Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1002/13.2TBVCT-C.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – O rendimento do trabalho excluído da cessão aos credores é a parte suficiente e indispensável a suportar, condigna e economicamente, a existência do devedor e do seu agregado familiar, preenchida prudentemente pelo juiz, sem descurar o interesse dos credores, exemplificada na lei com um limite máximo de três vezes o salário mínimo nacional – artº 239º nº3 al.b) CIRE.
II – A sua fixação deve pautar-se por princípios de adequação, necessidade e proporcionalidade, de cariz constitucional, com “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP).
III – Tendo a apresentante/devedora um agregado familiar constituído pela própria, o marido desempregado e uma filha, estudante universitária, suportando gastos domésticos normais e despesas escolares, o mínimo de dignidade aludido na lei de insolvência atinge o montante de € 1.100 mensais.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório;

Recorrente (s): A..;

*****
A… requereu, oportunamente, a declaração do seu estado de insolvência e a exoneração do passivo restante.
Tendo sido admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo, foi de seguida proferido despacho sobre a cessão do rendimento disponível do devedor nos seguintes termos:
“Veio a insolvente A… deduzir o incidente de exoneração do passivo restante alegando em síntese que preenche todos os requisitos e condições exigidas nos artigos 236º e ss do CIRE, requerendo que seja fixado no valor equivalente a três vezes o salário mínimo nacional a exclusão do rendimento disponível, considerando que as despesas correntes do agregado familiar ascendem a cerca de €360,00 e o rendimento disponível que ronda os €640,00.
(…)
Para o efeito desde já se consideram apurados os seguintes factos:
a) a requerente é professora do 1º ciclo, auferindo um vencimento mensal ilíquido de € 2. 121,46;
b) sobre tal vencimento, para além dos descontos legais, incidia uma penhora que implica um desconto mensal de €488,10;
c) o marido da devedora encontra-se desempregado;
d) em despesas correntes de água, electricidade e gás a requerente suporta o montante mensal de €280;
e) as propinas da filha dependente ascendem aos €990,00 anuais.
Analisadas as várias alíneas do nº 1 do art. 238º do C.I.R.E., verifica-se inexistir qualquer motivo de indeferimento liminar, pelo que nos termos do disposto no artigo 239º, nº1 e nº2 do CIRE, determina-se que durante os cinco anos de período de cessão ali previsto, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir se considere cedido ao fiduciário, cabendo-lhe ainda cumprir as obrigações previstas no nº4 do artigo 239º, sob pena de cessação antecipada do respectivo procedimento.
Para os efeitos do artigo 239º, nº3, al. b)CIRE considera-se que para sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, em função dos factos apurados supra elencados, é necessária a quantia correspondente a duas vezes a retribuição mínima mensal, como propugnado pelo Sr. AI”.

Inconformada com esta decisão, veio a requerente/devedora interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações apresenta as seguintes conclusões:
a) A Recorrente foi declarada insolvente por sentença de 10 de Abril de 2013.
b) Por despacho do tribunal a quo, o montante excluído do rendimento disponível a ceder ao fiduciário foi fixado no equivalente a duas retribuições mínimas mensais (€ 970,00).
c) O seu agregado familiar é constituído pela própria, pelo cônjuge e por uma filha dependente estudante do ensino superior.
d) A satisfação das despesas do agregado é da sua exclusividade responsabilidade porquanto o cônjuge está desempregado.
e) As despesas correntes do agregado em água, electricidade e gás rondam os € 280,00.
f) Sem considerarmos as despesas de alimentação, vestuário, transportes e material escolar da filha, estudante de Direito.
g) O agregado mora numa casa que lhes foi expropriada em 2005, por favor concedido pela Câmara Municipal de Viana do Castelo.
h) Já receberam várias ordens de despejo, a última das quais em Dezembro de 2012.
i) A indemnização pela expropriação foi imediatamente entregue a credores bancários.
j) Perspectiva-se uma iminente necessidade de pagar uma renda.
k) O rendimento per capita do agregado ronda os € 323,33.
l) Aquele valor é claramente inferior à retribuição mínima mensal.
m) A retribuição mínima mensal corresponde ao valor mínimo considerado equitativo
para uma sobrevivência condigna.
n) A fixação de um rendimento per capita inferior àquele valor não assegura a protecção da dignidade da pessoa humana, princípio basilar do nosso Estado de Direito, violando o art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa e do n.º 2, 2.ª parte, do art.º 824.º do CPC.
o) Impõe-se que seja excluído do rendimento disponível a ceder ao fiduciário um valor nunca inferior a duas retribuições mínimas mensais e meia, ou seja, €1.212,50 (mil duzentos e doze euros e cinquenta cêntimos).
Pede que seja alterada a decisão recorrida nos termos sobreditos.

Foram apresentadas contra-alegações pelo Digno Magistrado do MºPº, pugnando pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questão a apreciar;

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 685º-B, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão suscitada pela Recorrente prende-se com a interpretação da norma do art. 239º, nº 3, al. b) i), do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), nomeadamente, se a decisão que fixou como rendimento disponível duas vezes o salário mínimo nacional deve ser revogada, por ser insuficiente para cobrir os encargos mensais da devedora e seu agregado familiar, devendo corresponder ao montante não inferior a €: 1.212,50 mensais.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na decisão recorrida é a seguinte:
a) a requerente é professora do 1º ciclo, auferindo um vencimento mensal ilíquido de €2. 121,46;
b) sobre tal vencimento, para além dos descontos legais, incidia uma penhora que implica um desconto mensal de €488,10;
c) o marido da devedora encontra-se desempregado;
d) em despesas correntes de água, electricidade e gás a requerente suporta o montante mensal de €280;
e) as propinas da filha dependente ascendem aos €990,00 anuais.

*****

2. De direito;

a) Interpretação da norma do art. 239º, nº 3, al. b) i), do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), nomeadamente, se a decisão que fixou como rendimento disponível duas vezes o salário mínimo nacional deve ser revogada, por ser insuficiente para cobrir os encargos mensais da devedora e seu agregado familiar, devendo corresponder ao montante de €: 1.212,50 mensais?

No que tange à figura jurídica da exoneração do passivo restante, reservada ao insolvente que seja pessoa singular, pode-se ler, no preâmbulo do DL nº 53/04, de 18.3, que aprovou o C.I.R.E., as seguintes considerações: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores.”
A exoneração do passivo restante não tem, pois, como principal fim a satisfação dos credores da insolvência, tal como o previsto no artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – embora, reflexamente, não esqueça por completo esses interesses, na medida em que são impostos apertados limites para a sua admissão[1] .
Trata-se pois de um regime inovador pelo qual se faculta aos devedores pessoas singulares a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no respectivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. Visa-se com esta medida, conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior[2] .
Assenta este na ideia de que quem passou por um processo de insolvência aprende com os seus erros e terá no futuro um comportamento mais equilibrado no plano financeiro.
Sendo admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, nos termos do art. 239º, nºs 1 e 2, do CIRE, no qual determinará que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, denominado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário para os fins do art. 241º (pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas; distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).
No final do período da cessão, será então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, salvaguardando-se, contudo, os que vêm referidos no nº 2 deste último preceito[3] .
No caso em apreço, contrapõe a recorrente que o montante que lhe foi atribuído - € 970,00 (correspondente a duas retribuições mínimas mensais) não assegura a protecção da dignidade da pessoa humana, princípio basilar do nosso Estado de Direito, por se tratar de um rendimento per capita inferior à retribuição mínima mensal, uma vez que, além da devedora, o seu agregado familiar é composto pelo seu marido, desempregado, e uma filha, estudante universitária, devendo ser-lhe fixado o valor correspondente a duas retribuições mínimas mensais e meia.
Vejamos.
O art. 239º, nº 2 estabelece que «o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.»
Depois, no nº 3 do mesmo preceito estatui-se que «integram o rendimento disponível os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a)dos créditos a que se refere o art. 115 cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) do que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»
A decisão deste recurso prende-se, pois, com a interpretação a dar ao preceituado no art. 239º, nº 3, al. b), i) .
A exclusão que aqui se aprecia, consignada na subalínea i), trata-se da resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar.
Na definição da amplitude do rendimento disponível, «fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora do “rendimento disponível” a ceder uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência»[4] .
Esta exclusão surge, aliás, como uma exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da Constituição da República e a que se alude na al. a) do nº 1 do art. 59º do mesmo diploma fundamental, a propósito da retribuição do trabalho.
O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 24.01.2012[5] , «[a] função interna do património, de que decorre a exclusão prevista na subalínea i), mais não representa do que uma aplicação prática daquele princípio supra-constitucional e enquanto alicerce da existência digna das pessoas – suporte da sua vida económica – reflecte-se em diversas normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (a obtenção da prestação) e os interesses do devedor (o direito inalienável à manutenção de um nível de subsistência condigno), do que são exemplos o art. 239º, nº 3, al. b), i) e o art. 824º, nºs 1 e 2 do Cód. do Proc. Civil»[6] .
O rendimento disponível, nos termos do disposto no artº 239º nº3 CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.
Este rendimento excluído da cessão – correctamente designado como “rendimento indisponível” – encontra-se assim caracterizado como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor; por forma exemplificativa, a norma legal indica tal limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário, naturalmente fundamentada, como o deve ser qualquer decisão judicial.
Partilhamos assim do entendimento de que a dita subalínea i) coloca o acento tónico e abrangente de “sustento digno” do devedor que não se confina ou reduz com um enquadramento de limites mínimo e máximo desse sustento, na esteira, aliás, do Ac. RP. De 12.06.2012, proc. 529/11.1TBVLG-B.P1, in dgsi.pt, onde se defende que “[ (…) não ter adequadamente atingido o escopo legal a caracterização efectuada no douto Ac. R.P. 15/7/09 Col. III/216, quando vê um “mínimo legal” na ideia de sustento minimamente digno, e um “máximo legal” na ideia de 3 vezes o salário mínimo nacional; na verdade, aquilo que se encontra em causa é apenas uma cláusula aberta de “sustento digno”, a preencher prudentemente pelo juiz, exemplificada na lei com um limite máximo; consideramos que o sustento digno apenas se acha em concreto, e não pode dizer-se que, em si mesmo entendido, constitui um “mínimo” ou então que esse mínimo é integrado por noções de dignidade do trabalho, redução da pobreza, segurança ou socorro social, como o são o salário mínimo nacional ou, ainda configurável, a fixação do montante de um rendimento social de inserção; no sentido em que a lei não fixa um limite mínimo para o rendimento indisponível, cf. Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, I, pg. 63).
Visando o processo falimentar a execução universal do património do devedor e a satisfação tanto quanto possível integral dos direitos dos credores, a interpretação relativamente ao montante devido a título de rendimento indisponível, nos casos concretos, deve obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida) – assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 3ª ed., pgs. 428ss.
A proibição do excesso, na hipótese de fixação do “rendimento indisponível”, olhará, de um lado, às necessidades fundamentais para um sustento minimamente do devedor e do seu agregado familiar, mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores (olvidado este escopo do processo falimentar, facilmente a “exoneração do passivo restante” se transformaria num prémio ou na cobertura a uma fraude, como significativamente alude o Ac. R.E. 13/12/2011 Col.V/263, relatado pelo Desemb. Canelas Brás] ”.
Assim sendo, cabe sublinhar que o tribunal a quo não deixou de perspectivar a determinação concreta desse rendimento “indisponível”, tendo em consideração o valor do ‘salário mínimo garantido’ e não de um valor mínimo de sobrevivência a que está associado o rendimento social de inserção por exemplo.
Todavia, mais do que avaliar a “retribuição mínima mensal” per capita, como pretende a devedora/recorrente, importa aquilatar o “sustento minimamente digno” dessa mesma devedora e do seu agregado familiar (constituído por mais duas pessoas: o marido, desempregado e a filha maior, estudante universitária), como preceitua a dita subalínea i).
Neste contexto, importa, desde logo, considerar que o dito salário mínimo nacional para 2013 se mostra fixado em € 485,00 (D-L nº 143/2010 de 31 de Dezembro).
Ademais, provou-se que a devedora e o seu agregado familiar (de mais duas pessoas) têm, presentemente e de forma previsível, como despesas mensais, as despesas correntes de água, electricidade e gás, no montante mensal de €280,00, bem como as propinas da filha dependente, que ascendem aos €990,00 anuais, além dos gastos normais de alimentação, vestuário e transportes.
Logo, se é certo que a situação de um casal com filhos (no caso, um dependente) não pode ser vista à partida no mesmo patamar de um casal sem filhos, na medida em que o citado artº 239º, nº 3, al. b), subalínea i), prevê explicitamente o sustento do devedor e do seu agregado familiar, também importa que a aqui devedora não descure que a lei de insolvência procura acautelar concomitantemente os interesses dos seus credores, o que obrigará aquela a adaptar o seu padrão de vida, do seu cônjuge e descendente às circunstâncias inerentes ao rendimento que lhes é disponibilizado, em face do procedimento de exoneração do passivo restante a que está sujeita.
Mas ainda assim, diga-se, a referida lei – Código de Insolvência e Recuperação de Empresas – não faz equivaler o conceito de ‘sustento minimamente digno’ ao de ‘retribuição mínima mensal’ per capita, relativamente, portanto, à devedora e a cada um dos elementos do seu agregado familiar, inclusive dos seus elementos dependentes, como defende genericamente a apelante – ainda que aquele possa servir de factor-referência, impondo-se sempre um juízo de ponderação casuística relativamente ao montante a fixar, no preenchimento desse conceito normativo.
Nesta perspectiva e ante tudo quanto acima se deixou expendido, não se descortina que esteja em causa a violação da protecção constitucional da dignidade da pessoa humana (artº 1º da CRP) ou dos citados preceitos da lei adjectiva civil (artºs 824º, nº2, 2ª parte, do CPC).

No caso sub judice cumpre aquilatar que, segundo elementos no processo (cfr. fls. 44), a devedora auferirá o rendimento mensal líquido de € 1.400,00.
No que concerne à questão de ter necessidade de vir a arrendar casa, cotejados os autos, trata-se de evento futuro e incerto.
Deste modo, sendo o agregado familiar da devedora constituído por três pessoas, esta, o marido desempregado e uma filha, estudante universitária, sopesando as despesas domésticas acima enunciadas, entende-se que o “quantum” de sustento minimamente digno deve ser fixado no montante de €: 1.100,00 (mil e cem euros).
Fixa-se, pois, neste montante o total do rendimento indisponível atribuído aos apresentantes, montante a que alude o disposto no artº 239º nº3 al. b), do CIRE.
Sintetizando:
I – O rendimento do trabalho excluído da cessão aos credores é a parte suficiente e indispensável a suportar, condigna e economicamente, a existência do devedor e do seu agregado familiar, preenchida prudentemente pelo juiz, sem descurar o interesse dos credores, exemplificada na lei com um limite máximo de três vezes o salário mínimo nacional – artº 239º nº3 al.b) CIRE.
II – A sua fixação deve pautar-se por princípios de adequação, necessidade e proporcionalidade, de cariz constitucional, com “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP).
III – Tendo a apresentante/devedora um agregado familiar constituído pela própria, o marido desempregado e uma filha, estudante universitária, suportando gastos domésticos normais e despesas escolares, o mínimo de dignidade aludido na lei de insolvência atinge o montante de € 1.100 mensais.


III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e fixando-se em € 1.100 (mil e cem euros) mensais o montante do rendimento indisponível atribuído à recorrente/apresentante, conforme o disposto no artº 239º nº3 al. b), do CIRE.
Custas pela apelante e apelados na proporção do decaimento.

Guimarães, 10 de Outubro de 2013
António Sobrinho
Isabel Rocha
Moisés Silva
_____________________________
[1] Veja-se o acórdão do STJ de 21-10-2010, proc. nº 850/09.9TBVLG-D.P1.S1, in dgsi.pt.
[2] Luís Menezes Leitão, CIRE Anotado, 4ª ed. págs. 236/7.
[3] Refere-se este nº 2 aos créditos por alimentos – a), às indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade – b), aos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações – c) e aos créditos tributários – d).
[4] Cfr. Ac. RP de 15.07.2009, proc. 268/09.7 TBOAZ-D.P1, in www.dgsi.pt.
[5] Proc. 1122/11.8TBGDM-B.P1, in www.dgsi.pt.
[6] Nesta última norma consagra-se a impenhorabilidade de dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado [nº 1, a)], bem como de dois terços de prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante[nº 1, b)].