Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
358/10.3TBAMR-A.G2
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.- Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, nos termos do disposto no nº. 5 do artº. 31º., da Lei nº. 100/97, de 13 de Setembro, a seguradora laboral deve ser admitida a intervir como parte principal (e não como parte acessória), na acção movida pelo sinistrado contra o civilmente responsável.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -
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A) RELATÓRIO
I.- A…, identificado nos autos, intentou acção ordinária contra a “Companhia de Seguros L., S. A.” pretendendo ser ressarcido dos danos patrimoniais e não patrimoniais que, invocadamente, lhe resultaram de um acidente de viação ocorrido às 19:10 horas do dia 12 de Junho de 2007, na E.N. 205, em Lago, da comarca de Amares, imputando ao condutor do veículo segurado na Ré a culpa exclusiva na produção do evento danoso.
A Demandada, aceitando a culpa exclusiva do condutor do veículo seu segurado, e, consequentemente, a sua obrigação de indemnizar o lesado, requereu a intervenção, como parte principal, da “Companhia de Seguros AP, S.A.” alegando que o acidente, invocado como causa de pedir, é, simultaneamente, de viação e de trabalho.
Assim, tendo esta última satisfeito ao Autor a indemnização concernente ao acidente de trabalho, tem direito a ser reembolsada do que lhe pagou pelo que, justifica a Demandada, tem todo o interesse em que a “AP, S.A.” venha exercer, nesta acção, o seu direito de reembolso, quer por se ficar a saber o que já foi pago ao Autor, quer para evitar que o capital seguro seja eventualmente ultrapassado.
O Meritíssimo Juiz a quo proferiu a decisão de fls. 47 e 48, e, no pressuposto que era a Demandada “L, S.A.” que tinha direito de regresso contra a Chamada “AP, S.A.”, admitiu esta a intervir nos autos mas apenas como parte acessória, julgando verificarem-se os pressupostos referidos no artº. 330º., do C.P.Civil.
A “Companhia de Seguros AP, S.A.” apresentou o seu articulado, pedindo para ser reembolsada do que havia pago ao Demandante, mas esse articulado não foi admitido com o fundamento em que o direito de regresso só pode ser exercido em acção distinta desta - cfr. fls. 31 dos autos.
Não se conformando com o decidido, a Companhia de Seguros referida traz o presente recurso, pretendendo vê-lo revogado, emitindo-se decisão que lhe permita exercer nestes autos o seu direito de regresso.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Recorrente formula as seguintes conclusões:
1.- Na verificação casuística de “acidente simultaneamente de viação e de trabalho” dispõe o régie previsto no artigo 31º. da Lei nº. 100/97 que “quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral” e que “a entidade seguradora é titular do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente”.
2.- A qualificação jurídica da factualidade enunciada pelos primitivos pleiteantes nesta lide, enunciada pela “causa de pedir” elencada no petitório, corporiza paradigma de concreto “acidente simultaneamente de viação e de trabalho”.
3.- Após ter sido formal e validamente requerida a intervenção da Apelante pela Ré, havendo o Mmo. Juiz a quo isso deferido mas ordenando a citação a Apelante enquanto "interveniente acessória", tal despacho incorre em grosseiro exercício do direito próprio porquanto, in casu et ex lege se impunha enquadrar o chamamento da Interveniente/Apelante sob a forma de "interveniente principal provocada".
4.- Consequentemente, o despacho que decide como “não escrito” o autónomo e individual “pedido” deduzido pela Apelante, sob o fundamento de que “não ter semelhança com qualquer articulado admissível no âmbito da presente acção ordinária, e não competir a este tribunal inovar para além do legislado", para além de deselegante no léxico usado, enuncia evidente erro na determinação da norma aplicável porquanto não consagra, como se impunha, o regime, conjugado, dos artigos 31º. daquela Lei nº 100/97 e 325º. a 328º. do Código do Processo Civil.
5.- E, com isso e por isso, o despacho proferido pelo Mmo. Juiz a quo frustra inadmissivelmente o legítimo "direito de regresso" acautelado pelos primitivos pleiteantes e formalmente deduzido pela Apelante.
6.- Donde, decidindo à revelia do Direito próprio, o Mmo. Decisor "a quo” contrariou o poder-dever de bem administrar a justiça e corporizar adequado cabimento aos interesses legítimos das partes.
7.- O que há-de legitimar a revogação integral daquele despacho e o consequente acolhimento, em douto acórdão, de decisão disso revogatória, determinando a validade do prosseguimento da Recorrente na lide e a integração, em fase de saneamento dos individuais factos e pedido alegados e deduzidos, sob o crivo da decisão de mérito que vier a ser proferida a final.
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A não haver questões de que deva conhecer-se oficiosamente, são as conclusões que definem e delimitam o objecto do recurso, como se extrai do disposto nos artº.s 684º., nº. 3; 685º.-A, nº.s 1 e 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do C.P.Civil, e vem sendo invariavelmente reafirmado pela jurisprudência.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
III.- Com interesse para a decisão, importa considerar o que acima se referiu em I, daí resultando que a questão a decidir é a de saber se, tendo o acidente sido considerado como de viação e de trabalho, poderá a seguradora do trabalho, que indemnizou o lesado/sinistrado, exercer nesta acção o direito de regresso que a lei lhe reconhece.
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IV.- Considerada a data da ocorrência do sinistro – 12/07/2007 – e o disposto no artº. 12º., do Cód.Civil, há que ter em conta o que dispõe o artº. 18º., do Dec.-Lei nº. 522/85, de 31 de Dezembro (Lei do Seguro Obrigatório) e o artº. 31º., da Lei nº. 100/97, de 13 de Setembro (doravante apenas LAT).
Nos termos do primeiro daquele dispositivo legal, quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho aplicar-se-ão as disposições daquele Dec.-Lei 522/85, “tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de trabalho”.
Nos termos do artº. 31º., da LAT, quando o acidente seja causado por outros trabalhadores ou por terceiros, o trabalhador sinistrado, sem embargo do seu direito à reparação que a referida LAT prevê no artº. 10º., e que vêm referidos nos artºs 23º. e sgs., do Dec.-Lei nº. 143/99, de 30 de Abril - em espécie, com vista ao seu restabelecimento físico do sinistrado, e em dinheiro, indemnizando as incapacidades temporárias e absolutas para o trabalho, pensões, subsídios de elevada incapacidade e subsídio para readaptação, e subsídio por morte e despesas de funeral, sendo caso disso, e só muito excepcionalmente os danos não patrimoniais - fica ainda com o direito de accionar os lesantes com vista a obter o total ressarcimento dos danos que lhe resultem do acidente – cfr. o nº. 1.
E se o trabalhador sinistrado obtiver dos lesantes uma indemnização superior à que lhe é devida pela aplicação do regime da LAT a entidade empregadora e a seguradora ficam desonerados da respectiva obrigação. Porém, se já a tiverem pago ao trabalhador sinistrado ficam com o direito a exigir dos lesantes o reembolso do que pagaram – cfr. o nº. 2.
É que o lesado não pode obter uma dupla indemnização pelos mesmos danos – se a obtém dos lesantes não a pode obter, simultaneamente, da entidade empregadora ou da seguradora (entendimento que não oferece contestação – ver, dentre outros, os Acs. do S.T.J., de 24/01/2002, in C.J., Acs. do S.T.J., Ano X, Tomo I – 2002, págs. 54-57 e da Rel. de Évora de 23/04/2009, in C.J., XXIV, tomo II/2009, pág. 282, e jurisprudência aí mencionada) e daí a desoneração destas no primeiro caso e o seu direito de regresso no segundo.
Este direito de regresso pode ser exercido em acção a intentar contra os responsáveis pelo acidente, se o trabalhador sinistrado os não demandar judicialmente no prazo de um ano a contar da data do sinistro – cfr. nº. 4.
E caso o trabalhador sinistrado demande judicialmente os responsáveis para obter o ressarcimento total dos danos decorrentes do acidente, a entidade empregadora e a seguradora têm o direito “de intervir como parte principal” no processo, como lho reconhece o nº. 5, ainda daquele artº. 31º., da LAT.
Ora, a intervenção como parte principal tanto pode ser feita espontaneamente, nos termos do disposto nos artº.s 320º. e sgs., como através do chamamento de quem já seja parte no processo, observando-se o que dispõem os artº.s 325º., e sgs., aqueles e estes, do C.P.Civil.
Como escreve o Dr. SALVADOR DA COSTA na intervenção principal ocorre “uma igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte principal a que associa, o terceiro” tratando-se de fazer cumular no processo “uma relação jurídica da titularidade do interveniente substancialmente conexa com a relação material controvertida delineada perante as partes primitivas” (in “Os Incidentes da Instância”, 5ª. edição, pág. 82).
Seja considerando a situação como geradora de uma «solidariedade imprópria», como defende o Ac. do S.T.J. de 05/05/2011, em que a um dos devedores incumbe “assumir ou garantir transitoriamente a satisfação do direito do credor, mas beneficiando, num segundo momento, logo após o cumprimento, da faculdade de se reembolsar inteiramente à custa do património do devedor principal e definitivo da obrigação” (Ac. proferido no Procº. 620/1999.C1.S1, relatado pelo Exmº. Consº. Dr. Lopes do Rego, com texto disponível em “www.dgsi.pt/jstj”), seja consideradas a entidade empregadora e a seguradora como sub-rogadas no direito do sinistrado, é pacífico que o seu direito de regresso contra o responsável pelo sinistro, ou seja, contra o civilmente obrigado a indemnizar, pode ser exercido na acção intentada pelo sinistrado contra este.
Como decidiu o Ac. desta Relação de 22/02/2011, “Em caso de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, assiste à seguradora laboral o direito de intervir, ao lado do autor (trabalhador/sinistrado) na acção que este intentou contra a seguradora civilmente responsável, nos termos do artº. 31º., nº. 5, da Lei nº. 100/1997, de 13/09. Assim, deve admitir-se o incidente de intervenção principal provocada deduzido por esta seguradora para o efeito” (Ac. proferido no Procº. 255/10.2TBFAF-A.G1, relatado pelo Exmª. Desª. Isabel Fonseca com texto disponível em “www.dgsi.pt”).
Em síntese, é a própria LAT a reconhecer à entidade empregadora e à seguradora o direito a intervir, como parte principal, na acção movida pelo sinistrado contra os responsáveis pelo acidente – cfr. nº. 5 do artº. 31º., da Lei 100/97 – e, como lei especial que é, sempre derrogaria qualquer dispositivo da lei geral que estabelecesse coisa diferente.
Obrigar a entidade empregadora e a seguradora a intentarem nova acção para exercerem o seu direito de regresso, mau grado as admitir a intervir na acção intentada pelo sinistrado é, também, contrário ao princípio da economia processual e de meios já que na acção a intentar, por aquelas, apenas se iria discutir a quantia que tinham direito a receber do civilmente obrigado, com o perigo para que alerta a Ré “Companhia de Seguros L, S. A.” da impossibilidade de dar cumprimento ao disposto no artº. 16º., do Dec.-Lei 522/85 (Lei do Seguro Obrigatório), caso o montante total da indemnização ultrapasse o valor do seguro.
O Meritíssimo Juiz a quo, como se alcança do despacho de fls. 47, caíu em equívoco por haver considerado que o titular do direito de regresso era a Ré, Chamante, e não a Chamada, ora recorrente, e por isso é que admitiu esta a intervir apenas como parte acessória, ao abrigo do disposto no artº. 330º., e sgs., do C.P.Civil. E, no seguimento deste equívoco, não admitiu o articulado autónomo apresentado pela Recorrente, no qual esta expunha os fundamentos de facto e de direito em que alicerçava o seu direito de regresso, que pretendia fazer valer nesta acção.
Ora, sendo-lhe legalmente reconhecido o direito a intervir como parte principal, também o artº. 327º., nº. 3, do C.P.Civil, lhe permite oferecer o seu próprio articulado.
Cumpre, pois, revogar a decisão proferida, deixando que a Recorrente exerça nesta acção, como lhe reconhece a LAT, o seu direito de regresso contra a Ré.
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V.- DECISÃO
Nos termos que acima se deixam expostos, julga-se procedente a apelação, revogando-se, consequentemente a decisão recorrida, pelo que a recorrente “Companhia de Seguros AP, S. A.” é admitida a intervir, como parte principal, na presente acção, aqui devendo ser apreciado o seu direito de regresso contra a Ré, que pretende exercer, admitindo-se os articulados que apresentou, com as consequências processuais que daí decorrem, designadamente em sede da selecção da matéria de facto.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 08/Novº./2011
Fernando F. Freitas
Purificação Carvalho
Maria Rosa Tching