Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1095/22.1T8BNV.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CLÁUSULA PENAL
CONTRATO DE FORNECIMENTO COM EXCLUSIVIDADE
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O contrato de exclusividade de compra de café caracteriza-se como um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador.
II – O facto de se ter concluído pela validade de uma cláusula penal (por não ser desproporcionada relativamente aos danos a ressarcir), não impede, porém, que a mesma possa vir a ser, mesmo oficiosamente, reduzida, à luz do art. 812º do Código Civil.
III - Para o efeito torna-se necessário que se conclua ser tal cláusula manifestamente excessiva (não se bastando agora com uma desproporção sensível entre a pena nela inserta e os danos a ressarcir).
IV - Por sua vez, neste segundo momento (visando a redução da pena da cláusula), ao contrário daquele primeiro, o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve fazer-se, não por referência ao momento em que ela foi estipulada, mas antes reportado ao momento em que ela tenha de se cumprir.
V - Por último, nesse segundo momento, e ao contrário do primeiro, o juízo a formular, visando a redução da pena, deve reportar-se ao dano efetivo, e não ao dano previsível.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
N..., S.A., instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que:
a) seja reconhecida a resolução do contrato em discussão nos autos;
b) os réus sejam condenados a pagar solidariamente à autora a quantia de € 8.193,24;
c) os réus sejam condenados a pagar solidariamente à autora os juros de mora calculados sobre o montante de € 7.908,30, à taxa legal das dívidas comerciais, desde a citação até à data do efetivo e integral pagamento da dívida.
d) os réus sejam condenados solidariamente no pagamento de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal comercial, sobre o montante de € 275,64, até integral e efetivo pagamento;
e) os réus sejam condenados a devolver à autora os equipamentos colocados no seu estabelecimento comercial, melhor identificados no ponto 1 da Cláusula Terceira do aludido contrato.
Alegou, em resumo, que celebrou com o réu o Acordo de Fornecimento n.º ..., para fornecimento de café no estabelecimento comercial que foi explorado pelo réu, nos termos do qual este se obrigou a adquirir mensalmente à autora a quantidade mínima de 15 quilos de café até perfazer a quantidade global de 420 quilos, e bem assim a comercializar exclusivamente café da marca da autora, assumindo ainda a qualidade de fiel depositário do equipamento e material publicitário que lhe foi entregue pela autora, sendo que o réu adquiriu apenas um total de 30 quilos de café, tendo mesmo encerrado o referido estabelecimento, sem que tivesse apresentado alternativas para a continuidade do contrato celebrado com a autora, pelo que esta resolveu o contrato.
Mais alegou que a ré BB é solidariamente responsável com o réu pelo pagamento à autora em virtude da fiança que prestou.
Os réus não contestaram nem intervieram por qualquer forma no processo.
De seguida foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou o seguinte:
«Com os fundamentos de facto e de Direito acima expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a presente acção e, em consequência:
a) RECONHECER o direito da autora à resolução do contrato celebrado com os réus, por incumprimento do 1º réu;
b) CONDENAR os réus a pagar, solidariamente, à autora a quantia de 275,64 Euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde 26-05-2022, à taxa prevista no artigo 102º, nºs 3 e 5, do Código Comercial e nos artigos 1º, al. b) e 2º, nº 2, ambos da Portaria nº 277/2013, de 26 de Agosto [transacções comerciais, conforme definidas no artigo 3º do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio], perfazendo os vencidos até à data da instauração desta acção (03-12-2022) o valor de 11,54 Euros;
c) CONDENAR os réus a pagar, solidariamente, à autora a quantia de 1.020,90 Euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data da citação dos réus (12-01-2023), à taxa prevista no artigo 102º, nºs 3 e 4, do Código Comercial e nos artigos 1º, al. a) e 2º, nº 1, ambos da Portaria nº 277/2013, de 26 de Agosto, perfazendo os vencidos até à data da instauração desta acção (03-12-2022) o valor de 78,45 Euros;
d) CONDENAR os réus a devolver à autora os equipamentos por ela colocados no estabelecimento comercial do 1º réu, a saber: uma máquina de café, um moinho de café, uma máquina de lavar loiça, e seis conjuntos de esplanada;
e) ABSOLVER os réus de tudo o mais peticionado;
f) FIXAR à causa o valor de 8.193,24 Euros; e
g) CONDENAR a autora e os réus no pagamento das custas judicias, na proporção dos respectivos decaimentos: 83% a cargo da autora e 17%, solidariamente, a cargo dos réus.»
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. A sentença proferida nos presentes autos não fez uma correta e adequada aplicação da lei, nomeadamente no que se refere à legalidade da indemnização devida pela resolução contratual.
2. Pela Recorrente, na sua petição inicial, foi peticionado o reconhecimento da resolução do contrato celebrado com Réu, por incumprimento imputável àquele e a condenação do Réu no pagamento à Autora da quantia global de €8.193,24 (oito mil, cento e noventa e três euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal das dívidas comerciais, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
3. Os Réus, apesar de regularmente citados, não contestaram, nem intervieram, por qualquer forma no processo, pelo que foram pelo Tribunal a quo considerados assentes todos os factos alegados pela Autora, nos termos do artigo 567º do C.P.C..
4. No uso da liberdade contratual que legalmente lhes assiste, conforme decorre do artigo 405.º do Código Civil, acordaram Recorrente e Recorridos na celebração do contrato de fornecimento de café, tal qual decorre dos factos dados como provados, pelo que, em caso incumprimento do mesmo, por parte dos ora Recorridos, seria por estes devido à Recorrente o pagamento de uma indemnização.
5. A indemnização foi fixada em dois terços do preço unitário do quilograma de café constante da tabela de preços em vigor à data do incumprimento, por cada quilograma de café não adquirido, conforme facto provado sob o n.º 9.
6. As partes celebraram um cristalino contrato de fornecimento de café, o qual se caracteriza como “um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, (…), de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador, nos termos dos arts. 2º, 13º e 463º, nº 1, do Código Comercial, 410º nº 1, 874º, 1129º e 1154º, do Código Civil” (neste sentido, o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04/06/2009, proc. n.º 257/09.1YFLSB e o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/03/2012, proc. n.º 3951/08.0TBVFR.P1, in www.dgsi.pt).
7. A compra e venda consubstancia-se, assim, como o negócio jurídico paradigmático dos contratos de alienação, predeterminando um efeito real, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito como corolário do princípio da consensualidade (sistema do título), em efetivação do prescrito nos artigos 408.º/1 e 879.º, al. a), do Código Civil e dois efeitos obrigacionais, adstritos num sinalagma genético e funcional, que se reconduzem à obrigação do vendedor entregar a coisa e à obrigação do comprador pagar o preço, nos termos do art.º 879.º, al. c) do Código Civil.
8. As principais obrigações indexadas às partes reconduzem-se a, por um lado, a ora Recorrente vender aos ora Recorridos, as acordadas quantidades mensais de café da marca por si comercializada, até atingir a quantidade global convencionada, no prazo consignado no contrato e por outro lado, os recorridos, a comprar-lhe a quantidade mínima mensal de 15 Kg de café torrado da marca…., lote Special, pelo período de 28 meses, num total de 420 quilogramas, mediante o pagamento do preço fixado, conforme decorre dos factos provados sob os números 3 e 5 da sentença ora recorrida.
9. Nos termos do art.º 808 n.º 1, do Código Civil, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo mesmo, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
10. Os Recorridos incumpriram de forma manifesta e duradoura a obrigação inerente à aquisição da quantidade mínima de café convencionada, tendo encerrado o estabelecimento sem apresentar alternativas para a continuidade do contrato, conforme decorre do facto provado n.º 12 da sentença proferida.
11. Decorre do art.º 802.º, n.º 1, do Código Civil, que o direito à indemnização cumulável com a resolução, ao abrigo do princípio da imputação de danos, do princípio do integral ressarcimento dos mesmos e do princípio da justiça comutativa, deve englobar quaisquer lesões que afetem a esfera jurídica do lesado, isto é, danos emergentes do incumprimento, lucros cessantes, despesas, negócios não realizados, abrangendo quer o interesse contratual positivo, quer o interesse contratual negativo.
12. Nos termos do artigo 564.º do CC, o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art.º 564.º do CC).
13. A cláusula penal, segundo doutrina do Professor Doutor João Calvão da Silva, define-se como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir culposamente a obrigação, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária, sendo que, se for convencionada para o caso de incumprimento designa-se cláusula penal compensatória, se for consignada para o caso de mora, denomina-se cláusula penal moratória (in Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 4ª ed., págs. 247-248)
14. A cláusula penal é uma cláusula acessória ao contrato que, nos termos do disposto no n.º 2 do referido artigo 810.º está sujeita às formalidades exigidas para a obrigação principal e que visa essencialmente estipular antecipadamente, por acordo das partes, o montante da indemnização em caso de incumprimento ou simples mora do devedor, ao mesmo tempo que funciona ou pode funcionar como um instrumento de pressão sobre o devedor, podendo ser fixada com carácter de verdadeira penalidade ou, ao contrário, com o intuito de impor limites à responsabilidade do devedor.
15. Da análise dos termos do contrato celebrado pelas partes dúvidas não podem restar que a cláusula penal aí integrada, assume natureza de cláusula penal compensatória, uma vez que o acordo das partes visa exclusivamente fixar a indemnização devida pelo incumprimento definitivo, e quanto a este sentido, perfilhamos o entendimento plasmado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 24-04-2012, disponível in www.dgsi.pt.
16. Nada obsta, nos termos do n.º 2 do artigo 801.º do Código Civil, a que se cumule a resolução do contrato com um pedido de indemnização pelos danos emergentes do incumprimento contratual.
17. Não podem efetivamente reconduzir-se a indemnização fixada pelas partes no n.º 3 da Cláusula 4.ª a uma indemnização pelos denominados danos positivos, em que se visa colocar o contraente na situação patrimonial que teria se o contrato houvesse sido cumprido.
18. As partes pretenderam apenas e tão só fixar, desde logo, no próprio contrato, a indemnização pelos prejuízos emergentes de um eventual incumprimento contratual, não se computando nestes os prejuízos correspondentes aos lucros cessantes.
19. Inexiste, efetivamente, qualquer cumulação do direito potestativo de resolução do contrato por incumprimento definitivo do mesmo pelo Réu e a indemnização pelos danos positivos, correspondente ao valor do lucro ou expectativa de ganho que a Autora teria com a venda de todos os quilos de café contratados, tal como se o contrato tivesse sido integralmente cumprido.
20. O montante de 2/3 do valor do quilograma de café adquirido foi efetivamente fixado por acordo das partes com a finalidade única de fixar antecipadamente as consequências de um eventual cumprimento contratual, tal como o fizeram as partes no n.º3 da Cláusula 4 do contrato.
21. Os Recorridos não cumpriram com os termos contratuais, nomeadamente no que à obrigação de aquisição mensal de café respeita, pelo que, atenta a resolução do contrato pela Recorrente, cabia-lhe liquidar o montante previamente fixado no contrato a título de indemnização pelo incumprimento contratual, calculada nos precisos termos do n.º 3 da Cláusula 4.º do contrato.
22. A cláusula penal constante do contrato celebrado entre as partes, assumindo uma natureza marcadamente compensatória, é, assim, perfeitamente admissível, válida e eficaz.
23. As partes convencionaram não só o valor do montante da cláusula penal, a ser calculado em razão do café que o réu deixado de adquirir, nos termos contratuais, o que monta a €6.887,40 (seis mil e oitocentos e oitenta e sete euros e quarenta cêntimos), assim como convencionaram a cedência, em comodato, de uma máquina de café, um moinho de café, uma máquina de lavar loiça, seis conjuntos de esplanada, um reclame, uma cobertura, três verticais, doze mesas de interior e vinte e quatro cadeiras de interior.
24. A Recorrente, para além de não ter vendido a quantidade de café que, razoavelmente, esperava vender, pagou ainda soma significativa como contrapartida de exclusividade e de publicidade à marca, para além de ter facultado diversos artigos destinados ao bom desempenho do negócio dos réus.
25. A cláusula penal acordada pelas partes não surge como abusiva e iníqua, não ocorrendo qualquer circunstância que fundamente a sua inexigibilidade.
26. Uma cláusula penal estabelecida contratualmente que prevê uma redução de 33% do valor máximo a adquirir, num montante calculado em €6.887,40 (seis mil e oitocentos e oitenta e sete euros e quarenta cêntimos), ao invés da totalidade que decorreria do cumprimento contratual, que se calcularia em cerca de €11.130,00 (onze mil cento e trinta euros) não se revela injusto.
27. Caso a cláusula penal prevista conferisse à recorrente o direito a receber na íntegra o valor das prestações contratuais devidas pelo cliente até ao fim do prazo estipulado para a duração normal do contrato, poderíamos considerar que excederia, objetivamente, o montante dos prejuízos decorrentes da antecipação do prazo de cessação do contrato.
28. No sentido de ser efetivamente devida a indemnização a partir da cláusula penal fixada pelas partes, com fundamento na resolução contratual, subscrevemos na íntegra o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-04-2017, processo n.º 146/14.8TBOLH.E1, disponível em www.dgsi.pt:
«4.1.4 – Da cláusula penal:
A fixação da cláusula penal está legitimada pelo estabelecido no nº 1 do artigo 810º do Código Civil que salienta que «as partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal».
A cláusula penal supõe, nos termos gerais, inexecução da obrigação e culpa da parte do devedor; isto é, só pode ser efectivada se este culposamente não tiver cumprido o contrato[31].
A convenção prévia da indemnização, a cláusula penal, é admissível tanto na inexecução ou falta de cumprimento, como no retardamento ou mora no cumprimento e no incumprimento imperfeito[32].
Como é óbvio, a cláusula penal não pode funcionar onde o cumprimento tenha lugar nos termos devidos. Argumentam os recorrentes que, em caso de resolução do contrato, por via do accionamento do nºs 1 e 2 do artigo 801º do Código Civil, o credor tem direito a ser indemnizado no termos gerais, caso em que a indemnização corresponde ao interesse contratual negativo ou de confiança.
Não fosse o estabelecimento de uma cláusula penal, a indemnização a que a Autora tinha direito poderia ser calculada de acordo com o critério do interesse contratual negativo, que abrange os danos emergentes e os lucros cessantes, mas também poderia incluir o ressarcimento do interesse contratual positivo.
Conforme decorre de entendimento jurisprudencial e doutrinal estabilizado, nos casos em que é introduzida uma cláusula penal, o credor fica dispensado de demonstrar a efectiva verificação dos danos ou dos prejuízos em consequência do incumprimento do contrato e respectivos montantes. E, assim, como corolário lógico, o devedor fica adstrito com o ónus de alegar e provar os factos que possam integrar a desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o montante dos danos a indemnizar ou o excesso da cláusula relativamente aos prejuízos efectivamente decorrentes do incumprimento causal.
Aquilo que não é legítimo é que o credor possa exigir cumulativamente, com base no contrato, «o cumprimento coercivo da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação», face ao consignado na primeira parte do nº 1 do artigo 811º do Código Civil.
Calvão da Silva define cláusula penal «como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória»[33]. Escreveu ainda o Professor de Coimbra que «dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio “ne varietur”, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva».
Existe uma cláusula penal fixada por acordo das partes, como prevê o artigo 810º, nº 1, do Código Civil. A cláusula penal é a estipulação mediante a qual as partes convencionam antecipadamente – isto é, antes de ocorrer o facto constitutivo de responsabilidade – uma determinada prestação, normalmente uma quantia em dinheiro, que o devedor deverá satisfazer ao credor em caso de não cumprimento, ou de não cumprimento perfeito (maxime em tempo) da obrigação[34].
É aceite sem reservas que a indemnização pela destruição da relação contratual, por efeito de resolução, não está limitada ao interesse contratual negativo, podendo ainda abranger, em certos casos, o interesse contratual positivo, desde que tal não acarrete qualquer situação geradora de desequilíbrios ou benefícios injustificados. Todavia, a fixação de uma cláusula penal não tem necessariamente o significado de precaver uma indemnização pelo interesse contratual positivo, antes se mostra relacionada com a fixação antecipada do montante a arbitrar pelo devedor em caso de incumprimento.
E não se invoque o trespasse para obviar ao pagamento de qualquer indemnização pois este corresponde a uma cessão da posição contratual. E a cessão da posição contratual consiste no negócio pelo qual um dos contraentes em qualquer contrato bilateral ou sinalagmático transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse acordo. A cessão da posição contratual opera uma simples modificação subjectiva na relação contratual básica, a qual persiste, embora com um novo titular[35].»
29. Não podemos considerar que ocorre, com o pagamento da indemnização uma situação que ofenda as razões da justiça, pelo contrário, absolver os Réus do pagamento desta quantia será como premiá-los pelo seu incumprimento, promovendo que estes e demais não interiorizem a sua conduta e perpetuem situações de incumprimento e de prejuízo na esfera de quem com eles contrata, promovendo-se assim um sentimento de impunidade aos infratores e de injustiça aos cumpridores.
30. A sentença de que ora se recorre violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 405.º, 810.º e 812.º do Código Civil.
Termos em que deve a sentença condenatória recorrida ser revogada e substituída por acórdão que julgue PROCEDENTE O RECURSO ORA INTERPOSTO e consequentemente julgue procedente a ação interposta pela agora Recorrente e, em consequência, condene os Recorridos em todos os pedidos, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se, in casu, tem ou não aplicação a cláusula penal que as partes estabeleceram no contrato dos sub judice e, em caso afirmativo, se deve haver lugar à redução de tal cláusula.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na sentença recorrida «[e]m face da matéria de facto alegada pela autora na petição inicial e considerada assente por confissão (ficta) dos réus (nos termos do despacho proferido em 18-06-2023), complementada apenas pontualmente com o teor do «Acordo de Fornecimento» junto à petição inicial», foram julgados provados os seguintes factos:
1) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à produção, torrefação, comercialização, distribuição e venda de cafés, bem como, outras atividades conexas.
2) O 1º réu é um empresário em nome individual que possuiu e explorou um estabelecimento comercial denominado “Os P...”, sito na Avenida ..., ..., freguesia ..., concelho ....
3) No âmbito das respetivas atividades comerciais, a autora celebrou com o 1º réu, em 27-01-2022, contrato escrito, intitulado “Acordo de Fornecimento n.º ...”, para fornecimento de café no referido estabelecimento comercial “Os P...”, durante o período de 28 meses.
4) Pelo referido contrato, a autora obrigou-se a fornecer ao 1º réu, diretamente ou através de distribuidor por aquela designado, os produtos objeto da sua atividade industrial e comercial, designadamente café, contra o pagamento pelo 1º réu do respetivo preço.
5) Por seu turno, o 1º réu obrigou-se:
a) a adquirir, mensalmente, à autora a quantidade mínima de 15 quilos de café torrado da marca …., lote Special, até perfazer a quantidade global de 420 quilos; e
b) a consumir em exclusivo marcas de café comercializadas pela autora;
6) Como contrapartida das obrigações de compra, promoção e venda dos produtos da autora, em regime de exclusividade, contratualmente assumidas pelo 1º réu, aquela colocou no estabelecimento comercial deste o seguinte equipamento e material publicitário:
Equipamentos:
a) Uma máquina de café;
b) Um moinho de café;
c) Uma máquina de lavar loiça;
d) Seis conjuntos de esplanada;
Material publicitário:
e) Um reclame;
f) Uma cobertura;
g) Três verticais;
h) Doze mesas de interior;
i) Vinte e quatro cadeiras de interior.
7) O 1º réu assumiu a qualidade de fiel depositário do referido equipamento e material publicitário, até ao final do contrato.
8) As partes consignaram, na cláusula quarta, número 2, do referido contrato, que a autora poderia fazer cessá-lo, por incumprimento, no caso de encerramento do estabelecimento pelo 1º réu e, ainda, no caso de o 1º réu não adquirir as quantidades mensais mínimas acordadas durante 6 meses ou 12 interpolados.
9) As partes acordaram, ainda, no mesmo contrato, que, em caso de resolução do mesmo por incumprimento imputável ao 1º réu, este ficava obrigado a pagar à autora:
a) uma indemnização correspondente a 2/3 do preço unitário do quilograma de café constante da Tabela de Preços em vigor à data do incumprimento, por cada quilo de café não adquirido; e
b) uma indemnização correspondente ao montante efetivamente despendido pela autora com a aquisição do material publicitário cedido por esta aquando da celebração do contrato e colocado no estabelecimento comercial.
10) Mais acordaram as partes, no dito contrato, que, em caso de resolução do mesmo por incumprimento imputável ao 1º réu, este ficava obrigado a devolver os equipamentos colocados pela autora no seu estabelecimento comercial, elencados em 6).
11) A 2ª ré subscreveu o contrato mencionado nas alíneas anteriores na qualidade de fiadora, declarando nele que se responsabilizava solidariamente com o 1º réu pelo cumprimento de todas as obrigações para ele emergentes desse contrato, bem como pelas consequências decorrentes do seu incumprimento, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia.
12) Sucede que, o 1º réu encerrou o estabelecimento comercial referido em 2) e 3).
13) À data desse encerramento, o 1º réu tinha adquirido apenas um total de 30 quilos de café.
14) Em consequência dos factos mencionados em 12) e 13), e com fundamento neles, a autora enviou carta registada com aviso de receção, datada de 05-07-2022, ao 1º réu e à 2ª ré, comunicando-lhes a resolução do contrato com eles celebrado.
15) O preço do quilograma de café, nos momentos referidos em 12) e 13), ascendia a 26,50 Euros.
16) Com a cedência ao 1º réu do material publicitário referido em 6), a autora despendeu a quantia de 1.020,90 Euros.
17) Para cobrança do preço de café que forneceu ao 1º réu, e para ser paga por ele, a autora emitiu em 25-05-2022 a fatura nº ...42, com vencimento em 09-06-2022, no montante de 275,64 Euros, a qual o 1º réu não pagou.

Na sentença consignou-se inexistirem factos não provados com relevância para a decisão da causa.

O DIREITO
No recurso não se questiona a qualificação e enquadramento jurídico do contrato tal como consignado na sentença, pela Sr.ª Juíza a quo, que atribuiu ao acordo celebrado entre as partes a natureza de um contrato atípico e complexo, de natureza comercial, que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de compra e venda, do contrato de prestação de serviços e do contrato de comodato, citando a propósito o Acórdão do STJ de 23.03.2021[1].
Na verdade, resulta da matéria de facto apurada que a autora e o réu celebraram um contrato de fornecimento de café, o qual se reconduz «a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço». E a cláusula de exclusividade aposta no contrato em apreço importou a assunção, pelo réu, de uma prestação a favor da autora, sem possibilidade de coexistência de outros vínculos relativamente ao seu objeto, já que o também chamado contrato de exclusividade de compra de café se caracteriza como «um complexo contrato de natureza comercial que envolve elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e, (…), de compra e venda de café, em exclusividade em relação ao comprador (arts. 2º, 13º e 463º, nº 1, do Código Comercial, 410º nº 1, 874º, 1129º e 1154º, do Código Civil (CC)»[2].
As principais obrigações a que as partes se vincularam foram:
- a autora, a vender à ré as acordadas quantidades mensais de café da marca por si comercializada até atingir a quantidade global convencionada;
- a ré a comprar-lhe tais quantidades de café a não adquirir café de outras marcas a qualquer outra entidade.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos, e o devedor que falte culposamente ao cumprimento da sua obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor (arts. 406º, nº 1, e 798º do CC).
Decorre do artigo 762º, nº 1, do CC, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
O que não sucedeu in casu, pois o réu deixou de adquirir à autora a quantidade mensal de café a que se obrigou, tendo em consequência a autora resolvido o contrato.
A resolução consiste no ato de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, em plena vigência deste, e que tende a colocar as partes na situação que teriam se o contrato não se houvesse celebrado[3].
Admite-se a resolução do contrato fundada na lei ou a convencional (art. 432º, nº 1, do CC), podendo aquela fazer-se, extrajudicialmente, mediante declaração à outra parte (art. 436º, nº 1, do CC) ou judicialmente.
Incumprido o contrato, tem o credor direito a imputar na esfera jurídica do devedor faltoso os prejuízos que sofreu. O crédito indemnizatório é cumulável com o pedido de resolução (art. 801º, nº 2, do CC).
A respeito do direito da autora à indemnização por café não consumido, depois de se afirmar que «[a] jurisprudência, na senda de alguma doutrina, tem vindo casuisticamente a abrir a porta à indemnização pelo interesse contratual positivo nalguns casos muito particulares», escreveu-se na sentença recorrida:
«Reclama a autora o direito a receber dos réus uma indemnização correspondente a 2/3 do preço unitário do quilograma de café constante da Tabela de Preços em vigor à data do incumprimento, por cada quilo de café não adquirido pelo 1º réu.
Com relevância a este propósito, provou-se que o 1º réu adquiriu apenas um total de 30 Kgs de café, sendo que se havia obrigado a adquirir um volume total de 420 Kgs. Mais se provou que, no contrato celebrado, previram as partes que, em caso de resolução do mesmo por incumprimento imputável ao 1º réu, este ficava obrigado a pagar à autora uma indemnização correspondente a 2/3 do preço unitário do quilograma de café constante da Tabela de Preços em vigor à data do incumprimento, por cada quilo de café não adquirido, e que o preço do quilograma de café, na data em que o 1º réu incumpriu o contrato (procedendo ao encerramento seu estabelecimento num momento em que ainda só tinha adquirido 30 Kgs de café à autora), ascendia a 26,50 Euros.
Estamos perante uma cláusula penal fixada por acordo das partes, como prevê o artigo 810º, nº 1, do Cód. Civil.
(…).
In casu, analisado o teor da cláusula penal em apreço, somos levados concluir que estamos perante uma cláusula penal indemnizatória, porque tem por exclusiva finalidade liquidar a indemnização devida em caso de resolução contratual.
Portanto, o primeiro ponto a assentar é que, nesta parte, a autora reclama uma indemnização a partir de cláusula penal fixada entre as partes, com fundamento na resolução do contrato.
Mas será que lhe assiste o direito a uma tal indemnização?
Em termos gerais, por força do disposto nos artigos 433º e 434º do Cód. Civil, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, daqui decorrendo que tem efeito retroactivo, determinando a restituição de tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, cfr. artigo 289º, nº 1, do Cód. Civil, sendo certo que nos contratos de execução continuada, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, excepto se entre estas e a causa da resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.
Assim, optando pela resolução contratual, em princípio só assiste ao credor o direito a uma indemnização correspondente ao prejuízo que teve com o facto de ter celebrado o contrato: a indemnização pelo interesse negativo ou da confiança; em sentido oposto, não lhe assiste o direito a obter o ressarcimento do benefício que lhe traria a execução do negócio: a indemnização pelo interesse contratual positivo.
(…).
Não significa isto que a resolução exclui a possibilidade de indemnização pelo interesse contratual positivo, em todos e quaisquer casos. A jurisprudência, na senda de alguma doutrina, tem vindo casuisticamente a abrir a porta à indemnização pelo interesse contratual positivo nalguns casos muito particulares.
(…).
De um modo geral, a jurisprudência tem vindo a propugnar por uma análise casuística, mas sempre numa perspectiva de excepção, pois que a indemnização por interesse contratual negativo, em caso de resolução do contrato, é a regra.
Vertendo ao caso dos autos, a autora resolveu o contrato por incumprimento contratual do 1º réu decorridos apenas cerca de 6 meses após a sua celebração, sendo que o contrato tinha uma duração total de 28 meses. Por outro lado, o 1º réu consumiu apenas 30 Kgs, de um volume total contratado de 420 Kgs.
Neste quadro, uma indemnização correspondente a 17,66 Euros [2/3 de 26,50 Euros] por cada quilograma de café não adquirido, perfazendo o total de 6.887,40 Euros [(420 Kgs - 30 Kgs) x 17,66 Euros], considerando que a autora deixou de fornecer o produto e de incorrer em custos com esse fornecimento, por um período superior a 2/3 da duração do contrato, redunda num resultado que razões de justiça não recomendam. Assim, tudo visto, não se crê estarmos perante uma situação excepcional, que justifique um desvio à regra da indemnização por interesse contratual negativo, num quadro de resolução contratual.
Nestes termos, conclui-se ser indevida a indemnização reclamada pela autora correspondente a 17,66 Euros por cada quilograma de café não adquirido.»
É contra este entendimento que se insurge a recorrente, para quem a cláusula penal acordada pelas partes não surge como abusiva, não ocorrendo qualquer circunstância que fundamente a sua inexigibilidade.
Vejamos.
Dispõe o artigo 810º, nº 1, do CC que as partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível, o que se chama cláusula penal.
Por seu turno, no artigo 811, nº 1, do mesmo diploma, estabelece-se que «o credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento coercivo da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação;...».
Calvão da Silva[4] define cláusula penal «como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória.»
Prosseguindo escreve o mesmo autor que «dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio “ne varietur”, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva.»
Mais adiante[5] escreve ainda Calvão da Silva que «...se a obrigação principal foi cumprida, pontualmente, não há dano a compensar. A cláusula penal, porque fixa a indemnização “à forfait”, não pode funcionar onde o cumprimento tenha lugar nos termos devidos. O dever de indemnizar ocupa o lugar do dever de prestar não cumprido, operando-se uma modificação objectiva do direito, considerado, todavia, pela ordem jurídica o mesmo direito, apenas modificado no seu objecto. Ora, se o dever de prestar é cumprido - dever principal e primário da prestação -, não pode haver lugar a qualquer dever de indemnizar - dever secundário e sucedâneo do dever primário de prestação; logo, fica automaticamente excluído o dever de indemnizar “à forfait” imposto pela cláusula penal.»
Volvendo ao caso concreto, verifica-se que as partes acordaram no contrato, que em caso de resolução do mesmo por incumprimento imputável ao réu, este ficava obrigado a pagar à autora uma indemnização correspondente a 2/3 do preço unitário do quilograma de café constante da Tabela de Preços em vigor à data do incumprimento, por cada quilo de café não adquirido [cláusula 4ª, 3. 3.1].
Não há dúvida que estamos perante uma verdadeira cláusula penal compensatória, na medida em que foi aí fixada uma indemnização devida pelo incumprimento definitivo do contrato.
Na sentença recorrida entendeu-se que uma indemnização correspondente a 17,66 Euros [2/3 de 26,50 Euros] por cada quilograma de café não adquirido, perfazendo o total de 6.887,40 Euros [(420 Kgs - 30 Kgs) x 17,66 Euros], considerando que a autora deixou de fornecer o produto e de incorrer em custos com esse fornecimento, por um período superior a 2/3 da duração do contrato, redundaria num resultado que razões de justiça não recomendam.
Não subscrevemos este entendimento.
Uma cláusula penal como a dos autos, que prevê uma redução de 33% do valor máximo do café a adquirir, num montante calculado em € 6.887,40, ao invés da totalidade que decorreria do cumprimento contratual, que se calcularia em cerca de € 11.130,00, não se pode considerar injusta, considerando, ademais, que tendo o contrato sido celebrado em 27.01.2022, logo em maio desse mesmo ano o réu passou a incumprir o contrato, mantendo na sua posse desde então o material publicitário cedido pela autora aquando da celebração do contrato.
Só se a cláusula penal conferisse à autora o direito a receber na íntegra o valor das prestações contratuais devidas pelo cliente até ao fim do prazo estipulado para a duração normal do contrato, poderíamos considerar que excederia, objetivamente, o montante dos prejuízos decorrentes da antecipação do prazo de cessação do contrato, como bem diz a recorrente.
E como igualmente aduz a recorrente, «[n]ão podemos considerar que ocorre, com o pagamento da indemnização uma situação que ofenda as razões da justiça, pelo contrário, absolver os Réus do pagamento desta quantia será como premiá-los pelo seu incumprimento, promovendo que estes e demais não interiorizem a sua conduta e perpetuem situações de incumprimento e de prejuízo na esfera de quem com eles contrata, promovendo-se assim um sentimento de impunidade aos infratores e de injustiça aos cumpridores».
Por seu turno, embora tal não tenha sido colocada no objeto do recurso, poderia suscitar-se, ainda, a questão de saber se a referida cláusula penal não poderia ser reduzida oficiosamente.
Na verdade, apesar de se concluir pela validade cláusula penal (por não ser desproporcionada) nada impedia que a mesma pudesse vir a ser, mesmo oficiosamente, reduzida, à luz do art. 812º do Cód. Civil[6].
Abordando tal problemática, escreveu o Prof. Pinto Monteiro[7]:
«(…), como temos dito, o juízo sobre a desproporção da pena deve fazer-se em abstracto e, por isso, reportar-se ao momento em que a cláusula penal é estabelecida, devendo considerar-se, para esse efeito, a desproporção entre a pena estipulada e os danos previsíveis. Sendo a pena desproporcionada a esses danos, é nula; caso contrário, é valida.
Mas isso não significa que, sendo a cláusula penal válida, não possa a pena vir depois a ser reduzida, por aplicação do disposto no art. 812.º, se ela vier a revelar-se “manifestamente excessiva”, em concreto, em face do incumprimento, tendo em conta, para este efeito, não só os danos efectivamente causados como também os demais factores a ter em consideração para apurar se a pena “é manifestamente excessiva” e no respeito da equidade (que neste segundo momento já será de ter em conta).
É que o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve fazer-se, não relativamente ao momento em que ela foi estipulada - diversamente do que sucede com o juízo sobre a desproporção da pena -, mas ao ter de cumprir-se. E não é o dano previsível que conta, antes o prejuízo efectivo. (…). »
Por último, a esse respeito, não podemos deixar de citar o mesmo autor[8] quando afirma que «[o] novo Código Civil veio, finalmente, permitir ao tribunal a redução equitativa de penas manifestamente excessivas (art. 812.º), respeitando, porém, a natureza de soma invariável (forfaitaire) – própria da cláusula penal -, pois os termos em que a redução é permitida mostram que só em circunstâncias excepcionais, em face de penas abusivas e iníquas, é que o tribunal poderá atenuá-la. Doutra forma, anular-se-ia a cláusula penal, quando, do que se trata, é apena de evitar abusos, traduzidos em penas manifestamente excessivas ou injustificadas.»
Daqui resulta que não poderia uma eventual desproporção ser avaliada em função da simples superioridade da pena pré-estabelecida em confronto com a situação das partes em momento posterior ao da resolução, havendo antes que fazer uma valoração abstrata do desenho contratual inicialmente perspetivado pelas partes, à luz do princípio da boa fé, dos bons costumes e do fim social ou económico dos direitos em confronto[9].
Esse quadro negocial global é que poderá ditar se existe uma desproporção entre a cláusula penal e os danos a ressarcir. Noutra medida, na avaliação da proporcionalidade da cláusula penal, é de referir que o julgador «não deve ter em conta o dano concreto que resultou do incumprimento, total ou parcial, da obrigação, mas sim o interesse que o credor tinha nesse cumprimento, no momento em que se constituiu a relação obrigatória»[10].
Ora, por tudo o que já dissemos supra e reiterando que tendo o contrato sido celebrado em 27.01.2022 e logo em maio desse mesmo ano o réu passou a incumprir o mesmo, mantendo na sua posse desde então o material publicitário cedido pela autora, tal circunstância reforça a convicção do Tribunal a respeito da não desproporcionalidade da cláusula penal.
E sendo assim, não se justifica a sua redução.
Devem, assim, os réus ser solidariamente condenados no pagamento à autora de uma indemnização, a título de cláusula penal, no montante de € 6.887,40, referente ao pagamento de 2/3 do preço unitário do quilo de café, por cada quilo de café não adquirido [€17,66 (2/3 de €26,50) x 390 quilos de café];
O recurso merece, pois, provimento.
Vencidos no recurso, suportarão os réus/apelados as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam em parte a sentença recorrida, condenando solidariamente os réus a pagar à autora, a título de cláusula penal, uma indemnização no montante de € 6.887,40, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, à taxa legal, mantendo no mais o decidido.
Custas, aqui e na 1ª instância, a cargo dos réus.
*
Évora, 11 de janeiro de 2024
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2ª adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)





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[1] Proc. 782/17.0T8CSC.L1.S1, disponível, como os demais adiante citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[2] Cfr., por todos, o acórdão da Relação do Porto de 21.01.2013, proc. 437/11.0TBMDL.P1, e a jurisprudência aí citada.
[3] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 268.
[4] In Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 4ª ed. pp. 247-248.
[5] Páginas 254-255.
[6] Neste sentido, por todos, Pinto Monteiro, “O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão, RLJ, Ano 146º, pp. 313-315 e ainda in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 1985, pp. 141-142, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas Acessórias Ao Contrato – Cláusulas de Exclusão e de Limitação do Dever de Indemnizar, Cláusulas Penais, 2ª. ed., Almedina pp. 160-163”, e Acórdãos do STJ de 12.05.2016, proc. 72/14.0TTOAZ.P1.S1 e de 18.01.2022, proc. 889/18.7T8EPS.P1.S1.
[7] O duplo controlo de penas …, cit. pp. 313-314.
[8] Agora in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, cit., pp. 141-142
[9] Cfr., inter alia, o Acórdão desta Relação de 27.04.2017, proc. 146/14.8TBOLH.E1.
[10] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Volume III, Lisboa, 1993, p. 273, citado no Acórdão desta Relação a que se alude na nota anterior.