Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
761/10.9TBEPS.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
TOMADOR
DEVER DE AVISO PRÉVIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: É ao tomador do seguro que cumpre o dever de informar o segurado do teor das cláusulas contratuais gerais constantes do contrato.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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AA… intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária contra “BB… SA” alegando, em síntese, que o marido subscreveu um cartão de crédito American Express junto de uma agência do Banco Millennium BCP, tendo então sido informado que, com a subscrição desse cartão, lhe era atribuído um pacote de seguros onde estava incluído um seguro de acidentes de viagem, que cobria quer o titular do cartão, quer o cônjuge.
Os funcionários daquela agência informaram o marido da Autora que, em caso de morte ou invalidez superior a 50%, lhe seria pago um valor de euros 300.000,00.
Nunca nenhum desses funcionários explicou o que quer que fosse à Autora ou seu marido sobre as condições e exclusões do contrato de seguro.
Acontece que, em 03/08/06, o marido da Autora adquiriu, utilizando o cartão de crédito, um bilhete de avião de Porto - Genebra, ida e volta e, durante a viagem, no aeroporto de Genebra, quando descia de um vão de escadas, a Autora sofreu uma queda que teve como consequência um traumatismo na coluna vertebral, com atingimento cervical e lombar.
A Autora sofreu vários períodos de internamento hospitalar e foi sujeita a duas intervenções cirúrgicas; em 11/04/2008, foi sujeita a uma junta médica que lhe atribuiu uma incapacidade de 61%, sendo essa incapacidade de natureza motora e permanente, tornando a autora dependente do uso de canadianas e do auxílio de terceira pessoa.
Nestes termos, conclui pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de euros 300.000,00 resultante do capital segurado no caso de invalidez permanente e os juros de mora que se venderem desde a citação até integral pagamento.
Contestou a Ré, defendendo que os riscos cobertos pelo seguro em apreço são a morte e invalidez permanente (superior a 50% ao abrigo da Tabela de Invalidez que faz parte integrante das Condições Gerais do ramo de acidentes pessoais).
Sucede que, depois de ter sido participado o sinistro e após análise à documentação médica apresentada, os serviços clínicos da Ré concluíram que a lesão participada (hérnia discal) não era consequência do acidente, mas sim de doença pré-existente e degenerativa e, como tal, o sinistro participado não estava coberto pela apólice de seguro em causa.
Acresce que a desvalorização arbitrada baseia-se na Tabela Nacional de Incapacidades que não é aplicável no caso deste seguro, que tem uma tabela contratual própria, conforme consta das condições gerais.
A Autora replicou, sem novidade.
O processo seguiu o seu curso normal e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Desta sentença apelou a Autora, que conclui a sua alegação da seguinte forma:
- entende a Recorrente ter existido erro na apreciação das provas produzidas o que levou a que o tribunal recorrido considerasse “provados” factos que o não deveriam ter sido e que considerasse “não provados” factos que deveriam ser julgados provados;
- pretende a recorrente que sejam reapreciados os meios de prova oferecidos e que são os documentos juntos aos autos, nomeadamente relatórios e perícias médicas e ainda os depoimentos das testemunhas (entre as quais os dois médicos) e os esclarecimentos prestados pelos quatro peritos ouvidos em julgamento;
- para não ser acusada de descontextualizar excertos dos depoimentos das testemunhas ou dos esclarecimentos dos peritos, a Recorrente procedeu à transcrição integral dos depoimentos, realçando, noutro tipo de letra e a negrito, as passagens que lhe parecem mais relevantes, sendo que os minutos e segundos se encontram referidos em cada depoimento;
- as provas cuja reapreciação se pretende devem ser consideradas no seu conjunto e em conjugação umas com as outras, só assim fazendo se conseguindo uma perspectiva global sobre, além do mais, a credibilidade de cada uma;
- entende a Recorrente que os concretos pontos da matéria de facto que devem ser alterados são:
Relativamente aos factos dados como provados:
Ponto 16 – “Tendo sofrido agravamento de uma cervicalgia e lombalgia pré-existente”.
- Nenhuma das testemunhas fala em lombalgias ou cervicalgias pré-existentes, daí que se não possa falar de “agravamento”;
- que a Autora ficou a padecer de lombalgias e cervicalgias após a queda, estamos certos, mas que já as tinha anteriormente não podemos estar certos;
- os únicos documentos que fazem referências a lombalgias muito antigas são os relatórios médicos cuja tradução se encontra junta aos autos:
- um (de 2006) refere que sofria de lombalgias muito antigas…;
- outro, refere que as lombalgias muito antigas se deveram às gravidezes e se reportam ao ano de 1992;
- devia, pois, na nossa opinião, tal facto ser dado como não provado.
Ponto 25 – “Por força da aludida queda, resultou para a Autora uma IPP de 15% de acordo com o anexo I do DL 325/2007 e de 10% de acordo com a Tabela Contratual do seguro”;
- é verdade que este facto, ou seja, a IPP atribuída resulta de o tribunal ter considerado que o estado da Autora é um “agravamento” de uma lesão e não a própria lesão em si o que, para nós, é partir de um pressuposto errado;
- entendemos, também por isso, que o grau de IPP fixado, se se considerasse que a lesão decorreu do acidente, seria muito superior, dizemos nós, superior a 50%;
- a considerar sobre o grau de incapacidade atribuído à Autora teremos que considerar o teor dos documentos juntos:
> o relatório do INML que fixou a IPP em 65%,
> o relatório do Dr. Laranjeira (ortopedista que operou a Autora) que fixou a IPP em 61,75% (doc. PI),
> o relatório Multiuso, em que a Junta Médica fixa a IPP em 72%;
> a própria Ré (no requerimento onde requer a segunda perícia) a admitir que (segundo a sua tabela) a Autora ficou com 25% de IPP;
> o relatório do Prof. Pinto da Costa, que fixa a IPP em 70%;
- a IPP a fixar, considerando as lesões decorrentes do acidente (queda) não como um mero agravamento de situação anterior, deverá sempre ser superior a 50%;
- assim, deveria ter-se dado como provado que a Autora padece de um grau de IPP superior a 50%;
Ponto 28: “A lesão apresentada pela autora consiste no agravamento de uma hérnia discal L4-L5 bilateral”; - quesito 21º.
Ponto 29: “Tal doença é degenerativa, com agravamento pós-traumático; - quesito 22º.
Ponto 30: “A autora já tinha uma hérnia discal à data da queda”; - quesito 23º.
- aos factos dados como assentes nestes três pontos (28, 29 e 30) estão intimamente ligados com o facto do ponto 16, sendo que todos podem ser analisados conjuntamente;
- a questão de saber se a Autora já padecia de alguma hérnia antes de Setembro de 2006 (data da queda) tornou-se a questão chave para o desfecho desta acção;
- a Autora entende que a Ré não conseguiu fazer prova de que a Autora padecia já antes do acidente de uma hérnia discal e que o seu estado pós queda resultou dessa hérnia, tratando-se de um agravamento da hérnia;
- neste ponto foi essencial para convencer (mal) o tribunal a “viragem” dos senhores peritos nomeados pelo tribunal;
- como decorre de toda a documentação junta pela Autora e pelas perícias realizadas no âmbito de INML, foi excluída a pré existência de qualquer causa para a verificação do traumatismo;
- os relatórios do INML são claros!
- Os relatórios juntos pela Autora são claros!
- todas as testemunhas inquiridas (nomeadamente os dois médicos) são claras!
- tal facto assenta unicamente nos esclarecimentos dos três peritos que mudaram de opinião, depois de se desvincularem da INML;
- é verdade que os senhores peritos nomeados para a realização da peritagem colegial no âmbito do INML, quando nomeados pelo próprio tribunal para efectuarem novo exame/relatório mudaram de opinião;
- os senhores peritos (que mudaram de opinião) justificaram a sua atitude (nos esclarecimentos prestados em sede de julgamento) com base no suposto conhecimento posterior de um relatório de um médico francês;
- junto tal relatório (devidamente traduzido) aos autos, não vemos como o teor de tal relatório pode sustentar a “viragem” que acometeu os senhores peritos;
- em lado algum de tal relatório se refere a existência de hérnias;
- a perita Drª Belmira (veja-se na transcrição os excertos realçados) chega a confirmar isso mesmo. Com base em tal relatório, não é possível afirmar a existência de qualquer hérnia;
- parece-nos que de tal relatório a única patologia (que pode ser de nascença) existente é o estreitamento do canal medular;
- quer os médicos indicados pela Autora como testemunhas quer a perita Drª Belmira reconhecem que a hérnia pode ter surgido com a queda;
- não compreendemos por que é que o tribunal recorrido valorizou tanto os esclarecimentos dos peritos médicos que fizeram uma “mudança brusca de rumo”;
- ninguém compreende a alteração de comportamento dos senhores peritos;
- aliás, talvez se compreenda a razão: a Autora pôs em causa a sua credibilidade e idoneidade profissional … talvez não tenham gostado;
- entendemos que o tribunal não deveria ter valorado positivamente os esclarecimentos prestados pelos senhores peritos que em audiência dizem uma coisa e que anteriormente tinham dito o seu oposto (a pré existência de causa para o traumatismo);
- assim, valorando todos os documentos juntos pela Autora, valorando o depoimento das testemunhas por si indicadas (nomeadamente os dois médicos) e valorando as perícias realizadas no âmbito do INML, deveria dar como não provados os factos dos pontos 28, 29 e 30.
Relativamente aos factos dados como não provados (numerados por nós):
Ponto 1.por força da queda a autora padece de uma incapacidade permanente global de 61%”;
Ponto 2. “foi a queda (e só esta) que tornou a Autora permanentemente dependente do uso de canadianas e da ajuda de terceira pessoa e lhe trouxe muita dificuldade em caminhar e subir escadas sem a ajuda de terceiros”;
- tais factos, por entendermos que resultam não só dos documentos juntos, mas também do depoimento das testemunhas, nomeadamente dos dois médicos que acompanharam a recorrente, da perita Drª Belmira e dos demais peritos enquanto estiveram a responder no âmbito da perícia realizada no INML, deveriam ter sido julgados como provados;
- cremos que a Autora conseguiu provar, como lhe competia que, antes de Setembro de 2006, era uma pessoa sem queixas e saudável e que só após a queda referida nos autos é que passou a ter problemas de saúde ao nível da coluna;
- a Ré não conseguiu demonstrar a existência, à data da queda –Setembro de 2006 – de qualquer hérnia discal, isto apesar de ter conseguido que os senhores peritos tivessem mudado de opinião, depois de deixarem de estar vinculados ao INML;
- a mudança de opinião dos peritos médicos deixa muito por explicar e por muito que tivessem tentado justificá-la com base num documento novo (que estava na posse da Ré desde a participação do acidente) não convenceu ninguém … excepto, parece, o tribunal recorrido;
- deverão, pois, os pontos nºs 16, 25, 28, 29 e 30 dos “factos provados” ser considerados “não provados” e os pontos (por nós numerados) 1 e 2 dos “factos não provados” ser julgados provados;
- com a alteração dos factos provados e não provados reclamada, o desfecho da acção deverá ser a sua total procedência.
Sem prescindir.
- o tribunal recorrido deu como provado que:
13. “Nunca nenhum funcionário da ré explicou à autora ou ao seu marido as condições e exclusões do contrato de seguro”; - quesito 3º.
E, deu como não provado que:
3. “As condições de seguro referidas no ponto 4 sempre foram do conhecimento da Autora e de seu marido”;
4. “Tendo o “Guia de Serviços e Benefícios” ali referido lhe sido entregue com o próprio cartão”;
5. “Tendo as condições do seguro referido no ponto 4 lhes sido entregues, comunicadas e explicadas”.


- o tribunal recorrido, ao considerar tal facto como provado (ponto 13 dos provados) e como não provados os outros ( factos 3, 4, 5 dos não provados) não poderia ter julgado a acção improcedente com base na cláusula 4ª das condições gerais do contrato de seguro;
- na verdade, a Autora alegou na petição que nunca lhe foram comunicadas as exclusões do contrato de seguro;
- o contrato de seguro de viagem deve ser qualificado como um contrato de adesão, regido pelo conjunto de normas que rege esse tipo de contratos, nomeadamente o DL 446/85 (com as alterações introduzidas pelo DL 220/95) – cfr. Ac. RC de 09/01/2012 (in www.dgsi.pt.jtrc.nsf);
- tendo resultado provado, como resultou, que a seguradora não comunicou à Autora (ou segurado) as exclusões do contrato de seguro, não poderia a Ré nestes autos prevalecer-se de tal cláusula de forma a ilibar-se do pagamento à Autora da quantia garantida pelo seguro – (ver tb Ac. STJ de 29/04/2010 proferido no proc. 5477/8TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.jtrc.nsf);
- sendo considerada nula a cláusula do contrato de seguro que previa as exclusões – condição 4 – deveria a acção ser julgada totalmente procedente e a Ré condenada a pagar à Autora a quantia garantida pelo seguro.
Finalmente e subsidiariamente.
- o tribunal recorrido deu como provado que:
“8. Dispõe a “condição 2ª” das “Condições gerais” referidas em “D” que: “3 – No caso de invalidez permanente da pessoa segura (…) fica garantido o pagamento à pessoa segura no montante indemnizatório nos seguintes termos: O montante da indemnização depende do grau de desvalorização constatado clinicamente, o qual poderá consubstanciar-se em: a) Invalidez Permanente total – Neste caso, o montante de indemnização corresponderá ao capital contratado para este efeito, de harmonia com a tabela de desvalorização. b) Invalidez Permanente Parcial – Neste caso, o montante de indemnização será igual a uma percentagem do capital contratado de harmonia com a tabela de desvalorização” - alínea H) dos Factos Assentes;
- assim, qualquer que fosse o grau de incapacidade a atribuir à Autora (mas não concedemos que fosse inferior a 50%) sempre a Ré deveria ser condenada a pagar à Autora o capital proporcional ao grau de incapacidade atribuído;
- deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente, por provada.
A Ré apresentou contra alegações em que defende a improcedência do recurso.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como está o recurso pelas conclusões da alegação – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – das apresentadas pelo Apelante resulta que são as seguintes as questões que nos são colocadas:
- apurar se, em face da prova produzida, diversa deveria ter sido a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto;
- averiguar se a incapacidade de que a Autora ficou a padecer em virtude da queda que sofreu no Aeroporto de Genebra está ou não coberta por aquele seguro e em que medida.
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Começando pela questão que se prende com a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, de acordo com o disposto no artigo 662º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por seu turno, o artigo 640º do mesmo diploma estabelece:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Cremos que a Apelante cumpre com os ónus que lhe são impostos por essas normas pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso nesta parte.
São os seguintes os factos em causa, que o tribunal da 1ª instância considerou como provados e a Apelante entende que deveriam ser dados como não provados:
Ponto 16 – “Tendo sofrido agravamento de uma cervicalgia e lombalgia pré-existente”.
Ponto 25 – “Por força da aludida queda, resultou para a Autora uma IPP de 15% de acordo com o anexo I do DL 325/2007 e de 10% de acordo com a Tabela Contratual do seguro”;
Ponto 28: “A lesão apresentada pela autora consiste no agravamento de uma hérnia discal L4-L5 bilateral”; - quesito 21º.
Ponto 29: “Tal doença é degenerativa, com agravamento pós-traumático; - quesito 22º.
Ponto 30: “A autora já tinha uma hérnia discal à data da queda”; - quesito 23º.
E que o tribunal da 1ª instância considerou como não provados e a Apelante entende qued everiam ser dados como provados:
Ponto 1.por força da queda a autora padece de uma incapacidade permanente global de 61%”;
Ponto 2. “foi a queda (e só esta) que tornou a Autora permanentemente dependente do uso de canadianas e da ajuda de terceira pessoa e lhe trouxe muita dificuldade em caminhar e subir escadas sem a ajuda de terceiros”.
Passámos em revista todos os elementos de prova juntos ao processo e procedemos à audição da gravação dos depoimentos.
O que está fundamentalmente em causa na impugnação da decisão sobre a matéria de facto é saber se a Apelante, à data do acidente, era já portadora de patologia que se agravou com a queda ou, pelo contrário, se foi em consequência da queda e só dela que ficou permanentemente dependente do uso de canadianas e da ajuda de terceira pessoa e lhe trouxe muita dificuldade em caminhar e subir escadas sem a ajuda de terceiros, por um lado – pontos 16º, 28º, 29º e 30º dos factos provados e 2 dos não provados – e da percentagem de incapacidade parcial permanente de que ficou afectada – ponto 25º dos factos provados e 2 dos não provados.
No que se refere à pré existência de patologia, o exame singular efectuado no Instituto Nacional de Madicina Legal (INML) não se lhe refere sem a afastar expressamente ao contrário do colegial aí também efectuado – em que se refere, ao nível do pescoço, “agravamento de cervicalgia com uncartrose cervical com discopatia e parestesias dos membros superiores pré existente” – e nas respostas a quesitos pelos mesmos peritos médicos, juntas a folhas 210, em que referem que a queda provocara o agravamento de cervicalgia e lombalgia e de uma hérnis discal pré existentes.
As testemunhas Carlos… e António…, médicos que disseram ter assistido a Apelante no passado, disseram que nunca a tinham assistido por qualquer dessas patologias e, embora de forma que nos pareceu pouco convicta e convincente, que isso não poderia ser retirado dos relatórios e informações clínicas juntas ao processo.
Contrariamente, o médico João … disse que isso se podia retirar dos relatórios juntos ao processo, mormente do relatório de operação – folhas 274 – elaborado, em 24/10/2006, na unidade hospitalar em França onde a Apelante foi operada na sequência da queda, do qual se retira que ela não foi apenas operada a uma hérnia mas para recalibragem do canal, que se apresentava muito estreito, o que só pode ter acontecido ao longo do tempo; além disso, aí pode-se ler, para além de referência a lombociatalgia com báscula, em pessoa com lombalgias muito antigas e repetidas, que “o disco apresenta uma procidência muito generalizada e mediano, extremamente degenerado ...” o que também aponta para a existência de patologia pré existente.
De notar que, como esclareceram em audiência os peritos que realizaram a perícia colegial bem como a que realizou a singular, só eles e a testemunha João … tiveram acesso a esse relatório que, na altura, o próprio mandatário da Apelante desconhecia.
Como assim, nenhuma censura se nos oferece fazer ao julgamento no que respeita aos pontos referidos.
Quanto à percentagem de incapacidade de que ficou afectada, a discrepância entre os relatórios médicos juntos ao processo é salientada nas conclusões da alegação:
- o relatório do INML que fixou a IPP em 65%,
- o relatório do Dr. … (ortopedista que operou a Autora) que fixou a IPP em 61,75% (doc. PI),
- o relatório Multiuso, em que a Junta Médica fixa a IPP em 72%;
- a própria Ré (no requerimento onde requer a segunda perícia) a admitir que (segundo a sua tabela) a Autora ficou com 25% de IPP ainda que, acrescentamos nós, com a ressalva “... caso se cumprissem os necessários requisitos para o seu enquadramento”;
- o relatório do Prof. …, que fixa a IPP em 70%.
E, já agora, acrescentamos nós, 0,176 – 15 pontos na perícia colegial do INML e 15% de acordo com o anexo I do DL 325/2007 e de 10% de acordo com a Tabela Contratual do seguro, pelos mesmos peritos nas respostas de folhas 274.
A testemunha António …, médico com experiência na matéria, reconhecendo embora que nas perícias singular e colegial não tinha sido seguida a mesma metodologia para fixar a IPP, podendo chegar-se a valores diferentes disse que não encontrava, no entanto, razão para uma diferença tão grande; nos esclarecimentos esclarecimentos que prestaram em audiência, os peritos afirmaram que a diferença se justificava por só eles terem atendido à circunstância de se tratar do agravamento de uma situação pré existente como, de resto, reconhece a Apelante na sua alegação.
Deste modo, como também entendemos que está provada essa circunstância, que tenhamos de acolher a decisão da 1ª instância fundada na perícia colegial e nas respostas de folhas 274.
Pelo exposto, são os seguintes os factos provados:
1. a Autora é casada com Joaquim … desde 29/07/2006; - al. A) dos Factos Assentes.
2. no âmbito da subscrição de um cartão de crédito “American Express” junto da agência bancária do Banco “Millenium BCP” de Esposende, foi o marido da Autora informado que, face à subscrição de tal cartão de crédito, lhe era atribuído um pacote de seguros, onde estava incluído um seguro de acidentes em viagem;
3. mais foi informado que, no âmbito do referido contrato de seguro, estava seguro quer o titular do cartão – o marido da Autora – quer o cônjuge ou pessoa que com ele vivesse, em união de facto, há mais de um ano; - al. C) dos Factos Assentes.
4. o seguro acima referido é um seguro de acidentes pessoais associado ao cartão “American Express Green” ao qual estão associadas as condições constantes do “Guia de Serviços e Benefícios” e das “Condições Gerais” constantes dos documentos de folhas 31 e seguintes e de folhas 41 e seguintes; - al. D) dos Factos Assentes.
5. tal seguro cobre situações de morte ou invalidez permanente que ocorram em viagem em qualquer meio de transporte público de passageiros ou veículo automóvel alugado, cujos títulos de transporte hajam sido adquiridos com o cartão “American Express”; - al. E) dos Factos Assentes.
6. o capital seguro é de euros 300.000,00 por agregado familiar; - al. F) dos Factos Assentes.
7. os riscos cobertos são a morte e a invalidez permanente; - al. G) dos Factos Assentes.
8. dispõe a “condição 2ª” das “condições gerais” referidas em “D” que: “3 – No caso de invalidez permanente da pessoa segura (…) fica garantido o pagamento à pessoa segura o montante indemnizatório nos seguintes termos: O montante da indemnização depende do grau de desvalorização constatado clinicamente, o qual poderá consubstanciar-se em: a) invalidez permanente total – neste caso, o montante de indemnização corresponderá ao capital contratado para este efeito, de harmonia com a tabela de desvalorização. b) invalidez permanente parcial – neste caso, o montante de indemnização será igual a uma percentagem do capital contratado de harmonia com a tabela de desvalorização”; - al. H) dos Factos Assentes.
9. consta da “condição 4ª” das condições gerais” referidas em 4 que: “Ficam sempre excluídos das coberturas do presente contrato os acidentes em consequência de: (…) 3 - Hérnias, qualquer que seja a sua natureza; (…) 6 – Os agravamentos de um acidente, em consequência de doença pré-existente, doença ou enfermidade anterior à data daquele (…)”; - al. I) dos Factos Assentes.
10. por carta de 23/05/2008, a Autora informou a Ré que sofreu uma queda em Agosto de 2006 e que, em consequência das lesões resultantes, lhe fora atribuído um grau de invalidez permanente global de 61 %; - al. J) dos Factos Assentes.
11. foram os funcionários da do “Millenium BCP” quem informou o marido da Autora da existência do aludido seguro; - quesito 1º.
12. informando-o ainda que, em caso de morte ou invalidez, havia um capital seguro de euros 300.000,00; - quesito 2º.
13. nunca nenhum funcionário da Ré explicou à Autora ou ao seu marido as condições e exclusões do contrato de seguro; - quesito 3º.
14. em Agosto de 2006, o marido da Autora adquiriu, utilizando o cartão de crédito “American Express”, um bilhete de avião do Porto a Genebra e de Genebra ao Porto; - quesito 4º.
15. em Setembro de 2006, no aeroporto de Genebra a Autora, quando descia umas escadas, sofreu uma queda; - quesito 5º.
16. tendo sofrido agravamento de uma cervicalgia e lombalgia pré-existente; - quesito 6º.
17. a Autora foi internada e sujeita a tratamentos médicos no Hospital “Reine Hortense”, em “Aix-les-bains”; - quesito 7º.
18. onde esteve internada até 18/09/2006; - quesito 8º.
19. a Autora voltou a ser internada no aludido hospital em 11/10/2006; - quesito 9º.
20. onde permaneceu internada até 12/10/2006; - quesito 10º.
21. a Autora foi permaneceu igualmente internada desde 23/10/2006 a 28/10/2006 na “Clinique Herbert” em “Aix-les-bains”; - quesito 11º.
22. tendo aí sido sujeita a uma intervenção cirúrgica; - quesito 12º.
23. a Autora foi operada pelo Dr. Manuel … em 2007; - quesito 13º.
24. a Autora sofreu nova intervenção cirúrgica em 2008 no Hospital de Matosinhos; - quesito 14º.
25. por força da aludida queda, resultou para a autora uma IPP de 15% de acordo com o anexo I do DL 325/2007 e de 10% de acordo com a Tabela Contratual do seguro; - quesito 15º.
26. a Autora está permanentemente dependente do uso de canadianas e da ajuda de terceira pessoa, para isso tendo contribuído a incapacidade supra referida resultante da queda; - quesito 16º.
27. a Autora tem dificuldade em caminhar e subir escadas sem a ajuda de terceiros, para isso tendo contribuído a incapacidade supra referida resultante da queda; - quesito 17º.
28. a lesão apresentada pela Autora consiste no agravamento de uma hérnia discal L4-L5 bilateral; - quesito 21º.
29. tal doença é degenerativa, com agravamento pós-traumático; - quesito 22º.
30. a Autora já tinha uma hérnia discal à data da queda. - quesito 23º.
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Factos Não Provados (com interesse para a decisão da causa):
- por força da queda, a Autora padece de uma incapacidade permanente global de 61%;
- foi a queda (e só esta) que tornou a Autora permanentemente dependente do uso de canadianas e da ajuda de terceira pessoa e lhe trouxe muita dificuldade em caminhar e subir escadas sem a ajuda de terceiros;
- as condições de seguro referidas no ponto 4 sempre foram do conhecimento da Autora e de seu marido;
- tendo o “Guia de Serviços e Benefícios” ali referido lhe sido entregue com o próprio cartão;
- tendo as condições do seguro referido no ponto 4 lhes sido entregues, comunicadas e explicadas.
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Assente que, em virtude da queda que sofreu no aeroporto de Genebra, a Apelante ficou afectada de uma IPP de 15% de acordo com o anexo I do DL 325/2007 e de 10% de acordo com a Tabela Contratual do seguro, importa determinar se essa incapacidade está ou não coberta pelo seguro que foi atribuído ao seu marido no âmbito da subscrição de um cartão de crédito “American Express” junto da agência bancária do Banco “Millenium BCP” de Esposende.
O contrato de seguro é um contrato bilateral, pelo qual a seguradora assume o risco, isto é, a possibilidade de um evento futuro e incerto que cause danos ao segurado e a obrigação de reparar esses danos, obrigando-se o tomador do seguro a pagar o respectivo prémio.
Mas para que a obrigação da seguradora nasça, é indispensável, antes de mais, que esse risco se concretize num evento previsto expressamente no contrato.
O seguro em questão cobria situações de morte ou invalidez permanente que ocorressem em viagem em qualquer meio de transporte público de passageiros ou veículo automóvel alugado, cujos títulos de transporte houvessem sido adquiridos com o cartão “American Express”, sendo o capital seguro de euros 300.000,00 por agregado familiar.
Os riscos cobertos eram a morte e a invalidez permanente, dispondo a condição 2ª das condições gerais referidas, na parte que nos interessa:
3 – No caso de invalidez permanente da pessoa segura (…) fica garantido o pagamento à pessoa segura o montante indemnizatório nos seguintes termos: O montante da indemnização depende do grau de desvalorização constatado clinicamente, o qual poderá consubstanciar-se em: a) invalidez permanente total – neste caso, o montante de indemnização corresponderá ao capital contratado para este efeito, de harmonia com a tabela de desvalorização. b) invalidez permanente parcial – neste caso, o montante de indemnização será igual a uma percentagem do capital contratado de harmonia com a tabela de desvalorização.
No caso, está provado que a Apelante, em consequência da queda que sofreu no aeroporto de Genebra, ficou portadora de uma IPP de 15% de acordo com o anexo I do DL 325/2007 e de 10% de acordo com a tabela contratual do seguro em causa.
Acontece que, de acordo com o disposto na condição 4ª das condições gerais, ficam sempre excluídos das coberturas do contrato os acidentes em consequência de hérnias, qualquer que seja a sua natureza e os agravamentos de um acidente, em consequência de doença pré-existente, doença ou enfermidade anterior à data daquele.
Ora, no processo, provou-se que a lesão apresentada pela Autora consistiu no agravamento de uma hérnia discal L4-L5 bilateral de que já era portadora antes da queda, doença é degenerativa, com agravamento pós-traumático, pelo que se terá de concluir, como na sentença, que o sinistro em causa se não encontra coberto pelo referido seguro.
Mas, objecta a Apelante que, devendo o contrato de seguro de viagem ser qualificado como um contrato de adesão, regido pelo conjunto de normas que rege esse tipo de contratos, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 446/85 de 25/10, tendo-se provado que a seguradora não comunicou à Autora (ou segurado) as exclusões do contrato de seguro, não poderia a Ré nestes autos prevalecer-se da cláusula 4ª de forma a ilibar-se do pagamento à Autora da quantia garantida pelo seguro, que terá de ser considerada nula.
Co0m efeito, dispõe o artigo 5º daquele diploma:
1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
Acontece, porém, que o contrato foi celebrado apenas entre o banco “Millenium – BCP, SA”, como entidade emissora do cartão de crédito “American Express”, que é o tomador do seguro, e a seguradora, ora Apelada, sendo o marido da Apelante e esta absolutamente alheios às declarações negociais sendo, apenas, um entre muitos outros que constituíam o universo dos beneficiários do seguro.
Daí que se não tratou, em rigor, de um contrato de seguro a que o marido da Apelante haja aderido, do qual são apenas partes a seguradora e o banco, pelo que se não podem prevalecer do regime referido – ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2004, em www.dgsi.pt. Ver também o acórdão do mesmo tribunal de 12/10/2010, disponível no mesmo local, em que se defende que é ao tomador que cumpre o dever de informar o segurado do teor das cláusulas contratuais gerais constantes do contrato.
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e se confirma a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
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G. 29.01.2015
Carvalho Guerra
Maria Luísa Duarte
Conceição Bucho