Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1600/12.1TAGMR.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ERRO SOBRE A ILICITUDE
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – A falta de consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável.
II – Na nossa sociedade, se existir alguém que não souber que é proibido proferir palavras objetivamente injuriosas, com intenção de ofender o visado na sua honra, bom nome e consideração, é porque possui uma personalidade desvaliosa e merecedora de censura, que deve ser atribuída a deficiência da sua própria consciência ética.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No processo 1600/12.1TAGMR, distribuído ao 2º Juízo Criminal de Guimarães, o assistente Francisco C... deduziu acusação particular contra a arguida Teresa R... imputando-lhe a autoria de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180 nº 1 do Cod. Penal.
O Ministério Público declarou acompanhar a acusação da assistente.
Remetidos os autos para julgamento, a acusação foi rejeitada, por ser “totalmente omissa quanto ao elemento subjetivo do crime de difamação”, pois “não se antevê que o assistente tenha referido a consciência da ilicitude da arguida quanto ao crime de difamação e que pertence ao elemento volitivo e intelectual do dolo”.
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O magistrado do Ministério Público e o assistente Francisco C... interpuseram recurso deste despacho.
A questão suscitada é a de saber se a acusação é manifestamente improcedente, por falta de narração de factos que integram os elementos subjetivos do crime.
Não houve respostas ao recurso.
Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no sentido da procedência
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Com se referiu no relatório deste acórdão está em causa a rejeição da acusação, na qual o assistente Francisco C... imputou à arguida Teresa R... um crime de difamação p. e p. pelo art. 180 nº 1 do Cod. Penal, por esta ter dito a diversas pessoas que o assistente “andava a agarrar miúdas da escola para as violar”.
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O despacho recorrido afirma que a acusação “é totalmente omissa quanto ao elemento subjetivo do crime de difamação”. É um juízo que não pode subsistir face à redação dos pontos nºs 11 e 13 da acusação. Consta do ponto nº 11 que “a arguida agiu consciente e deliberadamente, com a intenção de ofender o queixoso na sua honra, bom nome e consideração pessoal e social…”; e do ponto 13 que “ao fazer tais afirmações a arguida pretendeu ofender o ora assistente na sua honra, bom nome e consideração, pessoal e social…”. Está clara a imputação da «intenção» com que a arguida agiu ao proferir as frases, sendo que tal faz parte dos chamados “elementos subjetivos do crime”.
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A questão é outra, como, aliás, também decorre expressamente do despacho recorrido. Volta a transcrever-se: “não se antevê que o assistente tenha referido a consciência da ilicitude da arguida (…). Tal factualidade é requisito indispensável, sem o qual não é possível a apreciação do crime de difamação, por o mesmo requerer a enunciação dos elementos volitivo e intelectual do dolo”.
Na realidade não existe na acusação qualquer imputação tendente a afirmar que a arguida tinha consciência da ilicitude do seu comportamento.
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Deixa-se algumas notas prévias:
A argumentação do recurso do Ministério Público é improcedente. Se bem se percebe, além de sobrepor (como o despacho recorrido) as noções de “dolo” e de “falta de consciência da ilicitude A “consciência da ilicitude” respeita à culpa, não ao dolo do tipo., entende que é dispensável a alegação dos factos relativos aos elementos subjetivos do crime porque “os atos psíquicos não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações, ou seja, os atos psíquicos transcendem a possibilidade de comprovação histórico-psíquica…”.
Ao argumentar assim, o magistrado recorrente confunde a alegação de factos com a sua prova. Não deve ser confundida a exigência de alegação de todos os factos que constituem o tipo de crime com a prova dos mesmos. Por exemplo, o modo como uma bofetada foi desferida pode inculcar a certeza de que houve intenção de ofender corporalmente. Porém, isso não dispensa a prévia alegação (na acusação) de que existiu a referida intenção.
O facto de o dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a respetiva alegação dos factos pertinentes – (cfr. a tal propósito Figueiredo Dias, “Ónus de alegar e de provar em processo penal”, RLJ, 105º, nº 3473, 1972, p. 128, «uma coisa é a presunção, de iure ou iuris tantum, do dolo, absolutamente inadmissível (...) em qualquer terreno do direito penal moderno; outra coisa completamente diferente – e, esta sim, aceitável – seria a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência»).
Na mesma linha segue a argumentação do recurso do assistente, que se limita à demonstração de que a acusação narra factos relativos à intenção com que a arguida agiu e à alegação de que, em qualquer caso, “a questão do dolo criminal (…) trata-se de uma questão judicial, de direito, de uma decisão judicial e já não de uma questão de facto”.
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Como se referiu, efetivamente, não vem alegado na acusação que a arguida sabia ser proibido andar a dizer do assistente (repete-se, com intenção de o ofender na sua honra, bom nome e consideração, como vem alegado) que ele “andava a agarrar miúdas da escola para as violar”.
A solução está nas normas do art. 17 do Cod. Penal, sendo que a consequência não é a improcedência da acusação.
A falta da consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável. Isso apenas se verifica quando “o engano ou o erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do agente” – Maia Gonçalves em anotação ao art. 17 do Cod. Penal. Se o erro radicar numa “deficiência da própria consciência ética do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico penais e que por isso revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal”, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo (art. 17 nº 2) – Figueiredo Dias, Direito Penal, ed. 2004, pag. 503.
É o caso. Na nossa sociedade, se existir alguém que, sendo imputável, não souber que é proibido atentar contra a honra de outrem, nomeadamente com expressões como a referida (repete-se, proferida com a intenção de ofender, como vem alegado), então é porque possui uma personalidade desvaliosa que deve ser atribuída a deficiência da sua própria consciência ética. No atual patamar de civilização e de vivência da nossa comunidade não é admissível outro juízo. Não se descortina como se poderá colocar a hipótese de tal falta de consciência ser compatível com uma “atitude geral de fidelidade ao direito só frustrada no caso por circunstâncias especiais que a fizeram errar sobre a ilicitude do seu ato…” – ac. do STJ de 13-10-99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 17 do Cod. Penal.
Como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 2-2-2005, Proc. JTRP00037657 (relator António Gama) disponível no sítio do ITIJ daquele tribunal, “o conhecimento da proibição legal só é indispensável quando o tipo de ilícito objetivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Já assim não é relativamente aos tipos de ilícito velhos de séculos, cuja ilicitude de todos é conhecida, como v.g. o homicídio, as ofensas corporais, o furto, as injúrias, em que é contrário à experiência e à realidade da vida, pôr em duvida se o agente sabe que é proibido, matar, ofender corporalmente, desapropriar, injuriar, etc.”.
Não está em causa substituir, por presunções naturais, a falta de alegação de factos relativos à consciência da ilicitude, mas a apenas a formulação de um juízo sobre o concreto comportamento descrito na acusação, mesmo tendo a arguida agido sem consciência da ilicitude.
Sendo os factos narrados na acusação suscetíveis de fundamentarem uma condenação, não é caso de manifesta improcedência.
Os recursos procedem, embora por razões distintas das invocadas.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães ordenam que o despacho recorrido seja substituído por outro que pressuponha que na acusação foram narrados factos suficientes para a condenação.
Sem custas.