Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2681/21.2T8VNF-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: EXECUÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
FIADOR
CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O plano de recuperação conducente à revitalização da empresa devedora não tem aptidão para alterar a relação entre o credor e o terceiro garante ou condevedor sem o acordo daquele, nem as modificações assim introduzidas no plano quanto às formas de satisfação do crédito pela empresa se estendem aos terceiros.
2 – A previsão no plano de recuperação de cláusula destinada a vincular os credores a não accionar os garantes, senão dentro das novas condições acordadas para a dívida por eles garantida, por extravasar o objecto do plano, deve considerar-se ineficaz e inoponível ao credor que contra ele votou e, por isso, não deu o seu acordo.
3 – Para efeitos de apreciação da excepção de caso julgado, o processo especial de revitalização da devedora não é idêntico à acção executiva instaurada pelo credor contra o fiador da obrigação daquela, que não interveio naquele processo, por as partes não serem as mesmas e o pedido e a causa de pedir serem diferentes.
4 – Sendo o plano um negócio jurídico e correspondendo a sua homologação essencialmente à certificação, pelo juiz, de que não contraria normas imperativas, a decisão homologatória, não tendo especificamente apreciado e decidido a questão, não estende a sua eficácia à cláusula de salvaguarda da posição do garante. O âmbito da eficácia do plano de recuperação, enquanto acordo de natureza privada, resulta da lei, limitando-se o juiz a conferir-lhe a eficácia que aquela lhe atribui.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. X Filtrations Solutions, Lda., instaurou execução, sob a forma de processo ordinário, contra J. J., pedindo o pagamento da quantia total de € 10.815,15 e alegando o seguinte circunstancialismo:

«1 - A dívida exequenda teve origem na celebração de vários contratos de fornecimento de bens e serviços, no âmbito das atividades comerciais da Exequente e da sociedade comercial Y - Unipessoal, Lda., com o NIPC ………, da qual o Executado é sócio e gerente; designadamente, “1 Div. – Substituição de tubo flexível 300CNC”, “2,50mt Tubo flexível Pur T. 250”, “12,00mt Tubo flexível Pur T. 120, 4,50mt Tubo Flexível Pur T. 150, 1,50mt Tubo flexível Pur T. 200, Montagem com deslocação – 1 Homem x 3 horas – 14/10/2019”, “Fornecimento e montagem de senfim e motoredutor 1.5kw para filtro Jet N/OB.: 223/2019”, “180,00 Filtro 134/2500, 80,00 Filtro SF 2800, 1 Div. – Painel Explosão Grande, 8,00 Div. – Borracha para válvula, 2 colares 250, 1 Div. – Parte Elétrica, 14,00 Div. – Membranas, 3,00 Div. – Bobines, 1 Div. – Timer, Montagem N/OB.:080/2020” e que deram origem, respetivamente, às seguintes faturas emitidas pela Exequente: fatura FT19/00413, datada de 19/07/2019, no valor de €165,69; fatura FT19/00423, datada de 30/07/2019, no valor de €75,95; fatura FT19/00564, datada de 15/10/2019, no valor de €389,41; fatura FT20/00123, datada de 20/02/2020, no valor de €1.957,24; fatura FT20/00365, datada de 19/06/2020, no valor de €7.429,56.
2 - Através da elaboração de um "Termo de confissão de dívida e acordo de pagamento", foi acordado entre a Exequente e aquela sociedade comercial que o pagamento da quantia em dívida - €10.667,85 (dez mil seiscentos e sessenta e sete euros e oitenta e cinco cêntimos) – seria efetuado até 28/02/2021.
3 - O aqui Executado constituiu-se fiador da referida quantia, tendo renunciado ao benefício da excussão prévia e assumiu, solidariamente, com a referida sociedade comercial "o cumprimento integral de todas as obrigações resultantes para" a referida sociedade da outorga do referido termo de confissão de dívida e acordo de pagamento.
4 - Assim, de acordo com o estipulado no referido documento, venceu-se, no passado dia 28/02/2021, a quantia em dívida.
5 - Contudo, não obstante as várias interpelações efetuadas pela Exequente e pelos seus mandatários, a verdade é que nem a referida sociedade comercial, nem o Executado, procederam ao pagamento - total ou parcial - da quantia em dívida.
6 - Entretanto, no passado dia 22/04/2021, a sociedade comercial Y, Lda. apresentou-se a Plano Especial de Revitalização, cujos termos correm no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão - Juiz 2.
7 - Os juros vencidos foram calculados à taxa legal desde a data de vencimento do valor em dívida até à presente data».
*
1.2. Em 03.01.2022, sob a referência 40879858, o Executado apresentou requerimento com o seguinte teor:
«1º O Executado é demandado em razão de se ter constituído fiador da sociedade “Y, Unipessoal, Lda.” da qual era e é gerente, conforme tudo melhor se alcança do documento dado à execução – termo de confissão de divida e acordo de pagamento – onde o mesmo interveio como gerente da mesma e em sua representação – “vide gratiae” doc. 1 junto com o requerimento executivo.
2º A sociedade devedora, “Y, Unipessoal, Lda.”, apresentou-se no Tribunal do Comércio de V. N. de Famalicão, requerendo a instauração do Processo Especial de Revitalização.
3º Processo Especial de Revitalização que foi distribuído ao Juiz 2 do Juízo de Comércio de V.N. de Famalicão – comarca de Braga, onde correu seus termos sob o nº 2193/21.4T8VNF.
5º A Exequente reclamou os seus créditos perante o senhor AJP, designadamente, aqueles que aqui foram reclamados e estão dados à execução, conforme tudo melhor se alcança de cópia de requerimento dessa reclamação de créditos, documento que se protesta juntar aos autos no prazo de 5 dias.
6º Créditos esses que ali foram reconhecidos pelo senhor AJP, conforme tudo também melhor se alcança de cópia da lista provisória de créditos, que se viria a transformar em lista definitiva, a qual adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos – doc.1-
7º No âmbito desses autos de PER da dita sociedade foi apresentado Plano de Revitalização onde, para além do mais, ficou estipulada, no âmbito das medidas de reestruturação e revitalização em nº 9 e sob a epígrafe “garantias pessoais/avales e fianças” o seguinte:
“Para que a revitalização da sociedade possa ser uma realidade, será muito importante que os elementos que compõem a gerência/estrutura societária possam manter-se focalizados na prossecução dos objectivos que o cumprimento do presente plano implica.

Dito isto e atento o facto de:
i. Os elementos que compõe a gerência/estrutura societária da “Y, UNIPESSOAL, LDA.” ser garante pessoal dos créditos então concedidos pelas instituições financeiras à sociedade, tal como por algum dos credores comuns;
ii. Ser intenção firme da sociedade e da sua gerência a criação de condições que permitam atender à liquidação integral do seu passivo, tal como proposto no presente plano;
iii. O presente plano não implicar para os credores a assumpção de qualquer perda sobre os capitais reclamados, mas apenas uma dilação temporal do reembolso, a par de uma homogeneização ao nível das taxas de juro vincendas, com o intuito único de ajustar os reembolsos à efectiva capacidade de libertação de meios que o negócio possibilita;
iv. Se manterem intocáveis as garantias afectas a cada um dos créditos reclamados até que se verifique a liquidação integral dos créditos. Será condição necessária que a aprovação do presente plano implique, por parte dos credores, o não acionamento dos terceiros garantes (avalistas / fiadores), concedendo-lhes as condições necessárias para que aqueles possam dedicar todo o seu tempo à efectiva recuperação da sociedade, único meio que verdadeiramente poderá possibilitar o ressarcimento dos créditos aos credores.” - sublinhados nossos –
8º Esse Plano de Revitalização onde está incluída a supra citada medida de revitalização agora transcrita, veio a ser aprovado por voto maioritário dos credores da sociedade, aqui se incluindo os credores que beneficiavam de garantias pessoais/avales e fianças.
9º Sendo igualmente claro naquele Plano de Revitalização não estar previsto o prosseguimento das acções executivas.
10º Ao contrário, nos termos da medida e clausula 16ª ficou estipulado:
“16. EXECUÇÃO DO PLANO DE REVITALIZAÇÃO E SEUS EFEITOS
a) Com o despacho de homologação, além dos efeitos legais, produzem-se as alterações dos créditos sobre a devedora, introduzidas pelo Plano de Recuperação, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados; b) As acções judiciais em curso, comuns, especiais ou executivas, instauradas contra a sociedade para cobrança dos créditos contra a mesma reclamados, extinguem-se assim que for aprovado e homologado o Plano de Revitalização.”
11º Essa aprovação do Plano de Revitalização apresentado nos autos em 19/09/2021, foi doutamente homologada por douta Sentença proferida aos 25/10/2021, imediatamente publicitada no Portal Citius, e transitada em julgado aos 15/11/2021, conforme tudo melhor se alcança da certidão do Plano de Revitalização e da douta Sentença judicial que homologou a sua aprovação, documento que adiante se junta e aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos – doc.2-
12º Nos termos do disposto no art. 17º-F nº 7 e 10 e art. 17º-E nº 1 última parte do CIRE, a homologação da aprovação do Plano de Revitalização faz extinguir todas as acções executivas logo que seja aprovado e homologado o Plano de Recuperação.
13º E isto quer aquelas que foram instaurada e estavam pendentes contra a sociedade ali Requerente, quer aquelas que foram instauradas e estavam pendentes contra o avalista e, ou, fiador da sociedade, como resulta do estipulado na supra citada medida e clausula nº 9 do Plano de Reestruturação e Revitalização da sociedade – “vide gratiae” doc. nº 2.
14º Aliás, aqueles credores que beneficiavam de garantias pessoais, designadamente, avales e fianças, vira os seus créditos ter um tratamento diferenciado como resulta do previsto e regulado na medida e clausula constante de 7.2.1.2 constante do dito Plano e que também, por brevidade e economia processual, aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos – “vide gratiae” doc. 2-
15º Deste modo se requerendo seja determinada a imediata extinção da acção executiva ainda pendente contra o Executado – que opera «ope legis» - bem como determinado o levantamento e cancelamento de qualquer penhora que nos autos, eventualmente, tenha sido decretada – aplicação conjugada das supra citadas normas legais e ainda do disposto nos arts. 619º nº 1 e 849º nº 1 al. f) do CPC.

TERMOS EM QUE E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, RECEBIDO ESTE E OS DOCUMENTOS QUE O ACOMPANHA, SE REQUER,

a) Seja determinada a extinção da presente acção executiva, relativamente ao Executado, J. J., com os fundamentos supra invocados, e com todas as devidas e legais consequências;
b) Seja decretado o levantamento e cancelamento de qualquer penhora que nestes autos, eventualmente, tenha sido levada a cabo sobre bens pertencentes ao Executado, com todas as devidas e legais consequências;
c) Seja notificado o senhor Agente de Execução do despacho que determina a imediata extinção da execução e do levantamento da penhora, com todas as devidas e legais consequências.».
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1.3. Por despacho de 04.05.2022 foi julgada improcedente a pretensão do Executado e determinado o prosseguimento da execução.
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1.4. Inconformado, o Executado interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«1- Nos presentes autos de execução, o Apelante é demandado em razão de se ter constituído fiador da sociedade “Y, Unipessoal, Lda.” naquele título executivo dado à execução, e da qual era e é gerente.
2- A sociedade Exequente aceitou o convite para a participação no PER a que a sociedade devedora se sujeitou, e dirigiu ao senhor AJP a sua Reclamação do seu Crédito juntando para o efeito cópia do titulo executivo, aqui dado à execução, ou seja, o denominado “Termo de Confissão de Divida e Acordo de Pagamento” que foi assinado em 25/11/2020 e onde o aqui Executado e gerente da sociedade devedora interveio como terceiro outorgante constituindo-se fiador da mesma.
3- Concluídas as negociações com os credores, foi apresentado a versão definitiva do Plano de Revitalização, o qual foi colocado à votação nos termos previstos no CIRE e de onde resulta, para além do mais e no que à questão em discussão nos autos directamente concerne, as seguintes medidas de recuperação e reestruturação do passivo:
“(…)
7.2.1.2 CRÉDITOS GARANTIDOS – N., S.A. E BANCO ... E OUTROS CREDORES QUE BENEFICIEM DE AVAL BANCÁRIO OU FIANÇA PESSOAL –
d) Período de carência de 24 meses, relativamente ao capital, iniciados após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Revitalização;
e) O pagamento do capital em dívida, com perdão de 80% dos juros vencidos, será liquidado no período de 10 anos, após os 24 meses de carência, essenciais para a constituição de um fundo de maneio capaz de assegurar a viabilidade da empresa;
f) Sobre o valor em dívida vencer-se-ão juros calculados com base na Euribor a 3 meses, acrescido de um Spread de 1%, tomando como referencial o fixing diário publicitado pela Federação Europeia de Bancos, com inicio de pagamento no último dia do mês seguinte ao do trânsito em julgado da Sentença de homologação do Plano;
(…)
9- GARANTIAS PESSOAIS/AVALES E FIANÇAS:
Para que a revitalização da sociedade possa ser uma realidade, será muito importante que os elementos que compõem a gerência/estrutura societária possam manter-se focalizados na prossecução dos objectivos que o cumprimento do presente plano implica.

Dito isto e atento o facto de:
i. Os elementos que compõe a gerência/estrutura societária da “Y, UNIPESSOAL, LDA.” ser garante pessoal dos créditos então concedidos pelas instituições financeiras à sociedade, tal como por algum dos credores comuns;
ii. Ser intenção firme da sociedade e da sua gerência a criação de condições que permitam atender à liquidação integral do seu passivo, tal como proposto no presente plano;
iii. O presente plano não implicar para os credores a assumpção de qualquer perda sobre os capitais reclamados, mas apenas uma dilação temporal do reembolso, a par de uma homogeneização ao nível das taxas de juro vincendas, com o intuito único de ajustar os reembolsos à efectiva capacidade de libertação de meios que o negócio possibilita;
iv. Se manterem intocáveis as garantias afectas a cada um dos créditos reclamados até que se verifique a liquidação integral dos créditos.
Será condição necessária que a aprovação do presente plano implique, por parte dos credores, o não accionamento dos terceiros garantes (avalistas / fiadores), concedendo-lhes as condições necessárias para que aqueles possam dedicar todo o seu tempo à efectiva recuperação da sociedade, único meio que verdadeiramente poderá possibilitar o ressarcimento dos créditos aos credores.
(…)”
4- Este Plano de Revitalização, como já antes se invocou e está certificado no processo, foi aprovado pela larga maioria dos credores da sociedade.
5- Essa aprovação do Plano de Revitalização pela maioria dos credores comuns e garantidos, apresentado nos autos em 19/09/2021, foi doutamente homologado por Sentença proferida pela MMª Juiz titular desse PER aos 25/10/2021, imediatamente publicitada no Portal Citius, e transitada em julgado aos 15/11/2021.
6- É certo assim que tal douta Sentença judicial de homologação do Plano de Revitalização, depois de transitada em julgado em 15/11/2021, tem força jurídica inabalável, dentro e fora do processo, aplicando-se, por isso, “erga omnes”, como resulta da aplicação conjugada do disposto no art. 17º-F nº 10 do CIRE – lei especial – e no art. 619º e segs. do CPC.
7- Ora, salvo o devido respeito, que é muito, o douto despacho proferido, para além de interpretar erradamente as normas do CIRE, como infra se mostrará, também, percute-se, viola frontalmente a força de caso julgado decorrente da douta Sentença que homologou o Plano de Revitalização tal como o mesmo foi aprovado pela larga maioria dos credores da sociedade Revitalizanda.
Acresce,
8- A Exequente, sem prejuízo da posição assumida no processo quanto à aprovação do Plano de Revitalização, não pediu a não aprovação do mesmo, e não apresentou recurso e, ou, reclamação da homologação judicial do mesmo.
9- A força “erga omnes” de caso julgado é reforçada no que diz respeito às medidas de reestruturação constantes do PER dado o estipulado pela lei especial que estipula:
A decisão vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 4 do art. 17º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.” – nº 10º do art. 17º-F do CIRE.
10- O caso julgado material incide, pois, sobre a decisão de mérito, decisão essa que, uma vez transitada em julgado, é vinculativa fora do processo em que foi emitida, não podendo nenhum juiz afastar-se dela ou sequer conhecê-la novamente.
11- A força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica.
12- Acresce ser entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.
13- Sendo igualmente claro naquele Plano de Revitalização não estar previsto o prosseguimento das acções executivas – “vide gratiae” o Plano de Revitalização junto aos autos em 3/01/2022 e 14/01/2022.
14- Ao contrário, nos termos da medida e clausula 16ª ficou estipulado:
“16. EXECUÇÃO DO PLANO DE REVITALIZAÇÃO E SEUS EFEITOS
a) Com o despacho de homologação, além dos efeitos legais, produzem-se as alterações dos créditos sobre a devedora, introduzidas pelo Plano de Recuperação, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados;
b) As acções judiciais em curso, comuns, especiais ou executivas, instauradas contra a sociedade para cobrança dos créditos contra a mesma reclamados, extinguem-se assim que for aprovado e homologado o Plano de Revitalização.”
15- Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 619º e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiros.
16- Pelo que, verifica- se, que a decisão de indeferimento do requerimento de extinção da instancia executiva ainda pendente contra o Executado, gerente daquela sociedade e fiador da mesma, viola e, ou, ofende o caso julgado, bem como, a autoridade de caso Julgado material decorrentes da douta Sentença proferida no âmbito do identificado PER e já há muito transitada em julgado – aplicação conjugada do disposto no art. 619º do CPC e art. 17º-F nº 7 e 10 do CIRE -.
17- Resultando óbvio que a decisão recorrida e proferida no tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, tem de ser revogada para que seja respeitada a anterior e douta Sentença homologatória da aprovação do Plano de Revitalização proferida aos 24/10/2021 e já transitada em julgado.
SEM PRESCINDIR,
18- A norma do art. 217º nº 4 do CIRE não é aplicável aos planos e medidas de revitalização e reestruturação aprovados no âmbito do PER, que regula primordialmente a Revitalização das empresas, ao contrário dos planos de insolvência.
19- Note-se desde logo e como decorre do expressamente previsto no nº 7 do art. 17º-F do CIRE, a decisão de homologar ou recusar a homologação do Plano de Revitalização apenas deve ter em conta “O disposto nos arts. 194º a 197º, no nº 1 do art. 198º e nos arts. 200º a 202º, 215º e 216º”.
20- No Processo Especial de Revitalização é válido a aprovação de uma medida ou cláusula que estipule que os credores obrigam-se a não accionar os avalistas ou fiadores de divida da devedora inserida no Plano de Revitalização, desde que não se verifique incumprimento do estipulado no Plano.
21- Acresce ainda assinalar que, o carácter especial do PER impõe a exclusão de algumas normas do CIRE, quando se apresentem em clara oposição face às especificidades do mesmo, como é o caso do art. 217º nº 4 do CIRE, já que o primordial escopo do PER não será, como sucede no processo de insolvência, a satisfação dos interesses dos credores, mas sim a revitalização do devedor.
22- Portanto, não somente o artigo 217º nº 4 não tem aplicação subsidiária ao PER, como apresenta natureza excepcional, o que exclui a sua aplicação por analogia ou até extensiva.
23- O PER não possui características meramente antecipatórias do plano de insolvência, mas antes tem por base princípios totalmente diferentes, sendo o seu escopo principal a revitalização do devedor e não a satisfação dos interesses dos credores, pelo que não se pode antecipar tudo o que se encontra previsto em sede de insolvência, nomeadamente, a solução plasmada no artigo 217º nº 4 do CIRE.
24- Tudo para significar que, não devendo ser aplicado a restrição do art. 217º nº 4 do CIRE, devem ser respeitadas e cumpridas aquelas cláusulas constantes dos pontos 7.1.2.1, 9 e 16 al. b) do Plano de Revitalização que foi aprovado por larga maioria de credores e doutamente homologado por sentença transitada em julgado, decretando-se a extinção da presente instância executiva, conforme reiteradamente foi peticionado pelo Executado e aqui Apelante.
Pelo que,
25- Salvo o devido respeito e mais douta opinião, a decisão e o despacho recorrido viola e, ou, interpreta erradamente o conjugadamente disposto nos arts. 17º-A, 17º-C nº 4 e 17º-F nº 7 e 10 do CIRE e, entre outros, os arts. 580º nº 1 e 619º do CPC.
Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas. Venerandos Desembargadores, deve ser dado integral provimento ao presente recurso de apelação e, revogando-se o douto despacho recorrido, ordenar-se a extinção da execução pendente contra o executado/apelante, com todas as devidas e legais consequências».
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A Exequente apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
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1.5. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais, segundo os artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, delimitam o seu objecto, o Recorrente suscita as seguintes questões:
i) Se a homologação judicial do plano de recuperação da devedora, aprovado pela maioria dos credores, tem como consequência a extinção da execução instaurada pelo credor contra o fiador daquela;
ii) Violação do caso julgado ou da autoridade de caso julgado decorrente da decisão que homologou o plano de revitalização;
***

II – Fundamentação

2.1. Fundamentos de facto
Os factos com relevo para a apreciação do objecto do recurso são os enunciados no relatório deste acórdão, bem como os seguintes, emergentes dos documentos juntos aos autos:
2.1.1. Serve de base à presente execução o escrito denominado “Termo de confissão de dívida e acordo de pagamento”, datado de 25.11.2020 e subscrito, como 1ª outorgante, pela Exequente, pela sociedade Y - Unipessoal, Lda., aí 2ª outorgante, e pelo Executado, como 3º outorgante.
2.1.2. Nesse escrito a sociedade Y - Unipessoal, Lda., confessou-se devedora à Exequente «da quantia de € 10.667,85 (dez mil, seiscentos e sessenta e sete euros, e oitenta e cinco cêntimos», acordando as partes que seria paga até ao dia 28.02.2021, enquanto o Executado declarou que, «na qualidade de fiador, em que intervém, e enunciando ao benefício de excussão prévia, assume solidariamente com a Segunda Outorgante o cumprimento integral de todas as obrigações resultantes da outorga do presente termo de confissão e acordo de pagamento».
2.1.3. A sociedade Y, Unipessoal, Lda., intentou processo especial de revitalização, que correu termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, sob o nº 2193/21.4T8VNF, no qual por sentença de 25.10.2021, transitada em julgado a 15.11.2021, foi homologado o plano de recuperação aprovado pela maioria dos credores.
2.1.4. No plano de recuperação prevê-se, na parte relevante para o objecto do presente recurso:
«7.2.1.2 CRÉDITOS GARANTIDOS – N., S.A. E BANCO ... E OUTROS CREDORES QUE BENEFICIEM DE AVAL BANCÁRIO OU FIANÇA PESSOAL –
d) Período de carência de 24 meses, relativamente ao capital, iniciados após o trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Revitalização;
e) O pagamento do capital em dívida, com perdão de 80% dos juros vencidos, será liquidado no período de 10 anos, após os 24 meses de carência, essenciais para a constituição de um fundo de maneio capaz de assegurar a viabilidade da empresa;
f) Sobre o valor em dívida vencer-se-ão juros calculados com base na Euribor a 3 meses, acrescido de um Spread de 1%, tomando como referencial o fixing diário publicitado pela Federação Europeia de Bancos, com início de pagamento no último dia do mês seguinte ao do trânsito em julgado da Sentença de homologação do Plano;
(…)
9- GARANTIAS PESSOAIS/AVALES E FIANÇAS:
Para que a revitalização da sociedade possa ser uma realidade, será muito importante que os elementos que compõem a gerência/estrutura societária possam manter-se focalizados na prossecução dos objectivos que o cumprimento do presente plano implica.
Dito isto e atento o facto de:
i. Os elementos que compõe a gerência/estrutura societária da “Y, UNIPESSOAL, LDA.” ser garante pessoal dos créditos então concedidos pelas instituições financeiras à sociedade, tal como por algum dos credores comuns;
ii. Ser intenção firme da sociedade e da sua gerência a criação de condições que permitam atender à liquidação integral do seu passivo, tal como proposto no presente plano;
iii. O presente plano não implicar para os credores a assumpção de qualquer perda sobre os capitais reclamados, mas apenas uma dilação temporal do reembolso, a par de uma homogeneização ao nível das taxas de juro vincendas, com o intuito único de ajustar os reembolsos à efectiva capacidade de libertação de meios que o negócio possibilita;
iv. Se manterem intocáveis as garantias afectas a cada um dos créditos reclamados até que se verifique a liquidação integral dos créditos.
Será condição necessária que a aprovação do presente plano implique, por parte dos credores, o não accionamento dos terceiros garantes (avalistas / fiadores), concedendo-lhes as condições necessárias para que aqueles possam dedicar todo o seu tempo à efectiva recuperação da sociedade, único meio que verdadeiramente poderá possibilitar o ressarcimento dos créditos aos credores.
(…)
16. EXECUÇÃO DO PLANO DE REVITALIZAÇÃO E SEUS EFEITOS
a) Com o despacho de homologação, além dos efeitos legais, produzem-se as alterações dos créditos sobre a devedora, introduzidas pelo Plano de Recuperação, independentemente de tais créditos terem sido, ou não, reclamados ou verificados;
b) As ações judiciais em curso, comuns, especiais ou executivas, instauradas contra a sociedade para cobrança dos créditos contra a mesma reclamados, extinguem-se assim que for aprovado e homologado o Plano de Revitalização».
**
2.2. Do objecto do recurso
2.2.1. Consequências para o fiador da homologação do plano de recuperação da devedora

O Executado requereu a extinção da execução contra si instaurada com fundamento em ter sido homologado, por sentença transitada em julgado, o plano de recuperação conducente à revitalização da empresa devedora Y, Unipessoal, Lda. O Tribunal recorrido indeferiu tal pretensão por entender que a homologação do plano de recuperação da devedora dos créditos que integram a obrigação exequenda não impede o prosseguimento da acção executiva instaurada contra o fiador, por ser aplicável extensivamente o disposto no artigo 217º, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Suscita-se a questão de saber se a homologação judicial do plano de recuperação da devedora, aprovado pela maioria dos credores, tem como consequência a extinção da execução instaurada pelo credor contra o fiador daquela.
O Executado invocou, como fundamento legal da sua pretensão, o disposto nos artigos 17º-E, nº 1, última parte, e 17º-F, nºs 7 e 10, ambos do CIRE, na redacção aplicável à situação dos autos.
O nº 1 do mencionado artigo 17º-E dispõe que «a decisão a que se refere o nº 4 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação».

Por sua vez, os nºs 7 e 10 do artigo 17º-F estabelecem o seguinte:
«7 - O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194º a 197º, no nº 1 do artigo 198º e nos artigos 200º a 202º, 215º e 216º. (…)
10 - A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 4 do artigo 17º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal».
Em rigor, discute-se a exigibilidade da obrigação exequenda relativamente ao Executado. É inequívoco que o crédito não é exigível à devedora Y, Unipessoal, Lda., em decorrência do disposto nos artigos 17º-E, nº 1, e 17º-F, nº 10, do CIRE.
Em conformidade com o disposto no artigo 713º, 724º, nº 1, al. h), 725º, nº 1, al. c) e 729º, al. e), todos do CPC, o título executivo deve demonstrar uma obrigação certa, líquida e exigível. Tais requisitos da obrigação consubstanciam condições da acção ou, mais concretamente, condições materiais da realização coactiva da prestação.
A exigibilidade está subentendida no disposto no artigo 817º do Código Civil (CCiv.), onde se impõe que a obrigação não tenha sido voluntariamente cumprida.
A exigibilidade é a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação ao devedor (2). Assim sendo, a obrigação exigível é a obrigação que está em tempo de cumprimento.
É um elemento que integra a causa de pedir, presumida pelo título. A sua falta conduz à extinção da execução.
Nesse enquadramento, a questão a solucionar consiste em saber se a obrigação exequenda é inexigível ao Recorrente, enquanto fiador no título dado à execução, em virtude da aprovação e homologação do plano de recuperação da sociedade Y, Unipessoal, Lda.
No nosso entender, a resposta a esta questão é negativa. Além de certa e líquida, a obrigação exequenda é exigível ao Executado.
Enquanto fiador, o Executado garante a satisfação do direito de crédito reconhecido naquele título pela devedora Y, ficando pessoalmente obrigado perante o credor (art. 627º, nº 1, do CCiv.), ou seja, garantindo com o seu património a satisfação daquele direito.
O fiador é verdadeiro devedor do credor: a obrigação que ele assume é a obrigação do devedor. Após a constituição da fiança passa a haver uma obrigação principal, a que vincula o (principal) devedor e, por cima dela, a cobri-la, tutelando o seu cumprimento, uma obrigação acessória, a que o fiador fica adstrito (3). Deste modo, à garantia patrimonial que incide sobre os bens do devedor acresce uma outra garantia patrimonial sobre os bens do fiador; o credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios: o do devedor e o do fiador.
Quando o fiador houver renunciado ao benefício da excussão prévia (art. 640º, al. a), do CCiv.), a obrigação por si assumida equipara-se, do ponto de vista do credor, à de um verdadeiro devedor solidário. Deste modo, o credor pode exigir a totalidade da dívida ao fiador ou ao devedor (art. 519º do CCiv.).
Ora, no plano substantivo, por referência ao regime da fiança estabelecido no Código Civil, inexiste qualquer norma da qual resulte a inexigibilidade da obrigação exequenda. O próprio Recorrente não invoca nas conclusões das alegações uma norma de direito substantivo da qual decorra um efeito obstativo do exercício do direito de crédito da Recorrida contra o fiador.

Portanto, resta apreciar se existe alguma outra norma, seja de natureza adjectiva ou de qualquer outra natureza, prevista no CIRE, que estabeleça a inexigibilidade da obrigação exequenda ao fiador – genericamente ao condevedor ou ao garante. Deve ainda ser apurado se alguma norma aplicável ao devedor principal tem um efeito reflexo relativamente ao condevedor e ao garante.
Pressupondo que esteja a ser cumprido o plano de recuperação conducente à revitalização da empresa e sendo a dívida anterior à abertura do PER, nenhuma dúvida parece existir sobre a circunstância de o credor não poder exigir da empresa o cumprimento de uma dívida anterior fora do quadro imposto pelo plano (4), uma vez que «a decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 4 do artigo 17º-C» [nomeação de administrador judicial provisório] do CIRE – v. art. 17º-F, nº 10, deste Código.
Porém, já não é assim relativamente à exigência, a terceiros, de cumprimento das garantias pessoais ou reais que prestaram para assegurar o cumprimento de obrigações da empresa sujeita a plano de recuperação.
Nem o plano tem aptidão para alterar a relação entre o credor e o terceiro garante ou condevedor sem o acordo daquele, nem as modificações introduzidas no plano quanto às formas de satisfação do crédito pela empresa se estendem aos terceiros.
A realidade incontornável é que os condevedores e os garantes não estão sob tutela do plano de recuperação e, por isso, o plano, só por si, não é susceptível de afectar a relação entre os credores e os garantes/condevedores.

Em primeiro lugar, o plano de recuperação é um contrato, pelo que apenas vincula os que nele intervieram ou que, nos termos legais, por ele estão abrangidos ou são afectados. O Executado não interveio, a título próprio, no PER e, como veremos, enquanto terceiro, nenhuma disposição legal estabelece que o plano de recuperação o abrange ou afecta.

Em segundo lugar, para se poder considerar a oponibilidade pelo terceiro garante ou condevedor do plano de pagamentos ou da moratória estabelecidos no plano teria de existir norma legal expressa a consagrar a possibilidade de tal modificação do direito do credor garantido face ao terceiro condevedor ou garante. Como não existe tal norma não é possível concluir por tal afectação. A extensão da vinculação, emergente da homologação do plano, aos garantes e condevedores, pura e simplesmente, não tem base legal.
Atenta a inexistência de norma em contrário, os credores mantêm incólumes os direitos de que dispunham antes da homologação do plano contra os condevedores e terceiros garantes, podendo exigir-lhes tudo aquilo a que se obrigaram, isto é, no regime de responsabilidade originário.
Em reforço argumentativo, salienta-se que o CPEREF acolhia uma solução que agora não tem suporte legal, na medida em que no seu artigo 63º, quando os credores houvessem votado favoravelmente qualquer providência de recuperação, ou, independentemente disso, a tivessem aceitado, os seus direitos contra coobrigados e garantes ficavam afectados «na medida da extinção ou modificação dos respectivos créditos» relativamente à empresa recuperanda. Esta norma tutelava os interesses dos condevedores e garantes mas foi intencionalmente afastada pelo legislador do âmbito do CIRE, precisamente pelas críticas que suscitava (5) por constituir um entrave à viabilização da recuperação da empresa.

Em terceiro lugar, o nº 1 do artigo 17º-E do CIRE apenas dispõe relativamente ao devedor e não quanto aos condevedores ou garantes dos créditos: «A decisão a que se refere o nº 4 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação».
Deste preceito legal decorre que a homologação do plano de recuperação extingue as acções destinadas à cobrança de dívidas que estejam em curso contra o devedor e não contra os condevedores ou garantes, pois estes não são referidos na norma.
No caso dos autos o plano de recuperação homologado abrange, não o Executado na presente acção, mas sim a sociedade cujo cumprimento da obrigação aquele garantiu. Portanto, o Executado não está abrangido por aquela norma.
A referida norma não é susceptível de ser integrada ou interpretada no sentido de abranger os condevedores ou os terceiros garantes. O efeito de extinção das acções instauradas contra o devedor para cobrança de dívidas, decorrente da aprovação de um plano de recuperação, nos termos do artigo 17º-E, nº 1, do CIRE, constitui uma excepção ao direito conferido ao credor de exigir judicialmente o seu crédito, consagrado no artigo 817º do CCiv. Como excepção que é, restritiva do direito do credor, não pode deixar de se cingir a sua aplicação à situação para a qual foi pensada. Isto porque o legislador quis dirigir a norma ao devedor (6), pelo que os efeitos da homologação do plano de recuperação não abrangem os condevedores e os garantes da obrigação assumida pelo devedor principal. O legislador não disse menos do que aquilo que queria dizer; disse exactamente o que pretendia.
Sendo assim, como a presente execução foi instaurada contra o Executado, enquanto fiador que prescindiu do benefício da excussão prévia, não há fundamento legal para determinar a extinção da acção executiva.

Em quarto lugar, a vinculação a que alude o artigo 17º-F, nº 10, do CIRE tem um âmbito delimitado. Respeita à relação entre a empresa e os credores e ao exercício dos créditos destes sobre aquela e não sobre terceiros. O intuito da norma não é a protecção de terceiros, pelo que não conduz à extinção ou modificação dos direitos dos credores sobre terceiros, sejam eles condevedores ou garantes.

Em quinto lugar, sendo verdade que no regime do PER não se encontra nenhuma norma reguladora da matéria (circunstância que conduz às conclusões que atrás enunciamos), no processo de insolvência, na parte respeitante ao respectivo plano, existe a norma do artigo 217º, nº 4, do CIRE, aplicável ao PER na parte não incompatível com a sua natureza (art. 17º-A, nº 3, do CIRE), determinando que «as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos».
Tal norma não é incompatível com o regime do PER, desde logo atendendo à similitude entre o plano de recuperação no âmbito do PER e o plano de insolvência no âmbito do processo de insolvência. Pelo contrário, o artigo 217º, nº 4, do CIRE é a norma própria e adequada para regular a situação.
Resulta directamente daquele preceito que a existência e montante do crédito contra o condevedor ou o terceiro garante da obrigação não são afectados pelo PER. Por conseguinte, o perdão ou a redução do montante dos créditos concedido à empresa em recuperação não desonera os condevedores e garantes da responsabilidade de pagamento da totalidade da dívida. Em caso algum, o perdão ou redução do crédito concedido à empresa é susceptível de desonerar os coobrigados e garantes da responsabilidade pelo pagamento da totalidade da dívida. Por identidade de razão, é inoponível pelo terceiro garante ou condevedor ao credor o plano de pagamentos ou a moratória estabelecidos no plano (7), ou seja, a modificação dos prazos de vencimento das obrigações.

Em sexto lugar, no caso contrário, o plano estaria a cumprir funções diversas daquela para que está vocacionado – a função de revitalização (8). O plano é aprovado e homologado para recuperar a empresa e não para alijar a responsabilidade de terceiros, aspecto que é inteiramente alheio ao PER.

Em sétimo lugar, solução diferente que contemplasse a oponibilidade pelo garante ou condevedor do plano de pagamentos (por exemplo o reescalonamento do pagamento da dívida) ou da moratória estabelecida no plano, colocaria o credor garantido numa posição de intolerável ou excessiva onerosidade e frustraria as razões por que, em regra quase absoluta, exige a prestação da garantia. Por norma a garantia é estabelecida precisamente para assegurar o cumprimento da obrigação, independentemente das causas que venham a motivar um eventual incumprimento, como é o caso do estado de insolvência ou de quase-insolvência (v.g., devedor em situação económica difícil). O princípio geral que norteia a prestação de garantias pessoais é o de que o garante assegura a solvência do devedor, satisfazendo o credor quando o garantido não o consiga fazer, seja por verdadeira incapacidade económica ou por uma mera dificuldade financeira transitória. Um dos riscos que o credor garantido pretende acautelar é precisamente o da sobrevinda declaração de insolvência do devedor ou a sua sujeição a plano de recuperação. Não sendo esse o único risco que pretende ver coberto, em todo o caso, ao exigir uma garantia pessoal, o credor pretende assegurar-se que a obrigação será cumprida, no momento do vencimento e na sua totalidade, em especial, se não o for pelo devedor que o seja por um dos garantes; seguramente que não pretende que a totalidade da obrigação não seja cumprida nem pelo devedor nem pelos garantes. Impor ao credor uma tal limitação é frustrar a sua legítima expectativa de pagamento do crédito, que é base do comércio jurídico.

Em oitavo lugar, como referido por Isabel Menéres Campos, em Cadernos do Direito Privado, nº 46, Abril/Junho de 2014, a págs. 61 e segs., em anotação ao acórdão da Relação de Guimarães de 05.12.2013, proferido no processo 2088/12.2TBFAF-B.G1 (relatora Helena Melo), no artigo “A posição dos garantes no âmbito de um plano especial de revitalização”, «à falta de melhor regulamentação legal, têm de aplicar-se ao PER as normas do processo de insolvência, com as necessárias adaptações» (9), pelo que «o preceituado no nº 4 do art. 217º do CIRE, por contraposição à anterior norma do art. 63º do CPEREF, tem a clara intenção de estimular os credores a aprovarem um plano, não lhes tolhendo os direitos contra os co-obrigados» e que «aplicando a mesma lógica de raciocínio, pensamos que a intenção do legislador, ao consagrar o processo de revitalização, não foi a de impedir, diminuir ou extinguir as garantias pessoais de que os seus créditos beneficiavam».
Parafraseando, o credor que aceita um dado plano de revitalização fá-lo porque conhece as dificuldades de solvência da empresa devedora, o que o obriga a fazer concessões com protelamento de pagamentos; porém, essa predisposição não ocorre em relação aos condevedores ou garantes, sobretudo quando estes não enfermam da mesma dificuldade em cumprir compromissos assumidos. Por isso, qualquer credor que votar favoravelmente um plano de revitalização fá-lo em função daquele devedor e das dificuldades deste, mas não pretende abdicar das garantias que o condevedor ou o garante lhe proporciona; doutro modo, seria, em muitos casos, possivelmente outro o seu sentido de voto. Aliás, dificilmente se encontraria um credor com alguma garantia pessoal que se empenhasse na recuperação da empresa no caso de a consequência ser a perda ou limitação da garantia que lhe foi prestada; seria uma verdadeira posição masoquista: ao empenhar-se no processo de revitalização, com a forte possibilidade de do mesmo resultar a redução do montante do seu crédito, a sua extinção ou, pelo menos, a modificação do prazo de vencimento ou a moratória, sempre ficaria em situação pior do que aquela que resultaria de se opor a qualquer plano de recuperação e de imediatamente exigir do garante ou condevedor a satisfação do seu crédito.
A própria função do plano de revitalização no sentido de procurar viabilizar a empresa que a ele recorre ficaria prejudicada caso o credor tivesse que arcar com o ónus de amenizar pagamentos, nomeadamente no que aos prazos concerne, não apenas relativamente aqueles que directamente negoceiam no âmbito de tal plano, mas também com garantes, avalistas ou fiadores, que nada têm a ver com os pressupostos e a ponderação desse plano.
Também Maria do Rosário Epifânio, no seu Manual de Direito da Insolvência (10), defende «a aplicação do disposto no art. 217.º, n.º 4, ao PER, desde logo, porque, se esta solução vale para o processo de insolvência – cuja finalidade primacial é a satisfação dos interesses dos credores –, por maioria de razão terá que valer no PER – onde se pretende recuperar a empresa. Qual o credor garantido que vai votar favoravelmente o plano se sabe que corre o risco de perder (ou de ver reduzida) essa garantia (que pretende exatamente acautelar as dificuldades de pagamento da própria empresa)? // Em segundo lugar, a aplicação do n.º 4 do art. 217.º pode também ser sustentada na remissão operada pelo art.17.º-F, n.º 7, para as regras previstas no título IX (onde se insere, designadamente, o art. 217.º)».

Em nono lugar, é claramente predominante a corrente jurisprudencial no sentido aqui defendido (11) quanto aos terceiros condevedores ou garantes. Segundo a mesma, nenhuma norma determina a extinção de acção para cobrança de dívidas instaurada contra condevedor ou garante, assim como não consagra a modificação do direito do credor garantido face ao terceiro garante ou condevedor, pelo que nada obsta à exigibilidade do crédito. Pelo contrário, seja por se considerar que o artigo 17º-A, nº 3, opera uma remissão para o artigo 217º, nº 4, ambos do CIRE (tese da aplicação remissiva), seja pela via da interpretação extensiva desta última disposição legal, a jurisprudência maioritária tem entendido que o processo especial de recuperação não afecta nem pode afectar os direitos dos credores contra os condevedores ou terceiros garantes, pelo que nada impede os credores de reclamar créditos nesse processo e, simultaneamente, intentar execução contra os outros devedores ou garantes.
Como se salienta no acórdão desta Relação de 17.10.2019, proferido no processo 7567/15.7T8VNF-A.G1 (subscrito pelos ora relator e 1º adjunto): «No que respeita aos efeitos processuais da abertura do PER e do âmbito subjetivo da sua aplicação, como resulta do artº 17º-E, n.º 1, do CIRE, o despacho de nomeação do administrador judicial provisório obsta à instauração ou à prossecução de acções para cobrança “contra o devedor” (efeitos impeditivo e suspensivo).
Por isso, estão fora da eficácia do PER todos os demais devedores ou garantes das obrigações objeto do PER, à semelhança do que sucede com o art. 88º, n.º 1, do CIRE, como sejam, nas obrigações plurais, os condevedores solidários ou parciários; nas obrigações com garantia, os terceiros garantes [tanto garantes principais (o avalista ou o obrigado por garantia autónoma), como garantes subsidiários (o fiador) e os garantes reais]. Isto porque se trata de terceiros em relação ao âmbito de eficácia do PER, pois não são eles quem está em situação económica difícil ou em situação de insolvência para efeitos daquele procedimento.
Nesta tarefa interpretativa, que não se pode dissociar da letra da lei, tal como impõe o art. 9º, n.º 2, do Código Civil, as hipóteses regulamentadas e as alocuções referidas no texto legal reportam-se exclusivamente à pessoa do devedor e não a terceiros, os quais não podem ser beneficiários – diretos ou não – relativamente a providências tomadas num plano especial de revitalização por não serem partes ou sujeitos processuais interessados.
Deste modo, ao abrigo daquele princípio geral do art. 817º do CC, a obrigação pode ser fundamento de exigência judicial de cumprimento e continua a ser exigível para efeitos do art. 713º do CPC, perante os terceiros devedores e garantes.
Este entendimento mostra-se reforçado pelo disposto no Dec. Lei n.º 26/2015, de 6/02, que alterou o SIREVE, o CIRE e o CSC. Este diploma veio alterar o conteúdo do art. 11º, n.º 2, do SIREVE, tornando extensíveis aos garantes alguns dos benefícios que antes eram privativos do devedor, sendo que a alteração substancial prendeu-se com a extensão da suspensão das ações executivas para pagamento de quantia certa ou outras ações destinadas a exigir o cumprimento das obrigações aos “respetivos garantes relativamente às operações garantidas”.
Todavia, essa alteração firmada no art. 11º, n.º 2, do SIREVE, não se refletiu no art. 17º-E, n.º 1, do CIRE, que se manteve inalterado. Daqui se retira o argumento de que o legislador pretendeu conferir diferentes âmbitos às normas, reforçando que, no PER, o regime do art. 17º-E, n.º 1, se aplica apenas à relação material com o devedor, não se estendendo às relações com os condevedores e terceiros garantes».

Do exposto inequivocamente decorre que o plano de recuperação aprovado e homologado no processo de revitalização só diz respeito e só vincula os credores e o devedor que se apresentou à revitalização (ao respectivo processo) e que o aí acordado quanto à dívida deste (prorrogação do prazo de pagamento, perdão parcial, períodos de carência, etc.) não é extensível às obrigações dos condevedores nem dos garantes, nem por estes invocável, permanecendo as obrigações destes inalteradas. Por outras palavras, nem o plano tem aptidão para alterar a relação entre o credor e o terceiro garante ou condevedor, nem as modificações introduzidas no plano quanto à forma de satisfação do crédito pela empresa se estendem ou aproveitam aos condevedores e terceiros garantes.
Como enfaticamente salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (12), «seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário».
Termos em que se conclui pela total improcedência das conclusões formuladas pelo Recorrente sobre esta questão.
*

2.2.2. Caso julgado e autoridade de caso julgado

Preconiza o Recorrente a revogação da decisão recorrida «para que seja respeitada a anterior e douta Sentença homologatória da aprovação do Plano de Revitalização proferida aos 24/10/2021 e já transitada em julgado» (conclusão 17ª), uma vez que «viola frontalmente a força de caso julgado decorrente» daquela decisão de homologação.
Importa traçar, resumidamente, o quadro jurídico relevante para a apreciação desta questão. Nesse contexto, interessam-nos os conceitos de caso julgado material e de autoridade de caso julgado.
O caso julgado material forma-se quanto à decisão que recaiu sobre a relação jurídica substancial (artigo 619º, nº 1, do CPC) (13) e traduz-se na inadmissibilidade da sua modificação por qualquer tribunal, logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação (art. 628º do CPC). «O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada» (14). As situações ou relações jurídicas já definitivamente definidas por via de decisão judicial consideram-se consolidadas (15).
A contraditoriedade de decisões judiciais sobre situações em tudo similares gera perplexidade na sociedade e é gravemente atentatória dos valores da certeza e da segurança jurídicas. Segundo Manuel de Andrade (16), esta última consideração é a mais importante: «sem o caso julgado material estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa – fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas. Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu» (17).
Os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelos elementos identificativos da acção onde foi proferida a sentença: as partes, o pedido e a causa de pedir (artigos 580º e 581º do CPC). Se o objecto da decisão transitada no primeiro processo for idêntico, no que respeita a esses três elementos identificativos, ao do processo subsequente, a sentença daquele vale neste como excepção de caso julgado, evitando-se que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão anterior – artigo 580º, nº 2, do CPC.
Além da excepção de caso julgado, é usual a referência à autoridade do caso julgado de sentença transitada. Uma e outra constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica, uma vez que se inserem no tratamento jurídico das consequências ou efeitos do caso julgado. Enquanto a excepção de caso julgado tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir –, aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.
Referindo-se à autoridade de caso julgado, considera Miguel Teixeira de Sousa que «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição de decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior» (18).
No fundo, está em causa uma diferente dimensão da eficácia do caso julgado material, que pode ser negativa ou positiva. O efeito negativo do caso julgado consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, quando se verifica a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, e actua por via da excepção dilatória de caso julgado – art. 577º, al. i), do CPC. O efeito positivo do caso julgado ou autoridade de caso julgado consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, ou seja, a solução nela compreendida torna-se vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou noutros tribunais; impõe-se a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito, atenta a relação de prejudicialidade existente entre as duas.
O alcance e autoridade do caso julgado não se confina aos estreitos contornos definidos pelos artigos 580º e 581º do CPC (tríplice identidade quanto a sujeitos, pedido e causa de pedir), antes se estende a determinadas situações em que a sentença anterior conheça, no todo ou em parte, o direito do autor ou o do reconvinte e na acção posterior ocorrer o perigo efectivo de a sentença a proferir contradizer aquela decisão judicial, redundando ambas – se a segunda chegar a ser proferida – num simultâneo dizer e desdizer do direito, pondo em causa os valores da certeza e da segurança jurídicas. Tal efeito produz-se quanto estejam em causa objectos processuais materialmente conexos ou interdependentes. Tem de existir uma certa relação entre as duas acções, traduzida em a decisão proferida na primeira, prejudicar ou condicionar a apreciação do objecto da segunda. Em vários casos isso pode ocorrer, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

A delimitação entre as duas figuras estabelece-se da seguinte forma (19):
- se no processo subsequente nada há de novo a decidir relativamente ao decidido no processo precedente (20), verifica-se a excepção de caso julgado;
- se o objecto do processo precedente não esgota o objecto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objectos, impõe-se o recurso à figura da autoridade ou força de caso julgado (21).

Revertendo ao caso concreto e transpondo os conceitos acabados de delimitar, facilmente se verifica que não procede a excepção dilatória de caso julgado.
A causa repete-se, nos termos do nº 1 do artigo 581º do CPC, «quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir». Portanto, os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelas partes, o pedido e a causa de pedir.
Ora, é manifesto que o processo especial de revitalização a que recorreu a empresa devedora sociedade comercial Y, Unipessoal, Lda., não é idêntico à acção executiva instaurada pela ora Recorrida X Filtrations Solutions, Lda., contra o Recorrente J. J., na qual pede o pagamento da quantia total de € 10.815,15. As partes não são as mesmas e o pedido é diferente, assim como a causa de pedir. O Executado nem sequer interveio, por si, naquele processo.

Quanto à autoridade de caso julgado, por tudo quanto já se expôs em 2.2.1., o Tribunal a quo não estava vinculado pela decisão homologatória do plano de recuperação.
Primeiro, a jurisprudência dominante tem vindo a entender que, relativamente à autoridade de caso julgado, não é necessária a verificação da tríplice identidade supra referida – sujeitos, pedido e causa de pedir –, mas exige que exista identidade de partes. Como, desde logo, o Recorrente não interveio, como parte, no PER e no plano de recuperação (verdadeiro acordo de revitalização, que, por imposição expressa da lei – art. 17º-F, nº 10 – «vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações»), é inequívoco que não opera a autoridade de caso julgado.
Segundo, quanto ao efeito reflexo do estabelecido no plano de recuperação, a questão respeita à eficácia das cláusulas de salvaguarda da posição dos garantes inseridas naquele plano.
Como em muitos dos processos de revitalização os garantes coincidem com os gerentes e administradores das sociedades devedoras, não surpreende que estes, por terem intervenção no processo na qualidade de representantes orgânicos dessas sociedades, pugnem por ver incluídas no plano previsões que salvaguardem as suas posições, tipicamente através da vinculação dos credores a não accionar os garantes senão dentro das novas condições acordadas para a dívida por eles garantida.
Parece ser esse o caso dos autos, uma vez que o Executado é o gerente da sociedade devedora e no plano aludiu-se ao facto de «ser garante pessoal dos créditos então concedidos pelas instituições financeiras à sociedade, tal como por algum dos credores comuns». Daí que tenha ficado a constar no ponto 9 do plano de recuperação, sob a epígrafe “garantias pessoais/avales e fianças”, que «Será condição necessária que a aprovação do presente plano implique, por parte dos credores, o não accionamento dos terceiros garantes (avalistas / fiadores), concedendo-lhes as condições necessárias para que aqueles possam dedicar todo o seu tempo à efectiva recuperação da sociedade, único meio que verdadeiramente poderá possibilitar o ressarcimento dos créditos aos credores».
Como o plano de recuperação foi judicialmente homologado, daí retira o Recorrente o argumento de que a Exequente está vinculada ao mesmo e que o aí estabelecido «tem força jurídica inabalável, dentro e fora do processo, aplicando-se, por isso, “erga omnes”, como resulta da aplicação conjugada do disposto no art. 17º-F nº 10 do CIRE – lei especial – e no art. 619º e segs. do CPC».
Desde logo, importar ter presente que a homologação do plano corresponde, em síntese, à certificação, pelo juiz, da conformidade legal do plano, ou seja, de que o mesmo não contraria normas imperativas (22). É um mero controlo de legalidade, não tendo valor constitutivo.
Posto isto, nada impede que os credores acordem com a empresa a salvaguarda da posição dos garantes das obrigações, pois o plano de revitalização é um negócio jurídico, embora sui generis, sujeito ao amplo papel da autonomia privada.
Uma tal cláusula não contraria norma imperativa e naturalmente que os credores afectados que aprovaram o plano, aceitando com isso tal salvaguarda, estão inibidos de agir em desconformidade com a mesma, o que, a acontecer, sempre constituiria um nítido abuso do direito.
Mas da circunstância de o plano conter uma tal cláusula de salvaguarda não resulta que os credores que não aprovaram o plano, como parece ter sucedido com a Exequente (o Executado em lado algum alega que a Exequente aprovou o plano (23), tendo na página 12 das alegações ressalvado a posição por aquela «assumida no processo quanto à aprovação do Plano de Revitalização», donde se deduz que não o aprovou (24)). A questão reside no alcance de tais cláusulas e não propriamente na sua inadmissibilidade ou se podem fundar um pedido de não homologação, nomeadamente por parte de um credor que haja votado contra.
Ao contrário do que parece defender o Recorrente, o âmbito da eficácia do plano de recuperação, enquanto acordo de natureza privada, resulta da lei, limitando-se o juiz a conferir-lhe a eficácia que aquela lhe atribui. Não sendo especificamente apreciada e decidida uma certa questão, a decisão homologatória do plano, que se cinge à apreciação da sua não contraditoriedade com normas imperativas, não pode ser entendida com estendendo a sua eficácia a matérias que exorbitam do objecto do processo.
Não se pode perder de vista que o processo especial de revitalização tem uma finalidade específica, que é a recuperação da empresa, pelo que está em causa exclusivamente o passivo da devedora e não o de terceiros ou a responsabilidade destes, que dele não são requerentes ou parte processual, pelo menos nessa qualidade.
É certo que a aprovação e consequente homologação do plano de recuperação tem efeitos que se repercutem sobre credores que não lhe deram o seu acordo, isto é, que o não votaram, designadamente daqueles que não quiseram dispor dos seus direitos. Porém, os efeitos estão limitados ao objecto do processo, às providências sobre o passivo do devedor e não a outras, que, ainda que não proibidas, por não integrarem o objecto do processo, não podem ser impostas a quem não deu o seu acordo.
Por isso, a cláusula invocada pelo Recorrente, de salvaguarda da sua posição como fiador, por extravasar o objecto do plano de recuperação, deve considerar-se ineficaz e inoponível à credora Recorrida.
Como é óbvio, o nº 10 do artigo 17º-F do CIRE tem o seu âmbito delimitado pelo objecto do processo. É relativamente ao mesmo que «a decisão vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações».

Terceiro, nenhum efeito relevante para o presente processo é possível retirar da cláusula 16 do plano, intitulada “execução do plano de revitalização e seus efeitos”, desde logo pelo motivo que se acaba de expor no ponto anterior.
Em todo o caso, a alínea a) dessa cláusula respeita às «alterações dos créditos sobre a devedora» e não ao exercício dos direitos dos credores sobre os garantes.
Quanto à sua alínea b), para além de redundante e de nada acrescentar de útil relativamente ao que dispõe o nº 1 do artigo 17º-E do CIRE, refere-se apenas à extinção das «ações judiciais (…) instauradas contra a sociedade para cobrança dos créditos contra a mesma reclamados», não abrangendo uma acção executiva instaurada por um credor da empresa recuperanda contra o fiador de obrigações desta, que é a situação que está em causa nos autos.

Termos em que também improcedem as conclusões a este respeito formuladas na apelação.
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2.3. Sumário

1 – O plano de recuperação conducente à revitalização da empresa devedora não tem aptidão para alterar a relação entre o credor e o terceiro garante ou condevedor sem o acordo daquele, nem as modificações assim introduzidas no plano quanto às formas de satisfação do crédito pela empresa se estendem aos terceiros.
2 – A previsão no plano de recuperação de cláusula destinada a vincular os credores a não accionar os garantes, senão dentro das novas condições acordadas para a dívida por eles garantida, por extravasar o objecto do plano, deve considerar-se ineficaz e inoponível ao credor que contra ele votou e, por isso, não deu o seu acordo.
3 – Para efeitos de apreciação da excepção de caso julgado, o processo especial de revitalização da devedora não é idêntico à acção executiva instaurada pelo credor contra o fiador da obrigação daquela, que não interveio naquele processo, por as partes não serem as mesmas e o pedido e a causa de pedir serem diferentes.
4 – Sendo o plano um negócio jurídico e correspondendo a sua homologação essencialmente à certificação, pelo juiz, de que não contraria normas imperativas, a decisão homologatória, não tendo especificamente apreciado e decidido a questão, não estende a sua eficácia à cláusula de salvaguarda da posição do garante. O âmbito da eficácia do plano de recuperação, enquanto acordo de natureza privada, resulta da lei, limitando-se o juiz a conferir-lhe a eficácia que aquela lhe atribui.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
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Guimarães, 13.07.2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, pág. 230.
3. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 5ª edição, Almedina, pág. 477.
4. Os titulares de créditos constituídos até à data da abertura do processo de PER – data em que foi proferida a decisão de nomeação do administrador judicial – são susceptíveis de ser afectados pelo plano de recuperação.
5. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3ª edição, Quid Juris Editora, 1998, pág. 204, nota 2.
6. Neste sentido, Rui Pinto, A Eficácia do Processo Especial de Revitalização sobre os terceiros devedores e garantes, pág. 18. Segundo este autor, trata-se «de uma norma restritiva do direito de ação e do princípio enunciado no artigo 817º do CC, que o legislador quis apenas dirigir ao devedor. Ergo, uma norma excecional, pelo que estão fora da sua eficácia todos os demais devedores ou garantes das obrigações objeto do PER».
7. Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, O processo especial de revitalização – Comentário aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, pág. 62.
8. Ac. da Relação de Évora, de 13.08.2013, proferido no processo 983/12.8TBENT.E1 (Canelas Brás).
9. Pág. 62.
10. 7ª edição, Almedina, pág. 480.
11. V., entre muitos outros, os seguintes acórdãos: Relação de Évora (RE) de 13.08.2013, proc. 983/12.8TBENT.E1 (Canelas Brás), RE de 29.01.2015, proc. 1030/13.8TBTMR-A.E1 (Silva Rato), RE de 27.02.2020, proc. 9414/15.0T8STB-C.E1 (Conceição Ferreira); Relação de Lisboa (RL) de 24.11.2015, proc. 339/15.0T8PDL.L1-1 (Maria da Graça Araújo), RL de 27.10.2015, proc. 416/15.8T8PDL.L1-7 (Rosa Ribeiro Coelho), RL de 04.06.2015, proc. 125/13.2TCFUN-AL1-6 (Vítor Amaral), RL de 19.09.2013, proc. 877/13.0TVLSB.L1-8 (Ilídio Sacarrão Martins); Relação do Porto (RP) de 07.10.2014, proc. 3803/13.2TBGDM-A.P1 (José Igreja Matos), RP de 16.09.2014, proc. 1527/13.0TBVNG-A.P1 (Pinto dos Santos), RP de 09.07.2014, proc. 1213/12.8TBVFR-B.P1 (José Amaral), RP de 02.06.2014, proc. 758/13.7TBMTS-A.P1 (Augusto de Carvalho), RP de 23.10.2018, proc. 407/17.4T8AGD-A.P1 (Alexandra Pelayo); Relação de Coimbra (RC) de 01.12.2015, proc. 808/14.0TBCVL-A.C1 (Manuel Capelo), RC de 03.06.2014, proc. 1030/13.8TBTMR-B.C1 (Anabela Luna de Carvalho), RC de 03.06.2014, proc. 281/13.0TBOHP-A.C1 (Catarina Gonçalves), RC de 06.07.2016 (João Moreira do Carmo); Relação de Guimarães (RG) de 05.11.2015, proc. 657/14.5TBBRG.G1 (Jorge Teixeira), RG de 24.09.2015, proc. 378/14.9T8VNF.G1 (Jorge Teixeira), RG de 10.12.2013, proc. 1083/13.9TBBRG.G1 (Beça Pereira), RG de 05.12.2013, proc. 2088/12.2TBFAF-B.G1 (Helena Melo), RG de 04.04.2017, proc. 3380/13.4TJVNF.G3 (Eva Almeida), RG de 30.05.2019, proc. 3830/18.3T8VNF-A.G1 (Maria dos Anjos Nogueira), RG de 17.10.2019, proc. 7567/15.7T8VNF-A.G1 (Alcides Rodrigues, subscrito igualmente pelos ora relator e 1º adjunto); STJ de 26.02.2013, proc. 597/11.0TBSSB-A.L1.S1 (Azevedo Ramos), STJ de 30.10.2014, proc. 16/13.7TBSCF-A.L1.-A.S1 (Silva Gonçalves), STJ de 04.05.2017, proc. 206/14.5T2STC-A.E1.S1.S1 (Olindo Geraldes). Em sentido contrário, evidenciando uma corrente minoritária, pode mencionar-se o acórdão do STJ de 29.01.2019, proc. 1563/16.4T8AMT.P1.S2 (Maria Olinda Garcia). Todos os mencionados acórdãos são acessíveis em www.dgsi.pt.
12. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, pág. 792.
13. Por contraposição ao caso julgado formal (art. 620º, nº 1, do CPC), que é o efeito imperativo que resulta da decisão que recaia sobre a relação processual e que tem apenas força dentro do processo (eficácia intraprocessual), obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida.
14. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 703.
15. A lei processual garante a imodificabilidade da decisão transitada em julgado por duas vias: por um lado, consagra a chamada excepção dilatória de caso julgado, que é de conhecimento oficioso, impedindo a propositura de uma nova acção destinada a apreciar questão já solucionada por decisão anterior [artigo 577º, al. i), 578º, 580º e 581º do CPC]; por outro, prevenindo a hipótese de essa excepção não haver oportunamente funcionado e de virem a formar-se duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, prescreve a prevalência, não da última, mas da primeiramente transitada em julgado – artigo 625º, nº 1, do CPC.
16. Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 306.
17. Conforme enfaticamente se refere no acórdão desta Relação de 17.09.2013, proferido na apelação nº 307/12.4TCGMR.G1, relatado por Ana Cristina Duarte, acessível em www.dgsi.pt, «desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação e da anarquia».
18. O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325º, pág. 49 e segs. (v. p. 179).
19. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ nº 325, págs. 159 a 179.
20. Os objectos de ambos os processos coincidem integralmente, já tendo sido integralmente valorados.
21. Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, págs. 599 e 600, «o objecto da primeira decisão tem de constituir questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há de ser proferida (…), ou o fundamento da primeira decisão, excecionalmente abrangido pelo caso julgado (…), é também questão prejudicial na segunda ação».
22. V. o artigo 215º do CIRE, relativo à recusa oficiosa de homologação, «quando exista uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao (…) conteúdo, qualquer que seja a sua natureza».
23. Não foi junta aos autos qualquer documentação relativa à votação do plano. Apenas se sabe, por emergir da decisão homologatória, a percentagem dos credores que votaram a favor.
24. Nas contra-alegações, a Recorrida insurge-se por o Recorrente não mencionar que votou contra o plano.