Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
8872/12.0TBBRG-C.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SOCIEDADE COMERCIAL
CONSUMIDOR
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Uma sociedade comercial que celebra um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, como promitente-compradora, não o destinando à sua actividade comercial, nem à revenda, deve ser considerada como “consumidora”, para efeitos da atribuição de direito de retenção, em caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo outro contraente.

2. O acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ de 20/3/2014 destina-se às situações em que o não cumprimento do contrato-promessa proveio de decisão do administrador da insolvência, e não àquelas em que já o contrato estava resolvido à data da declaração de insolvência.

3. A questão de saber se o promitente-comprador não faltoso, com traditio do imóvel, só goza de direito de retenção, nos termos do art. 755º,1,f CC para efeitos de graduação de créditos em processo de insolvência se for consumidor não foi formalmente uniformizada pelo referido acórdão, porque não foi objecto de análise específica, e porque não teve na base duas decisões divergentes sobre essa mesma concreta questão.

4. Porém, a esmagadora maioria das decisões do Supremo Tribunal (e o acórdão uniformizador não é excepção) vão no sentido da interpretação restritiva, devendo a mesma ser acolhida.
Decisão Texto Integral:
I

Nos presentes autos de reclamação, verificação e graduação de créditos, que correm por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de Sociedade de Construções F. F., Lda, foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a impugnação apresentada pela credora Banco A, relativamente ao reconhecimento e qualificação do crédito reclamado pela credora A. P., Lda (crédito nº 1, da relação de créditos reconhecidos de fls. 1000 a 1006, inclusive), por banda do Sr. Administrador da Insolvência, com o valor de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros) qualificado como garantido por direito de retenção sobre a verba nº 40 do auto de apreensão de bens imóveis, mantendo-se o mesmo reconhecido nesses exactos termos.
E de seguida, a sentença procedeu à graduação dos créditos reconhecidos, da forma que consta dos autos, que aqui damos por reproduzida.

Inconformado, veio o credor BANCO A interpor recurso dessa decisão, por em síntese entender que o seu crédito deveria ter sido graduado em primeiro lugar, e por entender ainda que àquele credor não deve ser reconhecido direito de retenção sobre o imóvel que constitui a verba nº 40 do auto de apreensão de bens.

Contra-alegou a recorrida A. P., LDA, suscitando em primeiro lugar em sede de questão prévia que o Tribunal da Relação não deve tomar conhecimento do recurso de apelação interposto pela recorrente, quanto à reapreciação da matéria de facto assente na prova testemunhal e documental produzida nas sessões de julgamento, atenta a forma como foi efectuada pela recorrente a abordagem de tal matéria, por inobservância do disposto no art. 640º CPC. E quanto à substância, defende que a sentença recorrida não merece quaisquer reparos, e que o recurso interposto pela impugnante/recorrente deve ser julgado improcedente.

O recurso foi admitido como de apelação, com efeito suspensivo dos pagamentos a efectuar e subida nos próprios autos (arts. 14º,1,5,6,b e 173º do CIRE e 627º,1,2, 629º,1, 631º,1, 637º,1,2, 638º,1 e 639º, todos do CPC).

II

As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, são as seguintes as conclusões da recorrente (transcrição):

1) A douta sentença apelada, não deve manter-se pois não só padece de nulidades como consubstancia uma solução que não consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso sub judice das normas e princípios jurídicos competentes pois,
2) Não gradua os créditos da aqui Apelante em primeiro lugar, conforme esta entende que tal é legalmente correcto.
3) A A. P., Lda credora em causa celebrou com a insolvente um contrato promessa de compra e venda do prédio – fracção autónoma designada pela letra “L” – descrito na verba 40 do auto de apreensão de bens - pelo valor de € 190.000,00 (cfr. fls. dos autos), e, em resultado de tal contrato, reclamou um crédito de 170.000,000,00 correspondente ao dobro do sinal prestado pelo pretenso incumprimento do contrato promessa de compra e venda;
4) A credora em causa, nunca poderia ter invocado o incumprimento definitivo do contrato promessa quando sabia que a realização do contrato definitivo dependia da extinção do ónus de hipoteca a favor da aqui Apelante sobre o prédio em causa, o que implicaria o pagamento da dívida que a sociedade insolvente tinha para com a Apelante.
5) A credora, apesar de ter interpelado a ora insolvente para comparecer no Cartório para outorgar a devida escritura e ter enviado cartas interpelatórias à sociedade em causa – que nem sequer provou terem chegado ao seu conhecimento - sempre se mostrou interessada na concretização desse negócio;
6) Nunca, verdadeiramente, demonstrou desinteresse na celebração do mesmo.
7) A própria insolvente nunca recusou frontalmente celebrar o contrato definitivo.
8) Pelo que, terá de se entender que estamos perante uma mora no cumprimento – dada a dificuldade económica que a insolvente sentia para obter o necessário distrate junto da aqui Apelante – e não de um incumprimento definitivo.
9) Até porque, a credora, ora Apelada, mantendo-se interessada na concretização da operação de compra, adquiriu, em 13 de Maio de 2014, pelo valor de € 170.000,00, o imóvel em causa ao Administrador de Insolvência da Sociedade de Construções F. F., Lda (cfr. fls. dos autos).
10) Assim, apesar da tradição do imóvel que a credora se arroga e da posição que fez crer assumir, a aqui Apelante entende nunca ter existido incumprimento definitivo ou culposo do contrato promessa de compra e venda, imputável à insolvente.
11) Até porque, vem sendo entendimento na doutrina e jurisprudência, que, no âmbito de uma insolvência, os contratos promessa para aquisição de propriedade, com tradição da coisa, resultantes de contratos de natureza obrigacional e não para fins habitacionais (o que é o caso, pois as sociedades nem sequer “habitam”), não constitui fundamento bastante do direito de retenção, pois como é entendido, o promitente adquirente frui um direito de gozo, que exerce em nome do proprietário e por tolerância mas não age com o “animus possidendi”, mas apenas com o corpus possessório sendo nesta perspectiva equiparado a um mero detentor precário (art. 1253º do C.C.), - in Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.08.2013, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça in www.dgsi.pt em que é relator o Ex.mo Senhor Conselheiro Fonseca Ramos; Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol.III, 2º Ed. Pág. 6 e Antunes Varela, na RLJ, Ano 124, pág. 348.
12) Mais, também não é pelo facto de ter, entretanto, existido a declaração de insolvência da sociedade insolvente que se poderá falar em incumprimento definitivo ou culposo do contrato promessa de compra e venda.
13) Na verdade, a recusa do Administrador de Insolvência em executar o contrato não exprime incumprimento mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo de insolvência, não sendo sequer aplicável a norma do art. 442º, nº 2 do C.C. (incumprimento imputável a uma das partes – que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa (neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador de insolvência na veste de promitente ora insolvente ou em representação dele), pelo que, não tem a promitente adquirente direito ao dobro do sinal, até por força do regime imperativo do art. 119º do CIRE (que estabelece a nulidade das convenções que excluam ou limitem a aplicação das normas contidas naqueles preceitos – arts. 102º a 118º);
14) E, repita-se, ao tempo da declaração de insolvência, este continuava a ser um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido.
15) Ora, o princípio geral quanto aos negócios bilaterais ainda não cumpridos, à data da declaração de insolvência, é que o cumprimento fica suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento – art. 102º nº 1 do CIRE.
16) Assim, compete ao administrador da insolvência, no interesse dos credores da insolvente, decidir se é mais vantajoso o cumprimento ou incumprimento e,
17) Quando este não o cumpre não se poderá falar de um incumprimento do contrato mas como supra se referiu, em consonância com a tese do Prof. Oliveira Ascensão, de uma reconfiguração da relação tendo em vista a especificidade do processo de insolvência, não sendo assim aplicável o conceito civilista de incumprimento imputável a uma das partes.
18) Mais, se este não o quis cumprir, muito se estranha que, repita-se, ulteriormente, tenha sido optado por efectuar a escritura de compra e venda com a referida credora pelo valor de € 170.000,00 (corresponde ao valor que a Credora entende ser-lhe devido e correspondente ao dobro do sinal) e não pelo valor de € 190.000,00, valor esse igual ao que a Insolvente e Credora entenderem fixar nesse contrato promessa.
19) Por outro lado, esta credora, conforme já se referiu, também não deverá beneficiar de qualquer direito de retenção pois, contrariamente ao que foi entendido pela Mm.º Juiz a quo, nem sequer poderá ser considerada “consumidora” nos termos em que essa figura no está definida no AUJ nº 4/2014.
20) AUJ que deve ser aplicado a esta situação concreta.
21) Na verdade, conforme aí se refere e é entendimento da diversa jurisprudência em torno desta noção, o consumidor promitente-comprador (e que aqui nem é o caso), no sentido estrito, é então “a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional (Miguel Pestana de Vasconcelos, em cadernos de Direito Privado, nº 33, 3 e seguintes). “Podendo estender-se o conceito às pessoas colectivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade.”
22) Assim, este conceito de “consumidor” não é aplicável à credora em causa.
23) Aliás, o próprio Ac. do STJ de 25/11/2014, em que é relator o Ex.mo Senhor Conselheiro Fernandes do Vale, também invocado pela Mm.ª Juiz a quo, é bem elucidativo que não se poderá socorrer dessa figura para “proteger” a credora em causa (dadas as consequências existentes em torno da figura do direito de retenção), quando refere “A Uniformização operada pelo AUJ nº 4/2004, de 20-03-2014, publicado no DR. I Série, nº 95, de 19-05-2014, e acessível em www.dgsi.pt, reporta-se exclusivamente, ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor. II- Esta deve ser entendida no seu sentido estrito, correspondente à pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”.
24) Mais, segundo o Prof. Calvão da Silva in “Venda de Bens de Consumo”, 4ª Ed. (2010), Almedina, págs. 55 e segs.” É a consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas directivas comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico, na fórmula da alínea a) do art. 2º da Convenção de Viena de 1980 sobre a compra e venda internacional de mercadorias, inspiradora da Directiva 1999/44/CE e do § 9-109 do …- de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas já não aquele que obtém ou utiliza bens ou serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa. Continuando: “razão pela qual todo aquele que adquire bens ou serviços destinados a uso não profissional será uma pessoa humana ou pessoa singular, com exclusão das pessoas jurídicas ou pessoas colectivas, as quais adquirem bens ou serviços no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectivos profissionais (art. 160º do CC e art. 6º do CSCom”. Termina referindo que à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. A) do nº 2 do art. 1º)”.
25) Pelo que, não detendo a credora em causa a qualidade de consumidora, não pode a mesma, nos termos expostos, beneficiar no âmbito do processo de insolvência em que nos encontramos, de qualquer direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º do C.C. para satisfação do crédito que invoca, o qual, a existir (e que, face ao exposto, não se concebe terem, na sua globalidade, sequer direito a tal), terá de ter natureza de crédito comum.
26) Por outro lado, o contrato-promessa alegadamente celebrado pela Apelada, conforme vem expressamente consagrado na douta sentença recorrida, não consubstancia um contrato-promessa de compra e venda, uma vez que não foi pago qualquer valor pelo imóvel, tratando-se, por isso, de um contrato-promessa de dação em pagamento e não de um contrato-promessa de compra e venda.
27) Na verdade, o imóvel foi entregue pela Insolvente à ora Apelada supra mencionada para pagamento de serviços que esta, pasme-se, prestou a uma terceira entidade – a sociedade IM - num dos seus empreendimentos.
28) Pelo que, não foi, por isso, pago qualquer valor pelo imóvel.
29) E, não é pelo facto de a ora Apelada não ter reclamado qualquer crédito no processo de insolvência da IM que o Mmo Juiz a quo poderá concluir, sem mais - tal como o declarou na sentença ora em crise – que esta estava ressarcida pela Insolvente – Sociedade de Construções F. F., Lda do montante que, porventura, lhe seria devido.
30) Até porque, tal como se percebeu do depoimento das testemunhas (incluindo o da Dr.ª C. B., Administradora de Insolvência da IM), não existiria qualquer vantagem em reclamar créditos – comuns – a uma sociedade que não tinha bens imóveis ou qualquer outro património,
31) Além de que nem se provou qual era o montante devido pela IM à ora Apelada no momento da celebração do aludido contrato promessa e quais eram as correspondentes facturas devidas.
32) Assim, o Mmo Juiz a quo não poderia dar como provado que “o valor do sinal referido no contrato-promessa mencionado em 1º foi pago pela reclamante mediante a prestação de serviços e bens de igual montante à referida IM – cfr. 33º dos factos provados.
33) Até porque, não existe qualquer recibo que comprove a liquidação de determinadas factura que seriam devidas no montante global igual ao do sinal que se entende agora ter sido pago.
34) Mais, nem sequer se pode concluir que a Insolvente tenha efectivamente pago alguma importância – correspondente ao valor do sinal - apenas pela exibição do documento de fiança assinado a 2 de Maio de 2008.
35) Assim, a douta sentença, ora em crise, não só não tem em consideração e aplica o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº nº 4/2014 relativamente à interpretação da definição de “consumidor” como, consequentemente ainda viola o disposto no art. 442º nº 2 e art. 755º, nº 1 alínea f), artigos 686º nº 1, 749º e 751º do Código Civil bem como o disposto nos arts. 47, nº 4. do CIRE.
36) E, constando do processo meios de prova plena que, só por si, implicam decisão diversa da proferida, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, em conformidade com a relação definitiva de créditos (mas, nos termos e com os valores que supra se referiu serem devidos), gradue os créditos da aqui Apelante “à frente” da credora em causa, relacionado com a verba nº 40), bem como não reconheça qualquer direito de retenção a favor dessa mesma credora.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que gradue o crédito hipotecário da Banco A “à frente” da credora supra identificado, pelo produto da venda do bem imóvel apreendido nos autos e identificado como verbas nº 40 bem como não reconheça qualquer direito de retenção a favor dessa mesma credora.

A sociedade recorrida apresentou contra-alegações, que terminam com as seguintes conclusões (transcrição):

1ª- Não basta fazer considerações genéricas (como fez a impugnante/ recorrente) sobre a matéria de facto, para que o Tribunal da Relação possa reapreciar a matéria de facto assente na prova testemunhal e documental produzida nas sessões de julgamento.
2ª- Do recurso apresentado pela impugnante / recorrente decorre que a mesma não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; não especifica os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; não especifica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões e facto impugnadas; não indica (muito menos com exactidão) as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, nem tão pouco procede à transcrição de excertos que considere relevantes.
3ª– A recorrente não cumpriu como o disposto nas alíneas a); b) e c) do n.º 1, e alínea a) do n.º 2 do art. 640º do CPC, a própria recorrida fica, com essa conduta processual da recorrente, impedida de exercer o princípio do contraditório (art. 3º do CPC) quanto a essas questões concretas (não indicadas pela recorrente), não podem os recorridos contra-alegar quanto a esses factos (que não sabem quais são), nem nessa medida apresentar a sua argumentação e bem assim efectuar a análise crítica dos meios de prova produzidos sobre cada um dos pontos da matéria de facto provada.
4ª– Assim, atendendo a que a recorrente não cumpriu com os ónus de alegação impostos imperativamente pelas alíneas a) b) e c) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do art. 640º do CPC, deve o Tribunal da Relação abster-se do conhecimento da matéria de facto com esse fundamento.
5ª– A doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e de todas as Relações, tem considerado de forma unânime que quanto ao recurso da decisão da matéria de facto não existe a possibilidade de despacho de convite ao seu esclarecimento ou aperfeiçoamento, sendo este tipo de despacho reservado apenas e só para os recursos em matéria de direito. (Vide jurisprudência citada na motivação das alegações)
6ª- Vejam-se, entre outros, os seguintes arestos do Supremo Tribunal de Justiça: Ac. 11/05/2017, proc. 1508/10.5TTLSB.L1.S1. dgsi.net; Ac. de 14/07/2016, proc. 111/12.0TBAVV.G1.S1, dgsi.net; ; Ac. de 07/07/2016, proc. 220/13.8TTBCL.G1.S1, dgsi.net; Ac. de 02/06/2016, proc. 781/07.0TYLSB.L1.S1, dgsi.net; Ac. 31/05/2016, proc.
889/10.5TBFIG.C1-A.S1, dgsi.net; Ac. 03/05/2016 Proc. 145/11, Sumários, maio 2016, pág. 3; Ac. 10/12/2015 proc. 352/12, Sumários, 2015, pág. 699; Ac. 26/11/2015, proc. 447/08: Sumários, 2015, pág. 664; Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1
7ª- E no mesmo sentido, tem decidido o Tribunal da Relação de Guimarães: Ac. 31/03/2016, proc. 689/09.5TBVVD.G1; Ac. 15/03/2016, proc. 762/11.0TTVCT.G1; Ac. 03/03/2016, proc. 283/08TTBGC.G1; Ac. 04/02/22016, proc. 283/08.8TBCHV-A.G1; Ac.
10/09/2015 proc. 137504/11.5YPRT.G1; Ac. 19/02/2015 proc. 2443/11.5TJVNF.G1; Ac.
17/12/2014 proc. 447/08.4TBAVV.G1; Ac. 20/03/2014 proc. 869/12.6TBFLG-C.G1; Ac.
30/01/2014 proc. 273733/11.1YIPRT.G1; Ac. 05/11/2015, proc. 649/11:Sumários, 2015, pág. 616; Ac. 18/06/2015 proc. 918/11.5TBVRL.G1; Ac. 19/02/2015 proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1
8ª– Quanto à efectiva ocupação, tradição e detenção do imóvel prometido vender – verba n.º 40 do auto de apreensão – o tribunal de 1ª instância formou a sua convicção no depoimento das testemunhas que considerou absolutamente insuspeitas e depondo com a manifesta isenção espontaneidade e verosimilhança, D. S. e J. C., como melhor se explica na motivação das alegações.
9ª– O Tribunal “a quo” considerou ainda a abundante prova documental, cuja credibilidade não lhe levantou dúvidas demonstrativas da entrada da referida fracção e lugar de aparcamento na esfera de disposição da reclamante / recorrida, como proprietária, como é o caso do pagamento do IMT devido pela transacção (fls. 2148 - original), comprovativos de facturas de água e gás emitidas em seu nome (fls. 82 a 95), guia para pagamento de IMI, de 2011, em seu nome (fls. 96), sublinhando-se, ainda, que conforme resulta do documento de fls. 2432 a reclamante havia já procedido à inscrição da fracção a seu favor, em termos fiscais.
9ª– Face aos depoimentos das testemunhas supra referidas e pela consulta do próprio documento junto a fls. 2416 a 2417 dos autos, resulta inequívoco, para o Tribunal de 1ª instância, que foi efectivamente celebrado o contrato-promessa de compra e venda em causa, o que, de resto, resulta do documento de autenticação junto a fls. 2414 a 2415 verso, datado de 12/11/2011, bem como o facto de a recorrida / reclamante ter procedido ao registo provisório da aquisição o que implicaria sempre a exibição, precisamente, do contrato promessa em causa. Também do depoimento da testemunha R. F. (funcionário da impugnante / recorrente) e da consulta do documento de fls. 916 (email, datado de Dezembro de 2011, dirigido pelo referido R. F. é testemunha M. R., à data director administrativo da insolvente), resulta que a impugnante / recorrente sabia da intenção da reclamante / recorrida e da insolvente de acertarem contas, pelos serviços e bens prestados e fornecidos pela primeira, mediante celebração de tal contrato, seguido, naturalmente, do contrato definitivo, pagando a reclamante o pagamento do valor indicado no contrato no acto de celebração da escritura e sendo a parte restante do preço compensada com as dívidas que a insolvente assumira para com a reclamante.
Por tudo isto a prova dos pontos 1.º a 12.º, inclusive, e 34.º da matéria de facto provada.
10ª– Quanto às diligências de marcação da escritura pela reclamante / recorrida, ausência da insolvente, e remessa de cartas de interpelação admonitória e, depois, resolução – pontos 13.º a 24.º, inclusive da matéria de facto provada – teve o Tribunal “a quo” em atenção a análise crítica dos documentos juntos a fls. 136 – instrumento público notarial, atestando a presença dos legais representantes da reclamante / recorrida e a ausência dos legais representantes da insolvente, no dia 24/04/2013, assim como das cartas, registos e avisos de recepção que se mostram juntos a fls. 130 a 135; fls. 140 a 147 quanto à marcação, com interpelação admonitória, de nova data para 08/05/2013, novamente sem a comparência dos legais representantes da insolvente, resultando ainda dos documentos juntos a fls. 101 a 106, 926, 934 e 936, a devolução, com as menções dadas por provadas, de parte das cartas, inclusive as de resolução do contrato.
11ª– Quanto ao objecto social da reclamante / recorrida (que se dedica à compra e venda de materiais para a construção civil), e constituição societária da insolvente e da sociedade IM, atendeu o Tribunal “a quo” à consulta das respectivas certidões de matrícula, juntas, respectivamente, a fls. 929, 2186 e 2192 a 2193. Aí formando sua convicção quanto à matéria dos pontos 28.º, 30.º e 31.º da matéria de facto provada.
12ª- Da consulta das certidões de matrícula das sociedades insolvente e IM resulta, desde logo, a evidência da coincidência da titularidade dos respectivos capitais sociais, sendo que, ainda antes de celebrado o contrato-promessa em causa nos autos, a insolvente passou a ser, ela mesma, para além dos respectivos e comuns dois sócios, igualmente sócia da IM.
13ª– Dos depoimentos das testemunhas M. R. e D. A., resultou que, a certa altura, os sócios da insolvente decidiram constituir a IM, passando a reclamante / recorrida a fornecer essa mesma IM e não a insolvente. A testemunha C. B. (Administradora da Insolvência da IM), confirmou o relatório que apresentou no respectivo processo e que consta de fls. 2175 e segs, esclarecendo que a IM fazia as construções para a insolvente, numa espécie de relação de grupo, razão pela qual, conforme explicou a testemunha M. R., surgiu a declaração de constituição de fiança junta a fls. 2162, que permitia aos fornecedores, como a reclamante / recorrida, até então, da insolvente, a segurança de que a insolvente assumiria, através de tal garantia, os pagamentos dos fornecimentos e serviços feitos à IM. Repare-se, por exemplo, que no caso da construção do edifício em que se insere a fracção prometida vender pela insolvente, esta surge como dona da obra sendo, precisamente, construtora do mesmo, a IM, conforme resulta do alvará junto a fls. 2170 e 2170 verso dos autos. Resultou do depoimento da referida C. B., apesar de a reclamante / recorrida ter facturas emitidas em nome da IM, nenhum crédito veio reclamar junto desta porque a insolvente assumiu o pagamento de todos os fornecimentos feitos pela reclamante ao abrigo da mencionada garantia, existindo, assim, um encontro de contas entre as duas sociedades. E, precisamente, conforme explicou a testemunha M. R., o valor do sinal do contrato promessa em causa era o da dívida à data existente pela IM à reclamante / recorrida, assumida pela insolvente. Isso resultou também do depoimento da testemunha D. A. e mostra-se igualmente sustentado probatoriamente pelo conjunto de facturas e letras de câmbio (e despesas) juntas de fls. 1208 a 2161, assim como pela corrente junta a fls. 2167 a 2169 (a qual, conforme explicitou a testemunha D. A.) não inclui as letras de câmbio e respectivas despesas.
14ª– Assim, resultou a prova do pagamento do sinal – prova dos pontos 29, 32 e 33 da matéria de facto provada.
15ª – Relativamente à demais matéria fáctica alegada e não dada por provada não foi feita qualquer tipo de prova.
16ª - O Sr. Administrador da Insolvência reconheceu à reclamante / recorrida A. P., Lda, um crédito no montante de € 170.000,00, resultando do incumprimento de contrato-promessa e, como tal, garantido por direito de retenção. A credora impugnante / recorrente Banco A pugna, sem razão, pelo não reconhecimento de tal crédito, pelo menos enquanto beneficiário do direito de retenção.
17ª – São «pressupostos deste direito de retenção, a existência de promessa de transmissão ou constituição de direito real; a entrega da coisa objecto da promessa e a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato promessa» (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21/05/2013, processo 3307/08.5TBVCT-M.G1 e, mais recentemente, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2/02/2017, processo 280/13.1TBCDN.C1.S1).
18ª – Resultou da matéria de facto dada como provada nos pontos 4 – 1º cláusula quinta do contrato promessa; 5; 6; 7 e 8 a efectiva ocupação, pela reclamante recorrida, ou seja, a tradição e detenção da coisa (Ac. STJ de 12/03/2013, Processo 1664/05.4TBCVL.C2.S1).
19ª - Resulta provado que entre reclamante e insolvente foi celebrado contrato-promessa de compra e venda e que o mesmo não foi cumprido, ou seja, não foi celebrado o contrato definitivo, pelo que ocorreu incumprimento definitivo do contrato-promessa ainda antes da declaração da insolvência da promitente-vendedora que permita ao reclamante peticionar o dobro do sinal e invocar direito de retenção sobre o imóvel objecto mediato do contrato prometido, não se aplicando o disposto no art. 102º do CIRE, mas sim as disposições do Código Civil designadamente os art 442 e 755 n1 alinea f).
20ª - Fernando de Gravato Morais (“Contrato Promessa em Geral Contratos-Promessa em Especial”, Almedina, 2009, págs. 232 a 235), considera, acompanhando a maioria da jurisprudência e da doutrina, que «o crédito emergente do contrato-promessa é o que tem na sua base o incumprimento definitivo daquele. Resulta da letra do artº 755º, nº 1, al. f), do C.C., que o direito de retenção no mesmo previsto se dirige à garantia do «crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º». O artº 442.º, do C.C., lido «de modo que haja harmonia e congruência no regime do sinal» (Calvão da Silva, “Sinal e Contrato - Promessa”, Almedina, 8ª Edição, pág. 108).
21ª - Importa considerar que enquanto contrato que foi o negócio jurídico celebrado pela reclamante / recorrente e pela insolvente, o mesmo deveria ser pontualmente cumprido, coincidindo, ponto por ponto, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito – artº 406.º, nº 1, do C.C. – decorrendo do disposto no artº 762.º, nº 1, do C.C., que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que se encontra vinculado.
22ª - A falta de cumprimento definitivo ocorre nas seguintes situações:
-quando se verifica a perda do interesse do credor na prestação devida, com a demora do devedor,
-quando o devedor moroso não cumprir no prazo razoável, adicional e peremptório (admonitório), fixado pelo credor, pressupondo-se a mora do devedor (artº 804.º, nº 2, do C.C.), convertida em não cumprimento definitivo, equiparando-se este à impossibilidade de cumprimento – artº 801.º, nº 1, do C.C.
-quando o devedor declara, inequivocamente, que não cumprirá o contrato.
-quando, ficticiamente, é fixado para o cumprimento um prazo essencial.
23ª – Do teor da carta reproduzida no ponto 18 dos factos provados, o tribunal “a quo” não teve dúvidas que a reclamante / recorrida emitiu a interpelação admonitória à insolvente – art. 808º CC. Tal carta é datada de 29/04/2013, comunica a data marcada para celebração do contrato prometido e termina com a advertência de que «a falta de comparência no Cartório Notarial supra referido no dia 08/05/2013, pelas 14:00 horas, implica o incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda acima descrito, nos termos do art. 808° do Código Civil».
24ª - É certo que resulta igualmente provado que tal carta, remetida para a sede da insolvente / promitente vendedora, veio devolvida com as menções de “AVISADO» e «Objecto não reclamado» - ponto 19.º da matéria de facto provada. O Tribunal “a quo” considera a interpelação como válida e eficaz nos termos do disposto no art. 224º n.º 2 do CPC.
25ª - As cartas foram remetidas para a sede da insolvente / promitente-vendedora, que, por via das regras de funcionamento dos correios teve conhecimento da respectiva entrega, apenas se tendo abstido de a ir levantar à estação dos correios.
26ª - A lei parte da situação regular e normal de que, com a chegada ao poder, o destinatário (o declaratário) está em condições de tomar conhecimento e que ele toma conhecimento. O saber se a chegada ao poder conduz realmente a uma situação, suposta na lei, que permite o conhecimento efectivo, determina-se em conformidade com as concepções reinantes no tráfico jurídico para os negócios em causa» (Heinrich Hörster, primeira obra citada, pág. 449).
27ª - Neste contexto dogmático e doutrinário, na situação vertente, em que a insolvente havia celebrado contrato-promessa com a reclamante / recorrida, tendo existido mais do que uma tentativa de marcação de escritura por banda da reclamante / recorrida, deverá presumir-se segundo uma regra de confiança e boa-fé jurídico - relacional que as comunicações a estabelecer entre os contraentes deveriam ser endereçadas para as moradas correspondentes às respectivas sedes, como efectivamente foram. Afinal, por alguma razão as sedes das pessoas colectivas constam da respectiva matrícula.
28ª – Todas as cartas foram enviadas para a sede da insolvente, o que significa que o sócio gerente da insolvente não recebeu as cartas supra referidas porque não quis, pois foi avisado para as levantar nas respectivas estações de correio, e não o tendo feito foram as mesmas devolvidas à remetente com essa informação. Bem sabendo das relações comerciais com a reclamante / recorrida, da garantia que havia assumido e do contrato celebrado, era de esperar que se disponibilizasse a receber as cartas que lhe foram dirigidas. Esta exigência resulta do princípio de boa-fé, mas também da necessidade de salvaguarda os interesses (previsíveis e futuros) de cada um dos sujeitos da relação jurídica.
29ª - A aplicação da teoria da recepção, na sua vertente de perfeição da recepção da vontade de declarante, não pode deixar de ter aplicação a caso vertente, pelo deverá tomar-se como válida e eficaz a interpelação admonitória para cumprimento efectuada pela reclamante (neste sentido ver, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/02/2012, processo 3792/08.5TBMAI-A.P1.S1; e de 11/02/2015, processo 1392/05.0TBMCN.P1.S1; de 29/07/2016, proc. 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1; e Ac R. Porto de 27/03/2017, proc. 81/16.5T8VLG.P1; Ac. R. Porto de 16/02/2015, proc. 2691/10.5TBVNG- B.P1; Ac. R. Porto de 08/07/2015, proc. 1749/10.5TTPRT.P2; Ac. R. Lisboa de 23/04/2015, proc. 185/14.9TBRGR.L1-2; Ac. R. Coimbra de 06/12/2011, proc. 321/2002.C1)
30ª – A carta de resolução enviada para o sócio gerente da insolvente, para a Rua …, Braga foi recebida pelo mesmo.
31ª – O Tribunal “a quo” concluiu da análise dos documentos juntos (cartas e instrumentos notariais lavrados pelo Notário Dr. TR) que a reclamante / recorrente logrou a prova de que válida e eficazmente transformou a mora da insolvente em incumprimento definitivo, com efeitos em 08/05/2013.
32ª – O pagamento do sinal não foi feito em numerário mas sim mediante a prestação de serviços a entidade juridicamente terceira (a IM com quem a insolvente tinha uma relação especial, de grupo de facto e justificado interesse próprio em assumir o pagamento de dívidas desta à reclamante / recorrida), de valor igual ao do sinal. Por um lado, conforme resultou provado, a insolvente assumiu a dívida, desse valor, responsabilizando-se pelo pagamento da mesma. E, por outro lado, não se vê que a lei exija que o sinal e correspondente afectação patrimonial, conquanto implique uma valorização efectiva do património, não possa ser efectivada de modo diverso da mera entrega física de numerário. Na verdade, em função da relação existente entre a promitente-vendedora e a entidade a quem a reclamante prestou os serviços (IM), de valor igual ao do sinal, e sendo certo que a terceira entidade (IM) sempre seria credora da promitente-vendedora por igual valor (conforme se sublinhou na fundamentação da matéria de facto, no caso da construção do edifício em que se incluía esta fracção, a insolvente surge como dona da obra sendo, precisamente, construtora do mesmo, a IM), que seria correspondente ao valor do débito da promitente-vendedora face a esse terceiro. Tal valor nem sequer careceria de sair do património da promitente-vendedora que, no entanto, ficaria exactamente na mesma situação se dele saísse para pagamento da dívida e nele depois reentrasse com a entrega efectuada pelo terceiro ou pela própria promitente-compradora. Nessas circunstâncias a entrega do sinal não deve ser encarada, de um modo limitado, correspondendo à pura deslocação física; importa, sim, que seja encarada na sua dimensão real de enriquecimento do património em execução de um possível acordo como o que foi assinalado (ver, a este propósito, o Acórdão do STJ, de 09/03/2010, processo 10633/05.3TBMTS.S1; Ac. R.G. de 12/04/2012, proc. 1993/09.8TBVCT.G1; Ac. STJ de 17/02/1998, proc. 98A123; Ac. STJ de 09/03/2010, proc. 10633/05.3TBMTS.S1).
33ª – Escreve a este propósito Fernando Gravato Morais que o incumprimento definitivo (imputável do promitente – vendedor) da promessa de compra e venda (por exemplo, como a alienação do bem – sendo esta uma hipótese de impossibilidade imputável - com a recusa séria e categórica em cumprir ou com a resolução ilegítima daquele promitente) que importe a extinção do contrato promessa antes da declaração de insolvência – no caso de entrega da coisa ao promitente – comprador que sinalizou a promessa – gera a aplicação das regras civilistas e as seguintes consequências gerais, a saber:
-O pagamento do sinal em dobro (art. 442º, n.º 2 CC)
-A atribuição ao promitente-comprador do direito de retenção (art. 755º, n.º 1, alínea f) do CC). (vide Obra citada na motivação das alegações).
34ª - Verificada a insolvência posteriormente á extinção do contrato, não cabe aplicar o disposto no art. 106º dado que o regime integrado no capítulo IV, referente aos “efeitos sobre os negócios em curso”, pressupõe que o cumprimento ainda seja possível. Isso se deduz do art. 106º, n.º 2, parte inicial, quando se alude à “recusa de cumprimento (…) pelo administrador de insolvência.
35ª - Também Luís Miguel Pestana De Vasconcelos, defende que «se tiver havido resolução do contrato por qualquer uma das partes antes da declaração de insolvência, não estamos perante um negócio em curso no sentido do Capítulo IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas» (Vide Obra citada na motivação das alegações).
36ª – E neste sentido se tem inclinado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como é exemplo o Ac. de 29/07/2016, Proc. 61/93.0TBBRG-H.G1.S1
37ª - Em igual sentido se decidiu nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/01/2016 (processo 728/14.8TBFIG-C.C1) e de 06/12/2016 (processo 3296/14.7T8VISA.C1).
38ª - Conclui-se, deste modo, que no caso vertente, tendo ocorrido incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado entre a reclamante e a insolvente ainda antes da declaração de insolvência desta, inexistem razões para aplicar às consequências do incumprimento as regras insolvências para os negócios em curso, resultantes do disposto nos artºs 102.º e segs., do C.I.R.E., devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artºs 755.º n.º 1 alínea f); e 442.º desse diploma, tendo, por isso, a reclamante direito ao sinal em dobro, como crédito sobre a insolvência, garantido por direito de retenção, conforme o reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência.
39ª – Sem prescindir, e ainda que se entendesse que o acórdão uniformizador se aplicasse à presente situação, o que não se aceita de forma alguma, sempre se diga, conforme reconhece a impugnante / recorrente na conclusão 21ª, no que respeita à definição de consumidor e citando Luis Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Cadernos de Direito Privado 2011, n.º 33, págs. 3 e segs.: “podendo estender-se o conceito às pessoas colectivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade”, em conformidade com o disposto no art. 11º n.º 1) do Anteprojeto do Código do Consumidor. Cremos que é essa solução, ponderada e equilibrada, do art. 10º e 11º do (justamente pelo seu valor em si, jurídico - cientifico), que parte do núcleo restrito, permitindo o seu alargamento, em certos termos, e com as devidas cautelas às pessoas colectivas e a outras singulares aquela que deverá orientar o intérprete na concretização de consumidor para este efeito, dando inteiro cumprimento, no caso concreto, à ratio da disposição, o que vale dizer, só tutelando quem efetivamente é carente de tutela.”
40ª – O direito de retenção previsto no art. 755º, n.º 1, al. f) aplica-se ao beneficiário da promessa de transmissão, ou seja, a qualquer contrato e não apenas ao contrato promessa de compra e venda (neste sentido vide, a título de exemplo Ac. RL de 14/12/2006, proc. 7796/2006-8; e Ac. STJ de 02/07/1996, in CJ STJ, 1996, II, página 159.
41ª - A douta sentença recorrida, que não merece quaisquer reparos, e por não existirem argumentos para declarar a sua revogação, deve ser mantida nos seus precisos termos, pois não violou quaisquer preceitos legais, designadamente os normativos legais referidos na conclusão 35ª, devendo, por isso, todas as conclusões do recurso apresentado pela impugnante / recorrente serem julgadas totalmente improcedentes.

A decisão recorrida fixou como objecto do litígio o saber se existe direito de retenção do credor A. P., Lda., sobre a fracção autónoma designada pela letra “L” inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …-L, freguesia e concelho de …; e como temas de prova: a) a ocupação da fracção designada pela letra “L” inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …-L pelo credor A. P., Lda; b) o pagamento, por parte da credora reclamante A. P., Lda, do valor de sinal constante do contrato-promessa invocado pela mesma; c) ocorrência de incumprimento definitivo do contrato de promessa alegado pela credora impugnante em data anterior à declaração da Insolvência.

São os seguintes os factos provados:

1.º No dia 12 de Novembro de 2011, a insolvente SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, representada pelo seu sócio gerente FF, e a reclamante A. P., Lda (doravante, apenas, “reclamante”), representada pelos seus sócios gerentes, AP e Maria, celebraram um contrato denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real e Tradição da Coisa”, através do qual a insolvente prometeu vender e a aqui reclamante prometeu comprar o imóvel descrito na cláusula primeira, contrato esse junto de fls. 2416 a 2417 dos autos, cujos dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos, com os seguintes termos:

«1ª Cláusula
A Primeira Outorgante é dona e legitima possuidora de um prédio urbano designado por fracção autónoma “L“, habitação no piso dois, tipologia T2, a terceira a contar do estremo norte do edifício, com terraço e varanda contíguos, com lugar de estacionamento no piso zero para seu uso exclusivo, devidamente assinalado com a letra desta fracção, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 11 … e inscrito na matriz predial urbana com o artigo …, localizado no prédio sito no lugar de …, em Albufeira.
2ª Cláusula
Pelo presente contrato a primeira Outorgante promete vender, devoluto e livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, à Segunda Outorgante e esta promete-lhe comprar, a fracção autónoma identificada na cláusula anterior pelo preço total de 190.000,00 (cento e noventa mil euros).
3.ª Cláusula
1. A titulo de sinal e princípio de pagamento a Segunda Outorgante já pagou à Primeira Outorgante, a quantia de € 85.000,00 € (oitenta e cinco mil euros), de que este dá a respectiva quitação neste contrato.
2. O Remanescente do preço, ou seja, a importância de 105.000,00 (cento e cinco mil euros) será pago pela Segunda à Primeira Outorgante, no acto da escritura, que se realizará até ao mês de Maio de 2013, logo que a Segunda notifique a primeira da data da escritura, com a antecedência de oito dias.
4ª Cláusula.
Correm por conta da Segunda Outorgante todas as despesas relativas à celebração da escritura pública de compra e venda, dos registos e impostos devidos.
5ª Cláusula
Nesta data a primeira deu à Segunda a posse do referido imóvel, entregando as chaves do mesmo para o efeito.
6ª Cláusula
Todas os outorgantes prescindem do reconhecimento notarial das assinatura e concedem ao presente contrato a faculdade de execução especifica prevista no art. 830° do Cód. Civil.»
7ª Cláusula
Ambas as partes atribuem a este contrato eficácia real.».

2.º No dia 31 de Maio de 2012, compareceram no Cartório Notarial, perante o Notário Dr. TR, FF, que outorgou na qualidade de sócio gerente e em representação da sociedade comercial por quotas com a firma SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, e AP e Maria que outorgaram na qualidade de sócios e gerentes em representação da sociedade comercial por quotas com a firma “A. P., Lda.”, com vista a procederem, ao termo de autenticação do referido “Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real e Tradição da Coisa”, tendo declarado:
«Que leram o documento anexo, intitulado de “Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real e Tradição da Coisa “, datado do dia doze de Novembro de dois mil e onze, e que o mesmo exprime as suas vontades, sendo que o contrato é composto por duas folhas, que vão pelos outorgantes e por mim, rubricadas no canto superior direito da face das folhas, e sobre as quais levam aposto o selo branco deste», conforme documento junto a fls. 2614 a 2415 verso dos autos, cujos dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3.º O referido termo de autenticação foi assinado pelos representantes legais da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, e pelos representantes legais da reclamante, bem como pelo Notário TR.
4.º No dia 31/05/2012 a reclamante procedeu ao pagamento do IMT, com o DUC nº …, no valor de € 5.232,01, conforme documento junto a fls. 2418 dos autos, cujos dizeres aqui se dão como integralmente reproduzidos.
5.º Desde a celebração do contrato-promessa referido em 1º, tendo a insolvente entregue as chaves da fracção “L”, e respectivo lugar de aparcamento, à reclamante, para que esta tomasse posse da mesma, que esta através dos seus sócios gerentes a possui como se fosse proprietária da mesma, e os seus sócios gerentes a usam nela entrando e saindo quando querem com conhecimento da insolvente e sem oposição de quem quer que seja.
6.º A reclamante procedeu à inscrição na Conservatória do Registo Predial do referido contrato-promessa, mediante a AP …, de 31/05/2013, ficando registada como provisória, por natureza, a aquisição a favor da autora, em conformidade com o disposto nos arts. 92.º, nºs 1, al. g) e 4, do Código do Registo Predial, inscrição essa que não renovou.
7.º A reclamante comunicou ao Serviço de Finanças de Albufeira a aquisição do imóvel mostrando-se o mesmo inscrito a seu favor no artigo matricial ….
8.º A reclamante, através dos seus sócios gerentes, mobilou todo o apartamento, designadamente, quartos, sala de jantar, a sala de estar, o hall de entrada, mobiliário exterior e equipou o mesmo com roupas e todos os utensílios necessários ao uso do mesmo (panelas, louças, talheres, electrodomésticos, etc.) tendo decorado o mesmo com cortinas, quadros, tapetes, porcelanas e outros objectos decorativos, usando-o os sócios gerentes em reuniões, recebendo visitas, aí dormindo, fazendo as refeições, designadamente durante o período veraneio e fins-de-semana e estacionando o veículo no lugar de aparcamento respectivo.
9.º Com o conhecimento e aceitação de toda a gente e sem oposição de quem quer seja, de forma pública, pacífica e contínua e sem qualquer interrupção temporal.
10.º Na convicção de exercer um direito próprio, como se de um verdadeiro proprietário se tratasse, através dos seus sócios gerentes, e sendo como tal considerado por toda a gente.
11.º A reclamante requereu o contador de água, gás e luz e tem vindo a suportar todos os custos inerentes relativos à fracção “L” supra identificada.
12.º Efectuou o pagamento do Imposto Municipal sobre Imóveis relativo ao ano de 2011 e relativo ao ano de 2012.
13.º A reclamante marcou a escritura pública de compra e venda no Cartório Notarial– Notário TR, para o dia 24/04/2013 às 14:00 horas.
14.º No dia 12/04/2013 a reclamante enviou carta registada com aviso de recepção para a sede da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, dando-lhe a conhecer que a escritura de compra e venda da fracção “L” inscrita na matriz predial urbana sob o art. …-L da freguesia e concelho de Albufeira, estava marcada para o dia 24/04/2013, pelas 14:00 H, solicitando a comparência no referido cartório no dia e hora marcada para outorga da escritura.
15.º No mesmo dia 12/04/2013, a reclamante enviou também cartas registadas com aviso de recepção para o sócio gerente da insolvente, FF, para as duas moradas conhecidas no contrato promessa e no termo de autenticação, solicitando a comparência no Cartório Notarial de TR no dia 24/04/2013, pelas 14:00 H, com vista a celebrar a escritura de compra e venda da referida fracção “L”.
16.º O representante legal da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA não compareceu no dia e hora marcados no Cartório Notarial do Dr. TR, tendo sido lavrado o instrumento público respectivo.
17.º A reclamante marcou novamente a escritura de compra e venda no Cartório Notarial – Notário TR, para o dia 08/05/2013, às 14.00 H.
18.º No dia 29/04/2013, a reclamante enviou novamente carta registada com aviso de recepção para a sede da Sociedade de Construções F. F. Lda., com interpelação admonitória nos termos do art. 808° do Código Civil, cujo conteúdo de transcreve:
«EXMOS SENHORES,
Ficam desta forma notificados de que se encontra agendada para o dia 08/05/2013, às 14:00h, a escritura de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “L “, inscrita na matriz predial urbana sob o art. … – L, da freguesia e concelho de Albufeira, a qual V. Exas. prometeram vender livre de quaisquer ónus ou encargos, por contrato promessa de compra e venda outorgado no dia 12/11/2011.
A referida escritura será outorgada no Cartório Notarial– Notário TR, sito na Av. …, freguesia e concelho de Ponte de Lima, onde V. Exas. deverão comparecer no dia e hora marcada.
Ficam ainda advertidos de que, a falta de comparência no Cartório Notarial supra referido no dia 08/5/2013, pelas 14:00 horas, implica o incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda acima descrito, nos termos do art. 808° do Código Civil», conforme documento junto a fls. 140 cujos dizeres aqui se dão por integralmente reproduzidos.
19.º Tais cartas vieram devolvidas à remetente com as seguintes indicações: “AVISADO” na respectiva estação de correio e “Objecto não reclamado”.
20.º No mesmo dia 29/04/2013, a reclamante enviou também cartas registadas com aviso de recepção para o sócio gerente da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, FF, para as duas moradas conhecidas no contrato promessa e no termo de autenticação, solicitando a comparência no Cartório Notarial de TR no dia 08/05/2013, pelas 14:00 H, com vista a celebrar a escritura de compra e venda da referida fracção “L”, com interpelação admonitória nos termos do art. 808” do Código Civil.
21.º O representante legal da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, não compareceu no dia 08/05/2013 à hora marcada no Cartório Notarial em Ponte de Lima do Dr. TR, tendo sido lavrado o instrumento público respectivo.
22.º A SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA não compareceu por duas vezes à escritura de compra e venda marcada e não cancelou os ónus e encargos que incidem sobre a fracção “L”.
23.º No dia 20/05/2013 a reclamante enviou carta registada com aviso de recepção para a sede da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, com o seguinte conteúdo:
«EXMO SENHOR,
Vimos por este meio, exercer o direito de resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado no dia 12/11/2011, por incumprimento definitivo do mesmo por parte de Vos Ex.as.», a qual veio a ser devolvida à remetente com as indicações: “AVISADO” na respetiva estação de correio e “Objecto não reclamado”.
24.º No mesmo dia 20/05/2013 a reclamante enviou cartas registadas com aviso de recepção para o sócio gerente da SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA, FF, que as recebeu.
25.º A sociedade F. F., Lda foi declarada insolvente por sentença datada de 30/05/2013.
26.º A Banco A (doravante, apenas, credor impugnante) reclamou um crédito de natureza hipotecária no valor de € 156.623,33, que incide entre outros imóveis, sobre a fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente a uma habitação no piso dois, a contar do extremo norte do edifício com terraço e varanda contíguos e lugar de estacionamento no piso zero, pertencente ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o nº …, freguesia e concelho de Albufeira, e inscrito na matriz Predial urbana sob o art. … da referida freguesia.
27.º As duas hipotecas encontram-se devidamente registadas, pelas APs 56, de 06/10/2006, e 57, de 12/09/2007.
28.º A reclamante tem como objecto social o comércio de materiais de construção.
29.º Mediante documento intitulado “Constituição de Fiança”, junto a fls. 2162 dos autos e cujos dizeres aqui se dão como integralmente reproduzidos, datado de 2 de Maio de 2008, a insolvente, através do seu legal representante, declarou constituir-se, perante a reclamante, como fiadora e principal pagadora, com renúncia ao benefício da excussão prévia, afiançando a sociedade IM – Construções, Lda nas suas obrigações perante a reclamante decorrentes do fornecimento de materiais de construção civil, no âmbito da conta corrente, até ao montante máximo de € 90.000,00, incluindo capital, juros de mora e encargos bancários com a letras ou cheques emitidos pela IM – Construções, Lda, por um período de cinco anos. Em contrapartida a aqui reclamante obrigou-se a continuar a fornecer todos os materiais de construção civil solicitados pela sociedade IM até ao valor total afiançado.
30.º A insolvente tinha como gerente FF e como sócios, além deste, M. F., F. A., J. P., L. F. e M. A..
31.º A IM – Construções, Lda, foi constituída em 09 de Março de 2006, tendo, inicialmente, como sócios, cada um com 50% (€ 250.000,00) do respectivo capital social, FF e M. F., ambos gerentes, e, após aumento de capital social, em 14/08/2009, também a insolvente, com uma quota de € 50.000,00.
32.º A insolvente assumia o pagamento das dívidas a fornecedores da referida IM, que, por sua vez, facturava à insolvente os serviços prestados, fazendo-se reflectir nas suas respectivas contabilidades os devidos encontros de contas.
33.º O valor do sinal referido no contrato-promessa mencionado em 1º foi pago pela reclamante mediante a prestação de serviços e bens de igual montante à referida IM.
34.º A impugnante tem conhecimento do contrato promessa referido em 1.º desde, pelo menos, Dezembro de 2011.

O âmbito deste recurso é, essencialmente, o de saber se, com base nos factos provados, a reclamante tem direito de retenção sobre a fracção autónoma supra identificada, podendo valer-se dele neste incidente de reclamação de créditos e como deve ser graduado o seu crédito.

Vamos então conhecer das diversas questões que se suscitam neste recurso, por ordem lógica.

I
Primeiro, da eventual impugnação da decisão sobre matéria de facto.
A recorrente diz que no ponto 32 a sentença não poderia dar como provado que “o valor do sinal referido no contrato-promessa mencionado em 1º foi pago pela reclamante mediante a prestação de serviços e bens de igual montante à referida IM – cfr. 33º dos factos provados, até porque não existe qualquer recibo que comprove a liquidação de determinadas factura que seriam devidas no montante global igual ao do sinal que se entende agora ter sido pago. E nem sequer se pode concluir que a Insolvente tenha efectivamente pago alguma importância – correspondente ao valor do sinal - apenas pela exibição do documento de fiança assinado a 2 de Maio de 2008.
Ora, o legislador, no art. 640º CPC obrigou o recorrente que quer impugnar a decisão relativa à matéria de facto a, sob pena de rejeição, especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E o nº 2 acrescenta que no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
Parece evidente que o recorrente não respeitou o disposto na alínea b), ou seja, não indicou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo da gravação, que impunham decisão diversa da recorrida.
Assim, sem necessidade de mais considerandos, rejeitamos o recurso sobre matéria de facto, por incumprimento dos ónus impostos pelo art. 640º CPC a quem quer impugnar o julgamento dos factos.

II

Segundo, a existência ou não de um direito de retenção da credora reclamante A. P., Lda.
Esta é a questão central e nevrálgica deste recurso, e, como seria de esperar, decompõe-se em várias partes, ou subquestões.
Vamos começar por traçar uma breve noção desta figura jurídica.
O direito de retenção está consagrado no art. 754º CC nos seguintes termos: “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
Esta é definição básica da figura em causa. Mas interessa-nos agora um dos casos especiais previstos no art. 755º,1,f CC: gozam ainda do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”.
Vê-se pois que o direito de retenção consiste na faculdade de o detentor de uma coisa móvel ou imóvel não a entregar a quem lha pode exigir, enquanto não cumprir a obrigação a que está adstrito para com o seu titular. É um direito que resulta directamente da lei e não de negócio jurídico, e não está sujeito a registo (A. Santos Justo, Direitos Reais, fls. 505 e seguintes).
A norma do art. 755º,1, f CC, introduzida pelo DL 236/80 de 18/7 foi, como é por demais sabido, fortemente criticada pela Doutrina. Vamos dar a palavra ao Prof. Antunes Varela(1), um dos autores que com mais contundência e com a clareza que o caracteriza apontou as falhas ao texto legal:

“a terceira das inovações introduzidas pelo DL 236/80 de 18 de Julho, no regime do sinal (ligado ao contrato-promessa), foi a concessão ao promitente-comprador, nos termos do novo preceito incluído no nº 3 do art. 442º do Código Civil, de um direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato prometido (que lhe tivesse sido entregue), como garantia do crédito resultante do não cumprimento do contrato pelo promitente-vendedor. (…) Apesar de a occasio legis da modificação legislativa ter sido a fácil e frequente frustração das expectativas do promitente-comprador do imóvel destinado a habitação própria, certo é que o texto da lei (art. 442º, nº 3) se estendia indiscriminadamente a todos os casos de contrato-promessa de compra e venda, fosse qual fosse o seu objecto, contanto que tivesse havido tradição da coisa objecto do contrato, abrangendo por conseguinte tanto a promessa bilateral de venda de imóveis, como de venda de móveis, e no âmbito da promessa de imóveis, sem nenhuma distinção entre a promessa de venda de imóveis para habitação própria e as promessas de venda adstritas a qualquer outro fim”.
E, mais adiante (fls. 129): “quanto ao direito de retenção, o Decreto-Lei nº 379/86 manteve a sua atribuição ao promitente-comprador nos termos em que o consagrou o diploma de 1980 mas deslocando a sede da solução. Eliminou-se o texto do nº 3 incorporado pelo Decreto-Lei nº 236/80 na disposição do artigo 442º, mas incluiu-se, em contrapartida, uma nova alínea (a alínea f) no nº 1 do art. 755º do Código Civil, destinada a fixar, no lugar sistemático mais adequado, o direito de garantia concedido ao beneficiário das promessa de transmissão ou constituição de direito real (…). A verdade é que o direito de retenção, com os caracteres de verdadeiro direito real de garantia privilegiado (cfr. art. 759º, nº 2 do Cód. citado) se pode justificar nos casos excepcionais a que se referem o artigo 755º (em termos específicos) e o artigo 754º (em termos genéricos), atenta a origem e o pequeno montante da generalidade dos créditos garantidos. Mas não tem a menor justificação (sobretudo com a exagerada amplitude que lhe foi atribuída, abrangendo a promessa de alienação ou oneração de bens imóveis ou móveis, seja qual for a afectação negocial de uns e outros), como oportunamente se salientou, em relação ao promitente-comprador. Note-se que o direito de retenção prodigamente atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, com base na tradição da coisa objecto do contrato prometido, acaba por revestir, na prática, uma eficácia superior àquela de que goza a promessa com eficácia real -o que não deixa de ser profundamente chocante, sobretudo quando, havendo conflito entre os dois promissários, a tradição da coisa feita a um tenha sido posterior ao registo da promessa com eficácia real a favor do outro”.

III

Posto isto, a primeira dúvida que temos de ultrapassar é a de saber se atentos os factos provados, estamos perante uma situação de mora por parte da insolvente / promitente-vendedora, ou perante uma situação de incumprimento definitivo, sendo certo é seguro que apenas o incumprimento definitivo dá lugar à resolução do contrato, e ao direito de retenção.
Como já vimos, nos termos do art. 755º,1,f CC goza ainda do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”.
É pacífico, tal como refere Fernando de Gravato Morais, citado pela recorrida, (“Contrato Promessa em Geral Contratos-Promessa em Especial”, Almedina, 2009, págs. 232 a 235), que o crédito emergente do contrato-promessa é o que tem na sua base o incumprimento definitivo daquele (2).
Recordando alguns conceitos básicos, sob a designação genérica de “não cumprimento”, que encabeça, ao lado do “cumprimento”, um dos capítulos (VII) mais importantes do Livro das Obrigações, cabem situações muito diferentes, que importa distinguir e classificar, visto não ser o mesmo o regime jurídico que lhes compete (Antunes Varela, Das obrigações em geral, 5ª edição, vol. 2º, fls. 60). Uma das principais distinções a fazer é entre o não cumprimento definitivo e o simples retardamento ou mora. Seguindo este último autor (ob. cit., fls. 90), a violação do dever de prestar pode revestir uma tríplice forma:
à a impossibilitação da prestação,
à o não cumprimento definitivo ou falta de cumprimento,
à e a mora.
A simples mora do devedor não confere ao credor o direito de resolver o contrato. A resolução do contrato só é permitida quando haja incumprimento definitivo imputável ao devedor. Existem, porém, dois casos que o art. 808º do CC equipara ao não cumprimento definitivo, ao prescrever no seu nº 1 que «se o credor, em consequência da mora, perder interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação». Deste modo, a mora converte-se em não cumprimento definitivo, quer mediante a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, quer em resultado da inobservância do prazo suplementar ou peremptório que o credor fixe razoavelmente ao devedor relapso (prazo admonitório), sendo certo que a «perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente» - art. 808º,2 do CC.
O não cumprimento definitivo do contrato-promessa abre pois as portas para o contraente não faltoso o resolver.
A declaração de resolução produz efeitos depois de recebida ou conhecida pela contraparte, sendo irrevogável, a partir deste momento, que fixa a data da destruição da relação contratual, atento o disposto pelos artigos 224º,1, 230º,1 e 436º, todos do CC.
O Tribunal recorrido entendeu -a nosso ver bem- que a promitente compradora efectuou a referida interpelação admonitória, assim tendo convertido a mora que se verificava à data em incumprimento definitivo, em 8/5/2013. É certo que sucedeu, como vimos, que resultou provado que a carta contendo a referida comunicação foi remetida para a sede da insolvente/promitente vendedora, e veio devolvida com as menções de “AVISADO» e «Objecto não reclamado» - facto 19º. E no ponto 22 deu-se como provado que a SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES F. F., LDA não compareceu por duas vezes à escritura de compra e venda marcada e não cancelou os ónus e encargos que incidem sobre a fracção “L”. Na sequência disso, no dia 20/05/2013 a reclamante enviou carta registada com aviso de recepção para a sede da insolvente, com o seguinte conteúdo: «EXMO SENHOR, Vimos por este meio, exercer o direito de resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado no dia 12/11/2011, por incumprimento definitivo do mesmo por parte de Vos Exas.», a qual veio a ser devolvida à remetente com as indicações: “AVISADO” na respectiva estação de correio e “Objecto não reclamado”.
Mas apesar disso, o Tribunal entendeu que, aplicando a teoria da recepção, na sua vertente de perfeição da recepção da vontade de declarante, deverá tomar-se como válida e eficaz a interpelação admonitória para cumprimento efectuada pela reclamante (neste sentido ver, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/02/2012 e de 11/02/2015). E compreende-se que assim seja. A regra nestas situações é que a declaração negocial que tem um destinatário se torna eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida (art. 224º,1 CC). Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida. Ora, se, como está provado, a declaração negocial em causa foi remetida pela apelada para a sede social da insolvente, isso basta para podermos considerar que se tal missiva não foi recebida, isso deveu-se a culpa do destinatário. É que a boa-fé negocial impõe que no decurso de uma relação contratual as partes se mantenham contactáveis na morada que previamente indicaram à outra parte, e que em caso de alteração o comuniquem. Assim, para todos os efeitos legais temos de considerar a interpelação admonitória em causa eficaz.
A conclusão é pois que a autora resolveu validamente o contrato, e tem direito à devolução do sinal em dobro.
Assim, a reclamante logrou a prova de que, válida e eficazmente, transformou a mora da insolvente em incumprimento definitivo, com efeitos no dia 08/05/2013, e no dia 20/05/2013, da mesma forma, exerceu o direito de resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado no dia 12/11/2011, por incumprimento definitivo do mesmo.

IV

Pretende ainda a recorrente que a recusa do Administrador de Insolvência em executar o contrato não exprime incumprimento mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo de insolvência, não sendo sequer aplicável a norma do art. 442º, nº 2 do C.C. (incumprimento imputável a uma das partes – que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa (neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador de insolvência na veste de promitente ora insolvente ou em representação dele), pelo que, não tem a promitente adquirente direito ao dobro do sinal, até por força do regime imperativo do art. 119º do CIRE (que estabelece a nulidade das convenções que excluam ou limitem a aplicação das normas contidas naqueles preceitos – arts. 102º a 118º).
Porém, como vimos, a sociedade F. F., Lda foi declarada insolvente por sentença datada de 30/05/2013, e a credora reclamante resolveu o contrato-promessa com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo 10 dias antes dessa data, em 20/5/2013. Desta forma, este contrato-promessa, extinto por resolução antes da declaração de insolvência, ficou a salvo da aplicação do regime constante dos arts. 102º e seguintes do CIRE (cfr. art. 102º,1), nomeadamente do art. 106º.
Assim, como se escreve na sentença recorrida, o incumprimento definitivo (imputável ao promitente-vendedor) da promessa de compra e venda, que importe a extinção do contrato promessa antes da declaração de insolvência – no caso de entrega da coisa ao promitente – comprador que sinalizou a promessa – gera a aplicação das regras civilistas e as seguintes consequências gerais, a saber:
-O pagamento do sinal em dobro (art. 442º, nº 2 CC)
-A atribuição ao promitente-comprador do direito de retenção (art. 755º, n.º 1, alínea f) do CC).

V

Seguidamente, afirma a recorrente que a credora em causa “também não deverá beneficiar de qualquer direito de retenção pois, contrariamente ao que foi entendido pela Mm.º Juiz a quo, nem sequer poderá ser considerada “consumidora” nos termos em que essa figura no está definida no AUJ nº 4/2014, o qual deve ser aplicado a esta situação concreta.
A isto respondeu a recorrida, em síntese, que mesmo que se entendesse que o acórdão uniformizador se aplicava à presente situação, o que não se aceita, mesmo assim, e citando Luis Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Cadernos de Direito Privado 2011, n.º 33, págs. 3 e segs, pode estender-se o conceito às pessoas colectivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade”, em conformidade com o disposto no art. 11º n.º 1) do Anteprojecto do Código do Consumidor.
A sentença recorrida decidiu que “se o contrato-promessa tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, tiver entrado na fase do incumprimento definitivo não há, pois, que aplicar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artigos 755.º n.º 1 alínea f) e 442.º do Código Civil. Ou seja, entendeu que a aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina. E cita em apoio dessa interpretação os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/01/2016 (processo 728/14.8TBFIG-C.C1) e de 06/12/2016 (processo 3296/14.7T8VIS-A.C1).
Vejamos.
É sabido que várias das soluções que a reforma de 1980/1986 veio introduzir na disciplina do contrato-promessa suscitaram violentas críticas de vários autores, de tal forma que parte da Jurisprudência e da Doutrina têm vindo a defender uma interpretação restritiva da norma do art. 755º,1,f CC, para fazer o seu texto coincidir com a respectiva ratio.
É sempre útil, para se ter uma ideia da intenção do legislador, a leitura do preâmbulo do diploma que se está a analisar. No caso, no preâmbulo do DL 379/86 de 11/11 pode ler-se:

“O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442.º, n.º 3). Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites. A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755.º, n.º 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754.º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa. Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa-fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança. O problema só levanta particulares motivos do reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

Nas alegações de recurso é feita referência ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 20/03/2014.
No processo que levou a essa uniformização de jurisprudência estava em causa saber se em contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objecto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre o crédito hipotecário do Banco A que sobre eles incidia. E isto porque tal questão não obteve resposta uniforme das instâncias. Na 1ª instância reconheceu-se ao crédito do reclamante o “direito de retenção” e consequente prevalência perante o hipotecário; já na Relação, partindo do princípio de que estando em causa um crédito emergente de um contrato-promessa, sustentou-se que havia que fazer, em sede geral, a destrinça consoante o contrato tenha eficácia real ou meramente obrigacional; tratando-se da primeira hipótese - sendo pois a promessa oponível a terceiros, nos termos do artigo 413º nº 1 do Código Civil e se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador - o administrador da insolvência não poderá negar o cumprimento do contrato de harmonia com o estatuído no artigo 106º nº 1 do CIRE; caso contrário sujeitar-se-á às consequências previstas no artigo 104º nº 5 do mesmo Diploma Legal. Na segunda hipótese – que é aliás a do caso sub judice - estando em causa um contrato-promessa com eficácia apenas obrigacional em que o promitente-comprador obteve a tradição da coisa, o Acórdão que analisamos revogou o decidido em 1ª instância, propendendo para a prevalência da hipoteca face ao crédito do reclamante, conferindo assim na graduação de créditos prioridade ao direito do Banco A.
E o STJ uniformizou a Jurisprudência da seguinte forma: “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil.”

Facilmente se percebe que este acórdão uniformizador não tem aplicação directa ao caso dos nossos autos, pois ele destina-se às situações em que o não cumprimento do contrato-promessa proveio de decisão do administrador da insolvência, enquanto que no caso sub judice, como vimos, já o contrato estava resolvido à data da declaração de insolvência. Além de que nos parece da maior importância o voto de vencido do Conselheiro Abrantes Geraldes, quando escreve: “a minha discordância relativamente ao decidido circunscreve-se apenas à explicitação de que o direito de retenção conferido pelo art. 755º, nº 1, al. f), do CC, apenas pode ser invocado no processo de insolvência nos casos em que o promitente -comprador, titular do crédito reclamado, tem a qualidade de consumidor. Como decorre dos preâmbulos do Dec. Lei nº 236/80, de 18 de Julho, e do Dec. Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, o objectivo fundamental das modificações que foram introduzidas no regime do contrato-promessa de compra e venda, designadamente no que se reporta à atribuição do direito de retenção em situações de traditio do bem, foi o de tutelar os interesses dos promitentes -compradores em geral, sem que o legislador tenha assumido formalmente a aludida limitação subjectiva. Por isso, não encontro motivos para a sua inscrição num acórdão de uniformização de jurisprudência proferido num processo em que, aliás, nem sequer foi discutida a qualidade em que o reclamante interveio no contrato-promessa de compra e venda. Por conseguinte, além de sustentar a exclusão dessa limitação da fundamentação do acórdão, considero que a súmula jurisprudencial deveria ser a seguinte: “No âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o crédito do promitente-comprador emergente de contrato -promessa, ainda que com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, goza do direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º, nº 1, al. f), do CC”.

A esta luz, supomos poder afirmar que a questão de saber se o promitente-comprador não faltoso, com traditio do imóvel, só goza de direito de retenção para efeitos de graduação de créditos em processo de insolvência se for consumidor não foi formalmente uniformizada pelo referido acórdão, porque não foi objecto de análise específica, e porque não teve na base duas decisões divergentes sobre essa mesma concreta questão.
Porém, dito isto, não há como fugir à constatação de que a esmagadora maioria das decisões do Supremo Tribunal (e o acórdão uniformizador não é excepção) vão no sentido da interpretação restritiva.
Donde podermos dele retirar de relevante o acolhimento da já mencionada interpretação restritiva do art. 755º,1,f CC, no sentido de, apesar de a letra do preceito não fazer referência à figura do “consumidor”, a interpretação e aplicação correcta do mesmo passar pela já referida restrição interpretativa, de excluir a aplicabilidade do regime em causa a todos os casos em que o promitente-comprador não possa ser classificado de “consumidor” (3).
Recordemos o que no supra citado preâmbulo se escreve: “o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor”.
O legislador não faz uma referência directa à aplicação do conceito de consumidor. Faz uma afirmação mais vaga e difusa, mas que não deixa de ser perceptível, de justificar esse novo regime dizendo que ele vem na lógica da defesa do consumidor.
Assim, o que devemos entender por “consumidor”, para este fim ?
A noção de consumidor resultava da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96 de 31 de Julho, com as alterações decorrentes do DL nº 67/2003, de 08 de Abril, do DL nº 84/2008, de 21 de Maio e da Lei nº 10/2013, de 28 de Janeiro), mais concretamente no seu art. 2º,1: “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios".

Paralelamente, o DL nº 24/2014, de 14/02, define consumidor como “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, ou artesanal”.
No acórdão desta Relação de Guimarães de 26 de Janeiro de 2017 (Relatora Lina Castro Baptista), escreve-se que “em face destas definições, afigura-se-nos que estamos na presença de um conceito de consumidor em sentido estrito, sendo dois os elementos que delimitam a respectiva noção: o elemento relacional (sujeito de uma relação jurídica de consumo) e o elemento teleológico (aquisição de bens ou serviços para fins não profissionais)”.
Da jurisprudência do STJ podemos retirar o seguinte apoio interpretativo:
-“o conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito restrito adoptado pelo ordenamento jurídico português” (Acórdão do STJ de 24/05/2016, proferido no Processo n.º 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1, tendo como Relator Nuno Cameira);
-“a alteração legislativa que redundou no aditamento da al. f) ao n.º 1 do art. 755.º do CC foi introduzida tendo em vista a defesa do consumidor, mas visando também, em alguma medida, dinamizar o mercado de construção (acórdão do STJ de 20/05/2010, tendo como Relator Alberto Sobrinho);
-“segundo o AUJ nº 4/2014, de 20.03.2014, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador apenas goza do direito de retenção, previsto no art. 755º, nº 1, al. f), do CC, se tiver a qualidade de consumidor. Apesar desta exigência, o conceito de consumidor não foi objecto de uniformização. É consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável. O conceito tem assim subjacente a necessidade de protecção da parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente. Tendo em atenção esse fim, não deve ser considerado consumidor aquele que, sendo comerciante de ourivesaria, promete comprar três apartamentos, que vem a dar de arrendamento (depois de adquirir um outro para habitação própria). A capacidade económica assim revelada, evidencia que esse promitente-comprador não se encontrava perante a contraparte dos negócios numa situação de fraqueza ou vulnerabilidade. Nem essa aquisição e afectação têm a ver propriamente com "consumo", isto é, com satisfação de necessidades privadas, visando antes a obtenção de rendimentos que essa afectação propicia” (Acórdão do STJ de 13 de Julho de 2017, Relator Pinto de Almeida);
-“não reveste tal conceito -de consumidor- aquele que celebra como promitente-comprador um contrato promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efectivamente instala, constituindo, para o efeito, uma sociedade comercial. E também não reveste essa qualidade o credor que celebra contrato promessa, como promitente-comprador de três fracções prediais, sendo duas lojas comercias e a restante um aparcamento na cave de apoio, lojas essas que o referido credor destina, uma, a nela instalar um estabelecimento comercial que efectivamente veio a instalar, por sua conta, e a outra dá de arrendamento a uma instituição bancária, recebendo as respectivas rendas (acórdão do STJ de 2017/02/14, Relator João Camilo);
-“a Lei n.º 24/96 define no seu artigo 2º,1 consumidor como todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Por seu turno o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, no artigo 2º, define, para efeitos dela mesma “consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;», veio a fazer constar como consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”. No caso, apesar de se ter apurado que o promitente comprador cedeu o uso do imóvel a uns amigos que o utilizam para fins habitacionais, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, sendo pois, nesta asserção, consumidor” (Acórdão do STJ de 5 de Julho de 2016, Relatora Ana Paula Boularot);
-“o conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito estrito adoptado pelo ordenamento jurídico português. Tendo-se provado, no caso dos autos, (i) que os recorridos, promitentes-compradores, são pessoas singulares que adquiriram a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; (ii) que o arrendamento para habitação celebrado foi um acto isolado (não se provaram arrendamentos de outros imóveis seus); (iii) que não exercem com carácter profissional actividade económica lucrativa; e (iv) que ao prometerem comprar a fracção à sociedade insolvente não a destinaram a uma actividade profissional, nem agiram no âmbito de uma actividade dessa natureza, é de concluir que são consumidores, na acepção que o AUJ teve em vista e adoptou ao interpretar o disposto no art. 755.º, n.º1, al. f), do CC” (Acórdão do STJ de 24/05/2016, Relator Nuno Cameira);
-“segundo o AUJ n.º 4/2014, a qualidade de consumidor refere-se ao utilizador final dos imóveis, que faz destes um uso próprio, ao qual é alheio o escopo de revenda, mas não implica que o prédio seja urbano e se destine a habitação permanente do promitente-comprador” (Acórdão do STJ de 16 de Fevereiro de 2016, Relatora Maria Clara Sottomayor);
-“o conceito de consumidor que o referido AUJ acolheu foi o conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa (Acórdão do STJ de 17 de Novembro de 2015, Relator Fonseca Ramos);
-“tem a qualidade de consumidor o promitente-comprador que, tendo embora arrendado o imóvel prometido comprar, não desenvolve qualquer actividade profissional ou empresarial relacionada com o mercado imobiliário (Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/01/2015, proferido no P. 4227/11.1TBGMR-A.G1, tendo como Relator Manual Bargado);

Desta resenha jurisprudencial podem retirar-se as várias características que têm vindo a ser consideradas essenciais para surpreender a figura do consumidor, no sentido estrito do termo:

1. aquisição de bens ou serviços para fins não profissionais;
2. vendedor tem de ser pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios;
3. utilizador final;
4. ausência de intenção de revenda lucrativa;
5. satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado)
6. fins que não sejam uma actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.
Para o que agora interessa, o que se provou nestes autos foi que a credora promitente-compradora, que tem como objecto social o comércio de materiais de construção, celebrou o contrato com a insolvente, que é uma empresa que se dedica à construção e venda de imóveis.
Quanto ao destino que a promitente compradora pretendia dar à fracção, provou-se que assim que tomou posse da mesma, os seus sócios gerentes mobilaram todo o apartamento, designadamente, quartos, sala de jantar, a sala de estar, o hall de entrada, mobiliário exterior e equiparam o mesmo com roupas e todos os utensílios necessários ao uso do mesmo (panelas, louças, talheres, electrodomésticos, etc.) tendo decorado o mesmo com cortinas, quadros, tapetes, porcelanas e outros objectos decorativos, usando a fracção em reuniões, recebendo visitas, aí dormindo, fazendo as refeições, designadamente durante o período veraneio e fins-de-semana e estacionando o veículo no lugar de aparcamento respectivo.
Salvo melhor opinião, estamos perante uma aquisição de um bem (fracção autónoma) sem ser para fins profissionais, pois a sede social da promitente compradora é em Braga, e a fracção situada na cidade de Albufeira. A aquisição foi feita pelo utilizador final, e não se destina a revenda. Destina-se, antes, à satisfação de necessidades pessoais e familiares dos seus sócios gerentes, que, como vimos, mobilaram a fracção e usam-na em reuniões, recebendo visitas, aí dormindo, fazendo as refeições, designadamente durante o período veraneio e fins-de-semana e estacionando o veículo no lugar de aparcamento respectivo.
A promitente vendedora é uma sociedade comercial que exerce com carácter profissional uma actividade económica que visa a obtenção de benefícios;
Este quadro factual preenche, a nosso ver, o conceito de consumidor em sentido estrito, o que faz com que a reclamante A. P., Lda, enquanto promitente compradora, tenha de ser vista como consumidora final; daí decorre que estão reunidos todos os requisitos para a atribuição do direito de retenção como garantia do crédito emergente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Por último, alega ainda a recorrente que o contrato-promessa alegado não consubstancia um contrato-promessa de compra e venda, uma vez que não foi pago qualquer valor pelo imóvel, tratando-se, por isso, de um contrato-promessa de dação em pagamento e não de um contrato-promessa de compra e venda. E isto porque “o imóvel foi entregue pela Insolvente à ora Apelada supra mencionada para pagamento de serviços que esta, pasme-se, prestou a uma terceira entidade – a sociedade IM - num dos seus empreendimentos. Pelo que, não foi, por isso, pago qualquer valor pelo imóvel. E, não é pelo facto de a ora Apelada não ter reclamado qualquer crédito no processo de insolvência da IM que o Mmo Juiz a quo poderá concluir, sem mais - tal como o declarou na sentença ora em crise – que esta estava ressarcida pela Insolvente – Sociedade de Construções F. F., Lda do montante que, porventura, lhe seria devido”.

Na sentença recorrida escreve-se que “o facto de o pagamento do sinal não ter sido feito em numerário mas sim mediante a prestação de serviços a entidade juridicamente terceira, de valor igual ao do sinal não é relevante. A entrega do sinal não deve ser encarada, de um modo limitado, correspondendo à pura deslocação física; importa, sim, que seja encarada na sua dimensão real de enriquecimento do património em execução de um possível acordo como o que foi assinalado (ver, a este propósito, o Acórdão do STJ de 09/03/2010).

Concordamos integralmente.

Não pode haver qualquer dúvida que estamos perante um verdadeiro contrato-promessa, em que as partes prometem vir a celebrar no futuro um contrato de compra e venda de um imóvel (art. 410º CC). Basta ler o facto provado nº 1 para que qualquer dúvida se dissipe. O objecto do contrato em causa é a celebração, em data a fixar, do contrato prometido, que é um contrato de compra e venda. Assim, podemos desde já e sem mais desenvolvimentos, dizer que não assiste razão à recorrente.
Mas vejamos ainda melhor.
A cláusula 3ª faz referência ao sinal nos seguintes termos: “a titulo de sinal e princípio de pagamento a Segunda Outorgante já pagou à Primeira Outorgante, a quantia de € 85.000,00 € (oitenta e cinco mil euros), de que este dá a respectiva quitação neste contrato”.
Em concretização desse facto, provou-se ainda que o valor do sinal referido no contrato-promessa (€ 85.000,00) foi pago pela reclamante mediante a prestação de serviços e bens de igual montante à referida IM. Aprofundando um pouco mais, foi feita prova de uma relação tri-lateral entre essas 3 empresas, que envolvia uma fiança, em que a insolvente, através do seu legal representante, declarou constituir-se, perante a reclamante, como fiadora e principal pagadora, com renúncia ao benefício da excussão prévia, afiançando a sociedade IM – Construções, Lda nas suas obrigações perante a reclamante decorrentes do fornecimento de materiais de construção civil, no âmbito da conta corrente, até ao montante máximo de € 90.000,00. E em contrapartida a aqui reclamante obrigou-se a continuar a fornecer todos os materiais de construção civil solicitados pela sociedade IM até ao valor total afiançado.
Mas isto não passou despercebido ao Tribunal recorrido, pois na sentença pode ler-se: “e conforme resultou provado, a insolvente assumiu a dívida, desse valor, responsabilizando-se pelo pagamento da mesma. E, por outro lado, não se vê que a lei exija que o sinal e correspondente afectação patrimonial, conquanto implique uma valorização efectiva do património, não possa ser efectivada de modo diverso da mera entrega física de numerário. Na verdade, em função da relação existente entre a promitente-vendedora e a entidade a quem a reclamante prestou os serviços (IM), de valor igual ao do sinal, e sendo certo que a terceira entidade (IM) sempre seria credora da promitente-vendedora por igual valor (conforme se sublinhou na fundamentação da matéria de facto, no caso da construção do edifício em que se incluía esta fracção, a insolvente surge como dona da obra sendo, precisamente, construtora da mesma, a IM), que seria correspondente ao valor do débito da promitente-vendedora face a esse terceiro. Tal valor nem sequer careceria de sair do património da promitente-vendedora que, no entanto, ficaria exactamente na mesma situação se dele saísse para pagamento da dívida e nele depois reentrasse com a entrega efectuada pelo terceiro ou pela própria promitente-compradora. Nessas circunstâncias a entrega do sinal não deve ser encarada, de um modo limitado, correspondendo à pura deslocação física; importa, sim, que seja encarada na sua dimensão real de enriquecimento do património em execução de um possível acordo como o que foi assinalado (ver, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/03/2010, processo 10633/05.3TBMTS.S1)”.
Não merece qualquer censura esta parte da sentença recorrida.

E aqui chegados, resta concluir que improcedem todas as conclusões do recurso interposto pela apelante, não merecendo a sentença recorrida ser censurada.

DECISÃO

Por todo o exposto, neste Tribunal da Relação de Guimarães, decide-se julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando integralmente a sentença recorrida.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 9/11/2017

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)
2º Adjunto
(Joaquim Luís Espinheira Baltar)

1. Sobre o contrato-promessa, 2ª edição, fls. 106.
2. Segundo doutrina e jurisprudência, hoje, quase uniformes, só o incumprimento definitivo justifica a resolução do contrato-promessa bem como a exigência do sinal em dobro ou a perda do sinal passado, pois a simples mora não pode ter tal consequência (acórdão do STJ de 10 de Janeiro de 2012, relatado pelo Conselheiro Martins de Sousa).
3. Solução que é suportada pensamos que de forma claramente maioritária pela jurisprudência do Supremo: vejam-se, vg, os acórdãos de 14/10/2014, proferido no Processo n.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, Relator -João Camilo; Acórdão do STJ de 14/06/2011, Relator Fonseca Ramos); Acórdão do STJ de 13/7/2017 (Relator Pinto de Almeida); Acórdão do STJ de 25/11/2004, Relator Fernandes do Vale;