Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
198/10.0TBCBT.G1
Relator: MÁRIO BRÁS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Os Tribunais Administrativos detêm competência para apreciar um pedido de indemnização em que os AA indicaram, como sua causa próxima, um despiste de veículo automóvel motivado pela presença, na via pública, de um buraco não sinalizado – consabido que era ao Município da área que competia zelar pela qualidade e segurança dessa mesma via pública.
II. É que carecem os Tribunais Comuns de competência para conhecerem de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de um Município (pessoa colectiva de direito público) decorrente do acidente, atento o estatuído no artigo 4.º, n.º 1, alínea g), do ETAF.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:


Os Apelantes Joaquim… , e esposa Florinda… , residentes no Lugar de Cerrães, freguesia de Borba da Montanha, Celorico de Basto, vêm, na presente acção declarativa de condenação, na forma ordinária, emergente de acidente de viação, que intentaram no Tribunal Judicial da comarca de Celorico de Basto, contra a ora Apelada “Companhia de Seguros… , S.A.”, com sede na Rua Andrade Corvo, n.º 32, em Lisboa, interpor recurso do douto despacho saneador, proferido em 14 de Fevereiro de 2011 (a fls. 95 a 102 dos autos), que julgou procedente a “excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria”, invocada pela Ré, e a absolveu da instância – com o fundamento aí aduzido de que os tribunais comuns não são competentes para conhecerem do pedido de indemnização relacionado com um acidente alegadamente provocado pela existência de um buraco na via pública, pela qual uma Câmara Municipal devia zelar, e sim os tribunais administrativos –, intentando agora a sua revogação e que se considere competente para a acção o Tribunal comum da comarca de Celorico de Basto, alegando, para tanto e em síntese, que sofreram danos “em virtude dum embate num buraco existente na via, que não se encontrava sinalizado, pelo que a Segurada da Ré omitiu o dever de sinalização e manutenção da via”. Porém, a acção não é concretamente instaurada contra qualquer entidade de direito público (a Câmara Municipal de Celorico de Basto), mas de direito privado (uma Seguradora, em exclusivo) – “a acção está claramente dirigida contra particular, não se inserindo em qualquer dos tipos de acção do contencioso administrativo” –, pelo que é ao Tribunal da jurisdição comum que compete decidir a acção, o que agora se deverá declarar, assim se dando provimento ao presente recurso de apelação.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*

Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) Os Autores Joaquim… e esposa Florinda… instauraram a presente acção contra a Ré “Companhia de Seguros… , S.A.”, no Tribunal Judicial da comarca de Celorico de Basto, em 16 de Abril de 2010, conforme os termos da sua douta petição inicial, que agora constitui o documento de fls. 5 a 15 dos autos, e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido (vide, também, a data de entrada aposta a fls. 55 dos autos).
2) Em 25 de Maio de 2010, a Ré apresentou a contestação de fls. 58 a 64, que aqui se dá igualmente por reproduzida na íntegra (vide, também, a data de entrada aposta a fls. 69 dos autos).
3) E logo aí contestou o modo como ocorreu o acidente, imputando-o, em exclusivo, ao comportamento da 2.ª Autora, Florinda… , condutora do veículo sinistrado (idem).
4) Mas, pelo douto despacho que agora está impugnado em recurso, e que foi ali proferido em 14 de Fevereiro de 2011, o Mm.º Juiz do processo declarou incompetente para a acção o Tribunal Judicial da comarca de Celorico de Basto – e atribuiu-a aos Tribunais Administrativos –, assim julgando “procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, invocada pela Ré” e absolveu-a da instância (vide essa douta decisão, ora a fls. 95 a 102 dos autos, que aqui também se dá por integralmente reproduzida).
5) Encontra-se celebrado, pelo Município de Celorico de Basto, junto da Ré ‘A… ’, o contrato de seguro titulado pela Apólice nº 9301/85996/93 (vide, agora, fls. 79 e 81 a 90 dos autos).
*

Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se são competentes para conhecer da matéria destes autos de indemnização por acidente de viação os Tribunais Comuns (designadamente, o da comarca de Celorico de Basto, onde a acção foi proposta) – como agora intentam os Apelantes –, ou os Tribunais Administrativos – como decidiu o M.º Juiz a quo. É isso que hic et nunc está em causa, como se vê das conclusões que vêm alinhadas no recurso apresentado.

E os Recorrentes até aceitam, no recurso, que quando está em causa uma entidade administrativa (uma pessoa de direito público) – como um Município – os Tribunais da Ordem Administrativa são os competentes para conhecer das acções, pelo que estando em causa um buraco numa via pública que ocasionou o despiste de um veículo, não teriam relutância em aceitar tal competência e, consequentemente, o decidido no douto despacho saneador recorrido.

[E é assim, acrescentamos nós, que os Tribunais Administrativos estão cheios de processos em que se demandam Municípios (que não as respectivas Câmaras Municipais, o que não é correcto) por causa de prejuízos decorrentes de acidentes na via pública, originados em buracos, sinalização (ou falta dela), gravilha, água, ou outros objectos na estrada, derrocadas, abatimentos de piso, protecções (ou falta delas), e um sem-número de situações idênticas. E ninguém aí contesta a competência dos Tribunais dessa Ordem Administrativa. Por isso que, em princípio, aquela tomada de posição dos recorrentes é a correcta.]

O único problema que eles agora colocam é que intentaram a acção tão-somente contra uma Seguradora – com a qual a Câmara Municipal contratara a assumpção dos riscos da respectiva actividade, inclusive nas estradas e outras vias da sua área –, pelo que, não tendo demandado essa Câmara Municipal, não deixariam os Tribunais Comuns de ser os competentes.
Estribam-se, no fundo, numa aceitação de responsabilidades que aquela Seguradora já teria feito, assim se não discutindo o acidente (vide as conclusões i) e j) das doutas alegações de recurso).

Porém, tal fundamentação não é totalmente correcta (e, se o fosse, nem se entenderia o motivo pelo qual os Autores descrevem o acidente ao pormenor, na sua douta petição inicial, pois que se já estivesse aceite o modo como ele tinha ocorrido, como aduzem, então bastaria descreverem os danos).
É que a Ré Seguradora não deixa de refutar o modo como os Autores descrevem a ocorrência do sinistro, imputando-o mesmo ao comportamento da 2.ª Autora, enquanto condutora do veículo sinistrado: “resulta à saciedade que o despiste com saída e queda do veículo na ravina, ocorreu por a 2ª Autora circular com velocidade muito superior aos 30km/hora, acrescido do facto de naquele momento ter sido obrigada a desviar-se para a berma, saindo da sua mão de trânsito e resvalar para a berma, para evitar a colisão com um outro veículo que na altura circulava em sentido contrário e fora da sua mão” (vide os pontos 19º e 20º da contestação); “todos estes factores, conjugados com as condições atmosféricas que se faziam sentir, determinaram que a 2ª Autora não pudesse, atempadamente, controlado e imobilizado o seu veículo em segurança, concorrendo, única e exclusivamente, com culpa para a sua ocorrência” (idem, nos seus pontos 21º e 22º).

Dessarte, quer os Autores queiram, quer não, na acção vai ter mesmo que se discutir o acidente e o modo como ocorreu, e não só os danos. Por isso que faz parte do seu âmbito a própria responsabilização do ente público pela falta de manutenção da estrada e de sinalização do buraco, pois que a Seguradora só será chamada a responder na medida em que o seja o seu Segurado, por força da própria natureza do contrato de seguro.
E o sr. Juiz que julgar o caso não poderá deixar de levar à base instrutória o modo como ocorreu o sinistro, a dinâmica do mesmo (e não apenas os danos).

Procuremos, agora, um melhor enquadramento jurídico da situação.

Nos termos do art.º 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Este princípio constitucional veio a ter tradução na norma geral sobre a competência material desses tribunais, fixada no artigo 18.º, n.º 1, da LOFTJ (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro e no artigo 66.º do Código de Processo Civil, ambos do seguinte teor: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Pelo que é residual a competência dos tribunais comuns, apresentando-se competentes se o não for um tribunal de outra ordem de jurisdição.

In casu, o tribunal recorrido entendeu ser o administrativo o competente para conhecer da acção. Os apelantes pretendem que o seja o tribunal comum.
Estabelece o artigo 212.º, n.º 3, da nossa Constituição da República que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
O ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro estatui, por seu turno, no seu artigo 1.º, n.º 1, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
[O Prof. José Carlos Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, Lições, 2000, página 79, define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.]

Mas estabelece-se no n.º 1 do artigo 4.º daquele ETAF que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”.
[É para notar ter-se deixado aqui cair a distinção entre questões de direito público e questões de direito privado que vinha do anterior ETAF, aprovado pelo Decreto-lei n.º 129/84, de 27 de Abril, o qual excluía do seu âmbito de aplicação precisamente “questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público” (seu artigo 4.º, n.º 1, alínea f). Mas isso não passou para o novo ETAF, virado, como se sabe, para um forte alargamento das competências dos Tribunais Administrativos e Fiscais.]

Ora, voltando ao caso sub judicio, não cremos que possam restar dúvidas, salva melhor opinião e apreço pela construção assaz inteligente que os apelantes fazem da situação em sede de alegações, que estamos perante um caso que se enquadra perfeitamente no âmbito da responsabilidade civil extracontratual de um Município (uma pessoa colectiva de direito público, portanto), decorrente de danos emergentes do estado em que se encontrava uma via que lhe competia manter e sinalizar os obstáculos que nela se achassem. Pois que se perspectiva aqui a exigência de um valor pecuniário para indemnizar pelos alegados danos, decorrente do acidente ocorrido naquelas circunstâncias. É à volta dele que gira, efectivamente, tudo.

Portanto, não têm razão os apelantes quando se insurgem contra o douto despacho recorrido que assim entendeu a questão da competência, o qual, neste enquadramento fáctico e jurídico, terá agora que ser mantido, intacto na ordem jurídica e improcedendo o recurso (julgando-se materialmente incompetente o Tribunal Comum e competente o Administrativo para apreciar a acção).
Acresce que a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal e esta como efeito a absolvição do Réu da instância, como também se decidiu (vidé os artigos 101.º e 105.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

E, em conclusão, dir-se-á:

I. Os Tribunais Administrativos detêm competência para apreciar um pedido de indemnização em que os AA indicaram, como sua causa próxima, um despiste de veículo automóvel motivado pela presença, na via pública, de um buraco não sinalizado – consabido que era ao Município da área que competia zelar pela qualidade e segurança dessa mesma via pública.
II. É que carecem os Tribunais Comuns de competência para conhecerem de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de um Município (pessoa colectiva de direito público) decorrente do acidente, atento o estatuído no artigo 4.º, n.º 1, alínea g), do ETAF.
*

Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pelos Apelantes.
Registe e notifique.
Guimarães, 19 de Maio de 2011
Mário Brás
António Sobrinho
Isabel Rocha