 627.
3. Ob. citada, página 65.
4. Ob. citada, página 636.
5. Direito Processual Civil Declaratório, I, Almedina Coimbra, 1981, página 205 e seguintes.
6. Direito Processual Civil Declaratório, III, Almedina Coimbra, 1981, páginas 392 e 393.
7. Idem, nota 37.
8. Temas da Reforma do Processo Civil, 1 e 2, Almedina, Coimbra, 1997, página 176 e 187.
9. Idem, página 177.
10. Processo nº 506/09.6T”ILH.C1 (Teles Pereira), em cujo texto se cita: “Como refere Lopes do Rego[1], o n.º 5 do artigo 508.º do CPC estabelece claramente os limites ao aperfeiçoamento “substancial” da matéria de facto alegada, não podendo o autor, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento, apresentar um aditamento ou correcção do seu articulado inicial, que conduza a uma “alteração unilateral” do pedido ou da causa de pedir, em colisão com o preceituado no art. 273.º, que apenas a admite na réplica, e não em fases ulteriores do processo. Conclui o autor citado, que não é admissível, por esta via, o suprimento de uma petição inepta, nos termos do art.º 193.º, nem a convolação para uma causa petendi diferente da invocada pelo autor como suporte da petição[2]. O aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo (artigos 264º e 664º), o que justifica as limitações impostas pelo n.º 5 do artigo 508.º do CPC[3]. Como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 16.06.2009[4], não pode «invocar-se ‘ex novo’ por ocasião da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, pois que este não está previsto na lei com o objectivo de suprir uma qualquer omissão factual de que dependesse, na acção, o reconhecimento do direito invocado (…) a nova petição há-de ser um aperfeiçoamento da anterior, de modo que entre uma e outra só devem existir as diferenças destinadas a corrigir com a segunda o vício da primeira…». Ainda no sentido de que o convite ao aperfeiçoamento dos articulados abrange apenas deficiências meramente formais na exposição da matéria de facto e não serve para suprir omissões relativas ao ónus de alegação em matéria de facto, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 17.11.2009[5].”.