Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
51/14.8T8VLN.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
APOIO JUDICIÁRIO
ACESSO AO DIREITO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: A norma constante do nº 2 do artº 232º do CIRE viola o princípio constitucional do acesso ao direito consagrado no artº 20º, nº 1 da CRP, quando interpretada no sentido de que o requerente do prosseguimento do processo de insolvência, quando careça de meios económicos, - designadamente, por beneficiar do apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo - não pode requerer aquele prosseguimento se não depositar à ordem do tribunal a quantia que o juiz determinar como razoável para garantir o pagamento das custas e restantes dívidas da massa insolvente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
“T…, Lda.” requereu a declaração de insolvência de “P…, Lda.”, alegando ser credora da requerida pelo montante de € 40.644,41, não lhe sendo conhecidos quaisquer bens e tendo cessado a sua atividade comercial, encontrando-se inativa e de portas fechadas. Conclui que o valor do passivo da requerida é muito superior ao ativo e que a sua situação financeira não lhe permite cumprir as suas obrigações perante terceiros.
A requerida não ofereceu oposição.
Foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida.

O administrador da insolvência juntou aos autos o Relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, concluindo pelo encerramento do processo face à inexistência de bens que possam integrar a massa insolvente.
Teve lugar a Assembleia de Credores, com a presença do credor Instituto da Segurança Social – que votou favoravelmente o relatório do AI – o MP, em representação da Fazenda Nacional – que se absteve – e o sócio gerente da insolvente e o seu patrono nomeado.
Foi ordenada a notificação dos restantes credores para se pronunciarem quanto ao encerramento, fixando-se o montante a depositar no valor de € 5000,00.
R…, sócio gerente da requerida e reclamante nos presentes autos, veio requerer o prosseguimento do processo, sem encerramento, dispensando-se do pagamento do valor de € 5000,00, por litigar com apoio judiciário, em virtude de existirem legítimas expetativas de que os credores venham a ser ressarcidos, após instauração de ação contra a C…, face à atuação negligente desta entidade bancária, causadora de prejuízos à insolvente, de cerca de 150 milhões de euros.
Idêntico requerimento foi junto por R…, mulher do anterior e também sócia gerente da requerida e reclamante nestes autos.
A ambos os sócios gerentes e credores da insolvente foi deferido o pedido de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono.

Foi proferida decisão que declarou encerrado o processo, indeferindo o requerido pela devedora (?) por falta de fundamento legal.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o sócio gerente e credor da insolvente R…, finalizando a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1 – A decisão recorrida cerceia um direito do recorrente em ver reconhecida viabilidade financeira da insolvente, por força de uma obrigação futura a impor, por via judicial, ao também credor C….
2 – O requerimento no qual se peticiona o prosseguimento dos autos de insolvência, indica parâmetros de atuação a impor ao Sr. Administrador de Insolvência, a fim de o mesmo defender em juízo os interesses da insolvente.
3 – O mérito de tal requerimento não foi devidamente aferido, face ao circunstancialismo de não ter sido, pelo recorrente, feito o depósito do valor fixado de € 5000,00.
4 – Com a prolação do despacho recorrido, o tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 13.º e 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, outrossim o artigo 232.º, n.º 6 do CIRE, aplicado por força do disposto no artigo 248.º do mesmo Diploma Legal.
5 – Igualmente violado pelo tribunal recorrido, foi a letra e o espírito da Lei 34/2004 a qual estabelece a regra de acesso ao direito e aos tribunais, no sentido em que ninguém pode ser prejudicado por não dispor de Maios económicos para o recurso aos ditos tribunais.
6 – Assim sendo, o despacho recorrido deve ser substituído por outro no qual se ordene o prosseguimento do processo de insolvência da aqui insolvente, com as consequências devidas.

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver cinge-se a saber se, pelo facto de beneficiar de apoio judiciário, o apelante está dispensado do depósito da quantia a que alude o artº 232º, nº 2, do CIRE.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Os factos com relevo para a decisão são os que constam do relatório supra.
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“Nos presentes autos de insolvência em que é requerida T…, Ldª, apresentou o Sr. Administrador de Insolvência parecer no sentido de se mostrarem preenchidos os requisitos para o encerramento do processo, ao abrigo do disposto no artigo 232º do CIRE, uma vez que constatou a insuficiência da massa insolvente.—
Foi fixado o prazo para o depósito da quantia que o Tribunal julgou adequada nos termos do disposto no art. 232º, nº 2, do CIRE.---
Foram ouvidos a devedora e os credores.—
Veio a devedora opor-se ao encerramento e requerer a dispensa do depósito do montante determinado.
Cumpre apreciar e decidir:---
Nos termos do disposto no artigo 232º nº 2 do CIRE, tendo o administrador da insolvência dado conhecimento da insuficiência da massa insolvente ao Tribunal e ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, o Juiz declara encerrado o processo, salvo se ocorrer a circunstância prevista na parte final desta norma, ou seja, se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado como necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente.---------
No caso em apreço, tal circunstância não se verifica (não tendo qualquer dos interessados procedido ao depósito acima referido), havendo elementos que permitem constatar que a massa insolvente é insuficiente para satisfazer as custas do processo e as demais dívidas da massa insolvente.---
De resto, não merece acolhimento legal a isenção que foi requerida pela devedora, pelo que deve ser indeferida.
Pelo exposto, nos termos conjugados dos artigos 230º, nº 1, d), 232º, nº 2, e 233º, nº 1, do CIRE, declara-se encerrado o processo.-----
Indefiro o requerido pela devedora, por falta de fundamento legal.
Notifique os credores, publique e proceda ao registo da presente decisão, como impõe o artigo 230º, nº 2, do CIRE, que remete para o artigo 38º do mesmo diploma, com a indicação expressa de que o encerramento foi determinado pela insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as demais dívidas.----
Proceda à comunicação prevista no art. 234º, nº 4, do CIRE.----
Notifique o Sr. Administrador da insolvência também para, em 10 dias, dar cumprimento ao disposto no artigo 233º, nº 5, do CIRE.”

Na decisão sob recurso, declarou-se encerrado o processo face à constatação da insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente – artigo 230.º, n.º 1, alínea d) do CIRE.
Previamente, havia sido fixada a quantia que o tribunal considerou adequada, nos termos do disposto no artigo 232.º, n.º 2 do CIRE, para obstar a tal encerramento.
O sócio gerente da devedora e reclamante (e não a devedora, conforme vem referido na decisão sob recurso) requereu o prosseguimento dos autos, alegando, no que aqui interessa, que, tendo-lhe sido concedido o apoio judiciário na modalidade de isenção de taxas de justiça, custas e outras despesas judiciais, bem como na de nomeação e pagamento de honorários a patrono, não tem capacidade financeira para proceder ao depósito da quantia fixada pelo tribunal (€ 5000,00), pelo que, solicitou a isenção desse pagamento.
Sobre este requerimento, a decisão recorrida pronunciou-se nos seguintes termos: “…não merece acolhimento legal a isenção que foi requerida pela devedora, pelo que deve ser indeferida” e, mais à frente, “Indefiro o requerido pela devedora, por falta de fundamento legal”.
Ora, dizer-se que “não merece acolhimento legal” e que tem “falta de fundamento legal”, não é fundamentação suficiente para uma decisão que, assim, sempre seria nula – artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Suprindo tal nulidade, deve dizer-se que não se acompanha a decisão proferida em 1.ª instância.

A propósito do encerramento do processo quando a insuficiência da massa insolvente é logo apurada na declaração de insolvência pelo juiz e é possível efetuar o complemento da sentença nos termos consignados no artigo 39.º do CIRE, situação em que, de acordo com o disposto no n.º 3 desse artigo, é obrigatório depositar o montante que o juiz entenda razoável para garantir o pagamento das custas e dívidas, pronunciaram-se já os tribunais no sentido da inconstitucionalidade de tal norma por violação do princípio constitucional do acesso ao direito, consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP.
Veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 26/06/2007 (processo n.º 0722767), in www.dgsi.pt, onde se pode ler: “A norma constante do nº 3 do artº 39º do CIRE viola o princípio constitucional do acesso ao direito consagrado no artº 20º, nº 1 da CRP, quando interpretada no sentido de que o requerente do complemento da sentença, quando careça de meios económicos, - designadamente, por beneficiar do apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo - não pode requerer aquele complemento da sentença se não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a garantia bancária alternativa”.
Aí se entendeu – e bem, do nosso ponto de vista – que o credor que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e outros encargos com o processo, não tem de proceder ao referido depósito.
Se um credor, porque não tem meios económicos para fazer o depósito, fica impedido de requerer o prosseguimento dos autos, por esse único motivo, tal situação afrontaria flagrantemente o princípio ínsito no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Veja-se que, conforme se refere nesse mesmo Acórdão da Relação do Porto: “O direito de acção é pacificamente entendido como um “direito público” totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a tutela jurídica, “afirmando-se” como existente: ainda que ela na realidade não exista, a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à emissão da sentença (Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 1996, 79). Quer para o autor, quer para o réu, o direito ao acesso aos tribunais engloba a inexistência de entraves económicos ao seu exercício. Tal implica, designadamente, a concessão de apoio judiciário a quem dele careça e a proibição de disposições da lei ordinária que limitem o direito à jurisdição por não satisfação de obrigações alheias ao objecto do processo (idem, 91)”.

Assim, ocorrendo falta de meios, como no caso presente ocorre, não deve o tribunal aplicar a norma que condiciona o acesso à jurisdição, ao pagamento de uma determinada quantia, que o apelante não pode pagar.
Idêntica decisão, mas agora relativa à alínea d) do n.º 7 do mesmo artigo 39.º do CIRE que, de igual modo faz depender o prosseguimento dos autos de insolvência, mas agora após o trânsito em julgado da decisão que declarou encerrado o processo por insuficiência da massa, do depósito de uma quantia, foi tomada no Acórdão da Relação do Porto de 08/06/2006 (processo n.º 0633048), in www.dgsi.pt: “A norma contida na alínea d) do n.º7 do artigo 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando interpretada no sentido de que o legitimado para requerer novo processo de insolvência que não tenha meios económicos para depositar as dívidas previsíveis da massa insolvente não pode prosseguir com processo, não respeita o princípio constitucional do acesso ao direito ínsito no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa”.
Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou pela inconstitucionalidade desta última norma, no seu Acórdão n.º 440/2012 (processo n.º 323/12), de 26/09/2012, in DR, 2.ª Série, n.º 211, 31/10/2012:
“Decide-se julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1 do Constituição, a norma do artigo 39.º, n.º 7, alínea d) do CIRE, quando interpretada no sentido de impor ao requerente do novo processo de insolvência, que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, o depósito do montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa insolvente, como condição para o prosseguimento dos autos”.
Idêntico juízo sobre a constitucionalidade desta norma havia já sido proferido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2006 e sobre a norma do n.º 3 do mesmo artigo, no Acórdão do mesmo Tribunal n.º 83/2010.

Assim, sendo certo que o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP, pressupõe que tal acesso não seja dificultado em função da condição económica das pessoas – garantia que, no caso vertente, foi concretizada na concessão do apoio judiciário – a norma do artigo 232.º, n.º 2 do CIRE “obstaculiza o funcionamento da garantia constitucional e compromete a finalidade para a qual foi instituído – e, no caso, concedido - o sistema de apoio judiciário” – cfr. primeiro dos Acórdãos do Tribunal Constitucional citados.
Motivo pelo qual se julga procedente a apelação.

Sumário:
A norma constante do nº 2 do artº 232º do CIRE viola o princípio constitucional do acesso ao direito consagrado no artº 20º, nº 1 da CRP, quando interpretada no sentido de que o requerente do prosseguimento do processo de insolvência, quando careça de meios económicos, - designadamente, por beneficiar do apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo - não pode requerer aquele prosseguimento se não depositar à ordem do tribunal a quantia que o juiz determinar como razoável para garantir o pagamento das custas e restantes dívidas da massa insolvente.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que dispensa o apelante de proceder ao depósito a que alude o artigo 232.º n.º 2 do CIRE.
Sem custas.
Guimarães, 4 de junho de 2015
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Maria Purificação Carvalho