Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3800/10.0TBBRG.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – O requerente do pedido de exoneração do passivo restante tem o ónus de alegar e provar os factos que fundamentam esse pedido, que, numa análise objectiva, segundo as regras da experiência, o tribunal controla no sentido de deferir ou indeferir liminarmente tal pedido.
2 – Quando se apresente à insolvência fora dos prazos estabelecidos terá de alegar factos que levem a concluir que o atraso não causou prejuízos aos credores.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

P… Lda, requereu a insolvência de A…, que foi declarada por sentença a 11/08/2010, que transitou em julgado.
A A… a 20/10/2010 requereu a exoneração do passivo restante, alegando, em síntese, que estão preenchidos os pressupostos do artigo 237 e 239 do CIRE e que se não verifica nenhum dos pressupostos constantes no artigo 238 do mesmo diploma, que implicariam o indeferimento liminar.
Na Assembleia de Credores que ocorreu a 21/10/2010 os credores e o administrador de insolvência não se opuseram à declaração de insolvência e houve concessão de prazo de 10 dias para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante e foi ordenado um conjunto de diligencias requeridas pelo Ministério Público.
O administrador não se opôs. O Ministério Público opôs-se ao pedido.
Foi proferida decisão a 31/08/2011 no sentido do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
A insolvente, não se conformando com o decidido, interpôs recurso de apelação formulando conclusões.
Houve contra-alegações do Ministério Público que pugnaram pelo decidido.
Cumpre decidir.
Damos como assente a matéria de facto consignada na decisão recorrida que passamos a transcrever:

1- Em 2 de Junho de 2010, “P…, Lda.” requereu a declaração de insolvência de A….
2- Por sentença proferida em 11 de Agosto de 2010, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da Requerida.
3- Enquanto empresária em nome individual, a Insolvente, entre 1996 e 2004, explorou um estabelecimento comercial no Centro Comercial Gold Center, na cidade de Braga.
4- Enquanto empresária em nome individual e por causa da exploração do referido estabelecimento, contraiu as seguintes dívidas:
- Perante B… e M…relativas a rendas do estabelecimento onde a Insolvente desenvolvia a sua actividade, no montante global de € 19.532,21, vencido desde Julho de 2004;
- Perante a Fazenda Nacional proveniente de I.V.A. e coimas, no valor global de € 5.459,86, vencido desde Maio de 2002, Agosto de 2002, Novembro de 2002 e Janeiro de 2004;
- Perante a “P…, Lda.”, relativa a fornecimentos de mercadorias, no valor total de € 134,203, 80, encontrando-se o montante de €76.239,40 vencido, pelo menos, desde Outubro de 2001.
5- A Requerida encontra-se desempregada, desde o encerramento do aludido estabelecimento comercial, em 2004.
6- É mãe de três filhos menores e vive com o seu marido, em regime de comodato, com o seu quarto filho, maior de idade.
7- Não foi apreendido qualquer património à Insolvente.

Para além desta damos como assente ainda a seguinte matéria de facto assente em certidões juntas aos autos:
8 - A 2 de Fevereiro de 2007 a credora da insolvente D… Lda apresentou requerimento executivo contra esta cuja quantia exequenda era de 5.720,13€, a que lhe foi atribuído o número 953/07.08TBBRG, tendo por base 4 letras câmbio vencidas no ano de 2002 (fls. 254 a 260).
9 – D… Lda. faz distribuir um requerimento executivo contra a insolvente e marido a que foi aposto o número 687/06.0TBBRG, cuja quantia exequenda era de 11.735,22€, fundada numa sentença condenatória (doc. fls. 319 a 323).

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:
1 – Se há nulidade da decisão impugnada por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto no artigo 668 n.º 1 al. b) do CPC.
2 – Se do atraso na apresentação à insolvência houve prejuízos para os credores.
3 – Se foi violado o princípio do ónus da prova.
4 – Se a insolvente desconhecia, sem culpa grave, que o circunstancialismo que envolveu a insolvência, não perspectivava recuperação da empresa.

Vamos conhecer das questões enunciadas.
1 – A insolvente suscita a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentos, uma vez que não apontou um facto sequer onde se apoie para justificar a existência de prejuízos para os credores que estiveram na base do indeferimento liminar.
O artigo 668 n.º 1 al. b) do CPC pressupõe a ausência absoluta de fundamentação. Analisando a decisão recorrida, no seu todo, constata-se que o tribunal elencou os factos que considerou provados, definiu o quadro jurídico aplicável ao caso, onde destacou as duas correntes jurisprudenciais mais influentes para a decisão do caso e fez a subsunção dos princípios enunciados aos factos elencados. E nessa subsunção seguiu a orientação da corrente jurisprudencial que se basta com o vencimento dos juros e o avolumar das dívidas no seu todo, para concluir que estes factos são suficientes para ajuizar dos prejuízos causados aos credores em geral.
Julgamos que esta postura revela fundamentação de facto e de direito. Pode ser criticável, por não ser a mais correcta, mas já estamos no domínio da sindicância da decisão, no julgamento do caso, mas nunca ao nível do vício intrínseco da decisão, por falta de fundamentação. Mesmo que se admita que há deficiências na fundamentação, não carece esta de fundamentação, pelo que nunca seria de aplicar a norma invocada.
2, 3 e 4 – Vamos conhecer destas questões em conjunto, por razões sistemáticas.
A decisão recorrida defende que cabe à insolvente alegar e provar as circunstâncias de facto que permitam concluir que o atraso na apresentação à insolvência não redundou em prejuízo efectivo para os credores. E concluiu que dos factos provados não se pode deduzir que não houve prejuízo para os credores. Pelo contrário, na perspectiva do julgador esses prejuízos estão patentes no vencimento dos juros e no consequente avolumar do passivo global da insolvente.
E ainda, pelo volume do passivo, e a falta de rendimentos de bens para assegurar o seu pagamento, não se afigurava que pudesse existir para a insolvente qualquer perspectiva minimamente fundada de melhoria da sua situação económica.
Esta, por sua vez, advoga que incumbe aos credores e ao administrador da insolvência alegar e provar que houve prejuízos para os credores, e, como o não fizeram, houve a violação do ónus da aprova. E actuou sempre na convicção de que a situação económica ia melhorar, acreditou que iria restabelecer o equilíbrio da empresa. Daí que não se verifiquem os pressupostos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
As questões centram-se no ónus de alegar e provar os factos conexos com os prejuízos dos credores aquando da apresentação tardia à insolvência e se era perspectivável a melhoria das condições económicas e financeiras da empresa.
A questão do ónus de alegar e provar os factos conexos com os prejuízos é controversa na jurisprudência. Há duas posições bem definidas, em que uma defende que cabe aos requerentes do pedido de exoneração do passivo restante alegarem e provarem os fundamentos do pedido; e a outra advoga posição oposta.
O pedido de exoneração do passivo restante é formalizado num requerimento autónomo ou no de apresentação à insolvência. Em qualquer um deles, os requerentes terão de alegar factos que fundamentem o pedido, que se traduz na sua reabilitação, depois de disponibilizarem um determinado rendimento durante um período de cinco anos.
Este pedido passa por duas fases de controlo jurisdicional. A primeira tem como objectivo aferir do comportamento dos requerentes no desenvolvimento da actividade económica e a sua posição perante a apresentação à insolvência, como decorre do artigo 238 n.º1 do CIRE. Este normativo aponta os fundamentos do indeferimento, que acabam por ser os controladores do pedido, que, a não se verificarem, criam a confiança que o pedido poderá ser atingido, abrindo a porta para a segunda fase, com a decisão de que o rendimento disponível será confiado a um fiduciário para depois ser distribuído, ao fim de 5 anos, aos credores. E é nesta segunda fase, cumprido o disposto no artigo 239 do CIRE, que é proferida decisão a conceder a exoneração ou a rejeitá-la, ao abrigo do disposto no artigo 244 do mesmo diploma.
Daí que o requerimento do pedido de exoneração tenha de apresentar factos indiciadores de que não se verificam os pressupostos do indeferimento liminar. Porque sem eles o tribunal não poderá fazer o exame liminar, recorrendo a presunções judiciais para aquilatar da possibilidade do pedido passar à segunda fase. Não basta declarar expressa e formalmente que o requerente preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições nos artigos seguintes.
Terão de concretizar os requisitos, que julgamos que serão os que constam do artigo 238 n.º 1 do CIRE, de uma forma positiva, que estão na base dos fundamentos do pedido, porquanto são objecto da primeira sindicância jurisdicional, e que julgamos que é fundamental para que o processo tenha muitas possibilidade de êxito.
Também não se compreenderia que assim não fosse, porque um pedido tem de ter fundamentos materiais e não meramente formais, numa perspectiva de que quem pede tem de alegar os fundamentos desse pedido, correspondendo ao princípio da alegação, que lhe tem ínsito o ónus da prova.
O que está em causa é saber se a apresentação tardia à insolvência, desde que esta se concretizou, no caso em 2004, como consta da decisão recorrida, causou prejuízos aos credores. E se incumbe aos credores ou administrador da insolvência o ónus de provar os prejuízos ou à requerente do pedido de exoneração cuja apresentação à insolvência, apesar de tardia, não acarretou prejuízos.
O prejuízo terá de ser entendido como qualquer malefício para a actividade dos credores. E, neste caso, deverá ser conexionado com o fim e a natureza do processo de insolvência. Este processo tem como finalidade essencial a liquidação do património e o pagamento dos créditos aos credores de acordo com as regras de prioridade estabilizando a situação da empresa. É um processo urgente para que a situação fique resolvida no mais curto espaço de tempo, com vista a criar confiança no mercado, em que o tempo é um factor determinante no investimento e no giro comercial das empresas.
Daí que o beneficiário do pedido de exoneração do passivo restante tenha um curto prazo para se apresentar à insolvência, 60 dias quando é obrigado a fazê-lo ou 6 meses quando não tem essa obrigação. E isto está conexionado com o fim do processo de insolvência e com o período de tempo que o legislador considerou não haver prejuízo para os credores.
Pois, só quando são ultrapassados esses prazos é que se coloca a questão do prejuízo emergente do atraso. E o beneficiário terá de alegar e provar os factos que indiciem não haver prejuízos, analisados numa perspectiva objectiva, segundo as regras da experiência. Pois terá de provar que merece o benefício da reabilitação e não os credores. Estes apenas podem contribuir para contrariar esses factos alegando outros. Mas exigir o contrário será desvirtuar o conteúdo do benefício que pressupõe toda uma actividade antes e durante a insolvência de lealdade, boa fé, honestidade, fundamentos para justificarem o instituto da exoneração do passivo restante. Só assim se compreende a ratio da lei ao criar este instituto e fixar um regime de aprovação muito apertado.

Analisados os factos assentes constatamos que a requerente exerceu a actividade comercial entre 1996 a 2004, ficou com um passivo elevado, na ordem dos 176.651,09€, sendo 151.658€ respeitante ao fornecimento de mercadorias, 19.532€ de rendas e 5.459€ de IVA. Não existe escrituração da actividade. Não foi apreendido qualquer património por inexistir à data da declaração de insolvência.
Mas temos um período de tempo muito longo, cerca de 6 anos entre a apresentação à insolvência por parte dum credor e a cessação da actividade. Conjugando com a ausência de escrituração e de mercadorias, não se sabe do destino da mercadoria fornecida, que se presume que foi vendida e a requerente recebeu o respectivo preço. E também não se compreende como deixou acumular um valor tão elevado de rendas.
É estranho que tenha cessado a sua actividade em 2004 e não se tenha apresentado à insolvência. Tenha de ser um credor a fazê-lo e não se explique no requerimento do pedido de exoneração do passivo. Pois a sua inacção teve consequências. Pelo menos dois credores, um em 2006 e outro em 2007 apresentaram requerimento executivo para reaverem o preço das mercadorias fornecidas. Tiveram de investir dinheiro nestas acções e gastar tempo para as organizarem. Se tivesse sido apresentada à insolvência no tempo devido, não teriam esta despesa, bastando reclamar o seu crédito no processo de insolvência. Por outro lado, tinham a situação creditícia solucionada muito antes e a situação da empresa estaria há muito definida criando estabilidade no mercado.
Do comportamento passivo da requerente depreende-se um grande desinteresse e desrespeito pelos credores e pela actividade económica. E quem sabe má fé, fazendo desaparecer todo o património referente à sua actividade. Não é normal, típico de quem age de boa fé, com lealdade, cessar a sua actividade, sabendo que tem dívidas e não se apresente à insolvência, com vista a criar nos credores pelo menos a vontade de esclarecer a sua situação económica, sem esconder o que quer que seja.
E como o não fez, deveria, pelo menos, no requerimento do pedido de exoneração do passivo restante, alegar factos concretos dos quais se pudesse aquilatar da sua honestidade e deixar os espíritos tranquilos dos credores, no sentido de que não foram defraudados. Pois, sabe-se que os credores ao não serem pagos sofrem as consequências no seu negócio tendo de recorrer ao crédito ou a passar por dificuldades no giro comercial.
Isso traduz-se em despesas e quando se não define a situação, maior a incerteza na garantia do seu reembolso. E isto tem custos de gestão nas empresas. O que quer dizer que o atraso na apresentação à insolvência gera sempre prejuízos aos credores.
E neste caso, pelo menos os dois credores que foram requer a execução nos anos de 2006 e 2007 tiveram despesas por causa da tardia apresentação à insolvência, na medida que constituíram mandatário e tiveram de pagar preparos, que nem sequer foi da iniciativa da requerente. O que quer dizer que a requerente não provou que não causou prejuízos aos credores e até se deduz, segundo as regras da experiência, que a apresentação tardia gerou prejuízos concretos, pelo menos a dois credores.
E nem se diga que a requerente acreditava na recuperação da empresa. Face ao volume de passivo, bem percebeu que não conseguia recuperar e acabou por desistir, encerrando a actividade. Qualquer pessoa medianamente inteligente e arguta nos negócios se aperceberia desta situação.

Em face de todo o exposto, é de concluir que a requerente não alegou factos e muito menos os provou no sentido de que não provocou prejuízos aos credores com o atraso de 6 anos na apresentação à insolvência como se impunha, para fundamentar o seu pedido. E, ainda se concluiu que este atraso provocou prejuízos globais e em concreto pelo menos em dois credores.

Assim, é de manter a decisão recorrida porque se verificam os pressuposto do artigo 238 n.º 1 al. d) do CIRE.

Concluindo: 1 – O requerente do pedido de exoneração do passivo restante tem o ónus de alegar e provar os factos que fundamentam esse pedido, que, numa análise objectiva, segundo as regras da experiência, o tribunal controla no sentido de deferir ou indeferir liminarmente tal pedido.
2 – Quando se apresente à insolvência fora dos prazos estabelecidos terá de alegar factos que levem a concluir que o atraso não causou prejuízos aos credores.

Decisão
Pelo exposto acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo da requerente
Guimarães, 7 de Fevereiro de 2012