Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3002/21.0T8VCT.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INCOMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO ADMINISTRATIVO
PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLICO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especificamente atribuídas.
2. Na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram.
3. Em contraponto a essas vantagens, temos de conviver com questões e conflitos de competência entre Tribunais, que são um puro desperdício de recursos e uma pura perda de tempo, do ponto de vista daquilo que realmente interessa, que é a resolução dos litígios que as partes submetem ao Tribunal.
4. A competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, afere-se em face do pedido formulado, concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio tal como é configurada pelo autor.
5. Litígios emergentes de um “protocolo” celebrado entre uma Câmara Municipal, uma Associação para Cooperação entre Baldios, Juntas de Freguesia e Conselhos Directivos de Baldios, pelo qual aquela prossegue a sua política de prevenção de incêndios florestais, na área do município, política essa que se insere no âmbito das suas atribuições e à qual, nos termos do permitido Regime Jurídico, deliberou associar outras entidades, transferindo para esta determinadas actividades inseridas no âmbito das suas competências, caem no âmbito da competência dos Tribunais Administrativos, por força da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

A X – Associação para a Cooperação entre Baldios, com sinais nos autos, intentou contra a JUNTA DE FREGUESIA DE Y, pessoa colectiva nº ………, com sede na Av. … Y e CONSELHO DIRETIVO DE BALDIOS DE Y, pessoa colectiva ………, com sede no Lugar de … Y,
Acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, nos termos do DL 269/98, de 1 de Setembro, na qual pede que as rés sejam solidariamente condenadas a pagar-lhe a quantia líquida de € 5.400,00, acrescida de juros de mora vencidos no valor de €468,56.

Para tanto, alega em síntese que celebrou com as rés, em 18 de Janeiro de 2018, um protocolo designado por “Protocolo - Relativo à Equipa de Sapadores Florestais 21 – 111”, no qual são outorgantes, além da Autora e Réus, a Câmara Municipal de ..., a freguesia de ... e a União das freguesias de ..., ... e ... (doc. 1 junto com a petição inicial e aqui dado por integralmente reproduzido).
Pelo referido protocolo, foi dada continuidade ao contrato de parceria celebrado em 2007 entre a Câmara Municipal de ... e a X, a Junta de Freguesia de Y, o Conselho Directivo de Baldios de Y, a Junta de Freguesia de ..., o Conselho Directivo e as Juntas de Freguesia de …, … e …. Nos termos desse protocolo, a Equipa de Sapadores Florestais constituída pela Autora presta a sua actividade à Câmara Municipal de ... e às freguesias aí enunciadas, através de acções de silvicultura preventiva, de vigilância das áreas florestais, de apoio ao combate a incêndios florestais, a realização de operações de rescaldo e acções de sensibilização pública para prevenção de incêndios florestais, sendo a área de intervenção da Equipa de Sapadores Florestais as áreas florestais sob administração de cada uma das freguesias.
Como se alcança do referido protocolo, as Rés obrigaram-se a comparticipar nas despesas da Equipa de Sapadores Florestais, constituída por 5 elementos, com a quantia de € 150,00 mensais, conforme cláusula 4ª desse documento.
Aconteceu que todas as partes Outorgantes cumpriram com o acordado, à excepção das Rés, que ao longo dos anos 2018, 2019, 2020, não pagaram qualquer quantia à Autora, nem denunciaram o Protocolo. Pelo que a Autora reclama dos Réus a quantia de € 5.868,56.

As rés apresentaram contestação. Começam por invocar a prescrição do direito da autora. Depois, suscitam a questão de o referido protocolo já não estar em vigor, por não ter sido renovado. Admitindo que está, dizem que a autora nos anos de 2018 e 2019 nunca solicitou a colaboração das Rés, muito menos lhes entregou qualquer plano de actividades, ou solicitou qualquer colaboração das Rés, como estava obrigada a fazer. E no ano de 2020 a autora não prestou qualquer serviço nas áreas pertencentes as Rés (sob domínio das Rés- baldios e área da junta de freguesia).
Em suma, alegam que em 2019, 2020 e 2021 nunca apareceu qualquer elemento a mando da Autora, pelo que nenhum trabalho foi prestado e nada é devido à Autora.

O Tribunal determinou que fossem ouvidas as partes, em dez dias, quanto à eventual verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria – (contrato público).

A autora veio pronunciar-se dizendo que o presente litígio não se enquadra no artigo 2º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos nem no artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mormente na alínea e) deste normativo.
Com efeito, o protocolo celebrado não se trata de contrato público, qualquer que seja a sua designação e a sua natureza administrativa ou privada. Nem seguiu ou tinha que seguir o ajuste directo, a negociação com publicação prévia de anúncio, o concurso público, ou concurso limitado por prévia qualificação e diálogo concorrencial, para a sua adjudicação, conforme o previsto no Código dos Contratos Públicos. Não sendo por isso competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

As rés vieram também pronunciar-se, dizendo em síntese que o n.º 3 do artº. 212º da CRP dispõe que "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais". O art. 4º do ETAF enuncia exemplificativamente litígios sujeitos ao foro administrativo, tendo eliminado o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido. O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público.
A competência do Tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos AA é determinante. Ora, a Autora tem por base um contrato de prestação de serviços, onde são parte a Câmara Municipal, as Juntas de Freguesia, organismos públicos. O fim do contrato é a defesa de património publico. Pelo que, apesar de não se tratar de adjudicação que implique concurso publico, por razão do valor da adjudicação, contudo as partes perfilham interesse público. Assim entendem as Rés que se mostra verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria, devendo ser absolvidas da instância.

Cumprido o contraditório, foi proferido despacho que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência material do tribunal comum, ao abrigo do disposto nos artigos 99º,1, 278º,1,a) e 577º,a) CPC, e absolveu as Rés da instância.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,b), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
A. A competência material do Tribunal tem de aferir-se face à natureza da relação jurídica material ou subjacente, tal como é apresentada ao Tribunal, neste caso, na acção Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contrato, no confronto entre o pedido e a causa de pedir.
B. As Rés obrigaram-se a comparticipar nas despesas da Equipa de Sapadores Florestais com a quantia de 150,00€ mensais.
C. Todas as outras partes outorgantes do protocolo cumpriram o acordado à excepção das Rés Junta de Freguesia de Y e Conselho Directivo de Baldios da mesma freguesia que não pagaram as prestações mensais referentes aos anos de 2018, 2019 e 2020.
D. A Autora reclamou o pagamento da quantia de 5.400,00€, acrescidos de juros de mora vencidos no valor de € 468,56 à data de instauração da acção.
E. De acordo com a causa de pedir e o pedido não existe qualquer relação jurídica de cariz administrativo a considerar, mas apenas um contrato de prestação de serviços em que um dos contraentes é uma entidade administrativa do poder local, não estando, porém, em causa nos autos o exercício do denominado “ius imperium”.
F. A causa de pedir nos autos reside na violação da relação sinalagmática pelo não pagamento dos valores acordados.
G. In casu, a solução do litígio, tanto quanto ele é configurado pelas partes, não é regulado por normas de direito administrativo, mas pelas regras comuns do direito civil.
H. O caso vertente nos autos, não se enquadra na previsão do artigo 4º, nº 1 alínea e) do ETAF, tanto mais que não haverá que fazer apelo a normas do direito público para apreciar a acção.
I. Não está em causa a validade de qualquer acto pré-contratual, nem a interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratos públicos, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.
J. Em causa nos autos, temos apenas comportamentos de natureza privada no contexto de uma acção que tem por objecto o pagamento do valor acordado no protocolo resultante da prestação de um serviço de limpeza, vigilância e apoio ao combate de incêndios florestais pela equipa de sapadores florestais constituída pela Autora.
K. O que está em causa nos autos é singelamente uma acção de cobrança de dívida, não à Câmara Municipal, mas à Junta de Freguesia de Y e ao Conselho Directivo de Baldios da mesma freguesia que se obrigaram a pagar 150,00€ por mês e não pagaram.
L. Estando a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais imperativamente vinculada e condicionada à existência de um litígio emergente das relações jurídico-administrativas, reguladas por normas materialmente administrativas, no âmbito de actuação de entidades que exercem concretas competências de direito público, dotadas de “ius imperium.”
M. A decisão em recurso, violou as disposições contidas nos artigos 64º, 96º alínea a); 99º, nº 1; 576º nº 2 e 577.º, n. º1, alínea a), todos do CPC, e os artigos 40º e 144º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pela Lei 62/2013 de 26 de Agosto.

As recorridas contra-alegaram, defendendo que a decisão recorrida não padece das ilegalidades apontadas pela recorrente, devendo ser confirmada.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se os Tribunais judiciais têm competência material para conhecer do presente litígio.

III
Vejamos o teor integral da decisão recorrida:

Da excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria:
A X – Associação para a Cooperação entre Baldios, com sinais nos autos, pediram ao tribunal a condenação da Ré Junta de Freguesia de Y e Conselho Directivo de Baldios de Y no pagamento à Autora da quantia de € 5.400,00, acrescida de juros de mora vencidos no valor € 468,56, por incumprimento das Rés do Protocolo celebrado entre as partes e a Câmara Municipal de ....
A questão que se coloca, é saber se este tribunal é competente, em razão da matéria, para conhecer da pretensão da Autora.

Apreciando e decidindo:
A competência do tribunal em razão da matéria afere-se sempre pela pretensão ou pedido formulado pelo Autor (Vide, Acórdãos da Relação de Évora, de 08 de Novembro de 1979, CJ, 4º - 397, da Relação do Porto de 05 de Junho de 1986, BMJ, 358º-606, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1º, 88).
Conforme dispõem os artigos 212º, nº. 3 da Constituição da República Portuguesa, e o artigo 3º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência para a resolução de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, para o conhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos, atribuídos ou qualificáveis como de natureza público/administrativa, cujo âmbito esteja delimitado por normas de direito administrativo, e implique a intervenção de um ente público no exercício das suas funções públicas, está atribuída aos tribunais administrativos.
Para além das relações jurídicas stricto sensu, constituídas entre particulares e a administração, e que conferem aos particulares direitos subjectivos determinados, com as correspectivas obrigações do lado da administração pública, os particulares ocupam em consequência da actividade administrativa exercida em cumprimento da prossecução do interesse público –artigo 266º da Constituição da República Portuguesa– determinadas posições jurídicas subjectivas, que lhes conferem, direitos ou interesses legalmente protegidos, tutelados pela Constituição – artigo 268º, nº. 4, da Constituição da República Portuguesa – e pela legislação administrativa, nomeadamente através dos meios judiciais específicos da jurisdição administrativa.
A apreciação da existência, e do âmbito desses direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos, depende exclusivamente da apreciação das normas de direito administrativo que os atribuem.
A competência material dos tribunais está distribuída entre as diferentes ordens jurisdicionais que, com exclusão da jurisdição comum, são especialmente vocacionadas para a apreciação de litígios que se situem no âmbito da respectiva especialidade, e os tribunais comuns, aos quais, está atribuída competência material residual, para dirimir todos os litígios cuja competência não esteja atribuída a nenhuma outra jurisdição – artigos 64º e 65º do Código de Processo Civil.
Assim, conclui-se que a competência do tribunal comum, afere-se por “exclusão de partes”, no sentido de que serão da sua competência todos os litígios cujo conhecimento não esteja atribuído por lei a nenhuma outra jurisdição.
Nos presentes autos está em causa a celebração de um Protocolo, no qual são outorgantes Autora e Rés e ainda a Câmara Municipal de ..., a freguesia da ... e a União de freguesias de ..., ... e ....
Importa agora apreciar a natureza jurídica do contrato celebrado entre as partes, denominado de Protocolo.
As competências próprias dos órgãos autárquicos estavam reguladas na Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, a qual foi sofrendo várias alterações ao longo do tempo.
De acordo com o disposto no art. 64º, nº 4, alínea c), uma das competências atribuídas à Câmara Municipal era a de “Participar na prestação de serviços a estratos sociais desfavorecidos ou dependentes, em parceria com as entidades competentes da administração central, e prestar apoio aos referidos estratos sociais, pelos meios adequados e nas condições constantes de regulamento municipal”, permitindo-lhe o art. 67º, celebrar protocolos, no âmbito desta competência, quer com instituições públicas, quer particulares e cooperativas “que desenvolvam a sua actividade na área do município, em termos que protejam cabalmente os direitos e deveres de cada uma das partes e o uso, pela comunidade local, dos equipamentos”.
Actualmente, e na redacção da Lei 75/2013, de 12 de Setembro, o artigo 33º, n.º 1, alíneas o) e p), estipulam que compete à Câmara Municipal: o) Deliberar sobre as formas de apoio a entidades e organismos legalmente existentes, nomeadamente com vista à execução de obras ou à realização de eventos de interesse para o município, bem como à informação e defesa dos direitos dos cidadãos; p) Deliberar sobre a concessão de apoio financeiro ou de qualquer outra natureza a instituições legalmente constituídas ou participadas pelos trabalhadores do município, tendo por objecto o desenvolvimento de actividades culturais, recreativas e desportivas, ou a concessão de benefícios sociais aos mesmos e respectivos familiares;
Daqui se extrai que se encontra no âmbito da competência da Câmara Municipal apoiar ou comparticipar, pelos meios adequados, no apoio a actividades de interesse municipal, de natureza social, cultural, desportiva, recreativa ou outra.
E foi no âmbito das respectivas que a Câmara Municipal e as partes dos autos celebraram o contrato que se encontra em discussão nos autos.
Daqui se extrai que a relação jurídica que, com a celebração do supramencionado protocolo, se estabeleceu entre a Câmara Municipal e os demais outorgantes, designadamente as partes envolvidas nos autos, é regulada, sob o ponto de vista material, pelo Direito Administrativo.
A relação jurídica assim estabelecida através do “Protocolo relativo à equipa de Sapadores Florestais 21-111” em referência, encontra por conseguinte apoio legal nas citadas disposições do Regime Jurídico das Autarquias Locais, normas essas que, enquanto disciplinadoras de actividade e funcionamento da Administração ou atributivas de competências a um órgão ou a uma pessoa colectiva de direito público são, por natureza, normas jurídicas de direito público ou de direito administrativo (cfr. nomeadamente Marcelo Caetano, MDA I vol. pág. 42 e sgs. e Esteves de Oliveira, Direito Administrativo (lições), pág. 82 e segs.
Assim com aquele “protocolo” visou a Câmara Municipal a prossecução da política prevenção de incêndios florestais, na área do município, política essa que se insere no âmbito das suas atribuições e à qual, nos termos do permitido Regime Jurídico, deliberou associar outras entidades, transferindo para esta determinadas actividades inseridas no âmbito das suas competências.
No entender de Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, pág. 41, o que distingue os contratos administrativos dos contratos de direito privado é “uma cláusula – explícita ou implícita – de sujeição do contraente particular ao interesse público e a certos poderes de autoridade da Administração”.
A Câmara Municipal e a Junta de Freguesia, enquanto órgão de direito público e que prossegue interesses predominantemente públicos ou colectivos, nos termos do permitido pelos citados preceitos se “associa” pelo “protocolo” em questão a outras entidades, com o objectivo destas desenvolverem ou a substituírem na execução de determinados serviços ou actividades de interesse predominantemente público relacionadas com a prevenção de incêndios florestais na área do município.
Assim o “acordo de vontades” mostra-se todo ele orientado à realização de necessidades predominantemente públicas ou de interesse público, integradas no conjunto das atribuições das pessoas colectivas envolvidas.
Assim, estando em causa o incumprimento de um contrato administrativo, crê-se demonstrado que a competência material para a execução pertence aos tribunais administrativos, nos termos do disposto nos arts. 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, alínea e) do ETAF, e 212.º, n.º 3 da Constituição.
Trata-se, pois, de uma posição jurídica subjectiva do Autor face à administração, cujo conhecimento compete aos tribunais administrativos, carecendo a jurisdição comum de competência para o fazer, o que determina a incompetência em razão da matéria deste tribunal. Nos termos do artigo 96º do Código de Processo Civil, a infracção das regras da competência em razão da matéria, determina a incompetência absoluta do tribunal.
A verificação da excepção dilatória de incompetência material implica a absolvição das Rés da instância – artigos 99º, nº. 1, 278º, nº. 1, alínea a) e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julgo procedente a excepção dilatória de incompetência material do tribunal comum, ao abrigo do disposto nos artigos 99º, nº. 1, 278º, nº. 1, alínea a) e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil, e, consequentemente, absolvo as Rés, da instância”.
Vejamos.
É pacífico que, além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais (art. 209º CRP).
É pacífico que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º,1 CRP e 64º CPC): os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
É pacífico que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 212º,3 CRP): da mesma forma, estabelece o art. 1º,1 do ETAF, que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
É pacífico que o âmbito da jurisdição administrativa surge detalhadamente definido no art. 4º ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), cabendo nele, entre outros, a apreciação dos litígios que tenham por objecto questões relativas a “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4” (alínea f), e a condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime (alínea i), ou a validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes (alínea e)).
Vamos então tentar perceber quem tem razão.
Primeiro, se nos questionarmos acerca do porquê da existência de diversas espécies de Tribunais dentro do mesmo sistema jurídico, a resposta surge imediatamente: na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram (Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 197).
Claro que aquilo que é vantajoso para umas coisas é desvantajoso para outras. E assim, em contraponto às vantagens da especialização, a ordem jurídica tem de aceitar e conviver com estas questões e conflitos de competência entre Tribunais, que são um verdadeiro desperdício de recursos e uma pura perda de tempo, do ponto de vista daquilo que realmente interessa, que é a resolução dos litígios que as partes submetem ao Tribunal. Em vez de resolver de imediato o litígio, o sistema judicial perde tempo a discutir qual é o Tribunal competente para o efeito, e, não poucas vezes com o processo a circular de Tribunal para Tribunal e as partes à espera. E não é obrigatório que assim seja, pois por exemplo nos países da Common Law a figura do conflito de competência, ou é desconhecida ou é residual. Mas é um preço que aqui temos de pagar.
Dito isto, estamos então perante a questão de saber qual o Tribunal competente para julgar o litígio que foi trazido perante um Tribunal Judicial.
Constitui jurisprudência pacífica do Tribunal de Conflitos o entendimento de que a competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, se afere em face do pedido formulado, concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio tal como é configurada pelo autor (Acórdão de 1/6/2017, Francisco Manuel Caetano -Relator), no qual se citam ainda, entre outros, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 25.03.2015, Proc. 02/14, 25.06.2015, Proc. 8/15, 09.07.2015, proc. 07/15, 18.02.2016, proc.28/15, 07.02.2013, processo n° 024/31, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Ora, aqui chegados, e sabendo a forma como a competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal está definida na lei (a previsão de vários casos típicos que lhe ficam adstritos, e ainda o uso de uma cláusula geral que consta da alínea o do nº 1 do art. 4º do ETAF (Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores), sendo que todos os remanescentes cairão na alçada da competência geral, comum, ou residual dos Tribunais comuns), resta-nos então averiguar se alguma das alíneas do citado art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), atribui aos Tribunais administrativos e fiscais competência material para conhecer desta acção, ou se a mesma emerge da referida alínea o).

O Tribunal recorrido considerou que a situação caía no âmbito da alínea e) do nº 1:

e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
E isto porque considerou que estava em causa na acção o incumprimento de um contrato administrativo. Para tanto, considerou o seguinte: nos presentes autos está em causa a celebração de um Protocolo, no qual são outorgantes Autora e Rés e ainda a Câmara Municipal de ..., a freguesia da ... e a União de freguesias de ..., ... e .... Importa agora apreciar a natureza jurídica do contrato celebrado entre as partes, denominado de Protocolo. (…) Actualmente, e na redacção da Lei 75/2013, de 12 de Setembro, o artigo 33º, n.º 1, alíneas o) e p), estipulam que compete à Câmara Municipal: o) deliberar sobre as formas de apoio a entidades e organismos legalmente existentes, nomeadamente com vista à execução de obras ou à realização de eventos de interesse para o município, bem como à informação e defesa dos direitos dos cidadãos; p) deliberar sobre a concessão de apoio financeiro ou de qualquer outra natureza a instituições legalmente constituídas ou participadas pelos trabalhadores do município, tendo por objecto o desenvolvimento de actividades culturais, recreativas e desportivas, ou a concessão de benefícios sociais aos mesmos e respectivos familiares;
Daqui se extrai que se encontra no âmbito da competência da Câmara Municipal apoiar ou comparticipar, pelos meios adequados, no apoio a actividades de interesse municipal, de natureza social, cultural, desportiva, recreativa ou outra. E foi no âmbito das respectivas que a Câmara Municipal e as partes dos autos celebraram o contrato que se encontra em discussão nos autos. Daqui se extrai que a relação jurídica que, com a celebração do supramencionado protocolo, se estabeleceu entre a Câmara Municipal e os demais outorgantes, designadamente as partes envolvidas nos autos, é regulada, sob o ponto de vista material, pelo Direito Administrativo.
A relação jurídica assim estabelecida através do “Protocolo relativo à equipa de Sapadores Florestais 21-111” em referência, encontra por conseguinte apoio legal nas citadas disposições do Regime Jurídico das Autarquias Locais, normas essas que, enquanto disciplinadoras de actividade e funcionamento da Administração ou atributivas de competências a um órgão ou a uma pessoa colectiva de direito público são, por natureza, normas jurídicas de direito público ou de direito administrativo (cfr. nomeadamente Marcelo Caetano, MDA I vol. pág. 42 e sgs. e Esteves de Oliveira, Direito Administrativo (lições), pág. 82 e segs.
Assim com aquele “protocolo” visou a Câmara Municipal a prossecução da política de prevenção de incêndios florestais, na área do município, política essa que se insere no âmbito das suas atribuições e à qual, nos termos do permitido Regime Jurídico, deliberou associar outras entidades, transferindo para esta determinadas actividades inseridas no âmbito das suas competências.
No entender de Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, pág. 41, o que distingue os contratos administrativos dos contratos de direito privado é “uma cláusula – explícita ou implícita – de sujeição do contraente particular ao interesse público e a certos poderes de autoridade da Administração”.
A Câmara Municipal (e a Junta de Freguesia), enquanto órgão de direito público e que prossegue interesses predominantemente públicos ou colectivos, nos termos do permitido pelos citados preceitos se “associa” pelo “protocolo” em questão a outras entidades, com o objectivo destas desenvolverem ou a substituírem na execução de determinados serviços ou actividades de interesse predominantemente público relacionadas com a prevenção de incêndios florestais na área do município.
Assim o “acordo de vontades” mostra-se todo ele orientado à realização de necessidades predominantemente públicas ou de interesse público, integradas no conjunto das atribuições das pessoas colectivas envolvidas (prevenção de incêndios)”.
Parece-nos inteiramente correcta esta posição.
Da leitura do referido Protocolo resulta evidente que o mesmo visa garantir a continuação de uma parceria entre os vários participantes, para manter uma Equipa de Sapadores Florestais para fazer a prevenção de incêndios e gestão da floresta na zona abrangida, e para esse efeito regula coisas como quem financia essa equipa, quais as acções a desenvolver, quem tem a obrigação da execução prática das responsabilidades criadas, qual a remuneração, quem comparticipa nas despesas, e vários outros aspectos.
Desde logo, consta do referido Protocolo que o financiamento da Equipa de Sapadores Florestais é garantido, em parte, pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, IP, que é um organismo da administração indirecta do Estado Português com a missão de contribuir para a valorização e conservação dos aspectos relativos aos recursos florestais e à Natureza e Biodiversidade em Portugal.
Depois, na alínea e) dos Considerandos iniciais consta que “cada um dos outorgantes não reúne por si só capacidade financeira necessária à constituição e manutenção da Equipa de Sapadores Florestais, pelo que o protocolo será celebrado regendo-se pelas cláusulas seguintes…”.
Daqui se retira, se dúvidas houvesse, a eminente natureza pública dos interesses que estiveram na base da celebração do protocolo. Cada um dos outorgantes não tinha a capacidade financeira para constituir e manter uma equipa de Sapadores Florestais, e por isso é que celebraram o Protocolo. Trata-se de uma forma contratual que liga entre si entidades públicas e entidades privadas, com o objectivo de prosseguir interesses públicos que só com uma organização com certa dimensão podem ser capazmente prosseguidos.
Da cláusula 5ª,1 consta que a Equipa de Sapadores Florestais prestará a sua actividade ao segundo, terceiro, quarto e quintos outorgantes, seguindo o Plano de Actividades, o qual, nos termos da Cláusula 2º, 2, deve ter em conta as directrizes do PMDFCI.
E resulta ainda da Cláusula 6ª,1 que “Todos os outorgantes obrigam-se a guardar e a zelar pelo equipamento que seja entregue pelo Estado (1) ao primeiro outorgante (enquanto promotor do projecto), responsabilizando-se por qualquer dano do mesmo decorrente de utilização anormal quando estiver afecto ao serviço da sua área”.
Supomos que não restam assim dúvidas quer sobre a natureza pública dos fins que este protocolo visa prosseguir, quer sobre a natureza pública dos meios materiais e financeiros que são fornecidos aos outorgantes.
Podemos considerar que a Câmara Municipal de ... (juntamente com o Estado) é quem sustenta financeiramente o protocolo, como se vê por exemplo da cláusula 4ª, o que faz na prossecução das suas competências, como refere a decisão recorrida, por referência à Lei 75/2013, de 12 de Setembro, que no seu artigo 33º,1,o,p, estipulam que compete à Câmara Municipal: o) Deliberar sobre as formas de apoio a entidades e organismos legalmente existentes, nomeadamente com vista à execução de obras ou à realização de eventos de interesse para o município, bem como à informação e defesa dos direitos dos cidadãos; p) Deliberar sobre a concessão de apoio financeiro ou de qualquer outra natureza a instituições legalmente constituídas ou participadas pelos trabalhadores do município, tendo por objecto o desenvolvimento de actividades culturais, recreativas e desportivas, ou a concessão de benefícios sociais aos mesmos e respectivos familiares.
Estamos pois em condições de secundar a conclusão que estamos perante contrato administrativo, “celebrado por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”, na prossecução de fins de natureza pública.
Aplicando o ensinamento de Sérvulo Correia, supra referido, o que distingue os contratos administrativos dos contratos de direito privado é “uma cláusula – explícita ou implícita – de sujeição do contraente particular ao interesse público e a certos poderes de autoridade da Administração”. É justamente o que se passa aqui com este Protocolo.
Para que não fiquem dúvidas, vejamos melhor os conceitos envolvidos.
No Acórdão do Tribunal de Conflitos de 1/6/2017 (Relator- Francisco Manuel Caetano) escreve-se que “o critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa reporta-se ao conceito de relação jurídica administrativa enunciado no mencionado art. 212º,3 da CRP, isto é, ao conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”. E ainda: “o conceito de reIação jurídica administrativa consta, também, da al. o) do n.º 1 do art.º 4.º, que se assume como uma norma residual, que abrange os litígios jurídico-administrativos não enunciados no mesmo nº 1 do art. 4º do ETAF”.
Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa, Lições”, Almedina, 3.ª ed., pág. 79, citado no supra referido acórdão, define a relação jurídica administrativa como sendo aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido (2)”; por sua vez, Fernandes Cadilha, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, Almedina, 2007, pág. 117/118, refere que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou interorgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica”; Mário Aroso de Almeida, in “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4.ª ed, pág. 57, refere que “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”.
Podemos pois assentar em que são relações jurídicas administrativas as relações derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.
Reveste ainda extrema importância recordar aqui alguma da argumentação expendida pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 13 de Outubro de 2016 (Relator: Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes), apesar de proferido antes de profundas alterações introduzidas no Código dos Contratos Públicos pela Lei n.º 30/2021, de 21 de Maio, que entrou em vigor em 20 de Junho de 2021): “…ora, antes da entrada em vigor do CCP, ao nível substantivo, subsistia alguma ambiguidade na delimitação das relações jurídico-administrativas, nomeadamente com vista a determinar a jurisdição competente para apreciar os litígios delas emergentes.
Como refere Mário Aroso (in Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2.ª Edição pp. 160), “foi nesse contexto que surgiu o ETAF de 2002, e, com ele, a clara assunção da necessidade de se abandonar, no plano processual, a definição de contrato administrativo que decorria do art.º 178.º do CPC, para o efeito de delimitar o âmbito da jurisdição administrativa no que respeita à apreciação de litígios emergentes de contratos”.
Assim, a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF de 2002, estendia a jurisdição administrativa a actos pré-contratuais e a contratos a respeito dos quais houvesse lei específica que os submetesse, ou que admitisse que fossem submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
Nas palavras de Mário de Aroso de Almeida (in Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2015, pp. 165-166): «A previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, […] atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, independentemente da questão de saber se “a prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.» Para tais efeitos, nos termos daquela disposição, a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se estribar na distinção tradicional entre “actos de gestão pública” e “actos de gestão privada”, para passar a fazer-se com abstracção da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que “a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público”, como se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos, de 11/03/2010, proferido no processo n.º 028/09 (Acórdão relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Azevedo Moreira, acessível na Internet), observando-se ainda que “o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é aqui colocado não no conteúdo do contrato nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis” (No mesmo sentido, vide, entre outros, o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 16/02/2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Rodrigues da Costa, proferido no processo n.º 021/11, acessível na Internet).
Sucede que sobreveio o Código de Contrato Públicos (CCP), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29-01, em vigor desde 30-07-2008, cujo artigo 1.º, n.º 6, estatui, sem prejuízo de legislação especial, que “reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer” das categorias configuradas nas quatro alíneas daquele número.

Segundo o ensinamento de Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2.ª Edição, p. 163, tais “categorias podem ser reconduzidas a três grandes grupos”:

«a) O primeiro grupo corresponde aos contratos administrativos por natureza, que são submetidos a um regime de Direito Administrativo em razão da natureza pública do seu objecto ou do seu fim. Pode dizer-se que integram este grupo os contratos a que se referem as alíneas b), c) e d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP.
b) O segundo grupo corresponde aos contratos administrativos por determinação da lei e abrange os tipos contratuais que, ainda que não sejam contratos administrativos por natureza, a própria lei opta directamente por qualificar como administrativos, submetendo-os a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 1.º, n.º 6, alínea a), do CCP). Integram este grupo: (i) os contratos administrativos típicos previstos no Título II da Parte III do CCP; e (ii) os demais contratos administrativos típicos ou nominados previstos em legislação avulsa.
c) O terceiro grupo corresponde aos contratos administrativos por qualificação das partes e abrange contratos administrativos atípicos que poderiam ser contratos de direito privado (por esse motivo, a doutrina qualifica-os como contratos administrativos com objecto passível de contrato de direito privado), mas são contratos administrativos apenas porque as partes o querem e determinam: trata-se de contratos que, não sendo administrativos por natureza, nem a lei os qualificando como administrativos, só são administrativos na medida em que a lei aceita que as próprias partes, desde que uma delas seja um contraente público, os qualificam como administrativos ou os submetam a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 1.º, n.º 6, alínea a), e artigos 3.º, n.º 1, alínea b), e 8.º do CCP).»
E em relação a este terceiro grupo de contratos, acrescenta aquele Autor que: «A referida opção do CCP de qualificar todos os contratos de aquisição e locação de bens móveis e de aquisição de serviços por contraentes públicos como contratos administrativos veio, no entanto, esvaziar praticamente esta modalidade de contratos administrativos, retirando-lhe o relevo, assim como às questões que a seu respeito se colocavam.»
Como observa o referido Autor (Ob. cit. p. 161), a partir daí: «(…) deixou de existir qualquer razão para que o ETAF não fizesse referência à figura do contrato administrativo na determinação do âmbito da jurisdição em matéria de contratos. Foi o que, com a revisão de 2015, ele passou a fazer, justificadamente, na nova alínea e) do n.º 1 do art.º 4.º, que veio substituir as diferentes alíneas (b), segunda parte, e) e f) …»
Todavia, a nova redacção da sobredita alínea e) continua a estender o âmbito da jurisdição administrativa, mas agora a “quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”
E ainda, como referem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigues Esteves de Oliveira in “CPTA e ETAF Anotados”, vol. I, 2004, pág. 48 e segs., em anotação ao art 4º al e) do ETAF “(...) a opção tomada nesta alínea e), que constitui a grande revolução do Código na matéria, traduziu-se na adição à jurisdição dos tribunais administrativos do conhecimento dos litígios relativos a contratos precedidos ou precedíveis de um procedimento administrativo de adjudicação, independentemente da qualidade das partes nele intervenientes – de intervir aí uma ou duas pessoas colectivas de direito público ou apenas particulares – e independentemente de, pela sua natureza e regime (ou seja, pela disciplina da própria relação contratual), eles serem contratos administrativos ou contratos de direito privado (civil, comercial, etc.).

E ainda importa ter presente o Acórdão desta Relação de 11.05.2022 (Relator: Joaquim Boavida), no qual se escreve: “Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentário ao CPTA, 2017, 4ª Edição, Almedina) sustentam que relativamente aos litígios emergentes de contratos, a competência dos tribunais administrativos compreende dois grupos:

a) Os contratos administrativos, cujas relações jurídicas emergentes são submetidas a um regime substantivo de direito administrativo, onde incluem: (i) os contratos que a própria lei directamente submete a um regime substantivo de direito público: (ii) contratos administrativos previstos no Titulo II, Parte III do Código dos Contratos Públicos; (iii) demais contratos administrativos previstos em legislação avulsa; (iv) contratos qualificados como administrativos pelo CCP; (v) contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo;
b) Contratos que, independentemente da sua designação e natureza, são celebrados pelas entidades adjudicantes a que se refere o CCP e cujo procedimento de formação está sujeito a um regime de direito público”.

A recorrente alega que “de acordo com a causa de pedir e o pedido não existe qualquer relação jurídica de cariz administrativo a considerar, mas apenas um contrato de prestação de serviços em que um dos contraentes é uma entidade administrativa do poder local, não estando, porém, em causa nos autos o exercício do denominado “ius imperium”.
Porém, o protocolo celebrado é mais do que isso, como já vimos supra.
Da leitura do mesmo de imediato ressalta o facto de o mesmo ter por objectivo a prossecução do interesse público da prevenção de incêndios, e não quaisquer interesses privados, legítimos, dos participantes.
E na discussão sobre o mesmo, a ter na acção, pode ser necessário recorrer a legislação administrativa. Veja-se por exemplo, o teor da Cláusula 3ª: “1. A equipa de Sapadores Florestais será constituída por cinco elementos, preferencialmente um de cada freguesia, que serão seleccionados pelo primeiro outorgante, devendo ter a colaboração dos restantes outorgantes. 2. Os elementos nomeados nos termos do nº anterior terão que obedecer aos requisitos constantes no artigo 16º do Decreto-Lei nº 94/2004 de 22 de Abril”.
Esse DL 94/2004 veio introduzir alterações na definição das regras e dos procedimentos a observar na criação de equipas de sapadores florestais. Refere-se no preâmbulo: “a melhoria do desempenho das equipas existentes e do alargamento da respectiva constituição a outras entidades. Tendo em conta a experiência adquirida, afigura-se necessária a criação de mais equipas, consagrando-se, desse modo, a possibilidade de apresentação de candidaturas à constituição de equipas de sapadores florestais por parte de empresas de capitais públicos proprietárias, gestoras ou detentoras de áreas florestais ou de infra-estruturas florestais, dotando assim outras áreas florestais com uma estrutura de prevenção suficientemente ágil, como é o caso das equipas de sapadores. Por outro lado, importa garantir a continuidade das actuais equipas de sapadores florestais afectas a organizações de produtores florestais e rever, para estas e para as que venham a constituir-se, o sistema de apoios ao seu funcionamento, no que respeita às despesas elegíveis e aos sistemas de majoração, que pouco tem contribuído para a expansão do associativismo, de modo a garantir a cobertura, em termos de prevenção, de novas áreas e a auto-suficiência financeira da entidade para o funcionamento da equipa”.
Em suma, na discussão sobre se o protocolo foi ou não violado e quais os direitos e deveres que do mesmo emergem, pode ser necessário recorrer a normas de direito administrativo. Repare-se que na sua oposição as rés suscitam a questão da eventual não renovação do protocolo, à qual se terão de aplicar regras de direito administrativo.
E, como referem as recorridas, “o contrato de aquisição de serviços pela Administração Pública, tendo como objecto a prestação de serviços mediante um preço, tem a natureza de contrato administrativo se se tratar de um serviço prestado para fins de utilidade pública”.
Em conclusão, consideramos que a decisão recorrida não merece censura, pelo que é de manter.

Sumário:

1. Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especificamente atribuídas.
2. Na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram.
3. Em contraponto a essas vantagens, temos de conviver com questões e conflitos de competência entre Tribunais, que são um puro desperdício de recursos e uma pura perda de tempo, do ponto de vista daquilo que realmente interessa, que é a resolução dos litígios que as partes submetem ao Tribunal.
4. A competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, afere-se em face do pedido formulado, concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio tal como é configurada pelo autor.
5. Litígios emergentes de um “protocolo” celebrado entre uma Câmara Municipal, uma Associação para Cooperação entre Baldios, Juntas de Freguesia e Conselhos Directivos de Baldios, pelo qual aquela prossegue a sua política de prevenção de incêndios florestais, na área do município, política essa que se insere no âmbito das suas atribuições e à qual, nos termos do permitido Regime Jurídico, deliberou associar outras entidades, transferindo para esta determinadas actividades inseridas no âmbito das suas competências, caem no âmbito da competência dos Tribunais Administrativos, por força da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

IV- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 13.7.2022

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Destaque nosso.
2. Sublinhado nosso