Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4677/15.4T8GMR-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: MANDATO
PROCURAÇÃO
TEMAS DA PROVA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO AUTÓNOMO
ILEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A distinção entre o mandato e a procuração resulta de aquele ser um contrato, ao passo que esta é um negócio jurídico unilateral autónomo;

2) O mandato impõe a obrigação de praticar atos jurídicos por conta de outrem enquanto que a procuração confere o poder de celebrar em nome de outrem.
Decisão Texto Integral:
Decisão Sumária

I. RELATÓRIO

A) António veio intentar contra Joaquim e esposa Manuela, ação com processo comum onde conclui entendendo dever a ação ser julgada totalmente procedente, por provada e, em consequência, ser declarada a anulabilidade do negócio jurídico em causa – compra e venda do prédio objeto da escritura pública celebrado em 20 de maio de 2015 – e concomitantemente, a anulabilidade do registo de propriedade do prédio então efetuado a favor dos réus, dado que estes, dolosamente através do recurso a um artifício/embuste, induziram o autor em erro, do qual resultou a falsidade da declaração exarada na escritura pública no que concerne ao recebimento do preço do prédio objeto da compra e venda, declaração que jamais ocorreria se o autor não tivesse sido, dolosamente, induzido e mantido em erro pelo réu marido ou, serem os réus condenados a pagar ao autor a quantia de €55.000,00, acrescida de juros à taxa comercial, contados a partir da data de entrada em juízo da presente ação até integral pagamento de tal quantia, despesas judiciais, procuradoria e tudo o que mais vier a ser apurado.
Alega para tanto, em síntese, que o autor é titular de duas procurações outorgadas por Maria, uma das quais confere poderes para, em seu nome e representação, vender pelo preço e condições que entender convenientes um prédio urbano que identifica e a outra lhe atribui poderes para propor, em qualquer instância judicial, qualquer tipo de ação ou requerer procedimentos cautelares ou outros, tudo no interesse da execução perfeita do mandato conferido no âmbito da procuração aludida.
Refere ainda que munido da primeira das procurações referidas outorgou escritura de compra e venda com os ora réus, tendo sido declarado na escritura que o autor já tinha recebido o remanescente do preço - €55.000,00 – quando é certo que tal não aconteceu, só tendo a escritura sido realizada porque o réu marido afirmou que o pagamento seria efetuado imediatamente a seguir à outorga da escritura, o que o réu não fez, recusando-se os réus a anular ou retificar a escritura, quanto à declaração do recebimento do preço.

B) Tendo prosseguido os autos, foi proferido despacho saneador onde se refere o seguinte:

“O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e não enferma de nulidade que totalmente o invalide.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias.
***
Os réus invocaram a ilegitimidade do autor alegando que atento o pedido e a causa de pedir a ação deveria ter sido intentada em nome da representada Maria e não em nome do procurador pois este age no interesse e em representação daquela, sendo essa a parte da causa.
O autor exerceu o contraditório alegando que as procurações lhe conferem poderes especiais para em seu próprio nome propor qualquer tipo de ação, tudo no interesse da execução perfeita do mandato.

Cumpre decidir.

A legitimidade ativa afere-se pelo interesse direto da parte em demandar o qual, segundo o artigo 30º do Código de Processo Civil, se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação.
Salvo disposição legal específica, na generalidade dos casos o pressuposto da legitimidade processual, passiva ou ativa, é atualmente analisado de acordo com a tese defendida em tempos pelo Prof. Barbosa de Magalhães, já que o legislador elegeu no nº 3 da norma citada, como parâmetro relevante, a titularidade da relação controvertida segundo a perspetiva apresentada pelo demandante.
Como se defende no Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de fevereiro 2011 justificando esta solução "o pensamento da lei foi, nitidamente, o de desvalorizar a legitimidade enquanto pressuposto processual com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa". Citando Miguel Teixeira de Sousa conclui que sendo o objeto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respetiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objeto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será o pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte; nessa medida, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em Juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.
A representação consiste na realização de um negócio, em nome de outrem, para que os seus efeitos se produzam na esfera jurídica deste. Essa intenção de realizar o negócio no interesse de terceiro revela-se exteriormente com uma declaração da parte de quem atua no sentido de que o faz em nome de outrem, sendo nesse contexto que emite a declaração negocial e recebe a da contraparte. Nessa medida, defende-se que se trata de uma substituição na atividade jurídica em nome de outrem.

Em conformidade com o disposto pelo artigo 258º do Código Civil são requisitos imprescindíveis da existência da representação:

- o representante, declara, em menor ou maior escala, uma vontade própria;
- conclui o negócio, em nome do representado", para que a ligação ao dono do negócio seja reconhecível;
- o ato realizado tem de caber dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante;
- o ato não vale cm relação ao representante, pois não é parte negocial, mas ao representado".
Uma das fontes do poder de representação, a par da celebração do contrato de mandato, é na procuração, definida pelo artigo 262º do Código Civil como o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.

Por contraposição ao contrato de mandato que é um negócio jurídico bilateral, que nem sempre envolve poderes de representação e se dirige à prática de atos jurídicos, a procuração tem sido encarada como um ato unilateral que visa realização de negócios jurídicos em nome do representado, cuja produção de efeitos se produz sempre na esfera jurídica deste.

Como decorre da aplicação remissiva dos artigos 258º e seguintes, o mandato com representação implica:

a) a realização do negócio jurídico pelo representante em nome do representado;
b) a sua celebração com respeito pelos poderes conferidos, que têm inerentes a vontade do representado, sob pena de sujeição ao regime previsto no artigo 269º;
c) a produção dos efeitos do negócio na esfera jurídica do representado.

Na procuração outorgada em 2 de maio de 2007, Maria declarou constituir o autor seu procurador conferindo-lhe poderes, entre os quais, para vender e prometer vender, pelo preço c condições que entendesse convenientes, o prédio urbano composto por rés-do-chão e primeiro andar, sito no lugar da …, freguesia de …, concelho de Guimarães, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o na 111 e inscrito na matriz sob o artigo 222, podendo receber e dar quitação; esta procuração não confere quaisquer poderes relacionados com a propositura de ações.

Por sua vez, através da procuração outorgada em 8 de junho de 2015, Maria declarou constituir o autor seu procurador conferindo-lhe os mais amplos poderes gerais e especiais para, no âmbito e consequências dos negócios jurídicos realizados ao abrigo dos poderes outorgados através da procuração anteriormente aludida "propor em qualquer instância judicial qualquer tipo de ação ou requerer procedimentos cautelares ou outros, tudo no interesse da execução perfeita do mandato conferido" e mais conferindo "poderes ao seu representante para outorgar mandato forense no âmbito da procuração que detém, conferindo ao mandatário os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, incluindo os de receber por cheque custas de parte, notificações, citações, confessar, transigir, celebrar qualquer tipo de acordos e desistir em qualquer ação judicial em que seja parte".

Contrariamente ao alegado pelo demandante, em nenhum momento a sua representada conferiu poderes para propor ações em seu próprio nome. Aliás, se o fizesse, tal ato não seria passível de produzir efeitos em termos de lhe atribuir legitimidade ativa, na medida em que estaria a contrariar o instituto da representação já que o negócio jurídico cuja anulação pretende foi praticado em nome da representada e produziu efeitos na esfera jurídica desta.

Com efeito, por escritura pública celebrada em 20 de maio de 2015 no Cartório da Notária Drª Ana, sito na Praceta …, o aqui autor, na qualidade de procurador de Maria, declarou "pela presente escritura a sua representada vende ao segundo outorgante pelo preço de €117.000, já recebido", o prédio urbano anteriormente identificado.

Se é certo que o artigo 1178º nº 2 do Código Civil prevê que o mandatário a quem hajam sido poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada, deve entender-se que este último segmento poderá permitir que o mandatário atue em seu próprio nome ao praticar determinados atos jurídicos, mas não quando pretenda extrair consequências de atos jurídicos que anteriormente praticou em nome do mandante e que já produziram efeitos na esfera jurídica deste.

Assim, importa concluir que o autor não tem legitimidade para em nome próprio pedir ao Tribunal que declare a anulabilidade do negócio que celebrou em nome da sua representada por dolo dos réus.

A procuração datada de 8 de julho de 2015 apenas possibilita que o autor escolha e constitua advogado que patrocine a sua representada e, em nome desta, intente a ação tendo em vista a perfeita execução do mandato que lhe conferiu para a respetiva venda, designadamente tendente à declaração de anulabilidade por forma a que, por via da eficácia retroativa da declaração do vício pelo Tribunal, seja destruído o efeito translativo das declarações que emitiu e que o imóvel regresse ao património daquela.

Pelo exposto, nos termos dos artigos 278º nº 1 alínea d), 576º nº 2, 577º alínea e), 595º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil, na presente ação movida por António, o Tribunal absolve da instância os réus Joaquim e mulher Manuela…”
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C) Inconformado com esta decisão, veio o autor António interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação com subida em separado e efeito devolutivo (fls. 37).
Nas suas alegações o apelante formula as seguintes conclusões:

a) Deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consonância, ser revogada a decisão recorrida no sentido de atribuir legitimidade ao autor para propor a ação sub judice, julgando nula e sem qualquer efeito a decisão que absolve os réus da instância, prosseguindo a ação com vista a apreciar o mérito da causa em função da relação controvertida tal como foi configurada pelo autor em sede de P. 1.
b) Deve ser revogada a decisão no que concerne à matéria do tema da prova descrito em A subjacente ao pedido reconvencional, dado que tal matéria revela-se controversa uma vez que foi colocada em crise em sede de P. I., devendo, por isso, ser considerada como controvertida.
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Pelos réus e apelados Joaquim e mulher Manuela foi apresentada resposta onde concluem entendendo deverem improceder todas as conclusões do apelante, pelo que a douta sentença deve ser confirmada.
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D) As questões a decidir no recurso são as de saber:

1) Se é admissível recurso autónomo do despacho que enuncia os temas de prova;
2) Se deverá ser alterada decisão que julgou o autor parte ilegítima.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) A primeira questão a resolver consiste em saber se é admissível recurso autónomo do despacho que enuncia os temas de prova.
A este propósito, refere-se no artigo 596º NCPC que as partes podem reclamar do despacho que identifica o objeto do litígio e enuncia os temas de prova e, do despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final, motivo pelo qual, não sendo possível recorrer autonomamente daquele despacho, não será conhecida, neste recurso a questão suscitada.

A segunda questão a decidir no recurso resume-se a saber se se o autor é, ou não, parte ilegítima.
Conforme se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 25/05/2017, na apelação nº 750/15.7T8CHV-A.G1, relatado pela Desembargadora Maria dos Anjos Nogueira e subscrito pelo ora relator, “o mandato, como nos diz o art. 1157º do C.C., é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra.
O mandato pode ser com representação e sem representação.
No mandato com representação, o mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada – art. 1178º, nº 2, do diploma citado.

No mandato sem representação, o mandatário, não obstante intervir por conta e no interesse do mandante, não aparece revestido da qualidade de seu representante.

Age em nome próprio, não em nome do mandante, pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra.

O mandato judicial é conferido através de procuração forense enquanto ato unilateral, pelo qual alguém (o mandante) confere a outrem (o mandatário) poderes de representação, por via de instrumento público/documento particular ou através de declaração em termo ou auto no processo (art.º 43º, CPC).

O mandato atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo (art.º 44º), exigindo a lei poderes especiais ao mandatário para confessar, transigir e desistir do pedido ou da instância (art. 45º, nº 2, CPC).”
Importa distinguir entre mandato e procuração: aquele é um contrato, ao passo que esta é um negócio jurídico unilateral autónomo.

De facto, o mandato impõe a obrigação de praticar atos jurídicos por conta de outrem (art. 1157º); a procuração confere o poder de celebrar em nome de outrem (artigo 262º nº 1).

Por outro lado, o simples mandatário age por conta do mandante mas em nome próprio (mandato sem representação – artigo 1180º e ss.); só o mandatário-representante age ao mesmo tempo por conta e em nome do mandante (mandato representativo – artigo 1178º e segs) – cfr. Abílio Neto Código Civil anotado, 19ª edição, página 1075.

Conforme decorre do exposto, no caso da procuração o negócio é celebrado, não em nome próprio do procurador, mas daquele que outorgou a procuração.

No caso da escritura dos autos, aquela foi celebrada pelo procurador, ora autor, em nome da representada a referida Maria, tudo se passando como se a mesma tivesse sido celebrada por esta, a qual foi parte na referida escritura, o que se compreende, em virtude de ser a dona do imóvel vendido.

Ora, conforme se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/07/2015, relatado pelo Desembargador António Santos, “nesta matéria (a da legitimidade das partes), dispõe o artigo 30º do Cód. de Proc. Civil que:

«1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.»
A disposição legal acabada de citar como que define a legitimidade como o poder de dirigir o processo através da titularidade do objeto do processo (a relação controvertida).
Assim, pelo lado ativo, será parte legítima quem tiver interesse direto em demandar e, será parte legítima, como réu (lado passivo), quem tiver interesse direto em contradizer, sendo que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

Já o nº 3 da disposição legal referida, ao fixar uma regra supletiva para a determinação da legitimidade, estipulando que sempre que a lei não disponha de outro modo, considerar-se-ão como titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida, tal com é ela configurada pelo autor, de uma vez por todas veio pôr termo à polémica entre os defensores da corrente subjetivista e os da corrente objetivista.

Elucidativa é, de resto e a propósito, o que no preâmbulo do D.L. 329-A/95, de 12/12 foi escrito, designadamente que "decidiu-se (..) após madura reflexão, tomar posição expressa sobre a vexata quaestio do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes visando" (…) “pôr termo a uma querela jurídico-processual que há várias décadas se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência sem que se haja até agora alcançado consenso".

E logo se acrescenta em seguida que “partiu-se, para tal, de uma formulação de legitimidade semelhante à adotada no D.L. 224/82 (de 8/06) e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto do Reis".
Ora, a titularidade da relação jurídica do imóvel é da representada e não do representante (procurador), daí que, como muito bem se decidiu na decisão recorrida, o autor e apelante não tenha legitimidade para intentar a presente ação, exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 577º alínea e) e 576º nº 1 e 2 NCPC).

Tanto basta para se concluir pela ilegitimidade do autor e apelante.
Do exposto resulta que a apelação terá de improceder e confirmar-se a douta decisão recorrida.

III. DECISÃO

Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, decide-se julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
*
Guimarães, 25/01/2018

ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA