Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
746/13.3TBVRL.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: COMPRA E VENDA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CADUCIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRODUTOR
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A causa de pedir, relativamente à 1ª ré, não configura cumprimento defeituoso do contrato que celebrou com a autora, a que seja aplicável o regime previsto nos artºs 798º e 799º do CC, mas sim uma eventual venda de coisa defeituosa, a que é aplicável o disposto nos artºs 913º a 922º do CC. Consequentemente, não assiste à autora o direito de intentar acção de responsabilidade pelo interesse contratual positivo.
II - Mesmo que assistisse à autora tal direito, isto é, se fosse aplicável o regime previsto para as obrigações em geral (incumprimento), também o direito de propor tal acção teria caducado, por, neste caso, lhe ser aplicável o prazo previsto no artª 917º do CC .
III - A demanda da 2ª ré, com quem a autora não contratou, nunca poderia fundar-se na responsabilidade contratual, mas apenas na responsabilidade civil do produtor - DL n.º 383/89, de 06 de Novembro.
IV - Atento o objecto social da autora (produção/impressão e comercialização de material publicitário”), entendemos que o dispensador de água refrigerada não se destina a uso profissional, mas a uso privado, ainda que do pessoal que ali trabalha, devendo por isso a autora ser qualificada de consumidora.
V - Assim, relativamente à 2ª ré, à factualidade alegada na P.I. é aplicável o disposto no DL n.º 383/89, de 06 de Novembro com as alterações introduzidas pelo DL n.º 131/2001, de 24/04, nomeadamente o disposto no artº 11º, pelo que o direito à indemnização não se mostra prescrito.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
R…, Lda., intentou acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária contra B…, Lda., e S…, Lda., sociedade unipessoal, pedindo que seja “declarado que as RR. são responsáveis por todos os alegados danos causados à A. pelo objecto referido em 4º desta PI – dispensador de de água de marca D…, Modelo… e, em consequência, serem as RR. solidariamente condenadas a pagar à A. a quantia de 74.876,01 €, pelos alegados prejuízos sofridos, acrescida dos respectivos juros legais vincendos até total e efectivo pagamento.
As rés contestaram:
– A ré B… excepcionou a sua ilegitimidade e a caducidade do direito que nesta acção a autora pretende fazer valer e requereu a intervenção da Companhia de Seguros… e de R…, SA"
– A ré S… impugnou o alegado na petição e requereu a intervenção da Companhia de Seguros ….
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Foi admitida a intervenção acessória das chamadas, que apresentaram articulados.
No despacho saneador apreciou-se a excepção da ilegitimidade da ré B…, Lda.” e da caducidade da acção, decidindo-se:
a) Julgar improcedente a invocada exceção dilatória nominada de ilegitimidade da ré “B…, Lda.”;
b) Julgar procedente a invocada exceção perentória de caducidade do direito de ação e, em consequência, absolver as rés, “B…, Lda.” e “S…., Lda.”, do pedido formulado pela autora nesta ação.
c) Condenar a Autora “R…, Lda.” nas custas da presente ação, atenta a sua improcedência, na proporção de 4/5, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e artigos 6.º, n.º 1, e 11.º do Regulamento das Custas Processuais, de acordo com a Tabela I, anexa a este último diploma legal.
d) Fixar em 1/5 a proporção das custas a cargo da ré “B…, Lda.”, pela improcedência da exceção de ilegitimidade por si invocada.
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Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:
1ª - São “factos” que resultam dos Autos com relevância para a presente decisão e que, como tal, não foram mas devem ser tidos em consideração e apreciados:
a) - A A. invocou como causa de pedir os prejuízos que lhe advieram em consequência dos danos que lhe foram causados pela máquina em causa; maxime – danos causados pelo incêndio gerado pela máquina;
b) – A presente acção foi apresentada pela “R…, Lda.” contra a R. B…., Lda.”, na qualidade de fornecedora ou vendedora directa e contra a R. S…, Lda. na qualidade de fabricante ou importadora do dispensador de água fria ou refrigerador de água de marca D…, Modelo….
2ª - Do alegado pela R. B… no articulado 14º e 15º da sua Contestação resulta expressamente tão só que: “Sendo que, um ou dois dias após o incêndio o legal representante da A. contactou a 1ª Ré, dando-lhe nota do ocorrido, denunciando assim, os alegados defeitos. Tendo a A., mais tarde (por carta de 08.05.2012), interpelado formalmente a 1ª Ré, para o pagamento de indemnização” – sic.
3ª - Porque a R. B… de forma alguma concretiza o que quer que tenha sido aquela “nota do ocorrido”; nem se não vislumbram na referida Contestação quaisquer defeitos alegados pela R. B…, nomeadamente antes daquele articulado 14º e 15º, desconhece-se a que defeitos esta se quis referir com aquela sua afirmação, deste modo conclusiva; por outro lado o facto de mais tarde (por carta de 08.05.2012), a A. ter interpelado formalmente a 1ª Ré, para o pagamento de indemnização não pode constituir fundamento bastante para concluir que a A. conhecesse então que defeito de funcionamento em concreto a coisa apresentava; pelo que, do que se pode concluir dos autos (para já) é que a A., apenas comunicou à R. B… o que lhe acontecera (um incêndio provocado pela máquina) e posteriormente, Maio de 2012, pediu-lhe uma indemnização por esse facto.
4ª - Atenta a causa de pedir por si invocada, aos danos causados pelo objecto, face à R. B… não é aplicável o prazo de caducidade estabelecido no artigo 917.º, do Código Civil, antes está a presente acção sujeita ao prazo legal constante do artigo 309.º, do mesmo Código.
5ª - A venda em causa foi de coisa defeituosa, no sentido que o artigo 913º lhe atribui, e, ao mesmo tempo, cumprimento defeituoso da obrigação, (artigo 799º, do Código Civil).
6ª - Não é aplicável à acção ora intentada pela A. em que peticiona uma indemnização pelos danos causados pelo cumprimento defeituoso - o prazo de caducidade estabelecido no artigo 917º do Código Civil, quer por a acção não ter por base um dos meios de reacção próprios da venda de coisas defeituosas - a mera anulação da venda fundada em simples erro, com a consequente obrigação de indemnizar, artigos 909º, 913º e 915º - quer por à acção, nos moldes definidos pelo pedido e causa de pedir, ser aplicável o regime do cumprimento defeituoso;
7ª - A acção de indemnização de perdas e danos causados pela coisa vendida está sujeita ao prazo geral constante do artigo 309º do mesmo Código.
8ª - Estamos perante uma responsabilidade objectiva do vendedor e do próprio fabricante do objecto em causa com o consequente assumir do risco emergente do funcionamento da coisa em si, a chamada “garantia imprópria”; e, neste caso, na esteira do que defende o Dr. Pedro Romano Martinez in “Cumprimento Defeituoso…” pág. 472, há que recorrer “aos prazos de prescrição do artº 309º”.
9ª - No caso em apreço não estão em causa quaisquer dos objectivos subjacentes ao estabelecimento dos chamados prazos curtos: possibilitar a remoção dos defeitos (não importa nem está pedida a reparação da máquina); a prevalência da segurança à justiça “ fim de evitar a indefinição das situações por um período grande, de forma a facilitar a circulação de bens” – Dr. Pedro Martinez, ob. cit. pág.s 430 e 431 – pois que não é o comércio que está em causa, não é a máquina transaccionada que importa em si ou mesmo reparar ou substituir; e finalmente a celeridade que se impõe para que não seja dificultada “a contraprova de posterioridade do vício”, porquanto o eventual vício já ocorreu prévia ou simultaneamente com os danos elencados e alegados.
10ª - Não estando, como não está em causa na presente acção nomeadamente a segurança do comércio jurídico – elemento subjacente ao disposto no artº 917º do C. Civil – este não poderá ter aplicação, extensiva que seja, à presente acção que só está limitada no tempo pelo prazo geral previsto no artº 309º do C. Civil.
11ª - A causa de pedir da presente acção deriva dos danos causados por um produto – dispensador de água fria ou refrigerador de água da marca D…, Modelo… – que a R. B… forneceu por venda à A. e que a outra a R., S…, produzira e colocara no mercado português, alegadamente através da chamada I…;
12ª - Não sendo a R. B…, como parece, a produtora, a fabricante ou a introdutora do dispensador de água no espaço da comunidade europeia, não estará abrangida pela responsabilidade objectiva prevista no art. 1º do Dec-lei n.º 383/89 de 6.11; mas está-lo-á, como produtora ou, alegadamente como fabricante, a R. S….
13ª - “Ocorrendo venda de coisa defeituosa, prevista e regulamentada em especial nos termos do art.º 913º e sgs. do Código Civil, e que, simultaneamente, se traduz em cumprimento defeituoso da obrigação, ao qual é aplicável o regime geral da falta de cumprimento da obrigação nos termos dos art.º 798º e 799º, do citado código, presumidamente imputável ao devedor, cabe ao Autor, legitimamente, o direito a optar, em alternativa, por qualquer dos regimes, para a satisfação do seu direito” como ensina o Douto Acórdão desse Tribunal de Relação de 19-12-2011.
14ª - A consequência mais importante do cumprimento defeituoso é a obrigação de ressarcimento dos danos causados ao credor (A.) - art. 798º do CC - cfr. A. Varela, Parecer na Col. Jur. 1987-IV30, e Das Obrigações em Geral, I, 9ª ed., págs.902 e 903; e B. Machado, ob. cit., págs. 169 e segs.Uma obrigação que é emergente da responsabilidade objectiva do produtor e da responsabilidade contratual ou extracontratual do vendedor.
15ª - Quanto à concorrência de ambos os tipos de responsabilidade – contratual e extracontratual - «como refere o Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9ª ed., págs. 539-540, apesar de nítida distinção conceitual entre as duas variantes da responsabilidade civil, a verdade é que elas não constituem, sobretudo na prática da vida, compartimentos estanques. É bem possível que o mesmo acto envolva para o agente simultaneamente, responsabilidade contratual (por violar uma obrigação) e responsabilidade extracontratual (por infringir ao mesmo tempo um dever geral de abstenção ou o direito absoluto correspondente), tal como é possível que a mesma ocorrência acarrete para o autor, quer a responsabilidade civil, quer a responsabilidade criminal, consoante o prisma sob o qual a sua conduta seja observada. Na segunda a lesão dos interesses alheios tem de resultar da norma que efectivamente tutela os interesses particulares (Ac. do STJ de 26.7.97, no BMJ 468-404) ».
16ª - Aplicável tanto para a responsabilidade contratual como na extracontratual (culposa, pelo risco ou por factos lícitos) como para a responsabilidade objectiva é a obrigação de indemnizar prevista nos art.s 562º e ss do Código Civil (in Ac. STJ in BMJ 482-207).
17ª - Como ensina ainda o Prof. A. Varela, in “ Das Obrigações em Geral, Vol. II, pgs. 59 a 64 e 120 a 123, “Em todos os casos se pode, fundadamente, considerar o cumprimento defeituoso como uma forma de violação sui generis do dever de prestar.”
18ª - O pedido deduzido pela A. contra a R. B… não prescreveu nem o direito à respectiva acção caducou.
19ª - Uma caducidade que, de resto nunca aproveitaria à R. S… por não ser de conhecimento oficioso; pois que uma caducidade estabelecida em matéria da disponibilidade das partes que necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele aquem aproveita, tal como a prescrição - art.º s 333º, nº 2 e 303º de acordo com o vertido no Acórdão de Uniformização n.º 4/2003 e o seu entendimento na aplicação do art.º 333.º,n.º 2 do Código Civil.
20ª - O produto adquirido pela A. à R. B… foi (alegadamente) destinado ao seu uso ou consumo privado ou próprio, não se destinava à prática de qualquer acto comercial, i. é, não tendo como fim a obtenção de qualquer lucro através da sua utilização no mercado; foi adquirido pela A. para ser usado como tal (fornecer fresca e para beber a água colocada no respectivo reservatório) pelo seu sócio gerente e pelos funcionários da A., sem qualquer benefício ou contrapartida económica directa para a A., como foi alegado em sede de Réplica; um objecto de uso próprio e completamente alheio à actividade comercial da A.; maxime - um objecto destinado a uso não profissional.
21ª – A A. ora Recorrente, no caso vertente, é um consumidor para efeitos do previsto no DL n.º 84/2008, de 21 de Maio, por ser aquele a quem foi fornecido um bem destinado a uso não profissional, por pessoa (B…) que exerce com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;
22ª - Mesmo que se entendesse não ser de aplicar ao caso vertente face à R. B … o prazo estabelecido no citado artº 319º do Código Civil, no que se não concede, sempre seria de aplicar o prazo de caducidade de 2 anos previsto no citado diploma legal; o que, face à matéria alegada por todas as partes leva forçosamente a concluir que a acção foi proposta atempadamente.
23ª - A A. demandou a R. S…, Lda., como produtora do bem, a quem também dirigiu o seu pedido de condenação (articulado 100º, 101º e 102º da PI): “a R. S…, Lda., é a fabricante ou importadora/distribuidora da máquina em causa e, como tal, também garante do respectivo bom funcionamento, bem como é co-responsável pelos danos causados pela mesma”.
24ª - Mesmo que se entendesse que o direito de acção contra a R. B… foi exercido extemporaneamente, no que se não concede pelas razões invocadas, sempre os autos deveriam prosseguir contra a R. S… e respectiva chamada seguradora – artºs 1º, 4º e 8º do DL nº 383/89 de 6.11 – cujo prazo de prescrição é de 3 anos e o da caducidade é de 10 anos, pela respectiva responsabilidade objectiva – artºs 11º e 12º do citado diploma:
25ª – A Douta Sentença proferida não deu a relevância devida à responsabilidade objectiva da produtora e demandada como tal S…, LDA, corroborada pela factologia alegada pela I…, SA no articulado 8., 19. e 20. da sua Contestação e que não mereceu qualquer impugnação, nomeadamente da R. S….
26ª - Conforme documento nos Autos com a Réplica da A., a R. B… declara expressamente que o “fabricante” (sic) do produto em causa fora a R. S…, LDA.
27ª - Ao ter decidido julgar procedente a invocada excepção peremptória de caducidade do direito de acção e, em consequência, absolver as rés, “B…, Lda.” e “S…, Lda.”, do pedido formulado pela autora nesta acção o Tribunal “a quo” fez uma incorrecta interpretação da lei assim como incorrecta foi a respectiva subsunção aos factos alegados e resultantes já dos articulados e da documentação que os acompanhou.
28ª - A douta sentença em crise violou, por errada aplicação e interpretação, além do mais as normas constantes dos artigos 303º, 309º, 319º, 333º, nº 2, 342º nº 1, 483º, 562º, 563º, 564º, 798º 799º, 905º, 909º, 913º, 915º, 917.º e 921º do Código Civil; D.L. 67/2003 de 8.4; n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96 de 31 de Julho; e artigos 1º, 4º, 8º, 11º e 12º do DL nº 383/89 de 6.11. Em consequência,
29ª – A Douta Sentença recorrida merece ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a invocada excepção de caducidade do direito de acção e ordene o prosseguimento dos Autos contra ambas as RR. e respectivas chamadas.
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Foram apresentadas contra-alegações.
Admitido o recurso, os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde a apelação foi admitida sob a forma, modo de subida e efeito atribuídos pela 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (artº 608º nº2 do NCPC).
As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos.
III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a apreciação das questões suscitadas, assentamos a seguinte factualidade;
1º A A. é uma empresa que se dedica à produção/impressão e comercialização de material publicitário.
2º A R. B…, Lda. é uma sociedade por quotas que se dedica ao comércio de produtos de bricolage e não especializados, nomeadamente utensílios, máquinas, ferramentas, materiais e produtos para o lar e para a construção.
3º A R. S… Lda. dedica-se ao comércio grossista não especializado.
4º A presente acção foi instaurada em 8.5.2013.
5º Na petição inicial a autora alegou, nomeadamente:
– No dia 30 de Junho de 2011 a A., adquiriu por compra à R. B…,lda., que lho vendeu no âmbito da respectiva actividade comercial no estabelecimento desta, denominado B…, sito em Abambres, Vila Real, um dispensador de água fria ou refrigerador de água da marca D…, Modelo … – doc.1.
– Por sua vez a R. B…, Lda, tinha adquirido o dito aparelho à R. S…, Lda., no âmbito das respectivas actividades comerciais, conforme entretanto declarado por ambas.
– A A. pagou à R. B…, LDA., o respectivo preço e esta fez-lhe a entrega do referido aparelho que a primeira dessa forma fez seu.
– A A. tem a sua sede e estabelecimento comercial instalados na Rua… Vila Real, onde procedeu à instalação, colocação e uso da referida máquina em funcionamento, abastecida de água e ligada à corrente eléctrica.
– O dito refrigerador de água foi adquirido pela A. com o propósito único de lhe fornecer água fresca.
– Cerca das 6:45 horas do dia 1 de Julho de 2011 (…) no piso do estabelecimento da A. (…) ocorreu um incêndio … O refrigerador de água D… estava completamente carbonizado, reduzida a um emaranhado de fios e plástico derretido … O incêndio deflagrara porque os dispositivos de protecção térmica (termostato) do dispensador não tinham funcionado correctamente, não a desligando…. D… já atingira uma temperatura tal que provocou o seu incêndio que, por sua vez, se propagou a tudo à sua volta.
– (…) Deduzido dos montantes já recebidos de terceiros, a A., em consequência directa e necessária dos danos que lhe foram causados pelo mau funcionamento da dita máquina D…, sofreu prejuízos orçados no mínimo no valor de 74.876,01 €.
– A máquina em causa de marca D… modelo …. foi vendida à A. pela R. B… LDA., no estado de nova com a garantia de bom funcionamento, pelo menos pelo período de dois anos nos termos legais e nomeadamente e apenas para o fim a que se destinava arrefecer e dispensar água. Bem como, com a responsabilidade pelos prejuízos ou danos que aquela máquina pudesse causar e que efectivamente causou.
– Máquina essa que fora fornecida à R. B…, LDA. pela R. S…, Lda.
– A R. S…, Lda., é a fabricante ou importadora/distribuidora da máquina em causa e, como tal, também garante do respectivo bom funcionamento, bem como é co-responsável pelos danos causados pela mesma. Pelo que, são as RR. solidariamente responsáveis por indemnizar a A. por todos os prejuízos que lhe advieram em consequência dos danos que lhe foram causados pela dita máquina.
6º Na contestação a ré B… alegou, nomeadamente:
¬– (…) Um ou dois dias após o incêndio o legal representante da A. contactou a 1ª Ré, dando-lhe nota do ocorrido, denunciando assim, os alegados defeitos.
– Tendo a A., mais tarde (por carta de 08.05.2012), interpelado formalmente a 1ª Ré, para o pagamento de indemnização.
– (…) Adquiriu o aparelho em crise a uma sociedade denominada "R…, SA".
IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
No caso em apreço a autora funda o direito a que se arroga, de ser indemnizada pelos danos decorrentes de um incêndio nas suas instalações, no facto deste ter sido provocado por um aparelho de refrigeração de água que lhe foi vendido pela 1ª ré e produzido ou distribuído pela 2ª ré.
Entre a autora e a 1ª ré foi celebrado um contrato de compra e venda. Não está em causa o incumprimento do contrato por parte da 1ª ré, uma vez que esta procedeu à entrega da coisa.
Em face do alegado não estamos perante um cumprimento defeituoso do contrato a que seja aplicável o regime previsto nos artºs 798º e 799ºdo CC, mas sim perante uma venda de coisa defeituosa (artºs 913º e segs.).
O conceito de cumprimento defeituoso, introduzido no nº 1 do artº 799º do Código Civil, só ganhou autonomia com os “Estudos” de Baptista Machado, que distinguiu a venda de coisa defeituosa do cumprimento defeituoso da obrigação (Obra Dispersa. Vol. I. Braga: Scientia Ivridica).
O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte.
E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito.
Tal sucederia se tivesse sido alegada discrepância da mercadoria fornecida relativamente à que tinha sido encomendada pela autora e aceite pela ré (obrigação contratualmente assumida). Mas não foi alegada qualquer desconformidade. O aparelho entregue era o pretendido, sofria apenas, de acordo com o alegado, de vício ou defeito não aparente, que provocou um sobreaquecimento e incêndio.
Na nossa opinião não tem aqui aplicação o disposto nos artºs 798º e 799º do Código Civil.
Estamos assim perante a venda de uma coisa defeituosa, coisa essa que, em resultado do defeito que apresentava, causou danos em outros bens da autora (compradora).
Mesmo para Antunes Varela (das Obrigações em Geral, 4ª edição, 1990, II Volume, pags. 120 e segs.) que integra situações semelhantes à dos autos no cumprimento defeituoso, “os efeitos específicos do cumprimento defeituoso não vêm definidos no título das obrigações em geral (…). É no capítulo dos contratos em especial, a propósito da disciplina de alguns contratos nominados (nomeadamente da compra e venda e da empreitada), que a lei insere algumas disposições especificamente referidas ao cumprimento defeituoso”.
Por isso, no caso em apreço, relativamente à 1ª ré, com quem a autora contratou e que lhe vendeu o aparelho de refrigeração de água, cujo eventual defeito terá sido a causa do incêndio, que lhe causou os prejuízos cujo ressarcimento peticiona, é apenas aplicável o regime legal da venda de coisas defeituosas previsto nos artigos 913º a 922º do C.C.
Assim o Código Civil, nas mencionadas normas e naquelas para onde remete o artº 913º, permite ao comprador pedir:
- anulação do contrato, por erro ou dolo (verificados os de um ou outro previstos nos artigos 251º ou 254º), nos termos do artigo 905º;
- indemnização pelo interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato (danos emergentes e lucro cessante, em caso de dolo, e só aqueles, em caso de simples erro não culposo – artigos 908º, 909º e 915º);
- redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por um preço inferior, nos termos do artigo 911º (cumulável com a indemnização - nº 1 deste preceito, in fine);
- reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição, no caso de dolo ou de ignorância culposa do vendedor do vício ou da falta de qualidade da coisa (artigo 914º, 1ª parte), ou, independentemente de culpa ou de erro do vendedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (artigo 921º, nº 1).
Consequentemente, não assiste à autora o direito de intentar acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente de cumprimento defeituoso da obrigação, nos termos dos artigos 798º e 799º do CC.
Mas mesmo que assistisse à autora tal direito, isto é se fosse aplicável o regime previsto para as obrigações em geral (incumprimento), também o direito de propor acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente do cumprimento defeituoso teria caducado.
Neste sentido, Calvão da Silva, in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, Almedina, 5ª Edição, págs. 78 e segs. refere: “(…) Esta acção, em que os prejuízos indemnizáveis tenham origem no vício da coisa, não pode deixar de obedecer aos prazos breves, previstos especialmente para venda de coisas defeituosas”. Explicitando que “é de aplicar o prazo curto de caducidade previsto no artigo 917º à acção de indemnização fundada na violação contratual positiva, porque e só na medida em que o dano esteja em conexão com o vício da coisa e dele resulte, a fim de se não tornar ilusório e sem significado prático aquele prazo abreviado de caducidade especialmente previsto pelo legislador – afinal, a causa petendi é a mesma: o defeito da coisa”. Concluindo, mais adiante, que “já em cumprimento defeituoso não abrangido pelo artigo 913º, vale dizer, quando a violação culposa de deveres do devedor não se refira a vício intrínseco ou orgânico da coisa, a responsabilidade contratual estará sujeita ao prazo ordinário da prescrição. (…) Justifica-se a extensão do art. 917º, que refere apenas a acção de anulação, às acções dos demais direito referidos, porque e na medida em que através delas se fazem valer pretensões no quadro da garantia e à garantia ligadas; porque e na medida em que através delas se realize ou materialize a mesma garantia pelos vícios; numa palavra, porque e na medida em que são recursos contratuais por vícios da coisa”.
Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, pág. 413, chega a idêntica solução, escrevendo: «(…) Apesar do artigo 917º ser omisso, tendo em conta a unidade do sistema jurídico no que respeita ao contrato de compra e venda, por analogia com o disposto no artigo 1224º, dever-se-á entender que o prazo de seis meses é válido, não só para interpor o pedido judicial de anulação do contrato como também para intentar qualquer outra pretensão baseada no cumprimento defeituoso. De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos à prescrição geral de vinte anos (artigo 309º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituoso caducam em seis meses (artigo 921º, nº 4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveriam no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (artigo 916º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o artigo 917º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos».
Também a jurisprudência vem decidindo que o disposto no artº 917º do CC deve ser interpretado no sentido de abranger todas as acções emergentes de cumprimento defeituoso (ver entre outros os Acs. do STJ, de 13.2.2014 (proc. nº1115/05.4TCGMR.G1.S1), de 6.11.2007 (proc. nº 07A3440) e de 16.03.2011 (proc. nº 558/03.2TVPRT.P1.S1); e o Ac. do TRP de 11.9.2014 (proc. nº 6637/13.0TBMAI-A.P1) a que a sentença recorrida faz referência
Pelo exposto, ainda que assistisse à autora o direito de demandar a 1ª ré (vendedora) pelo interesse contratual positivo, configurando-se a factualidade alegada como cumprimento defeituoso, com fundamento em desconformidade da coisa entregue, a acção foi proposta tardiamente, sucumbindo nesta parte as conclusões da apelante.
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A demanda da 2ª ré, com quem a autora não contratou, nunca poderia fundar-se na responsabilidade contratual, mas apenas na responsabilidade civil do produtor, como aliás a autora alega no artº 101º da petição inicial.
O DL n.º 383/89, de 06 de Novembro transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 85/374/CEE, do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados membros em matéria da responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.
No artigo 1.º consagra-se o princípio fundamental de responsabilidade objectiva do produtor.
No artº 2º contempla-se uma noção ampla de produtor, que inclui não só o fabricante do produto final ou de uma parte componente, mas também o importador ou distribuidor, enquadramento que a 2ª ré não negou.
Sobre a noção ampla de “produtor” vide Calvão da Silva in “Responsabilidade Civil do Produtor” pags. 545 a 570.
No artº 8º estabelece-se que “são ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino”.
Para além da letra do citado artº 8º também o preâmbulo do diploma (“É a solução preconizada pela doutrina como a mais adequada à protecção do consumidor na produção técnica moderna …”) nos levam a concluir que abrange apenas os danos causados ao “consumidor”, na noção que dele é dada noutros diplomas, como na Lei de defesa do consumidor (LDC – Lei 24/96).
Sobre o conceito muito se tem escrito. Fernando Baptista de Oliveira, na sua obra “O Conceito de Consumidor”, pag. 76 e 77, conclui que não parece correcto afirmar-se que o nosso legislador adoptou na LDC um conceito (restritivo) de consumidor de forma a afastar a sua aplicação às pessoas colectivas.
Atento o objecto social da autora (actividade exercida), o dispensador de água refrigerada não é necessário à “produção/impressão e comercialização de material publicitário”. É exactamente o mesmo que a aquisição de uma garrafa de água ou de papel higiénico. Não se destina a uso profissional, mas a uso privado, ainda que do pessoal que ali trabalha. Veja-se o caso da jurisprudência francesa referido na nota 76 da última obra citada (pag.77).
Cremos assim que, relativamente à 2ª ré, à factualidade alegada na P.I. é aplicável o disposto no DL n.º 383/89, de 06 de Novembro com as alterações introduzidas pelo DL n.º 131/2001, de 24/04.
Assim sendo, relativamente à 2ª ré, tal diploma, de responsabilidade civil do produtor, confere à autora o direito ao ressarcimento dos danos causados pelo aparelho dispensador de água no estabelecimento da autora (“em coisa diversa do produto defeituoso”) e a acção com vista à efectivação do direito à indemnização só prescreve “no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do dano, do defeito e da identidade do produtor” (artº 11º).
A autora está em tempo para exercer tal direito e, de qualquer forma, a 2ª ré não invocou a prescrição (nem a caducidade).
Pelo exposto, na procedência parcial das conclusões da apelante, a acção deverá prosseguir contra a 2ª ré, não se verificando quanto a ela a caducidade da acção invocada pela 1ª ré.
V - DELIBERAÇÃO
Nestes termos acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando o despacho saneador na parte em absolveu a ré S…, Lda.”, do pedido formulado pela autora e a condenou nas custas da acção.
Custas da apelação pela apelante e 2ª ré apelada, na proporção de metade para cada uma.
Guimarães, 17-09-2015
Eva Almeida
António Santos
Maria Amália Santos