Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2458/22.8T8VCT-A.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DE BENS
DIVÓRCIO
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
O inventário para partilha de bens, decorrente de divórcio judicial, não está sujeito à distribuição, por dever ser apensado ao processo que decretou o divórcio que fundamenta o inventário, nos termos da ressalva da al. a) do nº1 do art.206º, do nº2 do art.206º, em referência ao art.1083º/1-b) e ao art.1133º do C. P. Civil.
Decisão Texto Integral:
Os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte
ACÓRDÃO

I. Relatório:

No presente processo de inventário, instaurado por AA contra BB, por apenso ao processo de divórcio nº 2458/22.8T8VCT que correu entre ambos (no qual foi decretado o divórcio a 13.09.2022):

1. A 10.01.2023 foi proferido o seguinte despacho «Remeta à distribuição»  
2. A 11.01.2023 a secretaria notificou o requerente do despacho de 1 supra nos seguintes termos:
«Fica notificado, na qualidade de Patrono, relativamente ao processo supra identificado, do conteúdo do despacho de que se junta cópia
Uma vez que o Apoio judiciário junto com a petição inicial, diz respeito ao processo principal, deve no prazo de 10 dias, juntar a taxa de justiça devida pelo Inventário bem como procuração ou decisão de Apoio e nomeação de patrono para este autos, a fim de posteriormente serem remetidos à distribuição.».
3. A 12.01.2023 o requerente apresentou o seguinte requerimento:
«1.
O processo de inventário para partilha de bens comuns, na sequência de divórcio, corre por apenso ao processo, no qual foi proferido o divórcio.
2.
Neste conspecto, esclarece a Lei n-º 34/2004, de 29 de Julho, no seu artigo 18.º, n.º 4, o seguinte: “[o] apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso.”
3.
O apoio judiciário concedido ao requerente abrange as modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, bem como nomeação e pagamento da compensação de patrono.
4.
Em face do expendido naquele diploma legal, o apoio judiciário concedido no processo (principal) de divórcio, nas modalidades em que foi concedido, é extensível ao processo de inventário, que corre por apenso àquele, nomeadamente, aos presentes autos.
De V.ª Exa. espera deferimento,»
4. A 13.01.2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Aguarde-se que seja comprovado o apoio ou o pagamento, atendendo a que os presentes não tramitarão por apenso.»
5. O recorrente interpôs recurso do despacho de I- 4 supra, apresentando as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso vem do douto despacho que considerou, em particular, que os presentes autos de processo de inventário, para meação de bens comuns do casal, não serão tramitados por apenso ao processo de divórcio, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores, juiz ..., sob o processo n.º 2458/22.8T8VCT.
2. Ora, a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, que entrou em vigor em 1/01/2020, veio, além do mais, revogar o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, aprovando um novo regime para o processo de inventário notarial e reintroduzindo o inventário judicial no Código de Processo Civil (doravante CPC), nos seus artigos 1082.º a 1135.º.
3. O artigo 1083.º, do C.P.C, veio, assim, delimitar os casos em que o processo de inventário é da exclusiva competência dos Tribunais Judiciais, isto é, “[s]empre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.”
4. Por outro lado, dispõe o artigo 122.º, n.º 2, da LOSJ, que “[o]s juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
5. Portanto, é linear concluir que o inventário tem de correr nos tribunais judiciais, designadamente nos Juízos de Família e Menores, quando seja subsequente à ação de divórcio judicial, ao abrigo da al. b), do n.º 1, do artigo 1083.º, do C.P.C., conjugado com o disposto no n.º 2, o artigo 122.º, da LOSJ.
6. Além disso, dispõe o artigo 206.º, n.º 2, do C.P.C, que “as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.”
7. É, também, este o entendimento da jurisprudência maioritária (Acórdão do, Tribunal da Relação de Coimbra, de 23/02/2021, processo n.º 435/20.1T8PBL-A.C1, relator: António Pires Robalo; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14/07/2020, processo n.º 699/16.6T8CSC-D.L1-7, relator: Maria da Conceição Saavedra): “Tendo a Lei n.º 117/2019, de 13.9, entrada em vigor em 1.1.2020, reintroduzido o inventário judicial no Código de Processo Civil (arts. 1082 a 1135), e cabendo aos juízes de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil (sem prejuízo das competências atribuídas às conservatórias do registo civil em matéria de divórcio ou separação por mútuo consentimento), cabe-lhes ainda tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos arts. 122.º, n.º 2, da LOSJ, e 206, n.º 2, do C.P.C…”
8. Conforme vem referido nos cadernos do CEJ, “Inventário: o novo regime” (Maio 2020, página 31), pelo Advogado e Membro do Grupo de Trabalho de revisão do Regime Jurídico do Processo de Inventário, Pedro Pinheiro Torres, “será, porventura, relevante, fazer referência aos tribunais competentes para a instauração do processo de inventário para partilha de bens comuns do casal dissolvido por divórcio, uma vez que a solução quanto ao tribunal competente dependerá do órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente o divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2, do artigo 206.º, do CPC; (…)”.
9. Neste mesmo sentido se pronunciaram António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2020, Vol. II, pagina 527), na sequência da “restauração” da competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, entendem que “faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou de separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão)”, ao abrigo do art. 206.º, n.º 2 do C.P.C.
10. No caso em apreço o divórcio judicial foi decretado pelo Tribunal Judicial, Juízo de Família e Menores ..., juiz ..., pelo que o processo de inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal deverá correr por apenso a esse processo de divórcio, pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, nos termos do artigo 206.º, n.º 2, do C.P.C.
11. Este entendimento é o que melhor de coaduna com a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar, nomeadamente, o inventário requerido na sequência do divórcio judicial, sendo ainda a mais conforme com o princípio da economia processual, uma vez que no processo de divórcio poderão constar elementos relevantes para a decisão da partilha.
12. Assim, com tal preterição o Tribunal a quo violou, entre outros, o artigo 1083.º, o artigo 206.º, n.º 2, ambos do C.P.C., e o artigo 122, n.º 2, da LOSJ.
13. Em face do exposto, deve o despacho Recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a apensação do processo de inventário ao processo de divórcio n.º 2458/22.8T8VCT, que correu termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, juiz de Família e Menores, juiz ....
Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser concedido provimento ao recurso, substituindo o douto despacho por outro que determine a apensação do processo de inventário ao processo de divórcio n.º 2458/22.8T8VCT, que correu termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Juiz de Família e Menores, juiz ..., assim se fazendo inteira JUSTIÇA!».
6. Determinada a citação para o recurso e para a causa, o interessado apresentou reclamação à relação de bens e não apresentou resposta às alegações de recurso.
7. Recebido o recurso para subida imediata e nos próprios autos, foi o mesmo recebido neste sentido e com efeito devolutivo.
8. Colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.
Define-se, como questão a decidir, se o processo de inventário para partilha de bens comuns do casal, subsequente a divórcio judicial, corre por apenso a este.

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada:
Julga-se provada, por força probatória plena dos atos processuais, toda a matéria relatada em I supra (art.371º do C. Civil; art.607º/4 do C. P. Civil).

2. Apreciação do objeto do recurso:
O objeto do recurso colocado à decisão deste Tribunal ad quem respeita à conexão ou falta de conexão do inventário ao processo de divórcio judicial.
Esta falta de conexão entre ambos os processos foi decidida no despacho de 10.01.2023, complementado pelo despacho de 13.01.2023, uma vez que, numa circunstância em que nenhum dos despachos foi fundamentado (o que determinaria a sua nulidade nos termos do art.615º/1-b) do C. P. Civil, em referência à inobservância do art.154º do C. P. Civil, se a mesma tivesse sido arguida no recurso), é o despacho de 13.01.2023 que permite entender que a ordem de distribuição de 10.01.2023 se refere ao processo de inventário, a desapensar do processo de divórcio, por o Tribunal a quo ter entendido que aquele não corre por apenso a este.
Ora, discutindo o recurso a decisão de falta de conexão, decidida de forma complementar nos dois despachos de 10 e 13.01.2023, considera-se que estes são objeto substancial do recurso (interposto em prazo em relação aos dois), apesar do recorrente ter apenas mencionado expressamente o segundo despacho.
Apreciar-se-á, assim, este recurso, de acordo com os factos provados e o regime legal aplicável.

1. Enquadramento jurídico:
1.1. O regime geral da distribuição e da apensação inicial de petições ou de requerimentos iniciais encontra-se previsto no art.206º do C. P. Civil, que define que «1 - Estão sujeitos a distribuição na 1.ª instância: a) Os atos processuais que importem começo de causa, salvo se esta depender de outra já distribuída; (…) 2 - As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.».
Desta forma, as petições ou os requerimentos iniciais que iniciam uma causa: devem ser distribuídos se não forem dependentes de uma causa; devem ser apensados à causa de que dependem, quando esta dependência for determinada pela lei ou por despacho.
1.2. O regime jurídico do processo de inventário, introduzido pela Lei nº 117/2019 de 13-09-2019, prevê especificamente, por outro lado: no art. 1083º/1-b) do C. P. Civil, que «1 - O processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais: (…) b) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial; (…)»); no art.1133º/1 do C. P. Civil, que «1. Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha de bens comuns.».
Este regime jurídico, apesar de estar expresso de forma distinta daquele previsto no art.1404º/3 do Código de Processo Civil de 1961 (que definia a apensação de processos), tem sido compreendido, sem controvérsia, como contemplando a dependência entre a ação de divórcio judicial (na qual o mesmo tenha sido decretado- arts.931ºe 932º do C. P. Civil) e a ação especial de inventário para partilha dos bens comuns por divórcio (arts.1133º e 1134º do C. P. Civil).
De facto, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres: em anotação à al. b) do nº1 do art.1083º do C. P. Civil, referem que nesta previsão se integram «…os inventários, previstos e regulados no art.1133.º, que sejam consequência de uma decisão judicial que, pondo termo ao casamento, originou a necessidade de partilha dos bens comuns do casal. Estes inventários devem considerar-se abrangidos pela regra da competência exclusiva do n.º1, al. b), pelo que, havendo litígio entre os ex-cônjuges, deve ser requerido o necessário inventário no tribunal judicial.»; em anotação ao art.1133º do C. P. Civil, relativo ao inventário por separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, referem «Esse inventário constitui um desenvolvimento ou uma consequência de uma decisão judicial, estando por isso legalmente relacionado com a causa em que foi proferida a decisão que pôs termo ao casamento ou que decretou a separação» e, que, apesar da não reprodução do nº3 do art.1404º do C. P. Civil de 1961, «o inventário para partilha de bens comuns não deixou de constituir dependência de uma acção matrimonial (designadamente de um processo de divórcio), já que o mesmo se configura como decorrência ou consequência da sentença que dissolveu ou considerou inválido o casamento ou que decretou a separação de bens. Opera, por isso, o efeito da conexão estabelecida no art.206.º, n.º2, nos termos do qual as causas que por lei ou despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.», sendo que «Aliás, esta dependência do inventário perante a antecedente acção matrimonial resulta da norma que regula o tribunal que é materialmente competente para esse inventário. A competência material encontra-se atribuída aos juízos de família e menores (…) (art.122.º, n.º2, LOSJ).»[i].
Por sua vez, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, em anotação ao art.206º do C. P. Civil, integram expressamente o inventário para partilha de bens por divórcio nos exemplos da apensação do nº2 da norma- «Constituem exemplos da apensação a efetuar nos termos do nº2 os seguintes: (…) processos de inventário na decorrência de divórcio declarado pelo tribunal (art.1083º, nº1, al.b))»[ii].

2. Situação em análise:
Apreciando a decisão recorrida, face aos factos provados e ao regime legal aplicável, verifica-se que os despachos de 10 e 13.01.2023, para além de não disporem de qualquer fundamentação, padecem de erro de direito, uma vez: que foi requerido pelo recorrente o inventário para partilha de bens, por apenso ao processo judicial de divórcio que declarou dissolvido o casamento entre os cônjuges e, nessa sequência, permite a futura partilha de bens comuns do casal; que este inventário decorrente da sentença de divórcio judicial não está sujeito à distribuição, por dever ser apensado ao processo que decretou o divórcio que fundamenta o inventário, nos termos da ressalva da al. a) do nº1 do art.206º, do nº2 do art.206º, em referência ao art.1083º/1-b) e ao art.1133º do C. P. Civil.
Assim, procede o recurso de apelação e decisão recorrida deve ser revogada.

IV- Decisão:

Pelo exposto, os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães julgam procedente a apelação e, nessa sequência:

1. Revogam a decisão recorrida (de 10 e 13.01.2023).
2. Admitem que o processo de inventário para partilha de bens decorrente do divórcio corra por apenso ao processo de divórcio nº2458/22.8T8VCT.
*
Custas do recurso pelo recorrente, por não ter havido vencimento e ter tirado proveito do recurso (art.527º do C. P. Civil), sem prejuízo da dispensa do pagamento das mesmas ao abrigo do apoio judiciário.
*
Guimarães, 10 de julho de 2023
Assinado eletronicamente pela Juiz Relatora, pela 1ª e pelo 2º Adjuntos

Alexandra M. Viana P. Lopes
Rosália Cunha
Fernando Barroso Cabanelas

Sumário da Relatora:

O inventário para partilha de bens, decorrente de divórcio judicial, não está sujeito à distribuição, por dever ser apensado ao processo que decretou o divórcio que fundamenta o inventário, nos termos da ressalva da al. a) do nº1 do art.206º, do nº2 do art.206º, em referência ao art.1083º/1-b) e ao art.1133º do C. P. Civil.


[i] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in «O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil», Almedina, setembro de 2021, nota 4 ao art.1083º, pág.24 e notas 6 e 7 ao art.1133º, pág. 157.
[ii] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 2ª Edição, 2021, Reimpressão, pág.258.