Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
616/13.5TBFAF-C.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) Presume-se, juris et de jure, culposa, a insolvência em que se verifique qualquer uma das situações previstas no artigo 186.º n.º 2 do CIRE;
2) O nexo de causalidade terá de se verificar, em geral, entre a conduta do insolvente e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
A) Por sentença proferida em 09/04/2013, foi declarada a insolvência de J.. e aberto o incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno.
A Sra. Administradora de Insolvência emitiu parecer no sentido da insolvência ser declarada culposa, alegando, em síntese, que o insolvente reside, a título de comodato, no imóvel que transmitiu à irmã a 27-10-2009 e que essa transmissão ocorreu por um preço muito inferior ao valor de mercado, o que prejudicou os interesses dos credores do insolvente, concluindo que tais factos permitem a presunção de insolvência culposa nos termos da alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
O Mº Pº, concordando com as razões constantes do parecer da Sra. Administradora de Insolvência, pronunciou-se no sentido de dever a insolvência ser qualificada como culposa.
O insolvente J.. veio deduzir oposição à qualificação como culposa da insolvência, entendendo que a qualificação da insolvência deve ser julgada improcedente.
Alega, para tanto, em síntese, que o seu endividamento se deveu ao facto de ter dado vários avais pessoais a uma sociedade de que era sócio que foram acionados pelos credores e que originou o seu endividamento progressivo e desemprego e incumprimento das suas obrigações, pelo que teve de vender a sua habitação à sua irmã, a qual assumiu a responsabilidade do pagamento do crédito à habitação.
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Foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença onde se decidiu qualificar a insolvência como culposa e, consequentemente:
1. Indicar J.. como a pessoa afetada pela qualificação;
2. Declarar J.., pelo período de 3 anos, inibido para:
a) administrar patrimónios de terceiros;
b) o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.
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B) Inconformado com a sentença, veio o insolvente J.. (fls. 90 e segs.) interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 122).
C) Nas suas alegações, o apelante J.., formula as seguintes conclusões:
1. Ora, a decisão tomada, com a fundamentação constante da douta Sentença, face à factualidade não provada e ao caso concreto, não pode merecer como não merece a nossa concordância.
2. Sendo que, em jeito de síntese, alegou o aqui recorrente que vendeu o imóvel à sua irmã tendo esta assumido uma dívida bancária do mesmo, pelo que não se verificou qualquer prejuízo, para os credores.
3. Mais, esclareceu o aqui recorrente, aliás, conforme melhor consta dos documentos juntos aos autos que a sua irmã efetuou diversos pagamentos.
4. Com efeito, o insolvente reside a título de comodato, no imóvel que transmitiu à sua irmã, conforme escritura de f. 258-259, aí reproduzida, que era detentor de dois créditos de natureza garantida por hipotecas nos valores respetivos de 63.835,00€ e de 26.695,54€ e que ficou desempregado em final de 2008, dá igualmente como não provado que a irmã do insolvente decidiu adquirir o imóvel, face à condição económica do irmão, assumindo a divida global do irmão.
5. Pelo que, a conclusão a que o Tribunal chegou nesta parte é absolutamente irreal, infundada e até contraditória, pois não se encontra provado qualquer nexo de causalidade entre a venda da habitação e o agravamento da situação de insolvência, não bastando presumir, pois é necessário demonstrar, o que aliás é corroborado por toda a prova testemunhal.
6. Facilmente se verifica que o insolvente ao invés de ter agravado a sua situação financeira e patrimonial, fez precisamente o contrário aquando do seu desemprego inicial e face à impossibilidade de continuar a cumprir com a prestação bancária, relativamente ao imóvel de forma conscienciosa e responsável, optando por arranjar solução, nomeadamente negociar com a banca e venda do imóvel à sua irmã, a qual, diga-se em abono da verdade, já era sua fiadora.
7. Também de referir, que os dois créditos bancários que incidem sobre o imóvel foram contraídos pelo insolvente e aquando da impossibilidade do cumprimento das prestações, foi a irmã do insolvente a adquirente do imóvel, que passou a suportar as prestações bancárias.
8. Ora, foi realizada a respetiva audiência de discussão e julgamento nestes autos, e produzida a prova, o aqui recorrente entende existir nos mesmos prova suscetível de determinar uma decisão da matéria de facto e de direito diversa, sendo que a qualificação de insolvência como culposa deveria ter sido julgada como improcedente por não provada na sua totalidade e a Insolvência ser considerada fortuita, conforme respetivo pedido.
9. No entanto, não foi isso que aconteceu.
10. Sendo que, no nosso modesto entendimento, o tribunal "a quo” julgou incorretamente diversos pontos da matéria de facto.
11. Ora, é hoje comummente entendido que a decisão do Tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 662º do C.P.C.
12. Assim, no presente caso, este Venerando Tribunal, tendo em atenção a gravação dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, deverá reapreciar os mesmos, designadamente reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações supra referidas do aqui recorrente - Cfr. nº 2 do art.º 662º do C.P.C.
13. Pois, como supra se referiu, em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, impunha-se uma decisão diferente quanto à matéria de facto.
14. O Tribunal "a quo" avaliou erradamente a prova testemunhal, pois, ao contrário do aludido na decisão, as testemunhas arroladas pelo insolvente, e o próprio insolvente no seu depoimento, de forma clara e coerente, demonstraram conhecimento direto dos factos, sendo perentórias na formação da convicção.
15. Prestaram um depoimento útil, credível e consistente.
16. Além do mais, a prova carreada para os autos pela administradora foi manifestamente insuficiente, para não dizer mesmo inexistente, para provar, ainda que indiciariamente, que a insolvência do recorrente é culposa.
17. Aliás, muito pelo contrário, a prova produzida em julgamento, demonstrou claramente que a insolvência do recorrente é fortuita e não culposa.
18. Desta forma, entende o aqui recorrente, que o tribunal "a quo" deveria ter dado outra resposta à matéria de facto constante nos factos não provados referidos na Douta Sentença da qual ora se recorre.
19. Tal convicção decorre dos depoimentos gravados em sede de audiência de discussão e julgamento e que impunham decisão diversa em face do conteúdo dos depoimentos a seguir identificados.
20. Da audição da administradora C.. depoimento gravado em CD áudio no dia 20/03/2014, duração 00:00:01 a 00:17:05, Cód.:20140320154840_11364L64359, designadamente aos minutos 08:31 a 08:56; 09:06 a 10:12 e 14:56 a 15:33, que o Meritíssimo Juiz "a quo" não levou em consideração, resulta mais uma prova só por si suficiente para se julgar a insolvência como fortuita.
21. Sendo que, ao contrário do que foi o entendimento do Meritíssimo Juiz "a quo", este depoimento revelou-se bastante útil, pois vem confirmar tudo o que foi alegado pelo aqui recorrente.
22. Repare-se que não se encontra provado qualquer nexo de causalidade entre a venda da habitação e o agravamento da situação de insolvência, não bastando presumir, pois é necessário demonstrar, o que aliás é corroborado por toda a prova testemunhal. Ao invés a venda veio aliviar financeiramente a situação do insolvente, cujas prestações foram pagas pela irmã do mesmo.
23. Mais, a administradora nada provou, apenas presumiu.
24. Sublinhe-se também, de extrema importância, o facto da falta de prova do nexo de causalidade entre a venda da habitação e o agravamento da situação de insolvência.
25. Com o devido respeito, os depoimentos prestados em Audiência de Julgamento devem ser interpretados dentro do contexto em que se inserem, como um todo, e só dessa forma se consegue perceber a mensagem efetivamente transmitida.
26. Pelo que, com o devido respeito, que é muito, esteve muito mal o Meritíssimo Juiz "a quo" quando deu como não provado o ponto 1.2. dos factos dados como não provados e que melhor constam na sentença de que ora se recorre.
27. Uma avaliação atenta do depoimento de parte do aqui recorrente J.. depoimento esse gravado em CD áudio no dia 20/03/2014, duração 00:01 a 18:05 minutos, Cod: 20140320160617_11364L64359, designadamente aos minutos 00:09 a 01:41; 01:51 a 04:50; 02:59 a 04:10; 05:32 a 07:50; 08:02 a 10:06; 10:18 a 11:53 e 14:20 a 18:04, seria suficiente para impor uma decisão diferente, pois esclareceu pormenorizadamente a sua situação, explicando que tudo fez para conseguir cumprir com as suas obrigações, inclusivamente vendendo o imóvel nos autos melhor identificado à sua irmã, que assumiu as dívidas do irmão e efetuou diversos pagamentos, conforme prova documental junta aos autos.
28. Sendo que, continuou a viver no imóvel, e assim continuando a trabalhar, mesmo sujeito à penhora do seu salário.
29. A verdade é que, não se pode retirar apenas partes do depoimento de uma testemunha e valorá-las conforme nos der mais jeito, como salvo o devido respeito, fez o Meritíssimo Juiz "a quo" na análise que fez dos depoimentos, mas sim interpretá-los no seu contexto, como um todo, e só assim se chegará à mensagem efetivamente transmitida naqueles depoimentos.
30. Com o depoimento do recorrente provou-se que de tudo fez para não entrar em incumprimento com as suas obrigações.
31. Pois, explicou o recorrente e bem que, a venda foi realizada com autorização e consentimento do banco e que a sua irmã foi cumprindo com os pagamentos das hipotecas.
32. Pelo que, não se entende porque é que o Tribunal "a quo" dá por culposa a insolvência do recorrente, tenho em conta tudo o supra descrito.
33. Assim, com o devido respeito, que é muito, esteve muito mal o Meritíssimo Juiz "a quo" quando deu como não provado o ponto 1.2- dos factos dados como não provados e que melhor constam na sentença de que ora se recorre.
34. Da audição da testemunha M.., depoimento gravado em CD áudio no dia 20;03/2014, duração 00:01 a 07:55 minutos, Cód.:20140320162454_113641_64359, designadamente aos minutos 00:25 a 03:19; 03:57 a 05:00 e 05:44 a 07:35, testemunha esta que também não foi considerada pelo Meritíssimo Juiz "a quo", resultou que a testemunha, irmã e adquirente do imóvel em causa, bem como a junção dos documentos aos autos, comprovam a realidade dos fatos e que de fato não houve qualquer prejuízo para os credores ou qualquer intenção de beneficiar terceiros, ao invés é a própria M.. quem suporta quantias significativas com os créditos acoplados ao imóvel.
35. Veja-se em abono da verdade que foram várias as prestações que foram pagas pela mesma, pelo que se alguma conclusão podemos retirar, é portanto uma conclusão contrária, em que o insolvente em nada prejudicou a sua situação, mas sim durante alguns anos foi suportando vários encargos, relativamente à empresa da qual era sócio, conforme documentos juntos nos autos a comprovar tal realidade e durante mais de três anos foi cumprindo e pagando várias prestações bancárias do imóvel que tinha adquirido.
36. Assim, foi uma prova absolutamente fundamental para a descoberta da verdade dos factos.
37. No entanto, o Meritíssimo Juiz "a quo" não valorou o seu depoimento.
38. E ao fazê-lo, salvo o devido respeito, esteve muito mal o Meritíssimo Juiz "a quo", pois esta testemunha foi justamente quem comprou o imóvel ao insolvente e efetuou os pagamentos ao B.., conforme melhor se colhe do documento junto a fls. dos autos.
39. Com uma audição atenta do depoimento desta testemunha, facilmente se percebe que as suas declarações foram espontâneas, firmes e verdadeiras.
40. Mas, ainda assim, com toda esta prova, o Meritíssimo Juiz "a quo" deu como não provado o pontos 1.2-, designadamente deu como não provada a irmã do insolvente adquirir o imóvel, face à condição económica do irmão, ora insolvente, assumindo a dívida global do irmão.
41. Ora, como é obvio, naturalmente não podemos concordar, pois as provas desses pagamentos ora suportados pela M.., encontram-se juntos aos autos.
42. Repare-se que o testemunho desta testemunha vai de encontro ao alegado pelo insolvente e todos nós sabemos que os particulares junto da Banca sem qualquer negociação de incumprimento de créditos estão numa posição de sujeição e submissão.
43. Assim, mais uma vez, esteve muito mal o Meritíssimo Juiz "a quo" quando deu como não provado o ponto 1.2 dos factos dados como não provados e que melhor constam na sentença de que ora se recorre.
44. Na verdade, os depoimentos gravados, contribuem decisivamente para demonstrar que a fundamentação da decisão da matéria de facto não terá obedecido rigorosamente às normas legais, pois não foi claramente respeitado o principio da livre apreciação da prova segundo as regras da experiencia comum, da lógica e da prudência.
45. Se é certo que na apreciação da prova testemunhal deve acatar-se o ensinamento de Abrantes Geraldes na sua obra "Temas da Reforma do processo Civil", II VoI., pág. 209 e ss., quando se pronuncia sobre a livre apreciação da prova, associada aos princípios da oralidade e da imediação, que não são facultados ao Tribunal da Relação, o certo é que também não se pode esquecer a lição de Teixeira de Sousa, in "Estudos sobre o Novo Processo Civil", pág. 348, quando refere que "o Tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiencia, se possa articular com razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do Juiz, mas a permitir que o Juiz convença os terceiros da correção da sua decisão. Através da fundamentação, o Juiz passa de convencido a convincente."
46. É importante realçar que a venda do imóvel ocorreu há já vários anos, sendo que as prestações foram religiosamente pagas pela nova proprietária, no caso a sua irmã M.. e que o incumprimento só ocorreu em 2009, conforme refere o banco com o crédito hipotecário do imóvel, bem como a própria administradora e motivado pela dificuldade financeira da própria M.. que acabou por ser declarada insolvente.
47. O lapso de tempo entre a venda e o incumprimento é de tal forma enorme, sendo que as prestações foram pagas e assumidas, pelo que ao contrário da tese da administradora e deste Tribunal, não compreendemos o porque da decisão da insolvência ser declarada culposa e por isso nos merece total censura, ao invés deveria ser considerada fortuita.
48. Pelo que a sentença não demonstra, nem de facto, nem de direito, qual o contributo que tal facto determinou um prejuízo, e em que medida tal facto contribuiu para o agravamento da situação patrimonial do insolvente, ou mesmo da sua insolvência.
49. Ora, sem ter ficado demonstrado tal facto, não podia o M. Juiz "a quo" ter qualificado a insolvência como culposa, mas sim como furtuita, ocorrendo por isso erro de julgamento.
50. E ao não decidir nesta conformidade, o Meritíssimo Juiz "a quo", violou além do mais, o disposto nos artigos 18º, 185º, 186º do CIRE, artigo 350º do Código Civil, e o artigo 607º, 615º, nº 1, al. b) e c), do Código de Processo Civil, que deverá ser aplicado conforme o sentido aqui supra propugnado.
51. Desta forma, a decisão da qual ora se recorre afasta-se claramente da realização da justiça.
52. Pois, impunha-se naturalmente uma decisão diversa daquela que foi proferida, isto é, impunha-se a insolvência como fortuita e não como culposa.
Termos em que dever a apelação ser julgada procedente e em consequência revogar-se a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que qualifique a insolvência como fortuita, com as legais consequências.
Não foi apresentada resposta.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir na apelação são as de saber:
1) Se deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
2) Se deverá manter-se a decisão que qualificou de culposa a insolvência de J...
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) São os seguintes os factos considerados como provados:
1. O teor dos autos principais e respetivos apensos, designadamente, o teor de fls. 52 dos autos principais (data de entrada do requerimento inicial: 5-4-2013) que aqui se dá por integralmente reproduzido; o teor de fls. 53-55 dos autos principais (sentença de insolvência) que aqui se dá por integralmente reproduzido; o teor de fls. 26 dos autos principais (assento de nascimento do devedor) que aqui se dá por integralmente reproduzido; o teor de fls. 27-28 dos autos principais (certidão comercial da sociedade D.., Lda) que aqui se dá por integralmente reproduzido; o teor do apenso A (apenso da reclamação de créditos); o teor do apenso B (traslado da execução que corria contra o executado e sua irmã, proposta pelo B.. que corria termos no 1.º Juízo deste tribunal sob o n.º 788/10.0TBFAF).
2. O teor do relatório de fls. 138-153 dos autos principais que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. O teor da escritura de fls. 258-259 dos autos principais que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4. O teor da certidão predial de fls.. 260-261 dos autos principais que aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Parte das dívidas do insolvente resulta do facto de este ter prestado avales a financiamentos concedidos à empresa de que foi sócio denominada D.., Lda, NIPC.., entidade que se encontra com atividade fiscal ativa, destarte já não exercer qualquer atividade.
6. O insolvente reside, a título de comodato, no imóvel que transmitiu à sua irmã supra referido na escritura do ponto 3.
7. O valor patrimonial desse bem imóvel era de €74.119,00 (setenta e quatro mil cento e dezanove euros) à data da escritura.
8. O B.. é detentor de dois créditos de natureza garantida por hipotecas nos valores respetivos de €63.835,00 (sessenta e três mil oitocentos e trinta e cinco euros) e de €26.695,54 (vinte e seis mil seiscentos e noventa e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos).
9. O insolvente possui recheio da habitação o qual se revela imprescindível para a sua vida familiar.
10. Encontra-se registado em seu nome o veículo automóvel marca PEUGEOT, de matrícula QI-.., do ano de 1989, o qual o insolvente alega já ter alienado há cerca de 10 anos.
11. Em 2008, no final do ano, o insolvente ficou desempregado.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).
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C) No que se refere à pretensão de alteração da matéria de facto a reforma operada pela Lei nº 41/2013, de 26/06, veio impor no artigo 640º nº 1 do NCPC que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O apelante discorda da decisão dada aos factos constantes do ponto 2.1., que o tribunal a quo considerou não provado, onde consta: a irmã do insolvente decidiu adquirir o imóvel, face à condição económica do irmão, assumindo a dívida global do irmão e que entende que deve dar-se como provado.
Para fundamentar a sua posição, o apelante, socorre-se das declarações prestados por si próprio e pelo depoimento da Administradora de Insolvência, que transcreve parcialmente.
Afigura-se-nos, no entanto que dos depoimentos referidos não poderá resultar a alteração da matéria de facto.
Com efeito, do depoimento da Sra. Administradora da Insolvência C.. resulta que houve coincidência entre os vencimentos dos créditos e a venda do único bem do insolvente, o imóvel referido nos autos onde o aquele habitava e onde continuou a habitar, após a venda do mesmo à sua irmã, venda essa que foi efetuada pelo valor de €4.000,00, uma vez que o insolvente afirma que vendeu o veículo automóvel Peugeot de matrícula QI-.., registado em seu nome, tendo ainda referido que o credor B.. veio reclamar o seu crédito, que é garantido, contra o insolvente, o que significa que não houve qualquer acordo de pagamento da irmã do insolvente ou deste, com aquele credor.
Já no que se refere ao depoimento do insolvente J.., o mesmo refere ter adquirido o imóvel em 2003 à sua irmã, tendo o mesmo custado setenta e tal mil euros, entretanto em finais de 2008 já estava em situação de desemprego, a sua irmã mostrou disponibilidade de assumir a dívida (que o insolvente tinha) e adquiriu o imóvel, tendo este continuado a viver no mesmo.
Refere que o preço de venda foi baixo, justificando tal situação com o facto de a sua irmã ter assumido o pagamento da dívida ao banco, tendo o insolvente deixado de pagar as prestações ao banco em 2008, tendo ainda referido que vendeu o veículo mencionado nos autos, Peugeot.
Conforme se referiu, nada nos meios de prova indicados nos permite, alterar a decisão da matéria de facto, dando como provado o facto que o tribunal a quo considerou não provado, pelo que se terá de manter a decisão quanto à matéria de facto.
E que dizer quanto à qualificação da insolvência?
Como se escreveu na apelação nº 2204/07.6TBFAF-B.G1, de 29/09/2009, desta Relação de Guimarães, “o incidente de qualificação da insolvência é uma fase processual destinada a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e se as mesmas foram meramente fortuitas ou, antes, se corresponderam a uma atuação negligente ou fraudulenta por parte do devedor (neste sentido, Montón Redondo/Montón Garcia in “El nuevo proceso concursal”, Valência, Tirant lo Blanch, 2005, pág. 199 e seguintes, citado por Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, página 269).
A insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita – artigos 185.º e 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março (diploma a que passaremos a referir-nos na omissão de origem diversa).
A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência – nº 1 do artigo 186º.
Segundo o nº 2 do artigo 186º a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular é sempre culposa quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento, por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º.
O nº 3 do mesmo artigo 186º diz, por seu lado, que se presume a existência de culpa grave, quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”
Importa notar que, de acordo com o disposto no nº 4 do mesmo artigo e diploma, o disposto nos nºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
E, continua aquele aresto, “a generalidade da doutrina – Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2.ª edição e, do mesmo autor, Direito da Insolvência, página 270; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963 – considera que as várias alíneas do nº 2 constituem presunções legais juris et de jure, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa.
Verificada qualquer uma das situações enumeradas nas citadas alíneas, presumir-se-á a culpa do administrador.
Já no que se refere ao nº 3 do referido artigo 186º está-se perante um conjunto de situações de presunção de culpa grave, presunções essas juris tantum, ilidíveis por prova contrária.
A culpa grave, assim presumida, não implica, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa, mas apenas que, ao omitir-se o cumprimento desses deveres, se atuou com culpa grave.
Com efeito, como nas hipóteses do nº 3 já não se presume o nexo de causalidade de que a omissão dos deveres aí descritos determinou a situação de insolvência da empresa, ou que para ela contribuiu, agravando-a, além da prova desses comportamentos omissivos, deve provar-se o nexo de causalidade, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram (cfr. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, página 271).”
Trata-se, então, de saber se deverá manter-se a decisão que qualificou de culposa a insolvência de J...
A sentença recorrida entendeu estar verificada a situação da alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE ao verificar-se a dissipação do único bem do insolvente em benefício de um terceiro, neste caso a sua irmã, com prejuízo para os credores.
Vejamos.
Conforme resulta da sentença recorrida, “apurou-se que o insolvente reside, a título de comodato, no imóvel que transmitiu à sua irmã, a 27-10-2009.
Alegadamente vendeu-o por 4 mil euros quando o valor patrimonial desse bem imóvel era de €74.119,00, à data da escritura.
O B.. é credor do insolvente e da sua irmã tendo instaurado execução contra ambos em 24-4-2010, sendo que os seus créditos ficaram vencidos em abril de 2009, mais a mais, outros créditos do insolvente venceram-se em Janeiro de 2009, Novembro de 2010 e Julho de 2009.
De notar que, em 2008, no final do ano, o insolvente ficou desempregado.
Por fim, destaque-se que os créditos sobre o insolvente ascendem à quantia de cerca de 168 mil euros.
Assim, o valor da venda é inexplicável.
A venda é de tal modo “real” que o insolvente continua a usufruir dela.
O insolvente ficou desempregado 1 ano antes, pelo que quando vendeu a casa à sua irmã sabia que também não tinha como pagar as restantes dívidas que havia contraído.
Apesar da venda, o B.. alega que o crédito se venceu em abril de 2009 e intenta ação executiva em Abril de 2010.
Isto é, nem com a venda o insolvente viu o seu passivo diminuir.
Trata-se de uma constatação óbvia.
De destacar que o insolvente não tem nada em seu nome.
Resulta, a nosso ver, uma intenção de prejudicar os credores e dificultar o pagamento dos seus créditos.
Está assim verificada a alínea d) do nº 2 do art. 186º, ao verificar-se uma dissipação do seu único bem em benefício de um terceiro, neste caso a sua irmã, com prejuízo para os credores.
Ao transmitir o único bem que tinha, fê-lo a troco de uma quantia irrisória e sem que a sua dívida diminuísse.”
Ora, de forma alguma se poderia dar como provado, designadamente, que a irmã do insolvente tenha assumido a dívida global do irmão, dado que uma coisa é declarar-se numa escritura que se assume uma determinada dívida e, outra, assumir, efetivamente, tal dívida.
No caso em apreço, não está demonstrado que a irmã do insolvente que, aliás, veio a tornar-se, igualmente insolvente, tenha assumido tal dívida e, menos ainda, que os credores do insolvente tivessem concordado com tal assunção.
Assim sendo, não podemos deixar de subscrever a posição defendida pela 1ª instância, afigurando-se-nos, porém, que tal situação integra as previsões dos nºs 1 e 2 alínea d) do artigo 186º do CIRE.
Quanto à questão do nexo de causalidade, trata-se de saber se deverá concluir-se pela sua verificação, nexo esse que se deverá estabelecer entre a conduta do insolvente e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
Adaptando a posição que defendemos no Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/10/2012, na apelação nº 546/06.7TBAMR.G1, da 2ª Secção, a outro propósito, diremos que a nossa lei adotou a designada doutrina da causalidade adequada, consagrada no artigo 563º do Código Civil, para que um facto seja causa de um resultado é necessário, antes de mais, no plano naturalístico, que ele seja condição sem a qual o resultado não se teria verificado e, depois, que em abstrato ou em geral, seja causa adequada do mesmo.
Com efeito, a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um resultado sofrido, para que este seja reparado.
Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em abstrato e em geral, adequado e apropriado para provar o resultado.
Tal significa que a doutrina da causalidade adequada determina que o nexo da causalidade coenvolva matéria de facto (nexo naturalístico: o facto condição sem o qual o dano não se teria verificado) e matéria de direito (nexo de adequação: que o facto, em abstrato ou geral, seja causa adequada do resultado).
Como ensina Galvão Telles (citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 578) “determinada ação será causa adequada de certo prejuízo se, tomadas em conta as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa ação ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.”
Daqui resulta, como bem se observa no Ac. S.T.J. de 15-1-2002 (Col. Ac. S.T.J., X, 1.º, 38), que, "de acordo com a teoria da adequação, só deve ser tida em conta como causa do dano aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o agente (tendo em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis) se mostrava como apta, idónea ou adequada a produzir esse dano.
Mas para que um facto deva considerar-se causa adequada daqueles danos (enquanto resultados) sofridos por outrem, é preciso que tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo-se, assim, que o julgador se coloque na situação concreta do agente para a emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria.”
Do exposto flui que a teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa.
Segundo a formulação positiva (mais restrita), o facto só será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal, ou típica daquele, isto é, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação.
Na formulação negativa (mais ampla), o facto que atuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais, excecionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
Por mais criteriosa, deve reputar-se adotada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Antunes Varela, Obra citada, págs. 921, 922 e 930; Pedro Nunes de Carvalho (Obra citada, pág. 61).
Consequentemente, o comando do artigo 563.º do Código Civil “deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Volume IV, 4.ª edição, pág. 579) (Acórdão do STJ de 01/07/2003, disponível na Base de Dados do Ministério da Justiça, no endereço www.dgsi.pt)”.
Mas para que um facto deva considerar-se causa adequada daqueles danos sofridos por outrem, é preciso que tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo-se, assim, que o julgador se coloque na situação concreta do agente para a emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria.”
Conforme tivemos oportunidade de referir, o nexo de causalidade terá de se verificar, em geral, entre a conduta do insolvente e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
Ora a conduta do insolvente refere-se à venda do imóvel, pelo preço de €4.000,00, com um valor patrimonial de €74.119,00, à data da escritura, que naturalmente, dificulta, agrava a situação de insolvência do devedor, uma vez que este era o único bem que o mesmo possuía, daí que se verifique inequivocamente o nexo de causalidade.
Assim sendo, deverá manter-se a decisão da matéria de facto e manter-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a apelação.
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E) Em conclusão:
1) Presume-se, juris et de jure, culposa, a insolvência em que se verifique qualquer uma das situações previstas no artigo 186.º n.º 2 do CIRE;
2) O nexo de causalidade terá de se verificar, em geral, entre a conduta do insolvente e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela massa insolvente.
Notifique.
Guimarães, 05/03/2015
Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte
Fernando Freitas