Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3626/10.0TBBRG-C.G1
Relator: AUGUSTO CARVALHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Do simples atraso do devedor em se apresentar à insolvência não se pode concluir, sem mais, pela ocorrência de prejuízos para os credores.
II - O vencimento de juros não constitui prejuízo relevante em ordem a impedir o seguimento do pedido de exoneração do passivo.
III - Não é ao devedor que compete fazer a prova dos requisitos mencionados no nº 1 do artigo 238º do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


João…, em 27 de Maio de 2010, requereu a sua declaração de insolvência e, bem assim, a exoneração do passivo restante, declarando preencher todos os requisitos legalmente exigidos, obrigando-se a observar todas as condições decorrentes da lei e que lhes venham a se impostas durante o período de cessão.

Por decisão de 15 de Junho de 2010, foi declarada a insolvência do requerido.

Na assembleia de credores, foram tomadas as seguintes posições sobre o pedido de exoneração do passivo restante: A C… opôs-se ao pedido de exoneração do passivo restante, uma vez que o insolvente deixou de pagar o crédito contraído, a partir de 1.9.2009; a G… , S.A., requereu o prazo de dez dias para se pronunciar, o que lhe foi concedido.
No relatório a que se refere o artigo 155º do CIRE apresentado pela administradora, esta refere que a situação económica do insolvente se terá degradado, fundamentalmente, a partir de Setembro de 2009, altura em que a sua mulher ficou desempregada, o que vai ao encontro ao alegado pelo próprio na petição inicial.
O Ministério Público e a G… , S.A., pronunciaram-se pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Considerando-se não se verificar nenhuma das situações previstas no artigo 238º do CIRE, e resultando dos autos que as demais condições estão verificadas, não existindo qualquer causa para o indeferimento liminar, foi proferido despacho a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e, nos termos do disposto no artigo 239º, nº 2, do CIRE, determinar que nos cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir, não incluídos no nº 3 do mesmo artigo e com excepção dos previstos no artigo 115º do CIRE, se considera cedido ao senhor administrador, que se nomeia para exercer as funções de fiduciário, sem prejuízo do disposto no artigo 245º, nº 2, alínea d), do CIRE, quanto aos créditos tributários.

Inconformado, o Ministério Público recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.Nos termos do artigo 238º, nº 1, alínea d), do CIRE, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
2.As pessoas singulares não estão obrigadas a apresentarem-se à insolvência, mas devem apresentar-se à insolvência dentro do prazo de seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, caso pretendam beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante.
3.A verificação da situação de insolvência refere-se ao momento em que tal percepção é do conhecimento do próprio insolvente, sendo de considerar o disposto no artigo 3º, nº 1, do CIRE, que estipula que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações já vencidas.
4.O insolvente deixou de cumprir as suas obrigações em 10/9/2009, 1/9/2009, 24/8/2009 e 27/9/2009.
5.O insolvente apenas se apresentou a requerer a respectiva declaração de insolvência em 27 de Maio de 2010, ou seja, quando já se mostrava ultrapassado o prazo de seis meses que o mesmo tinha para se apresentar à insolvência, caso quisesse beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante.
6.Por outro lado, é ao requerente do pedido de exoneração do passivo restante que tem de alegar e demonstrar que a sua não apresentação à insolvência não prejudicou os credores, por ser um facto constitutivo do direito de ver declarada a exoneração, o que não fez.
7.A exoneração do passivo restante só pode ser deferido a favor do insolvente que incumpriu o dever de apresentação se, estando presentes os demais requisitos, alegar e provar que esse incumprimento não teve qualquer incidência na sua situação económica e financeira, seja porque não implicou acréscimo do passivo, seja porque não inviabilizou nem deficultou a cobrança dos seus créditos.
8.Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do direito (nº 3 do artigo 342º do C.C.), regra que no plano processual é contemplada com o princípio vertido no artigo 516º do C.P.C., segundo o qual, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
9.Audição dos credores e do administrador da insolvência a que alude o nº 2 do artigo 238º não faz nascer qualquer relação contenciosa que os invista na posição de partes e os onere com a demonstração dos factos que invoquem em oposição ao pedido.
10.Aliás, é de presumir o prejuízo do credor pelo facto do requerente da exoneração do passivo restante não se ter apresentado à insolvência, quando seja manifesto que não tem bens susceptíveis de responder pelas obrigações que assume.
11.Com a não apresentação tempestiva à insolvência, o prejuízo para os credores é evidente, na medida em que obstou à estabilização do seu passivo e contribuiu para o avolumar dos montantes em dívida, pelo vencimento progressivo dos juros sobre o respectivo capital.
12.Pelo exposto, torna-se evidente que não poderiam deixar de saber, ou ignorar sem culpa grave que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

O insolvente apresentou contra-alegações, concluindo pela confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A decisão recorrida considerou assentes os seguintes factos:
1.O crédito reclamado pelo Banco M… , S.A., venceu-se em 10 de Setembro de 2009.
2.O crédito reclamado pela C… venceu-se em 1 de Setembro de 2009.
3.O crédito reclamado pelo Banco C… ,S.A., venceu-se em 24 de Agosto de 2009.
4.O crédito reclamado pela Caixa… ,venceu-se em 27 de Setembro de 2009.
5.O insolvente não tem antecedentes criminais.


São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se existe motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

I. Dispõe o artigo 235º do CIRE que, «se o insolvente for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste…».
Como se refere no ponto 45 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março, «o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como vem definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».
O citado artigo 235º introduziu, assim, uma medida de protecção do devedor, permitindo que este, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado desses mesmos créditos. Ou seja, apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que se tenha conseguido satisfazer a totalidade dos credores, o devedor fica vinculado ao pagamento a estes durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. A finalidade é que o devedor não fique amarrado a essas obrigações.
«Trata-se de uma solução inspirada no chamado modelo de fresh start: o devedor pessoa singular liberta-se daquele peso e pode recomeçar, de novo, a sua vida. Os cinco anos assemelhar-se-ão, pois, a um purgatório: durante esse período, o devedor vai pagando as suas dívidas, adoptando um comportamento adequado, mas esse período é considerado por lei o suficiente para que venha o perdão e com ele lhe seja dada uma nova oportunidade». Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Revista da Faculdade de Direito da UNL, pág. 167.
Para que seja proferido o despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos de ordem substantiva, nomeadamente, que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência – alíneas b), d), f) e g) do nº 1 do artigo 238º.
Neste contexto, na referida alínea d) estabelece-se que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Exige-se nesta alínea a verificação cumulativa de três requisitos:
a) Dever de apresentação à insolvência ou, não estando a isso obrigado, omissão dessa apresentação nos seis meses seguintes à insolvência;
b) Prejuízo que dessa falta resulte para os credores;
c) Saber, ou não poder ignorar sem culpa grave, que não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
«Para além da não apresentação à insolvência, a relevância deste comportamento do devedor, para efeito de indeferimento liminar, depende ainda, em qualquer destas hipóteses, de haver prejuízo para os credores e de o devedor saber ou não poder ignorar, sem culpa grave, que não existe «qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica». Está aqui em causa apurar se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar razoavelmente convicto da sua situação económica poder melhorar em termos de não se tornar necessária a declaração da insolvência». Carvalho Fernandes e João Labareda, Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, pág. 280.
Mesmo a dar-se como certo que o devedor não cumpriu o prazo de apresentação à insolvência, também no nosso entendimento, não está demonstrado que tal incumprimento tivesse redundado em prejuízo para os credores.
É claro que a não apresentação de alguém à insolvência causa sempre prejuízo aos seus credores (por ex., agravamento dos débitos através do vencimento de juros moratórios). No entanto, não pode ter sido a pensar nessa espécie de danos que o legislador entendeu objectivar tal requisito da não apresentação à insolvência.
Os juros dos valores em dívida são consequência normal do incumprimento gerador da insolvência, ao passo que o prejuízo de fala a alínea d) «tem de traduzir-se num prejuízo de outra ordem, projectado na esfera jurídica do credor em consequência da inércia do insolvente. Esse prejuízo pode consistir, por exemplo, no abandono, degradação ou dissipação de bens no período de que dispunha para se apresentar à insolvência, com o consequente agravamento da situação patrimonial do credor». Acórdão da RP, 12.5.2009, in www.dgsi.pt.
Quanto ao terceiro requisito, reporta-se o mesmo ao saber, ou não poder ignorar sem culpa grave, que não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, exigindo-se não a melhoria desta, mas antes a perspectiva dessa melhoria.
Os créditos reclamados venceram-se todos entre final de Agosto e Setembro de 2009, tendo-se o devedor apresentado à insolvência em Maio de 2010, isto é, oito meses após a verificação daquela sua situação.
Certamente, não terá sido desse atraso, de apenas dois meses, que decorreu prejuízo para os credores.
Mas, para além disso, o devedor não tem que fazer prova dos requisitos previstos no nº 1 do artigo 238º do CIRE.
No entender do STJ, «conforme resulta do disposto no nº 3 do artigo 236º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o devedor pessoa singular tem apenas, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, de “expressamente declarar” que “preenche os requisitos” para que o pedido não seja indeferido liminarmente. Ou seja e como refere Assunção Cristas “in” Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” – Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 168 “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236º/1 e 4)”. Isto significa, em nosso entender, que o devedor não tem que apresentar prova dos requisitos. Até porque, bem vistas as coisas, as diversas alíneas do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração. Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito. Nesta mediada, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cfr. nº 2 do artigo 342º do Código Civil». Acórdão de 21.10.2010, in www.dgsi.pt.
Ora, nada resultou provado sobre a existência de prejuízos para os credores, provenientes do atraso do devedor na sua apresentação à insolvência.
Não foi indicado qualquer comportamento indiciador de que o atraso do devedor em se apresentar à insolvência acabou por prejudicar os credores, bem como nada revela que aquele sabia não existirem perspectivas de melhoria da sua situação económica e, com culpa grave, ainda assim, se absteve de concretizar tal apresentação. Não há notícia de que o devedor tentou dissipar património antes desse momento.
Deste modo, não se verificando nenhuma das situações previstas no citado artigo 238º do CIRE, deve manter-se a decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

Sumário:
I. O artigo 235º introduziu uma medida de protecção do devedor, permitindo que este, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, venha a ser exonerado desses mesmos créditos. Ou seja, apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que se tenha conseguido satisfazer a totalidade dos credores, o devedor fica vinculado ao pagamento a estes durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente.
II. Do simples atraso do devedor em se apresentar à insolvência não se pode concluir, sem mais, pela ocorrência de prejuízos para os credores.
III. Não é ao devedor que compete fazer a prova dos requisitos mencionados no nº 1 do artigo 238º do CIRE.

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Sem custas.

Guimarães, 2.6.2011
Augusto Carvalho
Conceição Bucho
Antero Veiga