Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
298/16.2T9EVR.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: AGENTE DE EXECUÇÃO
ABUSO DE PODER
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - A circunstância do arguido, enquanto agente de execução, ter efetuado penhoras de bens que se podem considerar excessivas, face à quantia em execução, não é suscetível, por si só, de fazê-lo incorrer no crime de abuso de poder.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, findo o inquérito que correu termos na Secção do DIAP de Montemor-o-Novo, da Procuradoria da República da Comarca de Évora, na sequência de queixa apresentada por PS contra legais representantes do Banco…, S.A. e contra AV, imputando-lhes factos que subsumiu ao crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º do Código Penal (CP), foi o mesmo arquivado, com fundamento em ausência de indícios suficientes nos termos do disposto no art. 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP).

Pelo queixoso, na qualidade de assistente, foi requerida a abertura da instrução, visando a pronúncia dos arguidos.

No Juízo de Instrução Criminal de Évora, proferiu-se despacho que rejeitou o requerimento quanto ao Banco …, S.A., com fundamento em insusceptibilidade de responsabilidade criminal nos termos do art. 11.º, n.º 2, do CP.

Realizada instrução no restante, proferiu-se decisão instrutória que não pronunciou o arguido AV pela prática do referido crime de abuso de poder.

Inconformado com tal decisão, o assistente interpôs recurso, formulando (após convite ao aperfeiçoamento por via do art. 417.º, n.º 3, do CPP) as conclusões:

1. O recorrente não se conforma com o despacho de não pronúncia proferido, na medida em que, dos autos constam suficientes indícios, nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 308º do CPP.

2. O Tribunal de Instrução Criminal não fez uma correcta interpretação da prova documental junta aos autos, nos termos do disposto no artigo 127º e, em consequência, aplicou de forma errónea, o disposto no artigo 308º n.º 1 in fine do CPP, porquanto foram recolhidos, em inquérito, indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena.

3. Com efeito, comete o crime de abuso de poder, quem abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

4. A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido constitui o campo de delimitação da tipicidade.

5. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo exige-se uma intenção específica, uma intenção que é tipicamente requerida, mas que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo - a intenção de obter benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.

6. A integração do crime de abuso de poder, p. no elencado art. 382.º, supõe, pois, por um lado, o preenchimento dos elementos do tipo objectivo (o mau uso ou uso desviante dos poderes da função), e, em conjugação, a verificação de uma intenção específica que está para além do tipo objectivo.

7. O preenchimento do tipo objectivo não se confunde, porém, com o erro de função ou com a prática e actos susceptíveis de revogação por uma instância de reapreciação, não sendo integrado, na inteira dimensão típica, sem a concorrência da atitude interna do agente que deve estar pressuposta como finalidade da acção.

8. Por isso, a verificação dos elementos do crime de abuso de poder não se situa num plano de instância alternativa de recurso ou reapreciação, mas tem de estar primeiramente dirigida à apreensão, por via de elementos externos, da atitude interna do agente que constitui a intenção específica.

9. Esta atitude interna, por seu lado, não pode ser lida sem o suporte de elementos externos e objectivos que a revelem e nos quais externamente se manifeste.

10. O contexto, como modo de interpretação da conjunção de elementos de ambiência, deve, aqui, revelar-se de particular importância.

11. A relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.

12. Delimitados pelas considerações supra, o que verificamos é que os documentos carreados para os autos, em sede de inquérito e o contexto em que os factos ocorreram, demonstram de forma objectiva a conduta processual do arguido, revelando a intenção de, pelo menos, obter benefícios,

13. O que o Tribunal “a quo” não cuidou de interpretar, integrar e retirar as devidas ilações, correctamente.

14. Na verdade, antes da prolação de sentença proferida nos Embargos de Executado, em face do Embargo deduzido, que encontravam-se em dívida quantias, já não relativas a capital, mas sim, despesas de contencioso e penalizações, desta feita, no montante de € 2.524,54.

15. Na mesma altura processual, como decorre do inquérito, já se encontravam efectuadas penhoras de vencimento, de depósitos e veículos, nomeadamente, os veículos matrículas B5- e -KQ determinadas pelo arguido Agente de Execução e que, asseguravam, tout court, os direitos da exequente, cobrindo, efectivamente, a quantia em dívida, alcançando as penhoras efectuadas o montante de 6 339,39€ ab initio - conforme documento n. º 2 junto com o requerimento de abertura de instrução;

16. Não obstante já ter o pagamento da dívida exequenda processualmente assegurado, o arguido, continuou a determinar penhoras, atrás de penhoras, desde quotas em sociedades, direitos a heranças indivisas, quer do assistente, quer da sua ex-cônjuge, conforme resulta abundantemente do inquérito e instrução.

17. E, directamente, fruto da conduta processual do arguido surgiram quantias a liquidar superiores i) à quantia exequenda inicial ii) aos montantes que já se encontravam assegurados por penhoras iniciais (o total que passa a ser imputado ao assistente é de 9.951,27 €).

18. Quem beneficia com esta actuação OBJECTIVAMENTE é o arguido, já que devido a todos os actos que foram efectuados e correspondentes registos, o assistente terá que pagar valores absolutamente elevados, ainda que a quantia exequenda estivesse desde o início assegurada pelas penhoras dos dois veículos, sem necessidade de mais qualquer penhora ou acto de cobrança.

19. É, REITERA-SE por demais evidente que, quem beneficiou com toda esta situação é o arguido, pois que vê - com a prática de actos inúteis e manifestamente desproporcionados, face à quantia exequenda em causa e aos actos inicialmente praticados- reitera-se, aumentada exponencialmente, a quantia que lhe é devida por honorários.

20. O arguido ao tentar cobrar desenfreadamente, como é o caso, conduta que resulta sobejamente dos autos, sem olhar a meios, está a abusar do poder que lhe foi conferido no exercício de funções públicas;

21. O arguido, ao penhorar, concomitantemente, saldos bancários, salários, penhora de sociedades, veículos e heranças para garantir uma dívida que não alcançava três mil euros, abusou do princípio da extensibilidade da penhora e, por conseguinte, a praticar o crime de abuso de poder.

22. Ao assim agir, entende o assistente, o arguido abusou do poder que detém e violou os seus deveres funcionais, pois que o direito da exequente garantir o seu crédito, através da penhora de bens, não é arbitrário, antes obedece e conforma-se aos requisitos legais e colocou em causa a credibilidade e imparcialidade da administração da Justiça, ao agir da forma descrita e que se encontra consubstanciada nos autos, através de manifesta e abundante prova documental.

23. Não existindo, aos olhos de qualquer Homem Médio, uma justificação plausível para a conduta processual que o arguido logrou efectivar nos autos, em vez de aguardar serenamente, o desfecho processual, tendo garantido o seu crédito pelas penhoras inicialmente efectuadas, que não seja uma intenção de obter benefícios, no caso, um aumento exponencial de quantias a título de honorários.

24. O arguido agiu voluntária e conscientemente de que a sua conduta era vedada pela Lei e que provocaria, como provocou, prejuízos ao assistente e que coloca em crise a credibilidade e imparcialidade da Administração da Justiça.

25. Cometeu, assim, em autoria material, um crime de abuso de poder p. e. p. pelo artigo 382º n.º 1 do Código Penal.

26. Por isso, depois de devidamente analisada a prova documental carreada para os autos, deverá o presente recurso julgado procedente, por provado e substituída a decisão de não pronúncia, por outra, que remeta os autos para julgamento do arguido pela prática de um crime de abuso de poder p. e.p. pelo artigo 382º n.º 1 do Código Penal.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1. Inconformado com a decisão instrutória proferida nos autos em epígrafe que. não pronunciou o arguido AV, da prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382º, nº 1, do Código Penal, dela recorre agora o assistente PS.

2. Em face das conclusões formuladas pelo recorrente, as quais delimitam o objecto do recurso, presume o Ministério Público, que o recorrente pretende ver reapreciada a presente decisão à luz do disposto no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, sendo certo, porém, que nas alegações não estão indicados tais vícios, entendendo que a norma violada será a contida no artigo 127º do Código de Processo Penal.

3. Contudo, a douta decisão recorrida não padece de qualquer dos vícios a que se reporta o artigo 410º, nº 1 acima indicado.

4. Acresce que da leitura do requerimento de abertura de instrução resulta que os factos imputados ao arguido não estão alegados de forma clara, objectiva e concisa.

5. Por outro lado, foi devidamente respeitado o princípio da livre apreciação da prova, contido no artigo 127º do Código de Processo Penal, na medida em que a Mma. JIC fundamentou e explicitou de modo claro e objectivo as razões e elementos em que se alicerçou para considerar que não havia indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de abuso de poder.

Termos em que, em no nosso entender, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a douta decisão recorrida nos seus precisos termos, não se pronunciando o arguido.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da rejeição do recurso caso não viessem a ser aperfeiçoadas as conclusões ou, assim não sucedendo, da improcedência do mesmo.

Observado o disposto no art. 417.º, n.º 5, do CPS, nada foi apresentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso, como decorre do disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPS, define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo Código, designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, entre muitos, o acórdão do STJ de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt.

Traduz-se, então, em apreciar se, em face dos indícios recolhidos, o arguido André Gonçalves Venda deveria ter sido pronunciado pela prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382.º do CP.

Resulta dos autos:
A instrução, que teve lugar, foi requerida pelo assistente, ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por não concordar com o arquivamento decidido pelo Ministério Público findo o inquérito, relativo a factos por si denunciados, eventualmente subsumíveis a crime de abuso de poder, imputados designadamente ao referido AV.

Visando, pois, a comprovação judicial da decisão de arquivamento (art. 286.º, n.º 1, do CPS), desta ficou a constar, mormente:

«Os presentes autos tiveram início com a queixa de fls.4 a 7 apresentada por PS contra os legais representantes do Banco … e contra AV, cujo teor aqui se dá por reproduzido, da qual consta, em suma, que no âmbito do Processo Executivo n.º----/13.8TBEVR, que correu termos na Secção de Execução de Montemor-o-Novo – Juiz 1, o Banco --- em conluio com o Agente de Execução ordenaram a efectivação de várias penhoras ao património do denunciante, penhoras tendo em vista o denunciante pagar aquilo que já havia sido pago pelo mesmo, causando-lhe assim prejuízos.

A factualidade supra descrita é susceptível de consubstanciar, em abstracto, a pratica de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382º, n.º 1, do Código Penal.

Em ordem a aferir da realização do crime supra enunciado, foram realizadas as seguintes diligências:
i) Junção aos autos de cópias de documentos do processo executivo, bem como documentos trocados entre o denunciante e os arguidos - fls. 10 a 124;

ii) Junção aos autos de certidão de sentença proferida em 04.04.2017 nos Embargos de Executado com o n.º ---/13.8TBEVR-A - fls. 142 a 175;
iii) Inquirição, na qualidade de testemunha, de AV - fls. 184 -, que declarou que toda a informação é a que consta dos autos;

iv) Inquirição, na qualidade de testemunha, de PS - fls. 188 a 189 -, que confirmou a denúncia por si apresentada e esclareceu que há cerca de 7 anos realizou um crédito para a adquirição de uma viatura, tendo deixado de pagar a através de transferência bancária e começado a pagar por multibanco. Derivado a isso, o banco começou a cobrar-lhe juros com os quais não concordou, tendo apurado que já tinha uma dívida de €2 524.00. Derivado a tal dívida teve várias penhoras, que mancharam o seu bom nome e deixou de ter direito a qualquer crédito, entendendo que não deve de pagar tal quantia.

v) Constituição como arguido e interrogatório nessa qualidade de HS - fls. 199 -, que declarou que o Tribunal da Comarca de Évora já se havia pronunciado sobre o processo de execução em apreço, de forma geral, em favor da interpretação do Banco ---, em resultado de um contrato de mútuo, que considera que a denúncia de abuso de poder apresentada carece de qualquer fundamento ou veracidade, o que se confirma com a decisão proferida pelo tribunal competente.

vi) Junção aos autos de informação do Banco de Portugal – fls. 211-, da qual consta que “(…) o Banco de Portugal informa V. Exas. de que o processo de reclamação em causa foi encerrado sem indícios de infracção de normas especialmente aplicáveis à actividade das instituições supervisionadas por esta autoridade de supervisão nos mercados bancários de retalho.

Atendendo a que as explicações transmitidas pelo Banco…, S.A. ao Banco de Portugal sobre os factos alegados pelo Senhor PS eram, no entendimento desta autoridade de supervisão, susceptíveis de assegurar o esclarecimento do referido Cidadão sobre os motivos subjacentes à atuação da instituição reclamada, foi remetida, em 15 de Junho de 2011, ao então reclamante a N/comunicação com a referência DSC/2011/021466. (…)”.
(…)
In casu, o denunciante vem colocar em causa a conduta levada a cabo pelo Banco … (exequente no processo de execução n.º----/13.8TBEVR) e por AV (agente de execução), alegando que foram realizadas penhoras para cobrar montantes não devidos.

Ora, do cotejo dos elementos juntos aos autos, designadamente da informação do Banco de Portugal de fls.211 e da certidão da sentença de embargos de Executados proferida no processo n.º---/13.8TBEVR-A, verifica-se que tal matéria já foi objecto de decisão no foro próprio, o foro civil, que não o dos presentes autos.

De facto, da prova carreada para os autos verifica-se que existiu uma divergência entre aquilo que o denunciante considerava como legítimo ser-lhe cobrado pelo Banco --- e aquilo que o Banco considerava cobrável, designadamente como se diz na sentença proferida nos aludidos embargos de executados “do fundamento para a cobrança da «comissão de entrada em contencioso»”.

Com efeito, sendo certo que nos embargos de executados que foram julgados parcialmente procedentes, foi decidido “Declarar inexigível, por falta de título executivo, o montante peticionado a título de “Comissão de entrada em contencioso”, a saber, a quantia de €1 321,49 (mil, trezentos e vinte e um euros, quarenta e nove cêntimos) e respectivos juros de mora sobre esta quantia, ordenando a extinção da instância da execução quanto a este montante”, não existindo indícios da prática de qualquer abuso de poder ou violação de deveres inerentes às funções do arguido e do denunciado com qualquer intenção de obtenção de benefícios ilegítimos ou de prejuízos a terceiros, não podemos imputar ao arguido e ao denunciado a prática do crime de abuso de poder ou de qualquer outro.

Ademais, atente-se que o principio de subsidiariedade de intervenção do direito penal supõe a carência de tutela penal de determinado comportamento que afecte bens e valores, com relevo axiológico constitucional, pelo que não poderá sustentar-se a criminalização e o sancionamento penal de um incumprimento contratual que tem meios próprios de resolução.

Face ao exposto, tendo a matéria constante dos autos já sido decidida no foro próprio e não se verificando quaisquer indícios da prática de crime por parte do arguido e do denunciado, não se vislumbrando, de momento, a realização de qualquer outra diligência útil à descoberta da verdade, determino o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal».

Por seu lado, na decisão instrutória ora recorrida, para além do mais consignou-se:
«(…)
Notificado do referido despacho de arquivamento, o Assistente veio requerer a abertura da fase da instrução, peticionando que, a final, o Banco …, S.A. e AV sejam pronunciados pela prática de um crime de abuso de poder (requerimento de abertura de instrução de fls. 224 a 264).

Para tanto alegou, em síntese, que:
- Não obstante no processo de execução n.º ---/13.8TBEVR que correu termos no Juízo de Execução de Montemor-o-Novo do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, em que é exequente Banco…, S.A. e Executado o Assistente, terem sido penhorados dois veículos automóveis de matrícula BS- e -KQ, suficientes para cobrir a quantia exequenda, o arguido Banco …, S.A. e o arguido AV (Agente de Execução), em conluio, ordenaram penhoras de quotas em sociedades, direitos a heranças indivisas, saldos bancários, salários, tudo actos inúteis, desnecessários e desproporcionais que elevaram a quantia exequenda;

- Ao ordenar estas penhoras desnecessárias, o arguido AV abusou dos seus poderes, com vista a que os seus honorários ficassem mais elevados;

- Os arguidos agiram de forma voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era vedada pela lei e que provocava, como provocou, prejuízos ao ofendido e que colocou em crise a credibilidade e imparcialidade da administração da justiça.
(…)
Não foram realizadas diligências instrutórias.
Foi realizado o debate instrutório, de natureza obrigatória, o qual decorreu com observância do disposto no art. 302º do Cód. de Proc. Penal (adiante abreviado por CPS).
(…)

Vejamos então se os elementos de prova colhidos em sede de inquérito (uma vez que não foram realizadas diligências instrutórias) são suficientes para, numa perspectiva de possibilidade razoável, conduzir à condenação do arguido AV pela prática do crime de abuso de poder.
*
Quanto aos elementos probatórios coligidos em sede de inquérito, há que atender aos seguintes:

- Cópia de actos de execução (notificação após penhora, auto de penhora, citação após penhora, requerimento executivo, embargos de executado), cópia da reclamação enviada ao Banco de Portugal, informações bancárias, cópia da correspondência entre Banco…, S.A. e o assistente – fls. 10 a 124;

- Resposta do Banco de Portugal de onde decorre que «não foram colhidos indícios de que o Banco …, S.A. tenha violado normas específicas da actividade das instituições de crédito ou quaisquer outros elementos que justifiquem a actuação do Banco de Portugal» - fls. 50;

- Certidão da sentença de embargos de executado proferida pelo Juízo de Execução de Montemor-o-Novo do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, proferida no dia 04.04.2017, desconhecendo-se se a mesma se encontra transitada em julgado, em que figuram como Embargantes MS e PS e Embargado Banco .., S.A. (fls. 141 a 175).

Da sentença resulta que «não se fez qualquer prova nos autos de que a embargada/exequente, durante a execução contratual, tenha actuado para lá dos limites convencionalmente impostos pelas cláusulas particulares e gerais que regiam o contrato de mútuo que é fonte da obrigação exequenda, designadamente das estipulações contratuais emergentes das cláusulas 5.ª e 6.ª das Condições Gerais. Estas regiam sobre as consequências da mora no cumprimento das obrigações dos mutuários e previam expressamente a taxa de juros moratórios a aplicar e as comissões de processamento de prestação paga com atraso relativamente à sua data de vencimento».

No que concerne à cobrança da “comissão de entrada em contencioso”, decidiu-se na sentença que «inexiste título executivo quanto à supra mencionada comissão no valor de €1321,49», motivo pelo qual foram os embargos de executado julgados parcialmente procedentes, declarando inexigível, por falta de título executivo, o montante peticionado a título de “comissão de entrada em contencioso”, a saber a quantia de €1321,49 e respectivos juros de mora sobre esta quantia, ordenando a extinção da execução quanto a este montante.

Decorre da sentença que o Exequente decaiu em 22,09% e os Embargantes/Executados decaíram em 77,91%;

- Auto de inquirição de AV enquanto testemunha de fls. 184/185;

- Auto de inquirição de PS de fls. 188/189, de onde resulta que «Há cerca de 7 anos efectuou um crédito para a aquisição de uma viatura. O depoente deixou de pagar por transferência bancária, começando a pagar através de multibanco. Face a esta situação o banco começou a cobrar-lhe juros, juros esses que o depoente não concordou, no entanto veio a apurar que já tinha uma dívida de €2524,54. Face a essa dívida, foi objecto de várias penhoras, manchando o seu bom nome, bem como deixou de ter direito a qualquer crédito. Entende que não deve pagar tal quantia, a não ser que o Tribunal o determine».

- Auto de interrogatório do arguido HS de fls. 199/200, de onde resulta que «considera falsas, caluniosas e ofensivas as afirmações efectuadas pelo denunciante PS. O Tribunal da Comarca de Évora já se pronunciou sobre o processo de execução em apreço, de forma geral, em favor da interpretação do Banco…, em resultado de um contrato de mútuo com a instituição de crédito em 24.06.2010. Que considera que a denúncia de abuso de poder apresentada carece de qualquer fundamento ou veracidade, o que se confirma com a decisão proferida pelo tribunal competente relativamente à matéria de facto; que a decisão executiva foi emanada em 15.03.2017, a qual, na presente data, se encontra transitada em julgado, sendo pretensão do arguido extrair certidão do processo executivo, de forma a agregar aos presentes autos; que o denunciante e a Sra. MS, co-executada no processo executivo, foram devidamente notificados desta decisão, pelo que o arguido considera que o persente processo é desprovido de sentido, resultando do mesmo o mau uso dos meios judiciais, devendo em consequência imediata ser desde já arquivado; que não se opõe a uma eventual desistência de queixa, contudo opõe-se a uma eventual suspensão provisória do processo»;

- Resposta do Banco de Portugal de fls. 211 onde se lê que no que concerne à reclamação apresentada por PS contra o Banco …, S.A., «o processo de reclamação em causa foi encerrado sem indícios de infracção de normas especialmente aplicáveis à actividade das instituições supervisionadas por esta autoridade de supervisão nos mercados bancários de retalho».
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Em sede de instrução, para além do obrigatório debate instrutório, o Tribunal analisou os documentos juntos pelo assistente, da seguinte forma:

- Cópia da contestação apresentada pelo Banco…, S.A. no âmbito do processo executivo – fls. 233 a 248;

- Cópia dos actos de execução, designadamente notificações após penhora, autos de penhora, cópias de certidões permanentes dos registos de veículos automóveis, certidão permanente de registo predial, nota discriminativa de honorários e despesas de Agente de Execução – fls. 248 a 264.
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Analisados criticamente tais elementos probatórios, o tribunal considera que não resultaram como suficientemente indiciados os factos alegados no requerimento de abertura de instrução (artigo 307.º, n.º 1, in fine do CPP).

Sendo certo que o requerimento de abertura de instrução encontra-se eivado de matéria de natureza conclusiva e irrelevante para a decisão instrutória.
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Conforme supra referido, o Tribunal fundou a sua convicção com base nas inquirições e documentos juntos aos autos em sede de inquérito.

Dispõe o artigo 382.º do Código Penal que «O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal».

O crime de abuso de poder pressupõe que o agente, investido de poderes públicos, actue com violação dos deveres funcionais que sobre si impendem, sacrificando o interesse público para satisfação de finalidades ou interesses particulares que se venham a traduzir num benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou num prejuízo para outra pessoa.

Em primeiro lugar, cumpre clarificar que para efeitos da decisão a proferir, indiferente se torna que o arguido, agente de execução, tenha no exercício da sua função aplicado de forma correcta as normas do Código de Processo Civil e/ou que tenha proferido decisões juridicamente correctas, já que a mera ilegalidade da actuação dos agentes de execução ou das suas decisões não só não constitui crime, como é sindicável através de expedientes legais gizados precisamente para permitir aos cidadãos que se considerem lesados reagir contra tais actos e decisões, designadamente através da via judicial.

O direito penal só é chamado a intervir quando, em regra, dolosamente, o agente assume uma actuação desconforme com o direito e integradora de um tipo legal de crime.

Assim, nessa medida e vista a conformação dos factos que são imputados ao arguido, apenas a indiciária demonstração de um comportamento do agente pautado pelo intuito de obter um benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou de deliberadamente prejudicar o assistente, poderá conduzir à pronúncia do arguido pelo crime de abuso de poder.

Assim, frisa-se, não está em causa a verificação da correcção jurídica das decisões tomadas pelo arguido no exercício das suas funções.

O que importa descortinar, é, pois, quaisquer elementos objectivos que indiciem uma actuação deliberada contra direito ou um intuito de prejudicar o assistente.

A prova indiciária de uma tal actuação não se basta com a mera imputação dos factos pelo assistente, imputação esta feita no requerimento de abertura de instrução de forma muito pouco concreta e objectiva, diga-se.

Também não se basta com os documentos que juntou aos autos.

Muito menos se poderá considerar que o facto de lhe ter sido reconhecida razão parcial na sentença de embargos de executado (que desconhecemos se se encontra transitada em julgado), ao declarar inexigível por falta de título executivo o montante peticionado a título de “Comissão de entrada em contencioso” (€1321,49), implica a prova do intuito de prejudicar ou da deliberada actuação contra direito.

De resto, sempre se diga que o assistente não só decaiu em 77,91% (uma vez que só lhe foi dada razão quanto à supra referida “comissão de entrada em contencioso” no valor de €1321,49), como inexiste nos autos qualquer documentação de onde resulte que as penhoras a que faz alusão foram canceladas (tanto mais que existiam outras quantias em dívida).

Não foram trazidos aos autos quaisquer elementos de prova que com a necessária solidez permitam afirmar a verificação indiciária do crime que o assistente imputa ao arguido André Gonçalves Venda e que este agente tenha actuado com o intuito de obter um qualquer benefício prejudicando o assistente.

Para a decisão de pronunciar, a lei não se basta com um mero juízo subjectivo, antes exigindo um juízo objectivo assente na prova indiciária recolhida e constante dos autos, em termos de resultar da respectiva apreciação crítica uma convicção razoável da responsabilidade do arguido pelos factos que lhe são imputados no requerimento de abertura de instrução. Como refere Figueiredo Dias, os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do arguido, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição, o que terá que ser aferido no plano fáctico (in Direito Processual Penal, pág. 133).

E é precisamente no plano fáctico que se afirma a insuficiência dos indícios para a pronúncia do arguido: não resulta indiciada a violação dos deveres ou o abuso de poderes, nem a intenção do prejuízo de terceiros, ou obtenção de benefícios.

Também não se mostra indiciado que o arguido tenha actuado conscientemente e contra direito, nem com intenção de prejudicar terceiros.

Pelo exposto, tendo em atenção todos os elementos carreados para os autos na sequência da investigação realizada em sede de inquérito, bem como os documentos juntos com o requerimento de abertura de instrução, não nos resta senão concluir que não resultou indicada a conduta imputada ao arguido, inexistindo elementos que permitam concluir pela prática de tais factos por banda do arguido.

Com efeito, não resulta, em face dos elementos recolhidos, suficientemente indiciada a prática pelo arguido de factos tipificados e qualificados como crime, ou seja, não se encontram reunidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, sendo mais provável, em sede de julgamento, uma absolvição do que uma condenação. Os elementos não se mostram suficientes para, em sede de julgamento, alicerçar uma condenação, pelo que se decide pela não pronúncia do arguido.
(…)

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Apreciando:
A decisão recorrida obedece às legais formalidades, previstas no art. 308.º, n.º 2, do CPS, pelo que, neste âmbito, nada a censurar.

A discordância do recorrente relativamente à decisão em apreço assenta, no essencial, em sintonia com o que já alegara no seu requerimento de abertura da instrução, em que, apesar de que, como refere, já se encontravam efectuadas penhoras de vencimento, de depósitos e veículos, nomeadamente, os veículos matrículas BS- e -KQ determinadas pelo arguido Agente de Execução e que, asseguravam, tout court, os direitos da exequente, cobrindo, efectivamente, a quantia em dívida, alcançando as penhoras efectuadas o montante de 6 339,39€ ab initio, o arguido, continuou a efectivar penhoras, atrás de penhoras, desde quotas em sociedades, direitos a heranças indivisas, quer do assistente, quer da sua ex-cônjuge, que identifica, assim tentando, por todos os meios, pressionar e encurralar o assistente com vista ao pagamento (do que já tinha garantido através das penhoras iniciais) e elevando a quantia exequenda, vindo a ser aumentada exponencialmente a quantia que lhe é devida por honorários.

Conclui que, através da sua conduta processual, o arguido abusou do poder que detém e violou os seus deveres funcionais, pois que o direito da exequente garantir o seu crédito, através da penhora de bens, não é arbitrário, antes obedece e conforma-se aos requisitos legais e colocou em causa a credibilidade e imparcialidade da administração da Justiça, ao agir da forma descrita e que se encontra consubstanciada nos autos, através de manifesta e abundante prova documental.

Ora, a visada prolação de despacho de pronúncia tem subjacente, nos termos do art. 308.º, n.º 1, do CPS, a existência de suficientes indícios, no sentido de que estes sejam idóneos para o preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 283.º, n.º 2, do CPP, ex vi n.º 2 do mesmo art. 308.º).

Implica que deles resulte uma possibilidade razoável de, em julgamento, ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, não impondo, é certo, a verdade requerida pelo julgamento, embora essa possibilidade tenha de ser objectivamente analisada e devidamente fundamentada, dentro do critério de que o arguido só será pronunciado quando os elementos probatórios se apresentem tendencialmente mais propensos a uma condenação que a uma absolvição.

Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 183, Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.

De todo o modo, tal não significa que essa possibilidade deva ser apenas mínima, mas sim que se afigure como particularmente sustentada e forte, levando à séria convicção de que a futura condenação será, em julgamento, o resultado que já então se adivinha, sendo que Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta à particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do princípio da presunção de inocência do arguido (”O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, de Jorge Noronha e Silveira, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171).

Ainda, conforme se explicitou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 439/2002, de 23.10, in www.dgsi.pt, A ulterior possibilidade de, no julgamento, se infirmar a acusação e a garantia de respeito pela presunção da inocência nessa última fase do processo não são suficientes para dar conteúdo à garantia de não ser submetido a julgamento em face de uma acusação que provavelmente não conduzirá a uma condenação. É a expressão concreta, nessa fase, da presunção de inocência que impõe uma tal conclusão.

Assim, esta presunção, bem como o seu corolário, traduzido no princípio in dubio pro reo, tem também repercussão em sede indiciária, se bem que não numa visão restritiva que se não coadune com aquela estrita necessidade de possibilidade razoável que aqui se tem em vista.

Para o efeito de pronúncia, a apreciação indiciária, com a necessária objectividade, terá, pois, de sempre conduzir a essa persuasão de possibilidade qualificada de futura condenação.

Tal como sublinhou Carlos Adérito, in “Indícios Suficientes: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação”, Revista CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, Almedina, pág. 180, apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou da possibilidade elevada de condenação, a integrar no segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção da inocência de que ele beneficia e com o “in dubio pro reo”.

Postas tais considerações, decorre que a decisão recorrida avaliou os elementos probatórios disponíveis, apesar de não se ter pormenorizado especificamente quanto às penhoras relativamente às quais, o recorrente, se insurge, no sentido de, como este defende, terem sido injustificadas, por excessivas.

Assim, traz o recorrente à colação as seguintes penhoras, reportando-se aos documentos que juntou ao requerimento de abertura da instrução e que as sustentam:

a) Em 5/10/2015 – penhora de Direito e acção à herança ilíquida e indivisa que a executada detém sobre a herança aberta de AA; direito à herança ilíquida e indivisa que o executado detém sobre a herança aberta de MLS (doc. n.º 4);
b) Em 30/09/2015 – penhora de quota que o executado detém na sociedade M…-Sociedade agropecuária (doc. n.º 5);
c) Em 11/07/2017 – penhora do direito de ½ sobre a fracção autónoma destinada a habitação, direito esse da ex-cônjuge do denunciante e também executada, no valor de 32 070,72€ - (doc. n.º 6);
na sua perspectiva, inúteis e desproporcionais para tutelar o efectivo direito da exequente.

Bem como a conta, com data de 11.05.2017, de que foi notificado, de onde se retiram:

a) Honorários e despesas suportadas com o Agente de Execução, taxas e custas de parte: 3.754,89 €;
b) Custas de parte suportadas pelo Exequente: 1.018,44 €;
c) Pagamentos voluntários: 3.846,90€;
d) Pagamento resultante de penhoras: 864,01 €,
sendo que, no seu entender, surgem quantias superiores à quantia exequenda inicial e aos montantes que já se encontravam assegurados por penhoras iniciais.

Compreende-se, pois, que a sua posição se estriba em que essas penhoras, posteriores, já não se justificavam e que, ao torná-las efectivas, o arguido, como agente da execução em causa, actuou em contrário aos deveres da função e com vista, designadamente, a obter, em prejuízo do recorrente, honorários em medida que desse modo fez aumentar substancialmente.

Não se descurará, na análise, a importante função de agente de execução, definida nos termos do art. 719.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual “Cabe ao agente de execução efetuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos”, o que integra inevitável intervenção e de relevo em acções executivas, com carácter e natureza que o qualificam como funcionário para o efeito da previsão do art. 386.º, sua alínea c), do CP.

Sendo, pois, competente para a realização de penhoras, deverá atentar no disposto no n.º 3 do art. 735.º do CPC, que determina que “A penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20 %, 10 % e 5 % do valor da execução, consoante, respetivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, a exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor”.

Nesta vertente, para além do que resultou das conclusões do Banco de Portugal e da sentença de embargos - ainda que mais directamente versando o Banco …, S.A., mas, de qualquer modo, com o interesse de se relacionar com o arguido AV enquanto agente da execução indicado pelo banco -, não se descortina, indiciariamente, fundamento para considerar que as referidas penhoras não fossem justificadas, uma vez que, tal como o recorrente reconhece, tendo em conta, mormente, a aludida conta, de fls. 263/264, se detectam quantias superiores à quantia exequenda inicial e aos montantes que já se encontravam assegurados por penhoras iniciais, motivo por que, sem mais, não bastará afirmar que supostamente isso se deveu à efectivação dessas mesmas penhoras, sendo certo que é do conhecimento geral que a execução comporta, para além da quantia exequenda e juros que foram devidos, despesas e honorários, aliás, nessa conta, reflectidos.

De notar, ainda, que, segundo a documentação junta, o recorrente foi notificado dessas penhoras e assistia-lhe, então, o direito de se opor, querendo, quanto à extensão das mesmas, nos termos do arts. 753.º, n.º 2, e 784.º, n.º 1, alínea a), do CPC e, assim, tal como fundamentado na decisão sob censura, consentindo que fosse “sindicável através de expedientes legais gizados precisamente para permitir aos cidadãos que se considerem lesados reagir contra tais actos e decisões, designadamente através da via judicial”.

Bem como, embora aceitando-se que, à prática de maior número de penhoras, corresponderá tendencial acréscimo de honorários em favor do agente de execução (cfr. arts. 43.º e 50.º da Portaria n.º 282/2013, de 29.08, na redacção actual, sendo a versão mais recente a estabelecida pela Portaria n.º 267/2018, de 20.09), não ocorre razão, nem o recorrente a suporta, para, indiciariamente, permitir a ilação de que aquelas penhoras, afinal, justificadas, visassem, então, aquele acréscimo.

Acresce que, também nesta sede, o recorrente, ao abrigo do art. 46.º da Portaria referida, sempre teria a possibilidade de reclamar da nota discriminativa de honorários e despesas, suscitando assim a intervenção judicial.

Serve, pois, para corroborar, em sintonia com a decisão recorrida, que “O direito penal só é chamado a intervir quando, em regra, dolosamente, o agente assume uma actuação desconforme com o direito e integradora de um tipo legal de crime”, conforme ao critério de intervenção mínima que vem sendo, pacificamente, acolhido.

Acompanhando Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, Coimbra Editora, 2004, tomo I, pág. 16, «o direito penal é pois autónomo e criador de uma específica ilicitude penal, correspondente à especificidade e à qualificação das consequências jurídicas que a um tal ilícito se ligam: à especificidade da consequência tem de corresponder se não logicamente, ao menos teleologicamente a especificidade dos pressupostos (do Tatbestand, no sentido da Teoria Geral do Direito) de que aquela depende, e antes de tudo a especificidade do ilícito (mas não só dele, como também da culpa e dos restantes pressupostos de punibilidade). (…) Dado que a qualificação de um ilícito como penal representa, considerada a função e a teleologia próprias do direito penal, o grau máximo de contraditoriedade à ordem jurídica, o aludido princípio (da particular dignidade da matéria penal) é aceitável se com ele se quiser significar apenas que não pode ser ilícito face à lei penal tudo aquilo que for permitido por qualquer outro ramo do direito; mas é inaceitável se com ele se pretender concluir que o que é ilícito à face de um direito não penal também tem de o ser à face da lei penal, mesmo que por outras razões não venha em definitivo a ser penalmente punido».

Se, tal como o recorrente invoca, reportando-se ao crime de abuso de poder, A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido constitui o campo de delimitação da tipicidade e A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função, não se vislumbra, com o mínimo da exigível indiciação, que o arguido AV tivesse actuado com abuso dos poderes e/ou violação dos deveres, inerentes à sua função, como agente da execução.

Tutelando-se, pela incriminação em apreço, a autoridade e credibilidade da administração do Estado, no sentido de protecção da imparcialidade e da eficácia dos seus serviços, assegurada pelo respeito da Constituição e da Lei, o abuso de poderes pressupõe uma instrumentalização de poderes (inerentes à função) para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito(Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 2001, Tomo III, págs. 774/775).

Isso decorrerá, designadamente, de actos que revelem excesso dos limites de competência, desrespeito das formalidades impostas por lei, encontrarem-se fora dos casos estabelecidos na lei, para fim diferente daquele para o qual foram conferidos.

Por seu lado, a violação dos deveres inerentes à função implica que se infrinja os deveres que decorrem do cargo que se ocupa e das funções que se exercem, aqui se incluindo a violação de deveres funcionais específicos impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma função em particular, como de deveres funcionais genéricos que se referem a toda a actividade desenvolvida no âmbito da administração do Estado (Paula Ribeiro Faria, ob. cit., pág. 776).

Além de que, em qualquer caso, o alegado infractor terá de agir com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o que equivale a dizer, como o recorrente refere, exige-se uma intenção específica, que, comportando factores psíquicos, haverá de extrair-se, normalmente, por inferências do que objectivamente seja detectável, na perspectiva de avaliação consentânea com o que se descortine, quanto ao agente, no âmbito da representação e fixação dos fins do crime, da selecção dos meios e da aceitação dos resultados da acção, devidamente contextualizados.

E relativamente ao ilícito em causa, com a necessidade de não relevar do mero dolo eventual, atentando nessa especificidade que o tipo supõe.

Dentro de todos estes parâmetros, contrariamente à visão do recorrente, não se alcança que a acção indiciada do arguido possa ser enquadrada no imputado crime de abuso de poder, a não ser que se defendesse, o que não se aceita, tal como a decisão recorrida sublinha, um mero juízo subjectivo.

A operada apreciação indiciária efectuada pelo tribunal a quo revela-se plenamente consentânea com os limites de valoração impostos pelo art. 127.º do CPS, fundamentada na correcta percepção da insuficiência que decorreu dos elementos probatórios.

Outra solução não resta senão, em sintonia com a decisão recorrida, manter a não pronúncia do arguido.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e, em consequência,

- manter a decisão instrutória que não pronunciou o arguido AV pela prática do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º do Código Penal.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 UC.

Processado e revisto pelo relator.

21.Janeiro.2020
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(Carlos Jorge Berguete
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(João Gomes de Sousa)