Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
35/11.8TABJA.E1
Relator: MARTINS SIMÃO
Descritores: INTERVENÇÃO E TRATAMENTOS MÉDICO-CIRÚRGICOS
VIOLAÇÃO DAS ``LEGES ARTIS´´
DECISÃO INSTRUTÓRIA
VÍCIOS DO ART. 410.º
N.º 2 DO CPP
Data do Acordão: 02/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Os vícios do artigo 410.º, n.º2, do CPP são vícios da sentença final e só da matéria de facto, não tendo cabimento legal a sua invocação em sede de recurso de despacho de não pronúncia.

II - Para o cometimento do crime, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º2, do Código Penal exige-se, para além da violação da “leges artis” que o agente tenha atuado com dolo.

III - Exige-se, assim, que o arguido conheça e deseje a violação das leges artis e para além disso, conheça e deseje a criação de perigo, ou seja, o dolo imposto pela norma (para a qual basta o dolo eventual) deverá revelar-se a dois níveis: primeiro na própria violação das leges artis; depois na criação do perigo a que a norma se refere.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

O Mmo Juiz da Instância Local de Beja, Comarca de Beja proferiu, no dia 27 de Novembro de 2015, despacho de não pronúncia dos arguidos BB, RM e FM ids. a fls. 1451, pela prática do crime previsto no art. 150º, nº 2 do C. Penal.

O Ministério Público e a assistente recorreram deste despacho, tendo a segunda apresentado as seguintes conclusões:

«A. No âmbito do processo supra melhor identificado, foram os Arguidos BB, RM e FM acusados pela prática de um crime de intervenção e tratamento médico com violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal. Na sequência da referida acusação, vieram os Arguidos requerer abertura da instrução, fase esta que veio a culminar com a Decisão Instrutória de Não Pronúncia, ora objecto de recurso.

B. De facto, no dia 2 de Julho de 2009, pelas 9.50 horas, PJM, deu entrada no serviço de urgência do Hospital Joaquim Fernandes, em Beja, queixando-se de dor epigástrica, acompanhada de mal-estar e tremores desde há meses, com agravamento nos últimos cinco dias. Nessa unidade de saúde, foi atendido pelo Arguido RM a quem referiu sofrer de hepatite C, medicada com Interferon, ter sido toxicodependente e alcoólico. O Arguido RM determinou a realização de análise da função hepática e hemograma, nas quais não se verificaram alterações, prescrevendo ainda medicação, encaminhando o Ofendido para a consulta de Psiquiatria e acabando por dar alta ao Ofendido.

C. Nesse mesmo dia, cerca das 19.25 horas, o Ofendido foi encontrado caído no prédio sito na Rua Bernardo Santareno, n.º 1, em Beja, junto à porta do 1.º andar esquerdo, tendo sido transportado para o Hospital Joaquim Fernandes, em Beja pelo INEM, ali tendo dado entrada no serviço de urgência pelas 19.50 horas. O Ofendido apresentava-se confuso, sonolento e agitado, tendo sido novamente atendido pelo Arguido RM.

D. Ao observar o Ofendido, o Arguido RM, anotou no relatório hospitalar com pequena ferida no couro cabeludo, não tendo valorizado tal ferimento, tendo ponderado a possibilidade de intoxicação alcoólica ou estupefacientes. O Arguido não ordenou a realização de uma TAC, embora existissem indícios fortes da verificação de um traumatismo craniano.

E. Mantendo-se o Ofendido em grande agitação, o Arguido RM, determinou o seu envio ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa, para avaliação pela especialidade de Psiquiatria.

F. Neste estabelecimento, foi observado pela psiquiatra Arguida FM. Pelas 4.45 horas, a Arguida transferiu o Ofendido de volta para o Hospital de Beja, com alta da especialidade de psiquiatria, com indicações para ser encaminhado para a unidade de saúde mental do Hospital de Beja, para tratamento em ambulatório, tendo diagnosticado síndrome de abstinência alcoólica. O Ofendido foi então imobilizado em maca, em sono profundo, e reenviado para o Hospital de Beja. A Arguida também não ordenou a realização de uma TAC, embora existissem indícios fortes da verificação de um traumatismo craniano.

G. O Ofendido voltou a dar entrada no Hospital de Beja pelas 7.17 horas, onde o Arguido RM continuava de serviço, tendo tido conhecimento do regresso daquele e das indicações dadas pela psiquiatra do hospital Curry Cabral em Lisboa.

H. O Arguido BB, entrou ao serviço na Urgência do Hospital de Beja pelas 8.00 Horas do dia 3 de Julho de 2009, onde o Arguido RM o informou do estado clínico do Ofendido. O Arguido BB observou o Ofendido, tendo anotado no relatório hospitalar que este continuava vígil, mas confuso e com períodos de agitação. O Arguido BB não observou no Ofendido qualquer lesão física e decidiu transferir o Ofendido para a sua área de residência, o Hospital de Santo António, no Porto, indicando no relatório «psicose não orgânica tipo agitado» como diagnóstico de saída. Também não ordenou a realização de uma TAC, embora existissem indícios fortes da verificação de um traumatismo craniano.

I. O Ofendido deu entrada no Hospital de Santo António pelas 16.42 horas do mesmo dia, apresentando febre e sudores e marcada, taquicardia, não despertável à chamada, olhos desviados para cima e para a direita, com movimentos tipo «roving», pupilas pequenas, reactivo à dor assimetricamente, mobilização dos 4 membros, com tendência à postura rígida, rigidez da nuca, com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal e occipital, com hematoma retroauricular, hematoma e escoriações no cotovelo, coxa e joelho direito e antebraço esquerdo.

J. Diligentemente, no Hospital de Santo António, pelas 2.10 horas do dia 4 de Julho de 2009, foi ordenada a realização de Tomografia Axial Computorizada (“TAC”) – crânio-encefálica, a qual revelou extensas hemorragias intraparenquimatosas frontais bilaterais, exercendo efeito de massa sobre os cornos frontais, outros focos hemorrágicos temporais anteriores bilaterais e temporais posteriores esquerdos, sangue no IV subracnoideu, possível sangue subdural frontal bilateral, edema cerebral difuso, amígdalas cerebelosas aflorando buraco occipital, opacificação de ambos os ouvidos médios, fracturas da escama temporal direita, com extensão ao rochedo, fractura da escama temporal esquerda também com possível extensão ao rochedo, descontinuidade direita da escama occipital e, ainda, sinais de hipertensão intracaniana.

L. Face ao seu grave estado clínico, o Ofendido foi submetido, de imediato, a intervenção cirúrgica. O estado clínico do Ofendido era tal ordem que o Dr. J. C. esclareceu os familiares do Ofendido, informando-os que sem a intervenção que iria ser realizada, o Ofendido, teria entrado em morte cerebral, não havendo, mesmo com a intervenção, qualquer garantia de recuperar das lesões.

M. No dia 3 de Julho de 2009, os dois irmãos do Ofendido foram informados pela Dra. Ana…, chefe de urgência, que o Hospital de Santo António não tinha sido informado da entrada de um paciente proveniente do Hospital de Beja, bem como não tinha sido enviado relatório médico de onde constasse a situação clínica do Ofendido. Referiu ainda que o que acompanhava o Ofendido era uma folha A5 com a descrição da medicação que lhe tinha sido administrada na ambulância, aquando da deslocação do Hospital de Beja para o Hospital de Santo António.

N. Em resultado da factualidade supra descrita - comprovada, aliás, pelo relatório de perícia de dano corporal junto aos autos -, o Ofendido apresenta tetraparésia espástica, equilíbrio de tronco razoável, com diminuição dos reflexos osteo-tendinosos dos membros superiores, com disartria, força muscular dos membros reduzida. Foi admitido o nexo de causalidade entre o traumatismo de natureza conducente e o dano (lesões apresentada na sequência de traumatismo crânio-encefálico: hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroarticular, fractura craniana) e outras lesões (hematoma e escoriações no cotovelo e coxa direita, joelho direito e antebraço esquerdo).

O. As referidas lesões causaram 442 dias de doença, com incapacidade para o trabalho, tendo o Ofendido corrido risco sério de vida. Deste episódio perfeitamente evitável, resultaram para o Ofendido consequências permanentes que afectam de maneira grave as suas capacidades de trabalho, intelectuais e que impossibilitam a utilização do corpo, dos sentidos e da linguagem.

P. Os Arguidos BB, RM e FM não examinaram o Ofendido com a minúcia que as leges artis impõem, contribuindo directamente para o agravamento do estado de saúde deste, consubstanciando os factos integrados dos pressupostos objectivos e subjectivos do crime de intervenção médica e tratamento em violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º2 do Código Penal.

G. Pela sua relevância probatória, deixa-se aqui parcialmente transcrito o teor do Parecer técnico-científico elaborado pelo Dr. CD e aprovado por unanimidade em reunião do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Medicina Legal e Clínicas Forenses (“INMLCF”), disponível para consulta a fls. 634 a 640 dos autos:

1 - Foi correcto o procedimento dos arguidos BB e RMM, no atendimento que prestaram ao ofendido PJM?

RI No dia 02.07.09 o doente referia dor epigástrica, mal estar e tremores desde há meses, com agravamento nos últimos dias, com problemática laboral e aumento da ansiedade. Tinha antecedentes de toxicodependência e alcoolismo, com medicação psiquiátrica. Foi correcta e adequada a decisão do clínico em medicar com protector gástrico e orientar para consulta de Psiquiatria.

Algumas horas mais tarde volta ao SU, sonolento, confuso e agitado, com história de queda nas escadas e com ferida no couro cabeludo e com presença de canabinóides e benzodiazepinas na urina. Foi transferido 'Para o Hospital Curry Cabral para ser observado e orientado por Psiquiatria, o que está correcto. Devia, tendo em atenção o estado clínico, ser efectuado uma TAC cerebral, na eventualidade de traumatismo craniano, na sequêncio da queda.

2 - Face às circunstâncias do caso, os arguidos BB e RM deveriam ter considerado a hipótese do ofendido apresentar lesões cranianas e deveriam ter determinado a realização de TAC?

RI Respondido atrás.

3 - A tetraparésia espástica, com equilíbrio razoável do tronco, com diminuição dos reflexos osteotendinosos dos membros superiores, com disartria, força muscular dos membros diminuída, que o ofendido PJM apresenta resultaram da omissão de acto médico, por parte dos arguidos BB e RM, ou foram agravados por tal omissão?

RI As lesões referidas são consequência das lesões cerebrais apresentadas pelo doente, na sequencia de traumatismo craneano. Como referido atrás devia ter sido efectuada uma TAC cerebral após a queda, para avaliação da extensão das lesões craneanas, o que poderia permitir um diagnóstico e um tratamento mais atempado.

4 - Ocorreu violação das leges artis por parte dos arguidos BB e RM que prestaram ao doente PJM?

RI Após a queda ocorrida no dia 02.07.09, apresentando-se o doente confuso, sonolento e agitado e com ferida no couro cabeludo, deveria ter sido efectuada uma TAC cerebral, o que indicia violação das leges artis.

A transferência do doente para o Hospital de Santo António, numa viagem de várias horas, com confusão mental e agitação, num doente alcoólico e toxicodependente e com traumatismo craneano, apesar de vir acompanhado de enfermeiro, deveria ter sido efectuada após o doente estar estabilizado, o que não aconteceu, indiciando violação das leges artis.

H. Aliás, a própria Decisão Instrutória ora objecto de recurso afirma expressamente a relevância probatória do documento ora transcrito, tendo inclusivamente julgado suficientemente indiciados os factos atrás descritos.

I. Porém, considerou o douto Tribunal a quo que não resultou suficientemente indiciado que os arguidos representaram como possível estarem a actuar contra o determinado pelas legis artis e que, dessa forma, agravariam o estado de saúde do doente, motivo pelo qual foi decidido não pronunciar os Arguidos.

J. Salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode a Assistente deixar de discordar desta posição do Tribunal a quo.

L. Assim, em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. a) do Código de Processo Penal, a Recorrente indica que considera que se encontra incorrectamente julgado não suficientemente indiciado que os arguidos representaram como possível estarem a actuar contra o determinado pela legis artis e que, dessa forma, agravariam o estado de saúde do doente.

M. Como tal, e em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 3, al. b) do Código de Processo Penal, a Recorrente indica de seguida as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida:

i. Boletim de Urgência n.º 29033748, elaborado pelo próprio Arguido RM, constante de fls. 22 a 27 dos autos;

ii. Auto de Participação elaborado pelo Agente da Polícia de Segurança Pública que se dirigiu ao local, constante de fls. 78 dos autos;

iii. Depoimento da testemunha TB, constante de fls. 104 a 105 dos autos, sobre a sua visita ao hospital para ver o Ofendido;

iv. Parecer técnico-científico elaborado pelo Dr. CD e aprovado por unanimidade em reunião do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Medicina Legal e Clínicas Forenses (“INMLCF”), disponível para consulta a fls. 634 a 640 dos autos;v.

v. Aditamento ao Parecer do INMLCF, na sequência de um pedido de esclarecimento, igualmente respondido pelo Dr. CD e aprovado por unanimidade em reunião do Conselho Directivo do INMLCF (cfr. fls. 665 e 666 dos autos);

vi. Relatório Médico elaborado em 22.07.2009, pelo Centro Hospitalar do Porto, a fls. 32 dos autos; Nota de Alta que pode ser analisa a fls. 326 dos autos;

vii. Relatório Completo de Episódio de Urgência constante de fls. 320 a 324 dos autos de inquérito.

N. De facto, o Arguido RM teve conhecimento, através da informação prestada pelo INEM – que se ocupou do transporte do Ofendido até ao hospital – que o Arguido tinha sido encontrado caído num prédio, e que foi inclusivamente necessário chamar o INEM para proceder ao seu transporte para o hospital.

O. Assim, bem sabia o Arguido que deveria ter seguido as boas práticas médicas e ordenado de imediato a realização de uma TAC, conformando-se com a hipótese de, não o fazendo, prejudicar o bem-estar e a saúde do Ofendido.

P. Não só o Arguido não ordenou a realização de uma TAC, como ainda ordenou o envio do Ofendido para Hospital Curry Cabral, em Lisboa, para avaliação pela especialidade de Psiquiatria, sujeitando assim o Ofendido a um transporte penoso e desnecessário.

Q. Por sua vez, a Arguida FM, psiquiatra do Hospital Curry Cabral, observou o Ofendido, sem ter valorizado o facto de o mesmo revelar um ferimento no couro cabeludo e de ter sofrido uma queda – assim resulta dos factos dados como suficientemente indiciados pela Decisão Instrutória. Não tendo ordenado, igualmente, a realização de uma TAC, quando bem sabia que a leges artis assim o impunha.

R. Por sua vez, o Arguido BB, que entrou de serviço na Urgência do Hospital de Beja, tendo recebido o turno do Arguido RM, foi informado por este último da situação do Ofendido.

S. O Arguido BB, não só não ordenou a realização de uma TAC, como ainda decidiu transferir o doente – sem que este se encontrasse estável –, para o Hospital da sua área de residência, o Hospital de Santo António, no Porto. Como, aliás, se refere no supra citado Parecer do INMCFL.

T. Mais ainda, embora o Arguido BB não tenha sequer especialidade na área da Psiquiatria, como diagnóstico de saída foi indicado psicose não orgânica tipo agitado.

U. Vejam-se ainda as consequências para o Ofendido da ausência de realização imediata de uma TAC, tal como descritas no Relatório Médico elaborado em 22.07.2009, pelo Centro Hospitalar do Porto, a fls. 32 dos autos.

V. Ora, como já foi mencionado e como consta da Decisão Instrutória, o supra citado parecer do INMLCF indicou expressamente que devia ter sido efectuada uma TAC cerebral após a queda, para avaliação da extensão das lesões cranianas, o que poderia permitir um diagnóstico e um tratamento mais atempado.

X. Atenta a formação dos Arguidos, dificilmente se pode concluir que a opção de realizar uma TAC não foi pelos mesmos ponderada,

Z. Na verdade, bem sabiam os Arguidos que deveria ter sido ordenada uma TAC e, ainda assim, conformaram-se com a decisão de não o fazer, e com as potenciais consequências que essa mesma decisão poderia acarretar – e efectivamente acarretou – para a saúde e integridade física do Arguido.

AA. A verdade é que as omissões de cuidado supra descritas tiveram consequências irreversíveis para o Ofendido. De facto, por douta Sentença de 24 de Janeiro de 2013, proferida pelo 1.º Juízo Cível do Porto, foi instituída ao Ofendido tutela por interdição definitiva, fundada em anomalia psíquica, e nomeada tutora a ora Recorrente – cfr. Assento de nascimento do Ofendido constante de fls. 746 s 747 dos autos.

BB. A fase da instrução tem em vista aferir da existência de indícios suficientes da prática de um crime e dos seus agentes, e não decidir de forma final sobre a verificação do crime e sobre a culpa dos seus agentes. No caso concreto, resulta claro que ficaram suficientemente indiciados um conjunto de factos que permitiam a confirmação da decisão de levar a causa a julgamento.

CC. De facto, face a tudo quanto se deixou exposto – e que foi inclusivamente julgado provado pelo Tribunal a quo – resulta claro que se encontra indiciariamente provado que os Arguidos realizaram tratamentos violando as leges artis, assim criando um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde do Ofendido.

DD. Dos factos considerados suficientemente indiciados supra transcritos resulta claro que os Arguidos certamente assumiram a possibilidade de o Ofendido ter sofrido um traumatismo craniano e, ainda assim, optaram por não agir de forma a despistar a existência do referido traumatismo, optando por não ordenar, sequer, a realização de uma TAC, quando mesmo um leigo colocaria esta possibilidade, atento o facto de o Ofendido ter caído, ter uma ferida na cabeça e se apresentar com períodos de confusão, sonolência e agitação.

EE. Resulta, pois, claro, que os Arguidos se conformaram com a possibilidade de não estarem a realizar os exames necessários e de não terem elaborado os seus diagnósticos de acordo com a leges artis, mas optaram exactamente por um abandono do curso das coisas, inclusivamente optando pelo envio do Ofendido para hospitais diferentes do seu.

FF. Como tal, encontra-se erradamente considerado como não suficientemente indiciado que os Arguidos representaram como possível estarem a actuar contra o determinado pelas leges artis, pelo menos, a título de dolo eventual.

GG. De acordo com a Decisão Instrutória, foi suficientemente indiciada a seguinte factualidade (negritos nossos):

Pelas 19.25 horas do dia 2/7/2009, PJM foi encontrado caído no prédio sito na Rua Bernardo Santareno, n.º 1, em Beja, junto à porta do 1.º andar esquerdo.

PJM foi transportado ao Hospital, pelo INEM, ali tendo dado entrada no serviço de Urgência pelas 19.50 horas. Apresentava-se confuso, sonolento e agitado.

PJM foi, de novo, atendido pelo arguido RM, que o observou e anotou no relatório hospitalar «com pequena ferida no couro cabeludo.»
(…)
Como o doente mantinha grande agitação, o arguido RM determinou o envio do PJM ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa, para avaliação pela especialidade de Psiquiatria.
(…)
Também a médica psiquiatra não valorizou o ferimento no couro cabeludo que o doente apresentava, nem a circunstância de ter sofrido uma queda.
(…)
O arguido BB observou o doente, tendo anotado no relatório hospitalar que este continuava vígil, mas confuso e com períodos de agitação.

HH. Atento o exposto, a Decisão Instrutória padece do vício de contradição insanável, não só (i) entre a fundamentação, mas também (ii) entre a fundamentação e a decisão,

II. Porquanto os factos julgados suficientemente indiciados pelo Tribunal a quo e supra transcritos impunham uma decisão diametralmente oposta àquela que pelo mesmo Tribunal foi tomada no que concerne (i) à decisão pela inexistência de dolo – ainda que eventual – e também no que concerne (ii) à decisão final de não pronúncia. Termos em que, deverá a Decisão Instrutória ser declarada nula, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.

JJ. Assim, a Decisão Instrutória violou os preceitos constantes do artigo 150.º do Código Penal e dos artigos 283.º, n.º 1, 286.º, n.º 1, 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

LL. Verificada a existência de indícios da prática pelos arguidos de um crime de intervenção médica e tratamento em violação das legis artis, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º2 do Código Penal, deverá ser revogado o Despacho de Não Pronúncia posto em causa pelo presente recurso, substituindo-se por outro que Pronuncie os Arguidos nos termos da Acusação deduzida pelo Ministério Público, nos seus precisos termos.

MM. Pelo que, o Despacho de Não Pronuncia violou os preceitos constantes do artigo 150.º do Código Penal e dos artigos 283.º, n.º 1, 286.º, n.º 1, 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, razão pela qual deverá ser revogado;

NN. Com a sua revogação, e verificada que está a existência de indícios da prática por cada um dos arguidos de um crime de intervenção e tratamento médico com violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal, deverá ser proferido Despacho que pronuncie os arguidos nos termos constantes da Acusação formulada pelo Ministério Público.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com a revogação da Decisão Instrutória proferida e, verificada que está a existência de indícios da prática por cada um dos Arguidos de um crime de intervenção e tratamento médico com violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal, deverá ser proferido Despacho que pronuncie os Arguidos nos termos constantes da Acusação formulada pelo Ministério Público, por ser de Justiça»

O Ministério Público concluiu a motivação do seguinte modo:
“1ª.Vem o recurso interposto do despacho de não pronúncia dos arguidos BB, RM e FM pela prática, cada um deles, de 1 (um) crime de Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos, p. e p. pelo art. 150º, n.º 2 do Cód. Penal, com o único argumento da pretensa inexistência de suficientes indícios de que a sua atuação preencha o elemento volitivo do dolo.

2.ª A decisão apresenta uma fundamentação insuprivelmente contraditória, visto que:

A — Deu por indiciariamente assente que os arguidos “atuaram de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável das suas condutas” e como não provado que…“atuaram de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável das suas condutas” (cfr. fls. 20 da decisão);

B — Deu por indiciariamente assente que “os arguidos conformaram-se com a possibilidade de estarem a atuar contra o determinado pelas legis (sic) artis, assim agravando o estado de saúde do doente” e como não provado que “representaram como possível estarem a atuar contra o determinado pelas legis (sic) artis e que, dessa forma agravariam o estado de saúde do doente” (cfr. fls. 20 da decisão);

C — Apesar de ter dado por indiciariamente assente o facto transcrito em B, na fundamentação de direito considerou-se não haver “suficiente indiciação probatória ao nível do elemento volitivo, em concreto que os arguidos tivessem agido com aquele intuito ou que representassem tal resultado como consequência possível da sua conduta” (cfr. fls. 24, linhas iniciais).

3.ªAinda que se admita que a contradição descrita em 2.ª/A resultou de descuido na composição do texto, as restantes revelam uma fundamentação incongruente, que não escapa ao homem médio, dotado de sendo comum, com recurso à mera leitura da decisão, revelando um vício manifesto na própria fundamentação e entre esta e a decisão (art. 410.º, n.º 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal).

4.ªO despacho de não pronúncia, ao concluir pela atuação não dolosa dos arguidos, padece igualmente de erro notório na apreciação da prova.

5.ª Com efeito, choca com as regras da experiência comum, que um cidadão dê entrada em várias unidades de saúde, entre as 09h50 do dia 2 de julho e as 7h17 do dia seguinte, com determinado tipo de lesões que vieram a revelar-se causa da sua interdição judicial definitiva, seja examinado e medicado por três médicos - os arguidos - de forma contrária ao imposto pelas leges artis e se conclua que tais médicos agiram de forma não dolosa.

6.ªSobretudo quando se atente em que o paciente, transferido no dia 4 de julho de 2009 para uma diferente unidade de saúde, logo foi alvo dos exames e tratamentos adequados, sem que os profissionais de saúde desta última unidade dispusessem de melhores elementos de intervenção que os arguidos.

7.ªDa leitura dos factos externos fará mais sentido ou todo o sentido que se conclua que os arguidos atuaram internamente da forma como o revelaram externamente, isto é, representaram como possível estar a atuar contra o determinado pelas leges artis (elemento cognitivo), conformando-se com essa possibilidade (elemento volitivo), cientes que, desse modo, agravariam o estado de saúde do doente.

8.ª Os vícios do art. 410º são invocáveis perante qualquer tipo de decisão, independentemente da fase processual, de conhecimento oficioso e, contendo os autos todos os elementos para o efeito necessários, podem ser logo conhecidos e corrigidos pelo tribunal de recurso, sem necessidade de renovação da prova no Tribunal da Relação, nem reenvio do processo.

9ª Afigura-se-nos que o despacho de não pronúncia não interpretou nem aplicou corretamente as normas dos arts. 14º e 150º do Cód. Penal e 127º do Cód. Proc. Penal, violando-as, pelo que, no provimento do recurso, deve ser anulado e substituído por decisão que pronuncie os arguidos pela prática dos factos narrados na acusação e subsumíveis ao tipo legal de crime citado (…)”

O arguido BB respondeu ao recurso dizendo:
«1ª. No recurso interposto da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia apenas é processualmente possível sindicar a suficiência ou insuficiência indiciária dos elementos probatórios recolhidos nas fases de inquérito e de instrução.

2ª. Num tal recurso não é processualmente admissível a impugnação da decisão instrutória por via do mecanismo dos vícios enumerados no nº 2 do art. 410º do CPPenal.

3ª. Na verdade, a invocação de tais vícios só é oponível à decisão final, que conhece da matéria de facto, e não á decisão instrutória que, tendo natureza transitória, não conhece de factos, antes aprecia da existência ou inexistência de indícios conducentes á introdução, ou não, do facto crime em juízo.

4ª. Um recurso da decisão instrutória de não pronúncia que é fundamentado apenas na pretensa verificação dos vícios do art. 410º, nº 2 do CPP, não lhe apontando, nas conclusões que definem e delimitam o respectivo objecto, nenhuma nulidade ou irregularidade nem discutindo a indiciação, é um recurso sem sentido útil e desprovido de objecto.

5ª. Como tal, deve ser julgado manifestamente improcedente e rejeitado»

A arguida FM respondeu ao recurso dizendo:
«1º) Existe um conjunto de factos indiciários que, não tendo sido ponderados pelo tribunal de 1ª instância, são muitíssimo relevantes na medida em que o percurso do paciente PJM descrito na literatura dos Hospitais de Beja, Curry Cabral, em Lisboa, e Santo António no Porto não permite concluir as circunstâncias fácticas do tempo e lugar e a natureza do incidente/acidente que originou as gravíssimas lesões crânio-encefálicas sofridas por aquele.

2º- Estes elementos não são despiciendos posto que não resulta dos autos que as lesões tivessem tido origem em qualquer ocorrência que tivesse tido lugar antes do paciente PJM ter dado entrada no Hospital de Beja no dia 2 de Julho de 2009, ao fim da tarde, com uma pequena ferida no couro cabeludo.

3º). Nada no inquérito ou na fase de instrução permite concluir que os arguidos agiram como dolo, isto é, que representaram como possível estar a agir contra as leges artis conformando-se com a probabilidade de agravar o estado de saúde de PJM.

4º) Noutro plano, que o plano adjectivo e processual, o recurso da decisão instrutória de não pronúncia que for fundamentada apenas na pretensa verificação de vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPPenal não pode proceder.

5º) A alegação dos invocados vícios só pode ser invocada no recurso da sentença final, cuja decisão pressupõe a fixação da matéria de facto provada.

6º) A decisão instrutória não é definitiva quanto ao desfecho da acção penal, tem natureza transitória, não fixa factos provados reportando-se apenas à existência e inexistência de indícios suficientes.

7º) E isto porque aquele tipo de recurso apenas se pode por em causa a suficiência ou insuficiência dos indícios obtidos na fase de inquérito e na fase de instrução.

8º)No seu douto recurso o Ministério Público não pôs em crise a decisão relativa aos indícios existentes.

Nestes termos se requer a V. Exa que julgue improcedentes as doutas conclusões do recorrente mantendo “in totum” a douta decisão de não pronúncia da arguida recorrida».

O arguido RM respondeu ao recurso dizendo:
Inexiste qualquer contradição insanável na decisão do Mmo Juiz a quo;

Com efeito, resulta bastante claro da leitura da decisão que o Mmo Juiz a quo considerou ter ficado inteiramente provado que os arguidos agiram com dolo quanto à violação das leges artis;

Tal como também resulta bastante claro que o mmo Juiz a quo considerou que não foi indiciariamente provado o dolo dos arguidos quanto á criação do perigo para a saúde ou vida do doente e daí a decisão de não pronúncia,

Também não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova;

Não é verdade nem isso ficou indiciariamente provado, que o doente tenha entrado no Hospital de Beja com as lesões que posteriormente vieram a ser descritas no Hospital do Porto;

Desde logo porque se tal correspondesse à verdade as lesões externas, no antebraço, perna e face, descritas no Porto, seriam facilmente detectadas pelos 3 arguidos e por todos os enfermeiros e auxiliares de acção médica que contactaram com o doente em Beja e em Lisboa;

E no entanto nenhum deles registou essas lesões ou recorda tê-las visto;

Daí que não choque com as regras de experiência comum a conclusão de que os médicos não agiram de forma dolosa quanto á criação de perigo para a saúde ou vida do doente, como concluiu o Mmo Juiz a quo.

É preciso ter bem presente que quando da sua admissão em Beja, o doente apenas apresentou uma pequena ferida no couro cabeludo e durante a sua permanência naquela instituição nenhuma outra lesão foi notada ou anotada pelo pessoal de acção médica.

E o mesmo sucedeu durante o tempo em que o doente esteve no CH. De Lisboa.

Logo o que faz todo o sentido concluir é que o doente não tinha essas lesões e que elas foram causadas após a sua entrada no hospital do porto, possivelmente devida à queda da maca ou agressão de um outro doente.

Qualquer outra conclusão é que será chocante!

Em suma a decisão do Mmo juiz a quo não contém qualquer contradição insanável ou erro notório na apreciação da prova, pelo que se deverá manter, assim se fazendo justiça.

Termos em que deverá o presente recurso ser considerado improcedente, assim se fazendo a costumada Justiça»

O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela posição já assumida nos autos.

A arguida FM respondeu ao recurso dizendo:

«1ª a 3ª) idênticas às acima apresentadas ao recurso do Ministério Público.

4ª- A recorrida não agiu com dolo em nenhuma das suas modalidades.

5ª- (corresponde à nº 6 da resposta ao recurso do MºPº)

6ª- Não existem indícios suficientes para se realizar um juízo de prognose e de plausibilidade de vir a ser aplicada uma pena à recorrida, escopo essencial da decisão instrutória de não pronúncia.

7ª- E isto porque naquele tipo de recurso apenas se pode por em causa a suficiência ou insuficiência dos indícios obtidos na fase de inquérito e na fase de instrução no que concerne à triage.

8ª- Os autos fornecem elementos de facto de grande impacto no que concerne hora em que é determinada a triagem, ao processo temporal do doente entre a hora de admissão no Hospital de Santo António, no Porto, e a hora em que é determinada a realização de TAC, investigação médica e ao tempo que mediou a chegada do doente e a primeira observação médica na urgência.

9ª- Profundamente estranho é o facto de que desde Beja, em 3-07-2009 e às 00, 32h de 4-07-2009, ninguém, mas nem uma só pessoa – vários médicos -, vários enfermeiros e até bombeiros, tenham observado no doente hematomas ou equimoses ou outras lesões exteriores.

10ª- Não existem indícios de factos imputáveis à recorrida pelo que deve ser mantida a douta decisão recorrida

Nestes termos se requer a V. Exa que julgue improcedentes as doutas conclusões do recorrente mantendo “in totum” a douta decisão de não pronúncia da arguida recorrida».

Nesta Relação, o Exmo. Procuradora-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido deque “não se recolheram indícios suficientes de que:

- os arguidos representaram como possível estarem a actuar contra o determinado pelas leges artis e que, dessa forma, agravariam o estado de saúde do doente.

- os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável das suas condutas» , pelo que se deve manter o despacho de não pronúncia.

Observou-se o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, a assistente respondeu pugnando pela posição já assumida nos autos.

Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- Fundamentação

I. Relatório
1.1 Não concordando com o despacho de acusação proferido pelo Ministério Público, constante de fls. 762-767, foi requerida a abertura de instrução pelos arguidos:
(…)

I. 2. DECISÃO COMPROVANDA:
Despacho proferido de fls. 762-767, pelo Ministério Público, que acusou cada um dos arguidos supra identificados da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de intervenção e tratamento médico com violação das leges artis, p. e p. pelo artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal.

Vem a acusação sustentada pelos seguintes meios de prova:
“A – Documental: fls. 18 e segs., 76 e segs., 72 e segs., 291 e segs., e 745 e segs.
B - Relatório Pericial de fls. 284 e segs.
C - Consulta técnico-científica de fls. 631 e segs. e 664 e segs.
D - Testemunhas:
MM, id. fls. 65.
JM, id. fls. 142.
RPM, id. fls. 148.”
* * *
I. 3. DOS REQUERIMENTOS DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO:
Nos requerimentos de abertura de instrução que os arguidos apresentaram respectivamente de fls. 816 a 827 (arguido BB), 1261 a 1274 (arguida FM) e de fls. 1292 a 1299 (arguido RM) todos invocaram, em apertada síntese, terem adoptado, respectivamente e no caso concreto, as medidas que as leges artis da profissão de médico lhes impunham, discordando da aptidão dos meios de prova utilizados pelo Ministério Público para sustentar a sua convicção.

Com o intuito de fundamentarem a posição que expressaram nos seus requerimentos de abertura de instrução, requereram, todos eles, como diligências probatórias a realizar na fase de instrução, o seu interrogatório complementar e a inquirição de testemunhas (três por parte do arguido BB (cfr fls. 827); sete por parte da arguida FM (cfr fls. 1273) e cinco por parte do arguido RM (cfr. fls. 843), cuja realização foi parcialmente deferida pelo despacho que declarou aberta a presente fase, constante de fls. 1334/1335.

II. DILIGÊNCIAS EFECTUADAS
Decorreu a fase instrutória, em que os arguidos foram sujeitos a interrogatório complementar e foram inquiridas as testemunhas TF, CM, MS, (arroladas pelo arguido BB), MN (arrolada pelo arguido RM), MPS e MCD (arrolada pela arguida FM) e JM, PS, CB e NS (comuns ao rol dos arguidos RM e FM).

De igual modo, foram tomados esclarecimentos adicionais ao autor da consulta técnico-científica junta de fls. 635 a 640 e respectivo aditamento/esclarecimento (fls. 666).

A devido tempo ocorreu debate instrutório, o qual decorreu com observância do disposto nos artigos 301.º e 302.º do Código de Processo Penal, conforme consta da respectiva acta.

III. SANEAMENTO
O Tribunal é competente e o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.
Inexistem outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

IV. DA INSTRUÇÃO E DA SUFICIÊNCIA DOS INDÍCIOS RECOLHIDOS

Conforme preceitua o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Ainda de acordo com o disposto no artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal deverá o juiz pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso não seja possível reunir tal acervo probatório, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.

Na instrução bastará a mera prova indiciária, não se exigindo ainda a certeza quanto ao mérito da questão. Tal como nota Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, pag 179, “a lei não exige (…) a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”

Impõe-se, deste modo, que a decisão instrutória assente num suporte factual fortemente indiciador sobre a verificação ou não da infracção. Dito por outras palavras, deverá o processo conter indícios suficientes, v.g., indícios que permitam concluir por uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Sobre este ponto, refere Figueiredo Dias que: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” e ”(...) a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de referir-se no plano fáctico e não no plano jurídico”(in “Direito Processual Penal”, 1.º, 1974, página 133).

Do supra referido resulta, em suma, que indícios suficientes serão referências factuais, sinais objectivos de suspeita, indicações de vestígios, elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados e relacionados criam a convicção de uma séria probabilidade da condução à condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído, a manter-se todo aquele acervo probatório em sede de julgamento.

Tal como se faz notar no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 3555/09.TDLSB.L1-5, datado de 16-11-2010, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl1.nsf/0/feff2952fc9fefb2802577f2003d8c74?OpenDocument (citado a título meramente exemplificativo dentro das inúmeras decisões judiciais que seguem nesse mesma linha): “(…) Quanto ao que se deve entender por indícios suficientes uma primeira posição (minoritária e que podemos considerar já ultrapassada) defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade (ainda que diminuta) de futura condenação em julgamento.

Uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.

Por último, a posição que recolhe os favores da maioria da doutrina advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.

Fala-se, a este propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação. Ainda que haja quem não autonomize esta posição da anterior e tanto fale em “alta probabilidade” como em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado.

IX - Depois de um primeiro momento em que se negou a sua aplicação, a jurisprudência vem agora, pacificamente, admitindo a aplicação do princípio “in dubio pro reo” em todas as fases do processo.”

O princípio do “in dubio pro reo” constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. Sendo uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência contempla (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP), impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir “pro reo”. Trata-se, como tal, de um princípio que tem a ver com a questão de facto (e não no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito), quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Do mesmo resulta que, não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, não deverá ser desfavorecido o arguido sempre que não seja possível efectuar a prova do facto.

Efectuadas estas primeiras considerações de direito, vejamos de forma muito condensada os elementos probatórios previamente colhidos na fase de inquérito, reanalisá-los à luz da prova produzida nesta fase de instrução, proceder ao seu enquadramento e ponderação, de modo a daí retirar o sentido e alcance da decisão a tomar.

A acusação encontra-se alicerçada nos documentos juntos de fls. 18 e segs., 76 e segs., 72 e segs., 291 e segs., e 745 e segs, relatório pericial de fls. 284 e segs, “Consulta técnico-científica de fls. 631 e segs. e 664 e segs”, para além dos testemunhos de MM, JMM e RPM.

Dos referidos elementos destaca-se o constante de fls.22: boletim de admissão do paciente no Hospital José Joaquim Fernandes, onde o enfermeiro JM fez constar “doente que foi encontrado caído numa escada” e “com pequena ferida incisa no couro cabeludo”, sinais exteriores que contrasta com aqueles que no dia subsequente o mesmo paciente viria a apresentar no Hospital Santo António, no Porto (veja-se a documentação clínica constante de fls. 314 e seguinte dos autos, mas em que se destaca a carta de encaminhamento de PJM desde do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, constante de fls. 333, e a informação constante de fls. 329, elaborada pelo Hospital de Santo António [que refere, inter alia, que: “…na admissão no HSA [4/7/2009, pelas 1h39] apresentava olhos fechados que não abria à chamada, não verbalizava, localizava a dor e mobilizava os 4 membros mas com tendência a postura rígida em contracção muscular que alterna com tremores generalizados, pupilas reactivas não mióticas, babinski negativo bilateralmente, mobilidade da nuca difícil de avaliar. Com sudorese, febril (38.4.ºC), taquicárdico (160-170 bpm/min), aparentemente regular (no monitor), TA: 124/74mmHg, com extremidades bem perfundidas AC sem sopros aparentes e AP MV + e simétrico, sem RA aparentes. Abdómen: depressível, sem reacção aparente à palpação de todos os quadrantes, sem defesa nem sinais de irritação peritoneal, RHA+. Sem edemas periféricos. Hematoma na face externa da coxa direita. (…)”]. De igual modo se encontra junta a fls. 72/73 cópia da informação clínica referente à admissão de urgência de PJM no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, pelas 4h05 do dia 3/7/2009, com saída pelas 4h45 do mesmo dia.

Mostra-se igualmente junto ao processo parecer técnico-científico elaborada pelo INML, constante de fls. 635 a 640, apresenta o seguinte teor:

“Recorreu ao SU do Hospital José Joaquim Fernandes, no dia 02.JuI.2009, às 09h53, por "dor epigástrica acompanhada de mau estar e tremores desde há meses e com agravamento nos últimos 5 dias".

História da doença actual - "AP- 38 anos, Hepatite C medicada com Interferon sem benefício, ex. etanolismo e outras substâncias, nunca foi operado, nega alergia medicamentos. Medicado com Trazolona, Pimozida, Diazepam SOS. QI - Epigastralgia com azia desde há várias semanas, problemática laboral, aumento da ansiedade. EO - C e O, BH e C eupneico e rítmico, Abdómen mole e depressível, apenas doloroso em epigastro à palpação. Função hepática e hemograma sem alterações. O doente continua com tremores e intensa ansiedade. Peço avaliação a Psiquiatria" Dr. RM (Medicina Geral e Familiar), às 12h03 de 02.JuI.2009.

Foi medicado com Pantoprazol 40 mg EV, Sucralfato 1.200 mg oral.
Teve alta às 12h01 sem diagnóstico, orientado para a consulta externa de Psiquiatria.

Volta ao SU, no mesmo dia, às 19h50, por "Doente que foi encontrado caído nas escadas. Agora está confuso e agitado".

História da doença actual - "AP - 38 anos, Hepatite C medicada com interferon sem benefício, exetanolismo e outras substâncias, nunca foi operado, nega alergia medicamentosa. Medicado com Irozodono. Pimozida, Diazepam em SOS. QI -Doente que teve alta esta manhã, assintomático, referenciado para Psiquiatria por ansiedade intensa. Desconheço se foi avaliado ou se tem consulta marcada para outro dia. Agora foi encontrado na rua com possível intoxicação etanólica, agora confuso, sonolento e agitado. Com pequena ferida no couro cabeludo. O doente continua muito agitado, sem controlo objectivo depois de fazer Midazolam. Faz Cloropromazina 50 mg IV para trasladar a Hospital Curry Cabral. Agradeço avaliação por Psiquiatria". Dr. RM (Medicina Geral e Familiar), 00h33 de 03.JuI.2009.

Determinação na urina de Cocaína, Opiáceos, Metanfetaminas, Barbitúricos, Antidepressivos tricíclicos, Anfetaminas e Metadona negativos e Canabinóides positivo e Benzodiazepinas de 298 nq/ml.

Fez medicação com Tiamina 100 mg EV, Midazolam 15 mg EV, Cloropromazina 50 mg EV e Glucose+Cloreto de sódio contínuo EV. Teve alta às OOh37 com transferência para o Hospital Curry Cabral.

Hospital Curry Cabral, Serviço de Urgência, dia 03.07.2009, às 04h05 - "Homem, de 38 anos de idade, com ante de politoxifllia, enviado do H. D. De Beja, para avaliação psiquiátrica. Com Hep C medicado com interferon, sem benefício. Vem imobilizado, em maca, em sono profundo. Sinais vitais:

T. Art 182/54. T. Ax. 37°C. Contacto família mãe (Maria). Medicado: Diazepam,.... (?), trazodona, olcadil (SOS). Falou-se com a mãe, que informa que o filho suspendeu consumo de tóxicos, incluindo álcool, nos últimos tempos. Trabalha em Beja. A família não se deslocará ao H. C. Cabral, após ser avisada de reenvio para o H. Beja. Falou-se com o Chefe de Serviço, acordando-se o reenvio".

Transferência para o Hospital de Beja, às 04h45 de 03.07.09.

Urgência do Hospital José Joaquim Fernandes, no dia 03.JuI.2009, às 07h 17 "Transferência para o hospital da área de residência: dte. vindo do H. Curry Cabral da Urgência Psiquiátrica".

"O colega do H. Curry Cabral sugere terapêutica com haloperidol, Prometazina e se agitação Diazepam 10 mg. Referenciar para: Saúde Mental ambulatória". Dr.RM (Medicina Geral e Familiar), 07h38, 03,JuI.2009.

História da doença actual - "O doente continua vigil, mas confuso e com períodos de agitação.

Porém, tomou o pequeno almoço e ficou mais calmo com 20 gotas de Haloperidol. O doente veio com alta de Psiquiatria do Curry Cabral, com a indicação de fazer Haloperidol em SOS, Prometazina EV em SOS, e Diazepam 10 mg por dia. Decide-se transferir o doente para a área de residência - H. S. António - Porto. Leva medicação EV e vai acompanhado de enfermeira. Dr. BB (Medicina Interna) lOh53, 03.JuI.2009.

Notas de enfermagem "Doente saiu para Hospital Sto António (Porto) cerca das 11 horas acompanhado por enfermeiro".

Diagnóstico de Saída - "Psicose não orgânica tipo agitado".

Não nos foi fornecida a ficha de admissão no Hospital de Santo António.
Relatório Médico do Centro Hospitalar do Porto, 22 de Julho de 2009 - "PJM, Processo 958696, admitido por extensas hemorragias intra-parenquimatosas frontais bilaterais com focos hemorrágicos intra-parenquimatosos temporais anteriores bilaterais e temporais posteriores esquerdos. Sangue subaracnoideu difuso predominantemente na fossa posterior, sangue no IV ventrículo e possível sangue subdural frontal bilateral. Hipodensidade difusa do tronco e hemisférios cerebrais com apagamento dos sulcos, sugerindo edema cerebral difuso. Amígdalas cerebolosas aflorando o buraco occipital sem o ultrapasssarem. Sem desvios das estruturas da linha média. Opacificação de ambos os ouvidos médios sugerindo hemo tímpano. Fractura da escama temporal direita com extensão ao rochedo. Fractura da escama temporal esquerda também com extensão ao rochedo. Descontinuidade para-mediana direita da escama occipital que também deve corresponder a fractura. Enfisema dos músculos da fossa infra-temporal direita. Espessamento dos tecidos epicranianos fronto-temporais direitos e parietais esquerdos. Sem áreas de captação anormal do produto de contraste, nomeadamente que pudessem sugerir aneurismas ou malformações vasculares. Artérias de calibre reduzido relacionáveis com hipertensão intracraneana.

Admitido neste serviço em 4-07-09, sem sedação, vindo da sala de emergência em ventilação espontânea por tubo OT.

À entrada não abria os olhos à dor e flectia bilateralmente. Pupilas isocóricas pouco reactivas. Hematoma mastóide à direita e escoriação recente de grandes dimensões na face anterior da coxa direita.

Em 4.07.09 fez craniectomia descompressiva bifrontal. Em 13.07.09 diagnosticada meningite em tratamento desde essa altura. Traqueostómizado em 17.07.09.

Em 22.07.09 abre espontaneamente os olhos à voz. Desvio conjugado do olhar e cabeça para a direita. Pupilas midriáticas, bem reactivas à luz. Parece tentar mostrar a língua a pedido, mas não cumprir qualquer outra ordem. Flexão bilateral dos MS, melhor à direita. Área de craniectomia sem tensão". J. C.

Informação Clínica do Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro Rovisco Pais "O PJM, de 38 anos de idade, está internado no nosso Centro desde 18/11/09, transferido do Hospital de Santo António. Apresenta quadro clínico caracterizado por múltiplas deficiências, entre as quais tetraplegia espóstico, alterações cognitivas, alterações da comunicação e alterações da deglutição em sequência de Hemorragia Cerebral Difusa que terá ocorrido em Julho de 2009, segundo informação veiculada pelo hospital de origem.

Está a cumprir programa de reabilitação abrangente e actualmente encontra-se dependente para todas as actividades da vida diária, necessitando de constante apoio de 3ª pessoa". Paula Amorim Fisiatra.

Resumo:
1 - No dia 02.07.09, pelas 09h53 foi observado no SU do Hospital de Beja referindo dor epigástrica, mal estar e tremores desde há meses, com agravamento nos últimos dias, problemática laboral e aumento da ansiedade. Antecedentes de consumo de álcool e hepatite C. Medicado com Trazodona, Pimozida e Diazepam em SOS. Realizou análises que não revelaram alterações relevantes. Foi medicado com Pantoprazol e Sucralfato e teve alta orientado para a consulta de Psiquiatria.

2 - Pelas 19h50, do mesmo dia, foi admitido no mesmo SU após ter sido encontrado caído nas escadas, com provável intoxicação alcoólica, apresentando-se confuso, sonolento e agitado, com ferida no couro cabeludo. Foi medicado com Midazolam EV e manteve agitação. Fez novamente análises que revelaram presença de canabinóides e benzodiazepinas na urina. Foi medicado com Cloropromazina e transferido para o Hospital Curry Cabral para observação por Psiquiatria.

3 - No Hospital Curry Cabral foi observado às 04h05 e teve alta às 04h35, tendo sido feita sugestão de terapêutica com HaloperidoL Prometazina, Diazepam e Ciamemazina. Foi interpretado com um síndrome de abstinência alcoólica, foi imobilizado em maca, em sono profundo e reenviado para o Hospital de Beja.

4 - Deu nova entrada no Hospital de Beja às 07h 17, encontrando-se vigil, mas confuso, com períodos de agitação. Foi decidida transferência para o Hospital da residência, no Porto. Foi transferido pelas 11 h do dia 03.07.09.

5 - Deu entrada no Hospital de Sto António no dia 03.07.09 pelas 16h24, apresentando febre e sudorese marcada, taquicardia, não despertável à chamada, olhos desviados para cima e para a direita, pupilas mioticas, mobilização dos 4 membros, rigidez da nuca, com equimose na coxa direita. Apresentava sinais de traumatismo craneano, com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular, hematoma e escoriações no cotovelo e coxa direita, joelho direito e antebraço esquerdo.

6 - Foi internado na Unidade de Cuidados Intensivos, tendo sido submetido a cirurgia descompressiva no dia 04.07.09. Mais tarde fez PL e foi feito o diagnóstico de meningite. T traqueostomia de 17 a 30.07.2019. Iniciou MFR e mais tarde foi transferido para o Centro de Rovisco Pais para continuação do tratamento e daí para o Centro da Sta Casa da Misericórdia de Vila do Conde.

Pedido de parecer técnico-científico:

1 - Foi correcto o procedimento dos arguidos BB e RM no atendimento que prestaram ao ofendido PJM?

RI No dia 02.07.09 o doente referia dor epigástrica, mal estar e tremores desde há meses, com agravamento nos últimos dias, com problemática laboral e aumento da ansiedade. Tinha antecedentes de toxicodependência e alcoolismo, com medicação psiquiátrica. Foi correcta e adequada a decisão do clínico em medicar com protector gástrico e orientar para consulta de Psiquiatria.

Algumas horas mais tarde volta ao SU, sonolento, confuso e agitado, com história de queda nas escadas e com ferida no couro cabeludo e com presença de canabinóides e benzodiazepinas na urina. Foi transferido 'Para o Hospital Curry Cabral para ser observado e orientado por Psiquiatria, o que está correcto. Devia, tendo em atenção o estado clínico, ser efectuado uma TAC cerebral, na eventualidade de traumatismo craneano, na sequêncio da queda.

2 - Face às circunstâncias do caso, os arguidos BB e RM deveriam ter considerado a hipótese do ofendido apresentar lesões cranianas e deveriam ter determinado a realização de TAC?

RI Respondido atrás.

3 - A tetraparésia espástica, com equilíbrio razoável do tronco, com diminuição dos reflexos osteotendinosos dos membros superiores, com disartria, força muscular dos membros diminuída, que o ofendido PJM apresenta resultaram da omissão de acto médico, por parte dos arguidos BB e RM, ou foram agravados por tal omissão?

RI As lesões referidas são consequência das lesões cerebrais apresentadas pelo doente, na sequencia de traumatismo craneano. Como referido atrás devia ter sido efectuada uma TAC cerebral após a queda, para avaliação da extensão das lesões craneanas, o que poderia permitir um diagnóstico e um tratamento mais atempado.

4 - Ocorreu violação das leges artis por parte dos arguidos BB e RM que prestaram ao doente PJM?

RI Após a queda ocorrida no dia 02.07.09, apresentando-se o doente confuso, sonolento e agitado e com ferida no couro cabeludo, deveria ter sido efectuada uma TAC cerebral, o que indicia violação das leges artis.

A transferência do doente para o Hospital de Santo António, numa viagem de várias horas, com confusão mental e agitação, num doente alcoólico e toxicodependente e com traumatismo craneano, apesar de vir acompanhado de enfermeiro, deveria ter sido efectuada após o doente estar estabilizado, o que não aconteceu, indiciando violação das leges artis.

Este Conselho entende que a conduta dos médicos no Hospital Curry Cabral não está de acordo com as boas práticas médicas.

Coimbra, 2 de Julho de 2013 “
(negrito, itálico e sublinhado da autoria ora signatário)
*
Em virtude de um pedido de esclarecimento adicional formulado pela Magistrada do Ministério Público, titular do inquérito, veio a ser junto a fls. 666, o aditamento à supra transcrita consulta técnico-científica, que apresenta a seguinte redacção:

Pedido de esclarecimento:

A consulta dos médicos do Curry Cabral contribuiu para o agravamento do estado do doente?

RI O doente foi enviado ao Hospital Curry Cabral, transferido do Hospital de Beja, com a indicação de ser observado e orientado por Psiquiatria. Da observação efectuada verifica-se "Vem imobilizado, srn maca, em sono profundo. Sinais vitais: T. Art 182/54. T. Ax. 37°C". Desconhecemos se foi enviada a informação de que o doente foi encontrado caído. Contudo, se o doente fosse examinado com a minúcia exigida por um exame objectivo pormenorizado, certamente seriam detectadas as várias equimoses, escoriações e fracturas que o doente apresentava, pelo que foi atrasado o respectivo diagnóstico, podendo ter contribuído para o agravamento do estado do doente.

A conduta dos médicos do Curry Cabral é violadora das legis artis?
RI Como afirmamos atrás, o doente não foi examinado correctamente, não permitindo um diagnóstico dos vários traumatismos apresentados, pelo que houve violação das leges artis.

Coimbra, 30 de Setembro de 2013”
*
Antes de mais, importa analisar o valor probatório do sobredito relatório. Já que em sede de inquérito, bem como sobretudo na fase de instrução todos os arguidos se centraram em invocar (quer nos seu requerimentos de abertura de instrução, quer aquando dos seus interrogatórios) o integral respeito pelas regras da sua profissão, das boas práticas médicas, indo igualmente nessa linha o depoimento das testemunhas inquiridas, por si arroladas – como aliás, não deixa de ser comum, em processos judiciais em que seja investigada a prática de actos análogos.

Na verdade, em apertada síntese, todas as testemunhas indicadas pelos arguidos (assim tal como estes o referiram aquando do seu interrogatório complementar) afiançaram que a sintomatologia apresentada pelo paciente ao longo dos dias 2 e 3 de Julho de 2009, resultado dos exames feitos, terapêutica instituída, não impunham que este viesse a ser sujeito a uma TAC.

Pugnam, pois, todos os arguidos pela adequação dos cuidados clínicos que respectivamente prestaram, no Hospital José Joaquim Fernandes, na observação física completa feita ao paciente por parte do arguido RM, detecção da pequena ferida no couro cabeludo (com cerca de 1cm), medicação aplicada, solicitação de observação pela especialidade de psiquiatria com consequente encaminhamento de urgência para o Hospital Curry Cabral (onde então veio a ser observado pela arguida FM), desta unidade hospitalar para Beja e, após, para o Hospital Santo António, no Porto.

Como se frisou nenhuma prova testemunhal apresentada pelos arguidos na presente fase aponta para a existência de qualquer tipo de censura quanto à sua conduta, não só ao nível da observação, dos respectivos diagnósticos, da terapêutica instituída e das escolhas de encaminhamento, reencaminhamento e transferência do paciente entre as diversas unidades hospitalares (Beja – Lisboa –Beja – Porto).

Pelo que é em total oposição com a versão que a defesa dos arguidos veicula que surge o dito relatório pericial elaborado pelo Dr. CD (junto na fase de inquérito), com os esclarecimentos posteriormente prestados, na sequência de aditamento de novos quesitos.

Nesta sede, tal como resulta do dito relatório, supra transcrito e para o qual se remete, deveria ter sido outra a actuação dos arguidos, na medida em que caso o doente tivesse sido “examinado com a minúcia exigida por um exame objectivo pormenorizado, certamente seriam detectadas as várias equimoses, escoriações e fracturas que o doente apresentava, pelo que foi atrasado o respectivo diagnóstico, podendo ter contribuído para o agravamento do estado do doente …”, ao que acresce não ter sido solicitada uma TAC cerebral que permitiria vir a detectar o TCE que afectou o paciente. Mais sufragou o entendimento de que não era “recomendável a transferência do doente para o Hospital de Santo António, numa viagem de várias horas, com confusão mental e agitação, num doente alcoólico e toxicodependente e com traumatismo craneano, apesar de vir acompanhado de enfermeiro, o deveria ter sido efectuada após o doente estar estabilizado.”

E, na verdade, não vislumbramos motivos válidos que nos permitam divergir do supra mencionado juízo, contido na aludida consulta técnico-científica, inferindo-se desde logo que seria prudente ter ordenado a realização de uma TAC, tanto mais que, após a alta concedida a PJM, este veio ser encontrado por vizinhos, horas volvidas, inanimado nas escadas junto à sua residência e apresentando uma pequena ferida incisa no couro cabeludo, com cerca de um 1cm (facto que resulta demonstrado, quer da informação clínica de fls. 22, quer dos depoimentos de TB, a fls. 104, VF, a fls. 216-218, CP, a fls. 593). No exacto contexto em que foi encontrado e da informação contida no relatório de admissão no Hospital José Joaquim Fernandes, de Beja, pelas 19h50 do dia 2/7/2009, somos de crer que a boa prudência e prática médica aconselharia a adopção do apontado procedimento (realização de Tomografia Axial Computadorizada), inclusivamente para detectar a existência ou evolução do quadro clínico que somente foi diagnosticado a PJM pelas 2:10 do dia 4/7/2009, no Hospital de Santo António, no Porto, com a dita TAC.
*
Sobre o valor probatório da perícia realizada em processo penal e a vinculação do juiz à mesma, dispõe o artigo 163.º do CPP que:

«1. O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.

2. Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dois peritos, deve aquele fundamentar a divergência.»

Tal norma contém um limite à regra da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP). Contudo, e conforme assinalam SIMAS SANTOS E LEAL-HENRIQUES [in "Código de Processo Penal Anotado", I, 1999, Rei dos Livros p. 829] tal princípio "não é esquecido aqui, na medida em que se permite que o juiz possa divergir do entendimento contido no parecer dos peritos. Nessa situação apenas se impõe ao juiz que fundamente a sua divergência, em homenagem ao peso que o juízo oriundo da peritagem apresenta, por ter origem em entidade devidamente qualificada".

GERMANO MARQUES DA SILVA [in "Curso de Processo Penal", I, Verbo p. 153 e ss., também citado por aqueles] entende que a presunção contida no n.º 1 do art.º 163.º «não é uma verdadeira presunção, no sentido de ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», pois «o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador», não sendo «necessária uma contraprova», bastando «a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial». E conclui: «Compreende-se que assim seja. Com efeito, se a lei prevê a intervenção de pessoas dotadas de conhecimentos especiais para valoração da prova, seria de todo incompreensível que depois admitisse que o pressuposto da prova pericial não tivesse qualquer relevância, mas já é razoável que o juízo técnico, científico ou artístico possa ser aplicado na base de argumentos da mesma natureza».

Sucede que, no caso dos autos e no que concerne a toda a factualidade referente à actuação dos arguidos, entendemos que a prova apresentada em sede de instrução apresentada em sentido diverso do entendimento propugnado pelo referido parecer técnico- científico.

E, pese embora o facto deste não assumir, em termos probatórios, o mesmo valor que uma perícia – veja-se que não foi determinada a sua realização nesses moldes, nem apresenta tal denominação, ainda assim, não se crê que seja possível concluir em sentido diverso do autor do supra mencionado parecer, tanto mais por se apresentar de pessoa que nenhum ligação terá com os arguidos (de amizade, inimizade, relação profissional – logo à partida, objectivamente isenta), o que não sucede com as testemunhas inquiridas na fase da instrução (na sua larga maioria colegas e enfermeiros que laboraram com os arguidos e com estes estabeleceram laços de amizade).

Pelo que foi precisamente com base no citado parecer (associado aos elementos de prova supra referidos que o Tribunal teve por pertinentes) que foi fundada a convicção quanto à demonstração dos factos objectivos imputados aos arguidos.

Mostra-se, assim, suficientemente indiciada a seguinte factualidade:
O arguido BB é médico no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja. É especialista de Medicina Interna e chefe de equipa.

O arguido RM é médico de clínica geral no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja.

A arguida FM é médica psiquiatra no Hospital Curry Cabral.

No dia 2 de Julho de 2009, pelas 9.50 horas, PJM deu entrada no serviço de Urgência do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja.

Queixava-se de dor epigástrica, acompanhada de mal-estar e tremores desde há meses, com agravamento nos últimos cinco dias.

PJM foi atendido pelo arguido RM e a quem referiu sofrer de hepatite C, medicada com Interferon, ter sido toxicodependente e alcoólico. Queixou-se de dor epigástrica, com azia, referindo-se a problemática laboral, com aumento da ansiedade.

O arguido RM determinou a realização de análises da função hepática e hemograma, nas quais não se verificaram alterações.

O arguido RM prescreveu medicação e encaminhou o doente para a consulta de Psiquiatria.

Foi dada alta ao doente pelas 12.03 horas do dia 2/7/2009.

Pelas 19.25 horas do dia 2/7/2009, PJM foi encontrado caído no prédio sito na Rua Bernardo Santareno, nº1, em Beja, junto à porta do 1º andar esquerdo.

PJM foi transportado ao Hospital, pelo INEM, ali tendo dado entrada no serviço de Urgência pelas 19.50 horas.

Apresentava-se confuso, sonolento e agitado.

PJM foi, de novo, atendido pelo arguido RM, que o observou e anotou no relatório hospitalar «com pequena ferida no couro cabeludo.»

No entanto, o médico não valorizou tal ferimento, tendo ponderado a possibilidade de intoxicação alcoólica ou estupefacientes.

Efectuadas análises, apurou-se a presença de canabinóides e benzodiazepinas na urina.

O arguido RM medicou o PJM com Tiamina e Midazolam e, posteriormente, com Cloropromazina.

Como o doente mantinha grande agitação, o arguido RM determinou o envio do PJM ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa, para avaliação pela especialidade de Psiquiatria.

Assim, pela 1.54 horas do dia 3/7/2009, o PJM foi transportado de ambulância ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa, onde chegou pelas 4.05 horas.

Foi observado pela arguida FM, psiquiatra do Hospital Curry Cabral, em Lisboa.

Pelas 4.45 horas, a arguida FM transferiu PJM de volta para o Hospital de Beja, com alta da especialidade de psiquiatria e com indicação para fazer a seguinte medicação: Haloperidol (SOS), Prometazina (SOS) e Diazepam e Ciememazina e, bem assim, para ser encaminhado para a unidade de saúde mental, para tratamento em ambulatório.

A arguida FM diagnosticou síndrome de abstinência alcoólica, tendo o doente sido imobilizado em maca, em sono profundo e reenviado para o Hospital de Beja.

Também a médica psiquiatra não valorizou o ferimento no couro cabeludo que o doente apresentava, nem a circunstância de ter sofrido uma queda.

Pelas 7.17 horas, o PJM voltou a dar entrada na Urgência do Hospital de Beja, onde o arguido RM continuava de serviço, tendo tido conhecimento do regresso do doente e das indicações da psiquiatra.

O arguido BB entrou de serviço na Urgência do Hospital de Beja pelas 8.00 horas do dia 3/7/2009, tendo recebido o turno do arguido RM, que o informou da situação do PJM.

O arguido BB observou o doente, tendo anotado no relatório hospitalar que este continuava vígil, mas confuso e com períodos de agitação.

O arguido BB não observou no doente qualquer lesão física.

O arguido BB decidiu então transferir o doente para o Hospital da sua área de residência – Hospital de Santo António, no Porto.

Como diagnóstico de saída foi indicado: «psicose não orgânica tipo agitado.»

Assim, PJM seguiu de ambulância para o Porto, cerca das 11.00 horas, acompanhado de enfermeira e com medicação endovenosa.

PJM deu entrada no Hospital de Santo António pelas 16.42 horas do dia 3/7/2009, apresentava-se com febre e sudorese marcada, taquicárdico, não despertável à chamada, olhos desviados para cima e para a direita, com movimentos tipo «roving», pupilas pequenas, reactivo à dor assimetricamente, mobilização dos 4 membros, com tendência à postura rígida, rigidez da nuca, com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular, hematoma e escoriações no cotovelo, coxa e joelho direito e antebraço esquerdo.

Realizou Tomografia Axial Computorizada - cranio-encefálica, no Hospital de Santo António, pelas 2.10 horas do dia 4/7/2009, o qual revelou extensas hemorragias intra-parenquimatosas frontais bilaterais, exercendo efeito de massa sobre os cornos frontais, outros focos hemorrágicos temporais anteriores bilaterais e temporais posteriores esquerdos, sangue no IV subaracnoideu, possível sangue subdural frontal bilateral, edema cerebral difuso, amígdalas cerebelosas aflorando buraco occipital, opacificação de ambos os ouvidos médios, fractura da escama temporal direita, com extensão ao rochedo, fractura da escama temporal esquerda, também com possível extensão ao rochedo, descontinuidade direita da escama occipital. Apresentava sinais de hipertensão intracraniana.

Foi submetido a intervenção cirúrgica e tratamento adequado.

O PJM sofreu traumatismo crânio-encefálico, com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular, fractura craniana, e hematoma e escoriações no cotovelo e coxa direita, joelho direito e antebraço esquerdo.

As lesões causaram 442 dias de doença, com incapacidade para o trabalho. A vítima correu risco de vida. Como consequências permanentes, a vítima apresenta calos ósseos nos locais das fracturas, bem como sequelas do ponto de vista neurológico, que afectam de maneira grave as suas capacidades de trabalho, intelectuais e impossibilitando a utilização do corpo, dos sentidos e da linguagem.

O PJM apresenta, actualmente, tetraparésia espástica, com equilíbrio de tronco razoável, com diminuição dos reflexos osteo-tendinosos dos membros superiores, com disartria, força muscular dos membros diminuída.
Foi instituída tutela, por interdição definitiva, em favor de PJM.

Tendo-se apurado que após queda o doente se apresentava confuso, sonolento e agitado e com ferida no couro cabeludo, os arguidos deveriam ter determinado a realização de Tomografia Axial Computorizada - cranio-encefálica, para avaliação das lesões cranianas.

A arguida FM não examinou o doente com a minucia exigida por um exame objectivo pormenorizado, atrasando o respectivo diagnóstico e podendo ter contribuído para o agravamento do estado de saúde do doente.

A transferência do Hospital de Beja para o Hospital de Santo António, no Porto, de um doente alcoólico e toxicodependente, com confusão mental e agitação e com traumatismo craniano apenas deveria ter sido efectuada após a estabilização do doente, o que não aconteceu.

Os procedimentos determinados pelos arguidos foram contrários ao que a ciência médica recomenda e que, no caso, era a realização de um exame objectivo pormenorizado, para detecção das lesões que o doente apresentava, realização de Tomografia Axial Computorizada, para avaliação das lesões cranianas, e a estabilização do doente previamente à sua transferência para o Porto.

Os arguidos conformaram-se com a possibilidade de estarem a actuar contra o determinado pelas legis artis, assim agravando o estado de saúde do doente.

Actuaram de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável das suas condutas.

Por seu turno, dos factos narrados na acusação não resulta suficientemente indiciado que:

Os arguidos representaram como possível estarem a actuar contra o determinado pelas legis artis e que, dessa forma, agravariam o estado de saúde do doente.

Actuaram de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável das suas condutas.

Do crime cuja prática é imputada aos arguidos:
É imputado pelo Ministério Público e pela assistente aos arguidos BB, RM e FM a prática de um crime de violação das leges artis, previsto e punido pelo 150.º do Código Penal -, com a redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro – que apresenta a seguinte redacção:

“1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.

2 - As pessoas indicadas no n.º anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.” [sublinhado nosso]

O n.º 1 do artigo 150.º, sem qualquer norma incriminadora, indica os requisitos que condicionam a verificação do efeito exclusório da acção médica: (i) o fim curativo da acção levada a cabo; (ii) o respeito pelas leges artis e; (iii) a habilitação legal para se proceder à intervenção ou tratamento.

No que concerne à definição legal de intervenção médico-cirúrgica, avança Manuel Da Costa Andrade [in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pag. 307] que esta “integra um conjunto de elementos subjectivos e objectivos. Concretamente: dois elementos subjectivos e outros tantos de índole objectiva. Na síntese de Englisch, “só pode falar-se de intervenção terapêutica nos casos em, que se verifica, não apenas a indicação objectiva e a execução segundo as leges artis, mas também a direcção da vontade do agente para a terapia”. Numa aproximação mais analítica, do lado subjectivo exige-se, para além da específica qualificação do agente (há-de tratar-se de “médico ou pessoa legalmente autorizada”), a intenção terapêutica, compreendida pela lei portuguesa em termos particularmente amplos, abrangendo tanto o diagnóstico como a prevenção. Enquanto isto é do lado objectivo, exige-se a indicação médica e a realização segundo as leges artis. Os quatro elementos são de verificação necessariamente cumulativa, resultando, por isso, reciprocamente redutores.”

Conforme nota Maia Gonçalves [in “Código Penal Português Anotado e Comentado”, 15.ª Edição, Almedina, 2002, pag. 518], a introdução do n.º 2 do artigo 150.º do Código Penal pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, visou “resolver o caso da violação das leges artis, cuja submissão ao regime geral de responsabilidade criminal através das ofensas à integridade física se não afigurava satisfatória, porque a observância das leges artis não é configurável como um requisito de restrição típica dos crimes contra a integridade física, operada então por este artigo, dotado de eficácia idêntica à exigência de finalidade curativa.”.

Ainda no que concerne à alteração imposta pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro no artigo 150.º do Código Penal, afirma Manuel Da Costa Andrade [in obra citada, pag. 312] que o “artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal, pôs de pé a criação de um perigo “para a vida” ou de “grave ofensa para o corpo ou para a saúde”, como consequência de violação das leges artis. Com a sua consagração, o legislador quis assumidamente alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos imputáveis aos médicos. Para além de responderem por ofensas corporais negligentes (art. 148º CP) e por intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (art. 156º CP), os médicos passariam a responder também por um novo crime, que terá sido pensado como um crime de perigo concreto.”

Verifica-se, pois, que contrariamente ao que sucedia anteriormente ao aditamento do n.º 2 do artigo 150.º do Código Penal, a conduta de um médico ou outro técnico de saúde que leve a cabo intervenção ou tratamento com fim curativo violando as leges artis, será punida, desde que se se verifiquem os demais pressupostos do n.º 2.

No fundo, com a alteração legislativa supra referenciada, o legislador quis providenciar tutela penal aos casos em que, por força da inadequação dos tratamentos terapêuticos, médico-legais, fosse causado ao doente um perigo para a sua vida ou perigo de grave ofensa para o corpo. Assistiu-se ao acolhimento do entendimento pacificamente veiculado na doutrina de que, no caso de actuação médica, existe um dever jurídico do clínico que existe independentemente de qualquer vínculo contratual. Conforme referem Figueiredo Dias e Sinde Monteiro [in “Responsabilidade Médica em Portugal”, Separata ao BMJ, 1984, pags. 50 e 51]. “a aceitação pelo médico de um doente cria para aquele um dever jurídico (posição de garante) de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde deste”.

No que concerne à interpretação do conceito das “leges artis”, refere Faria Costa [in “O Perigo em Direito Penal”, Coimbra Editora, 2000, pag. 523], em nota de roda pé, que “estas não estão definidas, é certo, por determinação jurídico-positiva, mas o seu recorte e definição não é menos exacto do que aquele que eventualmente a lei definisse. Os grupos profissionais, independentemente da sua organização em espírito corporativo, não deixam de instruir os seus membros dentro de regras mínimas que dão razão de ser ao exercício da própria profissão. Assim, em termos de síntese podemos afirmar a este propósito, que uma actuação dentro dos limites das leges artis – por exemplo, dentro dos limites das leges artis da medicina, mas não só – pressupõe os seguintes pontos: adequação técnica aos parâmetros mais avançados e já solidificados da respectiva ciência ou disciplina; agudo juízo no que toca à oportunidade interventora, tendo em conta o caso concreto e ainda adequação dos meios através de uma dupla variável: o circunstancialismo que se desprende do caso concreto e os meios técnicos disponíveis”.

Haverá, assim, respeito pelas leges artis quando o agente execute os cuidados médicos com a técnica mais apurada, de acordo com os processos e regras oferecidas pela ciência médica, com a perícia devida.

Deste modo se conclui que o termo leges artis deverá ser entendido no sentido de perfeição técnica do tratamento ou intervenção e também da sua oportunidade e conveniência no caso concreto e idoneidade dos meios utilizados.

A infracção prevista e punida pelo artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal, pressupõe, no plano objectivo, um crime específico próprio com a estrutura de um crime de perigo concreto. Em função do tipo subjectivo enunciado no citado preceito legal, apenas será punível a conduta daquele que tenha agido dolosamente, que tem de abarcar para além da intervenção com violação das leges artis, o próprio perigo (para a vida, para o corpo ou para a saúde).

Expostas estas considerações de direito, cumprirá, pois, analisar o caso vertente.

Como acima se referiu, ao aderir ao juízo expresso na consulta técnica de fls. 635-640 e 666, impunha-se aos arguidos outra conduta que não a adoptada.

Julga-se, pois, que os arguidos não prestaram a PJM os cuidados médicos com a técnica mais apurada, de acordo com os processos e regras oferecidas pela ciência médica, conduta que viola as leges artis da sua profissão.

Mas, tal como supra se alertou, para que haja lugar à condenação pela prática do artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal, impõe-se ainda a presença do elemento subjectivo que, no caso vertente deverá incidir não só sobre a violação das leges artis, como também sobre a situação de perigo grave para o corpo ou para a saúde.

Sucede, porém, que no caso vertente e pese embora ter sido possível extrair a conclusão da existência de suficientes indícios de que arguidos agiram com violação das leges artis, já não será possível extrair tal juízo de suficiente indiciação probatória ao nível do elemento volitivo, em concreto que os arguidos tivessem agido com aquele intuito ou que representassem tal resultado como consequência possível da sua conduta.

Ficou, pois, por demonstrar uma actuação dolosa [nem sequer eventual] quanto à realização do resultado decorrente da violação das leges artis, sendo certo que, em face dos elementos do processo, antes se afigurará que a indiciada conduta dos arguidos poderia ser unicamente subsumível, ao elemento subjectivo, no plano da negligência.

Ora, estando salvaguardada a punição do agente do crime previsto no artigo 150.º, n.º 2 do Código Penal somente a título doloso e não estando reunido o elemento subjectivo, tal implicaria a absolvição dos arguidos, caso estes fossem sujeitos a julgamento, pelo que, nos termos do artigo 308.º, n.º 1, parte final, será, em conformidade, proferido despacho de não pronúncia.

V. DISPOSITIVO:
Nestes termos e demais de direito, por considerar que da prova recolhida nos autos não existem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos arguidos BB, RM e FM é proferido despacho de não pronúncia.

(…) custas do procedimento criminal a suportar pela assistente, nos termos do art. 515, nº 1 , alínea a) do Código de Processo Penal, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta

III-Apreciação do Recurso

O objecto dos recursos é definido pelas conclusões formuladas pelos recorrentes na motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões dos recursos destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância da recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões dos recursos, as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação, entre esta e a decisão, do erro notório na apreciação da prova previstos no art. 410º do CPPenal e da impugnação da matéria não indiciada.

2ª- Dos indícios recolhidos na fase de inquérito e instrução.

3ª- Se há indícios da prática pelos arguidos do crime p. e p. no art. 150º nº 2 do CPPenal, nomeadamente se está indiciado o elemento subjectivo da infracção, o dolo.
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III-1ª- Dos vícios da contradição insanável entre a fundamentação, entre esta e a decisão, do erro notório na apreciação da prova previstos no art. 410º do CPPenal e da impugnação da matéria de facto.

Do art. 410º nº 2 do CPPenal resulta que, os vícios a que alude esta disposição devem “resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, pelo que estão vocacionados para a sentença. Ora, o recurso da decisão instrutória não se limita ao texto da decisão recorrida, antes pressupõe a análise desta e o seu confronto com todo o acervo indiciário recolhido em sede de inquérito e instrução, devendo proceder-se à respectiva análise e apreciação crítica.

Neste sentido, vide o Acórdão desta Relação de Évora de 03-07-2012, proferido no procº nº4016/08.0TDLSB.E1 onde se refere:« Ora, no recurso da decisão instrutória de não pronúncia do que se trata é precisamente de sindicar o juízo sobre provas (indiciárias) efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de julgar o texto em confronto com ou em conjunto com todos os indícios recolhidos na fase instrutória do processo (em sentido amplo de inquérito e instrução). E não, que se julgue o texto separado das provas. Assim mais do que uma proibição de aplicação do art. 410º nº 2 do CPPenal à decisão instrutória, do que se trata é de uma ausência de sentido útil e de coerência histórica e sistémica na convocação dos mecanismos nele previstos. A ratio do nº 2 reside na garantia do escrutínio (limitado) da decisão de facto, fora da possibilidade (ampla) do recurso da matéria de facto, dicotomia sem nenhum sentido na impugnação da decisão de não pronúncia, em que está sempre em causa a reavaliação total e ampla das provas indiciárias».

No mesmo sentido, se escreve no Ac. STJ de 20-06-2002 em que se considera que «os vícios do art. 410º nº 2 do CPPenal são vícios da sentença final e, só da matéria de facto”.

Quanto á impugnação da matéria de facto, relativamente aos factos não indiciados (dolo eventual) também constitui uma questão relativa à sentença e não à decisão instrutória.

Assim sendo, improcedem os vícios invocados e a impugnação dos factos não indiciados, o que não obsta à análise da decisão impugnada, de acordo com todos os indícios recolhidos em inquérito e na instrução.

III-2ª- Dos indícios recolhidos na fase de inquérito e instrução.
Quanto aos indícios recolhidos, relativos à entrada de PJM no Hospital de Santo António consta da acusação e dos factos indiciados do despacho de não pronúncia o seguinte:

“PJM deu entrada no Hospital de Santo António pelas 16.42 horas do dia 3/7/2009, apresentava-se com febre e sudorese marcada, taquicárdico, não despertável à chamada, olhos desviados para cima e para a direita, com movimentos tipo «roving», pupilas pequenas, reactivo à dor assimetricamente, mobilização dos 4 membros, com tendência à postura rígida, rigidez da nuca, com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular, hematoma e escoriações no cotovelo, coxa e joelho direito e antebraço esquerdo”.

Estes factos correspondem, na íntegra, a parte do terceiro parágrafo fls. 512 vº do relatório pericial realizado ao ofendido no dia 17.02.2012, mas da análise do relatório completo de episódio de urgência de fls. 320 a 323, resulta que as referidas lesões não foram detectadas, pelas 16 42h, quando PJM deu entrada no hospital, mas posteriormente, por isso, importa anotar a hora em que foram visíveis as lesões em causa e ainda o teor das anotações efectuadas pelos primeiros médicos, que o observaram no HSA.

Assim, antes dos factos acima referidos passarão a constar do despacho de não pronúncia, os factos relativos à entrada e às primeiras observações médicas de PJM e a seguir a cada uma das lesões, a hora em que foram detectadas e que são os seguintes:

“PJM deu entrada no Hospital de Santo António pelas 16.42 horas do dia 3/7/2009 e foi levado ao serviço de urgência, na triagem foi-lhe colocada pulseira amarela.

O doente foi observado pela médica no dia 3.07.2009, pelas 22.02 horas e foi pedido um RX Tórax com uma incidência e às 23.16 horas uma ecografia abdominal superior. Às 00:59 horas do dia 4 de Julho de 2009 a médica do doente anotou. “de qualquer forma a hipótese + provável parece-me ser intoxicação (neurolépticos?/drogas de abuso?) de excluir infecção nomeadamente do SNC.

PJM apresentava-se com febre e sudorese marcada, taquicárdico (às 00:48 h de 4/7/2009); não despertável à chamada, olhos desviados para cima e para a direita, com movimentos tipo «roving», pupilas pequenas, reactivo à dor assimetricamente (MS Esquerdo melhor que Dto em flexão e MI em flexão) RCP com resposta em extensão à dta e dúvidas à esquerda. Rigidez nucal. Equimose na coxa direita (….) Para TAC CE e PL (às 00: 32h de 4/7/2009); À admissão: olhos fechados que não abre à chamada, não verbaliza, localiza a dor, mobilização dos 4 membros, com tendência à postura rígida, rigidez da nuca (às 00:48 de 4/7/2009); com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular (à 01:34), hematoma e escoriações no cotovelo, coxa e joelho direito e antebraço esquerdo (às 01:38) ”.

III- 3ª-Se há indícios da prática pelos arguidos do crime p. e p. no art. 150º nº 2 do CPPenal, nomeadamente se está indiciado o elemento subjectivo da infracção, o dolo.

Dispõe o art. 150º do C.Penal sob a epígrafe, Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos:

“1. As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não constitui ofensa à integridade física.

2. As pessoas indicadas no número anterior, que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal”.

Do nº 2 deste preceito resulta que os elementos constitutivos do crime são: a) a intervenção de um médico ou de pessoa legalmente autorizada; b) a execução de tratamento ou outro tipo de intervenção; c) que a actuação seja destinada a prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental; d) com violação das leges artis; e) que se provoque perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde; f) o dolo em qualquer das suas formas, nomeadamente eventual, isto é, os arguidos terem agido deliberada e conscientemente, tendo representado como consequência possível do facto da não realização do TAC, a criação de perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, que representaram como possível e com a qual se conformaram.

Os elementos constitutivos do crime referidos de a) a e) resultam da matéria indiciada, por isso, há que apurar se está preenchido o elemento subjectivo da infracção, que constitui a questão principal do recurso, já que os recorrentes consideram que os arguidos agiram com dolo na forma eventual, enquanto o Mmo Juiz de Instrução não pronunciou os arguidos por falta deste elemento.

O dolo é constituído por dois elementos, o intelectual e o volitivo. O elemento intelectual consiste no conhecimento por parte do agente dos elementos do crime e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que o dolo será directo, necessário ou eventual, conforme o facto surja como meio necessário, consequência necessária ou como consequência possível da satisfação do móbil do agente, respectivamente.

O dolo é um facto interior da vida do agente, um facto subjectivo que, por isso não é directamente apreensível por terceiro, o que significa que a sua indiciação probatória não pode ser feita através de prova testemunhal. Assim, sobretudo quando não exista confissão do arguido, a prova do dolo é feita por inferência, através de factos materiais, nomeadamente os que integram os elementos objectivos do crime, conjugados com as regras da normalidade e da experiência.

Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto, de 04/05/94: “O dolo não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só pode ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência comum que permitam inferi-lo a partir dos factos materiais comuns entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção”.

Quanto ao crime em causa nos autos, o dolo será directo quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo, actuando com intenção de criar este perigo (art. 14º nº 1 do CP). Será necessário, quando o agente representa a violação das leges artis e o perigo como consequência necessária da sua conduta (art. 14º nº 2 do C.P). Haverá dolo eventual quando o agente representa como possível a violação das legis artis e a criação do perigo, para a vida do ofendido conformando-se com a verificação de tais factos (art. 14º nº 3 do CPenal).

“Exige-se, assim, que o arguido conheça e deseje a violação das leges artis e para além disso, conheça e deseje a criação de perigo, ou seja, o dolo imposto pela norma (para a qual basta o dolo eventual) deverá revelar-se a dois níveis: primeiro na própria violação das leges artis; depois na criação do perigo a que a norma se refere. Neste sentido, vide “Do ato médico ao problema jurídico”, de Vera Lúcia Raposo.

Os arguidos não admitiram que violaram as legis artis, nem que com as suas condutas tenham representado a criação de perigo para a vida ou de grave ofensa para o corpo e saúde do ofendido.

Impõe-se, assim, a análise dos factos indiciados em conjugação com as regras da normalidade e da experiência.

Está indiciado que, PJM compareceu no dia 2-07-2009, pelas 9,50h no serviço de urgência do Hospital José Joaquim Fernandes em Beja e queixava-se de dor epigástrica, acompanhada de mal-estar e tremores, desde há meses, referiu ter sido toxicodependente e alcoólico, foi-lhe prescrita a medicação devida e teve alta; pelas 19.50 do mesmo dia foi encontrado caído à porta do apartamento onde residia em Beja, tendo dado entrada no Serviço de Urgência pelas 19.50 h e apresentava-se confuso, sonolento, agitado, tendo sido observado pelo arguido RM que verificou que ele tinha uma pequena ferida no couro cabeludo, que não valorizou este ferimento tendo ponderado a hipótese de intoxicação alcoólica ou estupefacientes, efectuadas análises à urina apurou-se a presença de canabinóides e benzodiapezinas, medicou-o e como se mantinha o estado de agitação enviou-o para o Curry Cabral para avaliação em psiquiatria.

No Curry Cabral foi observado pela arguida FM que diagnosticou síndrome de abstinência alcoólica, tendo PJM sido imobilizado em maca, em sono profundo e reenviado para Beja. A arguida também não valorizou o ferimento, nem a circunstância daquele ter sofrido uma queda.

O arguido BB entrou no serviço de urgência do hospital de Beja pelas 8.00h, do dia 3-7-2009, tendo recebido o turno do arguido RM, que o informou da situação de PJM. O arguido observou PJM, verificou que este continuava vigil, mas confuso e com períodos de agitação, não viu qualquer lesão física, após o que o enviou para o Hospital de Santo António do Porto, o da área da sua residência, com o seguinte diagnóstico de saída: «psicose não orgânica tipo agitado».

PJM deu entrada no Hospital de Santo António pelas 16.42 horas do dia 3/7/2009 e foi levado ao serviço de urgência, na triagem foi-lhe colocada pulseira amarela. O doente foi observado pela médica no dia 3.07.2009, pelas 22.02 horas e foi pedido um RX Tórax com uma incidência e às 23.16 horas uma ecografia abdominal superior. Às 00:59 horas do dia 4 de Julho de 2009 a médica do doente anotou. “de qualquer forma a hipótese + provável parece-me ser intoxicação (neuralépticos?/drogas de abuso?) de excluir infecção nomeadamente do SNC.

PJM apresentava-se com febre e sudorese marcada, taquicárdico (às 00:48 h de 4/7/2009); não despertável à chamada, olhos desviados para cima e para a direita, com movimentos tipo «roving», pupilas pequenas, reactivo à dor assimetricamente (MS Esquerdo melhor que Dto em flexão e MI em flexão) RCP com resposta em extensão à dta e dúvidas à esquerda. Rigidez nucal. Equimose na coxa direita (….) Para TAC CE e PL (às 00: 32h de 4/7/2009); À admissão: olhos fechados que não abre à chamada, não verbaliza, localiza a dor, mobilização dos 4 membros, com tendência à postura rígida, rigidez da nuca (às 00:48 de 4/7/2009); com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular (às 01:34), hematoma e escoriações no cotovelo, coxa e joelho direito e antebraço esquerdo (às 01:38).

Foi realizada uma TAC e PJM apresentava as lesões acima descritas, pelo que foi submetido a intervenção cirúrgica. Sofreu traumatismo crânio-encefálico, com hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital, com hematoma retroauricular, fractura craniana, e hematoma e escoriações no cotovelo e coxa direita, joelho direito e antebraço esquerdo. Correu risco de vida.

Como resulta do parecer técnico-científico elaborado pelo INML, constante de fls. 635 a 640, do esclarecimento adicional de fls. 666 e da audição em audiência do Drº CD, subscritor do parecer, os arguidos não prestaram os cuidados médicos a PJM, de acordo com os processos e a técnica mais apurada, uma vez que lhes era exigível que tivessem ordenado a realização de um TAC em Beja ou no Curry Cabral, tendo em conta que PJM tinha estado numa consulta de manhã naquele hospital e apresentava-se assintomático. Pelas 19 h50, volta ao hospital e uma vez que tinha caído, apresentava uma ferida no couro cabeludo e estava confuso, sonolento e agitado, isto é, com o estado de consciência alterado.

Deste modo, os arguidos violaram as leges artis que constituem o “conjunto de regras recomendadas pela ciência, pela técnica e pelos cuidados gerais aplicáveis à classe profissional respectiva, resultantes da experiência – regulamentadas ou não – indicadora do modo tecnicamente mais adequado e diligente à prestação dos cuidados devidos no desenvolvimento da assistência médica(vide Fernanda Martins, A Responsabilidade Penal do Cirurgião Plástico e a Conduta do Paciente, Centro de Direito Biomédico, 19, pág. 81)

Poderá a conduta dos arguidos ser-lhes assacada a título de dolo?

O dolo directo e necessário estão afastados, pelo que importa debruçarmo-nos sobre o dolo eventual.

Do facto dos arguidos terem violado as leges artes, não se pode concluir, sem mais, que representaram como possível que tinham de realizar o TAC e que se conformaram com a decisão de não o realizar e com as consequências que tal decisão podia acarretar, o perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde de PJM.

Em primeiro lugar, é certo que, PJM foi encontrado caído junto à porta do seu apartamento e foi conduzido às urgências do Hospital de Beja no dia 02-07-2009, pelas 19h50m e apresentava-se confuso, sonolento e agitado e com «uma pequena ferida no couro cabeludo», situação diferente daquela que apresentava quando foi consultado nas urgências naquele dia pelas 9.50. PJM fez análises à urina que apresentavam canabinóides benzodiapezinas. Perante este facto, e dado que apresentava uma pequena ferida no couro o arguido RM não colocou a hipótese de ser estar perante um traumatismo crâneo encefálico para explicar o quadro clínico de PJM, mas sim, perante uma causa de origem psíquica, motivo pelo qual o enviou para ser consultado no Curry Cabral pelo psiquiatra, dado que no Hospital de Beja não existia esta especialidade, pelo que não ponderou a hipótese de ser necessário realizar a TAC.

Em segundo lugar, a arguida FM diagnosticou ao PJM a síndrome de abstinência alcoólica e dado que ele vinha sedado, não apresentava lesões físicas e não tinha nenhum indício de traumatismo não se lhe colocou a hipótese de ser necessário a realização da TAC. Por sua vez, o arguido BB examinou PJM não detectou lesões físicas, pelo que considerou que o quadro clínico de PJM era devido a causa psíquica, como se infere do diagnóstico de saída do Hospital de Beja para o Porto que indicou: «psicose não orgânica tipo agitado».

Na concepção dos arguidos, a necessidade de se proceder à realização da TAC não se lhes impôs, face à hipótese de diagnóstico colocada (psicose não orgânica).

Da mesma forma, na primeira avaliação realizada no Hospital de Santo António pela médica pelas 22:02 h e às 23:16, a hipótese de diagnóstico de traumatismo crâneo-encefálico também não foi colocada, o que se infere do facto de ter pedido outros exames complementares de diagnóstico, nomeadamente Rx tórax e uma ecografia abdominal superior e não a TAC.

Em terceiro lugar, não cremos que os arguidos com a sua actuação representaram como possível e aceitaram que o PJM corria perigo de vida, uma vez que no Hospital de Beja e no Curry Cabral apresentava «uma pequena ferida no couro cabeludo» situação que era completamente diferente das lesões que se constataram existir durante a noite no Hospital de Santo António, nomeadamente, foi observada uma equimose na coxa direita (00:32); um hematoma frontal direito, escoriações e hematoma no couro cabeludo na região temporo-parietal direita e occipital com hematoma retro auricular (01:34), e escoriações no cotovelo, coxa e joelho direito e antebraço esquerdo (01:38) lesões que são visíveis a olho nu.

Por fim, o dolo terá de basear-se em elementos objectivos e sólidos, dos quais seja razoável, de acordo com as regras da experiência e da normalidade, inferi-lo. Nos autos não detectamos elementos objectivos com as apontadas características e que permitam através daquelas regras concluir que os arguidos tenham representado como possível a violação das legis artis, a criação do perigo para a vida do ofendido e que se tenham conformado com tais situações, isto é, que agiram com dolo eventual.

Como consta do despacho recorrido, cremos que “a indiciada conduta dos arguidos poderia ser unicamente subsumível, ao elemento subjectivo, no plano da negligência”, mas dado que a conduta constante do art. 150º nº 2 do C.Penal só é punível a título de dolo, impõe-se manter a não pronúncia dos arguidos.

Nestes termos, eliminam-se da matéria indiciada os factos constantes dos últimos dois parágrafos.

IV- Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento aos recursos, confirmando-se a decisão de não pronúncia dos arguidos, quanto ao crime previsto no art. 150.º nº 2 do C.Penal, passando a constar da mesma, o aditamento que consta da questão nº III-2ª e eliminam-se da matéria indiciada os factos constantes dos últimos dois parágrafos.

Custas pela assistente com taxa de justiça que fixamos em 3 UCs.

Notifique

Évora, 21 de Fevereiro de 2017

(texto elaborado e revisto pelo relator)

José Maria Martins Simão
Maria Onélia Vicente Neves Madaleno