Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
274/12.4TBCBT-A.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
AVALISTA
EXCEPÇÕES
ALTERAÇÃO DA LIVRANÇA NO SEU PREENCHIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – O avalista não pode opor ao portador da livrança os meios de defesa que competem ao avalizado, excepto o pagamento.
II – Logo, não podem os avalistas defender-se com excepções do avalizado atinentes à relação subjacente (preenchimento abusivo, nulidades), salvo o já referido pagamento.
III - Os oponentes, na sua qualidade de avalistas, não podem sequer opor ao exequente, portador da livrança, a excepção de preenchimento abusivo desse título.
IV - Tal acordo respeita unicamente ao portador da livrança e ao seu subscritor.
V - Os aqui avalistas não são sujeitos da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, sendo-o apenas da relação subjacente ao acto cambiário do aval, relação esta constituída entre eles e o avalizado e que só é invocável no confronto de ambos.
VI – É válida a livrança que, por via da mudança do curso legal da moeda, de escudos para euros, nela se apôs, manuscritamente, o valor em euros, ainda que distinto do valor em escudos, devido a lapso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório;

Apelante (s): A… e B… (oponentes);
Apelado (s): C… (exequente);

*****
Nos autos de oposição à execução que o exequente C… instaurou contra os oponentes A… e B…, aqui recorrentes, foi proferida decisão que julgou improcedente a oposição e ordenou o prosseguimento dos autos.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os oponentes o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulam, em súmula, as seguintes conclusões:

1. A douta sentença julgou provado que “G. No dia 25 de março de 2010 o Exequente remeteu aos Executados uma carta, que não foi devolvida, pela qual informou que, face ao incumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Mútuo, foi o mesmo resolvido, tendo o Exequente procedido ao preenchimento da livrança pelo valor de € 329.639,88”.
2. Os Recorrentes impugnaram o envio de cartas de resolução do contrato e a apresentação a pagamento da livrança, cabendo ao Exequente a prova destes factos, ao abrigo do disposto no artigo 343º do Código Civil.
3. Os documentos juntos aos autos a fls. 28, 29 e 30 não contêm qualquer referência ao Exequente nem comprovam que as tais cartas foram enviadas, e muito menos recebidas.
4. As testemunhas, por seu lado, não tiveram nenhum conhecimento directo ou indirecto do envio dessas comunicações, ou de outras, pelo que, por absoluta falta de prova deve este facto ser eliminado do rol dos factos provados.
5. Deu-se como provado que “I. A aludida livrança encontra-se em escudos tendo o Exequente, por lapso, procedido ao seu preenchimento com o valor de € 329.639,88, sem ter procedido à sua conversão em escudos”.
6. Cabia ao Exequente provar esse tal “lapso” enquanto facto.
7. No entanto, nenhum elemento documental escrito, nem nenhum elemento testemunhal (conforme se constata pela audição da gravação digital), atestou as condições em que foi preenchida a livrança, pelo que a existência de um lapso é mera suposição, sem qualquer fundamento.
8. Pelo contrário, preenchimento em escudos foi realizado quer no campo numérico, quer por extenso, revelando que quem preencheu a livrança tinha plena consciência de que o fazia em escudos e não em euros.
9. Termos pelos quais deve ser eliminado o facto I., ou, pelo menos, eliminada a referência ao suposto lapso, por absoluta falta de prova.
10. Sob a letra J., foi dado como provado que “o Exequente, antevendo necessidade de alertar para o lapso, manuscreveu na própria livrança que, de facto, a importância nela mencionada reporta-se ao valor em euros e não em escudos”.
11. No entanto, não existe prova nos autos sobre a autoria das diferentes inscrições na livrança, sendo que existem, para além das assinaturas, dois outros tipos de letra.
12. Uma vez que não tem qualquer suporte probatório, pois nenhum documento a isso se refere, nem nenhuma testemunha a isso aludiu, não devia este facto ser dado por provado.
13. A presente execução assenta numa livrança, entregue em branco pela Executada IRB, em que os Executados são avalistas.
14. Perante uma livrança em branco “é necessária interpelação prévia do avalista quando, sendo o título entregue em branco ao credor (para este lhe apor a data de pagamento e a quantia prometida pagar, em termos deixados ao seu critério), pois só assim o avalista tem conhecimento do montante exacto e da data em que se vence a garantia prestada” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 20/01/2011, relatado pela Juíza Desembargadora Maria Manuel Gomes).
15. Essa interpelação é requisito de exequibilidade das livranças contra os avalistas, já que estes não conhecem os termos do pacto de preenchimento, nem os desenvolvimentos da relação subjacente.
16. Essa interpelação é uma declaração negocial receptícia (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-02-2011, relatado pelo Juiz Desembargador Soares de Oliveira), que se realiza em três momentos: exteriorização, expedição e recepção.
17. A declaração receptícia (recipienda) é eficaz, de acordo com o disposto no artigo 224º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil, quando chega ao poder do destinatário (teoria da recepção) ou é dele conhecida (teoria do conhecimento); quando seja remetida e só por culpa do destinatário não tenha sido oportunamente recebida, conforme dispõe o artigo 224º, nº 2 (teoria da expedição).
18. O incumprimento da obrigação de interpelação prévia dos avalistas obriga à absolvição dos Recorrentes da instância executiva por inexistência de título executivo.
19. Por outro lado, o modo como a livrança foi preenchida, torna-a inválida.
20. O contrato de mútuo autorizava o Exequente a substituir as obrigações da D..., mediante novação, por uma obrigação cambiária constante de livrança em branco.
21. A novação cria uma nova obrigação, com efeito liberatório (artigos 857º e seguintes do Código Civil), extinguindo as garantias que asseguravam o seu cumprimento (artigo 861º do Código Civil), e afastando os meios de defesa oponíveis à obrigação antiga, salvo estipulação em contrário (artigo 862º do Código Civil).
22. A novação da dívida extinguiu a obrigação que o extracto de conta poderia comprovar, permanecendo apenas a obrigação cambiária, nos precisos termos que estão definidos no título de crédito, os quais são da inteira responsabilidade do Exequente.
23. Deste modo, os Recorrentes só poderão ser responsabilizados pelo aval que concederam à obrigação cambiária, e não pelo contrato de mútuo.
24. A livrança destinava-se a ser preenchida com os valores em escudos, o que sucedeu da seguinte forma: “32 963 988$” e “trezentos e vinte e nove mil seiscentos trinta e nove escudos e oitenta e oito centavos”, quantia diversa da expressa em algarismos.
25. Todavia, a livrança contém mais duas menções ao seu suposto valor, as quais foram apostas fora dos espaços destinados a esse efeito e feitas por outro punho que não o da pessoa que preencheu primeiramente a livrança.
26. Descontada a discrepância entre a quantia em numerário e a quantia por extenso, resolúvel nos termos do artigo 6º da LULL, a livrança continha todos os elementos legalmente exigidos para a sua perfeição, antes da redacção dos valores em euros.
27. Alguém, nunca identificado no processo, mas certamente distinto do primitivo preenchedor, inscreveu duas outras quantias na livrança, em locais que não são destinados a essa função, sem fazer qualquer menção a um anterior lapso de preenchimento, supostamente corrigido pelas novas inscrições.
28. Tal conduta afectou a confiança e da segurança jurídica em que os títulos de crédito se baseiam e procuram assegurar, para além de violar o disposto na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
29. O artigo 76º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças concretiza uma das características fundamentais dos títulos de crédito: o formalismo, sem o qual se gera invalidez.
30. Paralelamente, o artigo 77º da LULL, prescreve que a livrança em branco é válida mas não eficaz, pois ainda se exige a apresentação da mesma a pagamento, preenchida de harmonia com o acordo de preenchimento.
31. O direito incorporado no título é definido nos precisos termos que dele constam (princípio da literalidade).
32. Citando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, relatado pelo Juiz Desembargador Pires Condesso, em 31/01/2002: “os títulos de crédito são formais e rodeados do princípio da literalidade.
33. As letras (tal como as livranças, diga-se) estão imbuídas do princípio da solenidade segundo a qual, para ser válida, tem de assumir uma determinada forma e revestir-se das menções que a lei impõe, sendo, pois, um título solene ou formal (G Dias na obra citada-1/269).
34. Essas formalidades estendem-se, a nosso ver, não só aos requisitos essenciais da letra indicados no artº 1° da LULL mas também a todas as operações e vicissitudes que a possam acompanhar e a que a mesma LULL imponha determinado formalismo, sendo formalidades ad substantiam (CJ 2/5/1130 e 7/3/228) sempre que a mesma LULL não disponha, de forma clara, sobre o modo de entender a falta de algum formalismo, como o faz no seu artº 2°”.
35. Consequentemente, releva, então, o que foi exarado, ou seja, o que consta da livrança, e não o que efectivamente fora estipulado ou já existia entre as partes.
36. Por violar o princípio da literalidade é inválida a livrança dada como título à presente execução.
37. Ainda que a livrança fosse válida, o que não se aceita, mas se toma agora como base de raciocínio, apenas poderia ter sido executada pelo menor dos valores dela constantes, a saber: “trezentos e vinte e nove mil seiscentos trinta e nove escudos e oitenta oito centavos” (1.624,23€), em cumprimento da segunda parte do artigo 6º da LULL, devendo os executados ser absolvidos do remanescente.
Termos pelos quais deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida.

Houve contra-alegações, pugnando-se pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 685ºB, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).

As questões suscitadas pelos recorrentes podem sintetizar-se nos seguintes itens:

a) Erro na apreciação da matéria de facto;
b) Inexigibilidade da obrigação exequenda por inexistência e invalidade do título executivo (livrança);

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade considerada provada na sentença é a seguinte:

A. Por Contrato de Mútuo celebrado no dia 25 de maio de 2001, em Amarante, a Exequente C…, no exercício da sua actividade de instituição de crédito, emprestou à Executada D…, Lda. (com a actual denominação de D…, Lda.) a quantia de PTE 250.000.000,00 (contravalor de € 1.246.994,74), da qual se confessou devedora.
B. Nos termos da Cláusula 10.ª do aludido Contrato, a Exequente e a sociedade Executada acordaram expressamente que, em caso de incumprimento, aquela poderia substituir as obrigações da Executada mediante novação, por uma obrigação cambiária constante de uma livrança em branco a qual, no ato da celebração do Contrato, foi subscrita pela Executada e avalizada pelos Executados A… e B… e entregue à Exequente.
C. As partes acordaram (cláusula 10.ª, n.º 2 do contrato) que a referida livrança seria preenchida quando a Exequente assim o entendesse, com indicação do montante correspondente ao valor igual ao do saldo devedor do Contrato, composto por capital, juros e demais encargos, apurados na data do vencimento do contrato, acrescido de todos e quaisquer encargos de natureza fiscal.
D. A Executada, apesar de interpelada pela Exequente, não procedeu ao pagamento das prestações vencidas desde 02.09.2008.
E. À data de instauração da execução, o capital em dívida ascendia a € 284.839,57.
F. Face ao incumprimento do referido Contrato, a Exequente procedeu ao preenchimento da aludida livrança.
G. No dia 25 de março de 2010 a Exequente remeteu aos Executados uma carta, que não foi devolvida, pela qual informou que, face ao incumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Mútuo, foi o mesmo resolvido, tendo a Exequente procedido ao preenchimento da livrança pelo valor de € 329.639,88.
H. O valor indicado na livrança respeita a capital em dívida no montante de € 284.839,57 acrescido de juros vencidos contados desde 02.09.2008 até 24.04.2010, no montante de € 31.502,82, a cláusula penal vencida à taxa de 2%, contada desde 05.09.2008 até 24.04.2010, no montante de € 9.114,87 e demais despesas, perfazendo a quantia de € 329.639,88.
I. A aludida livrança encontra-se em escudos tendo a Exequente, por lapso, procedido ao seu preenchimento com o valor de € 329.639,88, sem ter procedido à sua conversão em escudos.
J. A Exequente, antevendo necessidade de alertar para o lapso, manuscreveu na própria livrança que, de facto, a importância nela mencionada reporta-se ao valor em euros e não em escudos.
K. A referida livrança, apesar de vencida no dia 24.04.2010 e dos avais pessoais nela prestados pelos Executados A… e B…, não foi paga nem então nem posteriormente.
L. O capital em dívida monta, à data de entrada do requerimento executivo (29.05.2012), a € 329.639,88, ao qual acrescem juros vencidos contados desde 24.04.2010 até à data de entrada do requerimento executivo, no valor de € 55.831,07, às taxas de 8% e de 8,25% e imposto do selo no valor de € 2.233,25, o que perfaz o montante de € 387.704,20.
M. A presente execução tem como título executivo a já referida livrança.
N. O local da livrança destinado à importância (em escudos), foi preenchido pela Exequente da seguinte forma: 32 963 988$.
O. E no espaço destinado à menção da quantia por extenso, pode ler-se: trezentos e vinte e nove mil seiscentos trinta e nove escudos e oitenta oito centavos.
P. A livrança contém mais duas menções ao seu suposto valor, apostas fora dos espaços destinados a esse efeito e feitas por outro punho que não o da pessoa que preencheu primeiramente a livrança:
- Por debaixo do espaço destinado ao valor, onde consta a menção operação bancária de empréstimo, pode ler-se, entre parêntesis: (EUROS: 329,639,88€).
- Abaixo da assinatura dos subscritores e antes do espaço destinado ao nome e morada dos subscritores pode ler-se, também entre parêntesis: (VALOR: TREZENTOS E VINTE E NOVE MIL, SEISCENTOS E TRINTA E NOVE EUROS E OITENTA E OITO CÊNTIMOS).


*****

2. De direito;

a) Erro na apreciação da matéria de facto;

A primeira questão que os recorrentes suscitam prende-se com a impugnação da matéria de facto provada e não provada, no sentido de que dever-se-ia ter respondido negativamente à factualidade constante das alíneas G), I) e J) supra.
Põem, assim, em causa os factos provados insertos nas ditas alíneas com o seguinte teor:
«G. No dia 25 de março de 2010 a Exequente remeteu aos Executados uma carta, que não foi devolvida, pela qual informou que, face ao incumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Mútuo, foi o mesmo resolvido, tendo a Exequente procedido ao preenchimento da livrança pelo valor de € 329.639,88.
I. A aludida livrança encontra-se em escudos tendo a Exequente, por lapso, procedido ao seu preenchimento com o valor de € 329.639,88, sem ter procedido à sua conversão em escudos.
J. A Exequente, antevendo necessidade de alertar para o lapso, manuscreveu na própria livrança que, de facto, a importância nela mencionada reporta-se ao valor em euros e não em escudos».

Para tal esgrimem que, quer a prova testemunhal, quer a prova documental (livrança e documentos de fls. 28, 29 e 30) junta aos autos apontam no sentido de não demonstração dessa materialidade fáctica provada.

Apreciando.

Em matéria de valoração das provas, nomeadamente do depoimento, dos documentos em questão e dos demais elementos probatórios juntos aos autos, designadamente contrato de mútuo, extractos bancários e notas de débito, o tribunal a quo aprecia-os livremente, por força do disposto no artº 655º, nº1, do CPC, salvo o estatuído no nº 2, do mesmo preceito.
É certo que, no que respeita à questão da alteração da matéria de facto, face ao invocado erro na avaliação da prova testemunhal e documental, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo citado art. 712º, do CPC, e, enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam[1], mas, também, avaliar e valorar (de acordo com o aludido princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto[2].
Mas importa, no entanto, não olvidar que, mesmo havendo gravação sonora dos meios de prova produzidos oralmente, o Tribunal de recurso está cerceado de toda a panóplia de elementos probatórios ao dispor do Tribunal a quo que enriquecem a reconstituição dos factos, como seja, desde logo, a nível testemunhal, a espontaneidade do testemunho, a linguagem gestual, os silêncios ou hesitações, enfim, a percepção do imediatismo desse depoimento.

No que respeita à matéria fáctica vertida na alínea G) supra, contrapõem os recorrentes que impugnaram o envio das cartas de resolução do contrato e de apresentação a pagamento da livrança, sendo que os documentos juntos a fls. 28, 29 e 30 dos autos não contêm referência ao exequente nem comprovam que tais cartas foram enviadas e recebidas, além de que as testemunhas não tiveram conhecimento directo ou indirecto do envio dessas missivas.
Neste ponto, em sede de motivação da matéria de facto provada e não provada, não deixou o tribunal recorrido de analisar os aludidos documentos e de escrutinar o conteúdo do depoimento das testemunhas Fernando …, Ricardo … e António …, funcionários bancários, mormente na perspectiva do invocado empréstimo destinado à construção, ao preenchimento da liquidação da livrança em causa nos autos e associada àquele contrato, assim como operou um exame criterioso de toda a prova documental, seja a livrança em questão, seja a demais documentação trazida aos autos, como se alcança do seguinte, a fls. 83 e 84:
“ (…) o Tribunal atentou, em primeira linha, no teor dos documentos juntos a fls. 14 e seguintes dos autos principais de execução, concretamente, extrato de movimentos da conta associada ao contrato em causa (fls. 14 a 27), as missivas remetidas a cada um dos executados (fls. 28, 29 e 30) e as notas de débito tendo em vista a novação da dívida (fls. 31 e 34). O Tribunal conjugou o resultado da análise desses documentos com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, analisados à luz das regras de experiência comum. Tais testemunhas, funcionários da Banco Exequente, as únicas inquiridas, revelaram conhecimento directo acerca dos factos que relataram em virtude dos contactos pessoais que, no exercício das suas funções, tiveram com o executado A…, legal representante da sociedade executada. Por estas testemunhas foi explicitado que a dívida exequenda se prende com um contrato de mútuo de fomento à construção, que foi, em parte, cumprido (até porque a libertação dos valores mutuados ia sendo feita à medida que a obra se ia desenvolvendo). Confirmaram, porém, a situação de incumprimento por parte da sociedade Executada D…, relataram as diligências posteriores com vista à regularização da situação e as malogradas conversações, sempre encetadas junto do Executado A…, legal representante da D….
Referiram que as cartas de dívida juntas aos autos são sempre enviadas, central e automaticamente, para a morada que consta do contrato, cuja alteração nunca foi solicitada pelos clientes, os aqui Executados.
Mais confirmaram, grosso modo, os critérios e valores que conduziram ao montante constante da livrança apresentada como título executivo (sublinhado nosso).
Referiram que nunca o Executado A… pôs em causa a dívida exequenda ou a sua responsabilidade pessoal pela mesma, em virtude dos avais prestados.
Esclareceram que não era usual a Executada B… estar presente nas reuniões em que procuravam soluções para a situação de incumprimento, mas que a assinatura do contrato e da livrança dada à execução foi feita presencialmente e após explicitação do seu conteúdo e alcance.
Estes depoimentos revelaram-se inteiramente credíveis, uma vez que foram prestados de forma espontânea e assertiva, revelando-se coerentes entre si, bem como relativamente aos elementos documentais juntos aos autos, já referidos”.

Ora, concorda-se com este exame crítico da prova.
Senão vejamos:
A argumentação dos recorrentes escuda-se na alegação genérica de que impugnaram o envio das cartas e de que não está provado o seu recebimento, desde logo porque inexiste depoimento directo das testemunhas sobre tal, havendo absoluta falta de prova.
Temos de que convir que, contrariamente ao expendido, a mencionada testemunha António … depôs, de modo objectivo, pormenorizado e credível, sobre a emissão dessas cartas, explicando que constituíam um procedimento normal inerente à situação de incumprimento de tal tipo de contrato, reconhecendo as cartas enviadas, o subscritor das mesmas e confirmando que as mesmas são enviadas centralmente, numa fase de pré-contencioso, tendo em vista a recuperação do crédito pela instituição bancária, que tais cartas nunca foram devolvidas ao remetente, sendo remetidas para a morada constante do contrato, cuja alteração nunca foi solicitada pelos executados.
De notar ainda que estamos perante três cartas emitidas e enviadas e que o seu envio aos executados, sem que tenham sido devolvidas, ocorre no âmbito de todo um contexto de diligências de regularização da situação de incumprimento e de conversações encetadas junto do executado A…, legal representante da D….
Ou seja, atentas as regras de experiência comum, não deixou este e a sua mulher, co-avalista, de tomar conhecimento do conteúdo de tais comunicações.

No que concerne ao factualismo provado e constante das alíneas I) e J), argumentam os apelantes que não se provou, nem o dito lapso no preenchimento da livrança, nem a autoria das diferentes inscrições aposta em tal livrança.

Porém, as testemunhas Fernando … e Ricardo …, ambos gerentes do Balcão (este último responsável pelo balcão de Amarante desde Maio de 2011) e também o mencionado António … (que acompanhou desde 2005 até 2011 o financiamento em questão), esclareceram todo o circunstancialismo inerente ao aludido financiamento à construção, celebrado em 25.05.2001, no valor então de Esc: 250.000.000$00, (e seu incumprimento, com atrasos de pagamento) e subjacente à subscrição de uma livrança em branco em causa nos autos, livrança essa com a menção do sinal de cifrão, moeda a qual se encontrava em circulação ainda à data de emissão e subscrição da mesma.
Todas as testemunhas confirmaram, de forma clara, precisa e verosímil, o valor da dívida, valor este que corresponde ao valor do preenchimento da livrança: a testemunha Ricardo … confirmou o valor da dívida, pelo seu incumprimento a partir de 2009 e que numa reunião, em Julho de 2007, de que fez parte, o A…, este não pôs em causa o valor da dívida, estando os recorrentes conscientes desse valor, pois tinham assumido pessoalmente as responsabilidades pela dívida/financiamento da sociedade comercial de que eram sócios-gerentes.
Já a testemunha António … reiterou que, nas várias reuniões tidas com o assinalado A…, enquanto representante da sociedade ‘D…’ e avalista da livrança dada à execução, este sempre lhe disse que assumiriam pessoalmente (incluída o seu cônjuge) o valor da dívida (‘ele sempre me disse que assumiria pessoalmente esse valor; nunca nos deixaria ficar mal’).
Assim, os recorrentes sempre tiveram consciência do valor da dívida e que assumiriam o dito valor, na qualidade de avalistas, conscientes das responsabilidades a que estariam sujeitos, sendo certo que os avalistas em causa são sócios gerentes da sociedade subscritora do título.
Por todas as razões acima aduzidas, inexiste erro na apreciação da matéria de facto, provada e não provada, plasmada na sentença, mantendo-se inalterada esta.

b) Inexigibilidade da obrigação exequenda por inexistência e invalidade do título executivo (livrança);

Os recorrentes aludem a erro de julgamento, quanto à questão de direito, porque a referida livrança constitui um título executivo inexistente e inválido.
Segundo eles, inexistente porque não foi cumprida a obrigação de interpelação prévia dos avalistas.
Inválido porque não se mostrar definido e preciso o seu valor.
Carecem de razão.
A livrança em causa foi subscrita pela sociedade devedora e avalizada pelos recorrentes.
Desde logo, cabe dizer que o avalista não pode opor ao portador da livrança os meios de defesa que competem ao avalizado, excepto o pagamento [3].
Em suma, não podem os avalistas defender-se com excepções do avalizado atinentes à relação subjacente (preenchimento abusivo, nulidades), salvo o já referido pagamento.
Daí que os oponentes, na sua qualidade de avalistas, não possam sequer opor ao exequente, portador da livrança, a excepção de preenchimento abusivo desse título.
Tal acordo respeita unicamente ao portador da livrança e ao seu subscritor.
Os aqui avalistas não são sujeitos da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, sendo-o apenas da relação subjacente ao acto cambiário do aval, relação esta constituída entre eles e o avalizado e que só é invocável no confronto de ambos [4].
A latere, dir-se-á ainda que o exequente logrou provar que houve acordo de preenchimento da livrança em branco e disso deu conhecimento aos avalistas – matéria provada nas alíneas B), C), F) e G) supra.
Não ficou demonstrado sequer que houve abuso de preenchimento.
Consequentemente, estamos perante título que existe e é exequível.

Argúem também os apelantes que o título é inválido por violação do princípio da literalidade, uma vez que o valor reclamado de € 329.639,88 não emerge formalmente da livrança dada à execução, mas sim do que foi estipulado por força do contrato de mútuo, entre as partes, sendo que a aludida livrança em branco constituiu negocialmente uma novação, substituindo a anterior dívida.
Também neste ponto não acompanhamos tal alegação.
Nesta problemática, importa ter presente que se apurou o seguinte:
“ C. As partes acordaram (cláusula 10.ª, n.º 2 do contrato) que a referida livrança seria preenchida quando a Exequente assim o entendesse, com indicação do montante correspondente ao valor igual ao do saldo devedor do Contrato, composto por capital, juros e demais encargos, apurados na data do vencimento do contrato, acrescido de todos e quaisquer encargos de natureza fiscal.
D. A Executada, apesar de interpelada pela Exequente, não procedeu ao pagamento das prestações vencidas desde 02.09.2008.
E. À data de instauração da execução, o capital em dívida ascendia a € 284.839,57.
F. Face ao incumprimento do referido Contrato, a Exequente procedeu ao preenchimento da aludida livrança.
G. No dia 25 de março de 2010 a Exequente remeteu aos Executados uma carta, que não foi devolvida, pela qual informou que, face ao incumprimento das obrigações emergentes do Contrato de Mútuo, foi o mesmo resolvido, tendo a Exequente procedido ao preenchimento da livrança pelo valor de € 329.639,88.
H. O valor indicado na livrança respeita a capital em dívida no montante de € 284.839,57 acrescido de juros vencidos contados desde 02.09.2008 até 24.04.2010, no montante de € 31.502,82, a cláusula penal vencida à taxa de 2%, contada desde 05.09.2008 até 24.04.2010, no montante de € 9.114,87 e demais despesas, perfazendo a quantia de € 329.639,88.
I. A aludida livrança encontra-se em escudos tendo a Exequente, por lapso, procedido ao seu preenchimento com o valor de € 329.639,88, sem ter procedido à sua conversão em escudos.
J. A Exequente, antevendo necessidade de alertar para o lapso, manuscreveu na própria livrança que, de facto, a importância nela mencionada reporta-se ao valor em euros e não em escudos.
K. A referida livrança, apesar de vencida no dia 24.04.2010 e dos avais pessoais nela prestados pelos Executados A… e B…, não foi paga nem então nem posteriormente.
L. O capital em dívida monta, à data de entrada do requerimento executivo (29.05.2012), a € 329.639,88, ao qual acrescem juros vencidos contados desde 24.04.2010 até à data de entrada do requerimento executivo, no valor de € 55.831,07, às taxas de 8% e de 8,25% e imposto do selo no valor de € 2.233,25, o que perfaz o montante de € 387.704,20.
M. A presente execução tem como título executivo a já referida livrança.
N. O local da livrança destinado à importância (em escudos), foi preenchido pela Exequente da seguinte forma: 32 963 988$.
O. E no espaço destinado à menção da quantia por extenso, pode ler-se: trezentos e vinte e nove mil seiscentos trinta e nove escudos e oitenta oito centavos.
P. A livrança contém mais duas menções ao seu suposto valor, apostas fora dos espaços destinados a esse efeito e feitas por outro punho que não o da pessoa que preencheu primeiramente a livrança:
- Por debaixo do espaço destinado ao valor, onde consta a menção operação bancária de empréstimo, pode ler-se, entre parêntesis: (EUROS: 329,639,88€).
- Abaixo da assinatura dos subscritores e antes do espaço destinado ao nome e morada dos subscritores pode ler-se, também entre parêntesis: (VALOR: TREZENTOS E VINTE E NOVE MIL, SEISCENTOS E TRINTA E NOVE EUROS E OITENTA E OITO CÊNTIMOS)”.
Não houve, portanto, na livrança em causa, enquanto promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada, omissão do valor a pagar.
E dada a apontada discrepância ou incongruência entre o valor em escudos ou em euros, tal é susceptível de anular a livrança?
Entende-se que não.
Neste particular acolhe-se o entendimento plasmada na sentença de que a apurada incongruência entre escudos e euros resultam da mudança entre o momento da assinatura da livrança (então era o escudo a moeda com curso legal) e o momento do seu preenchimento (aqui era-o o euro), não tornando imperceptível o seu teor.
Ao invés, emana do próprio título essa necessidade de conversão.
No confronto entre a valor em escudos ou em euros a emergir da dita livrança, a situação também não é enquadrável na disposição legal inserta no artº 6º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) porque inexiste discrepância nos algarismos dela constantes referentes ao valor a titular, no binómio escudos-euros.
Pelo contrário, a discrepância nela quanto ao valor em escudos, entre a sua referência em algarismos e por extenso - o que não se evidencia no valor nela aposto quanto à quantia em euros - tornam-na literalmente perceptível, aquando do momento da sua apresentação a pagamento, de que a quantia relevante nela determinada é a que emerge do valor em euros.
E como se refere na decisão recorrida, face à data de preenchimento da livrança, jamais o seu preenchimento poderia ser efectuado em escudos, visto que esta não era a moeda com curso legal no nosso país.
Importa ainda não descurar que ficou provado que a exequente alertou para o lapso, manuscrevendo na própria livrança que, de facto, a importância nela mencionada se reporta ao valor em euros e não em escudos [alínea J) dos factos provados] e que o seu preenchimento se realizou de acordo com o pacto de preenchimento – veja-se o teor provado nas alíneas B), C), E), H).
Não se descortina, pois, a pretendida invalidade do título.
Também, perante o que acima se deixou expendido, não sendo aplicável o preceituado no artº 6º da LULL, não é de aceitar a validade da livrança pelo valor de € 1.624,23, correspondente a Esc: 329.629$88.

Destarte, não procede a apelação.

Sintetizando:
I – O avalista não pode opor ao portador da livrança os meios de defesa que competem ao avalizado, excepto o pagamento.
II – Logo, não podem os avalistas defender-se com excepções do avalizado atinentes à relação subjacente (preenchimento abusivo, nulidades), salvo o já referido pagamento.
III - Os oponentes, na sua qualidade de avalistas, não podem sequer opor ao exequente, portador da livrança, a excepção de preenchimento abusivo desse título.
IV - Tal acordo respeita unicamente ao portador da livrança e ao seu subscritor.
V - Os aqui avalistas não são sujeitos da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, sendo-o apenas da relação subjacente ao acto cambiário do aval, relação esta constituída entre eles e o avalizado e que só é invocável no confronto de ambos.
VI – É válida a livrança que, por via da mudança do curso legal da moeda, de escudos para euros, nela se apôs, manuscritamente, o valor em euros, ainda que distinto do valor em escudos, devido a lapso.



DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acorda-se nesta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o recurso de Apelação interposto pelos oponentes, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Guimarães, 5 de Dezembro de 2013
António Sobrinho
Isabel Rocha
Moisés Silva
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[1] Nesta concepção, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório.
[2] A jurisprudência tem vindo a evoluir no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., entre outros, o Acórdão do STJ de 16.12.2010, proc. 2401/06.1TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt).
[3] Neste sentido, vide Acórdão da RL de 09.07.1999 CJ, T.4, pág. 146.
[4] Neste sentido, vide Acórdão da RL de 21.09.2006, proc. 5455/2006-8, in dgsi.pt.