Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
435/19.5T8STR-A.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL DO TRABALHO
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I – Visando a autora com a ação a condenação da ré no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil, o facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.
II - A aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
B instaurou no Tribunal Judicial de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, com distribuição ao Juiz 3, ação declarativa com processo comum, contra CC – Companhia de Seguros, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe o montante global de 190.000€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento,
Alegou, em síntese, que o seu marido sofreu um acidente de trabalho em consequência do qual ficou a padecer de uma IPP de 15%, desde 8 de outubro de 2010, data da alta, sendo que a responsabilidade civil emergente do acidente de trabalho havia sido transferida para a aqui ré, pela entidade empregadora, tendo a seguradora sido condenada a pagar várias quantias àquele.
Mais alegou que posteriormente, em 13.04.2016, o seu marido requereu no respetivo processo judicial uma revisão da sua incapacidade, por ter sofrido um agravamento das lesões e sequelas resultantes do acidente de trabalho e, no seguimento de tal pedido de revisão, veio a determinar-se que o mesmo sofria de disfunção eréctil, tendo-lhe sido atribuída uma desvalorização de 0,03357.
Alegou, por último, que anteriormente ao acidente de trabalho, a autora e o seu marido tinham uma vida sexual ativa, satisfatória para ambos, e que mercê das lesões/ sequelas que afetaram aquele, a autora viu-se total e permanentemente privada da sua vida sexual, o que lhe causou os danos não patrimoniais que descreve e dos quais se quer ver ressarcida.
A ré contestou tendo invocado, além do mais, a incompetência material do Tribunal a quo, por considerar competente o Tribunal de Trabalho.
A autora pronunciou-se pela competência do Tribunal, dizendo que não é parte no acidente de trabalho.
Realizou-se a audiência prévia, sendo proferido despacho saneador que, além do mais, julgou improcedente a exceção de incompetência material e considerou competente para apreciar e decidir a ação o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Central Cível de Santarém).
É, justamente, esta decisão que a ré impugna por via do presente recurso, no qual pede a sua revogação e substituição por outra que considere incompetente, em razão da matéria, o tribunal recorrido.
Para demonstrar o mal fundado da decisão impugnada, a recorrente condensou a sua alegação nas seguintes conclusões:
«1. A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo A. na petição inicial.
2. Como decorre da douta petição inicial, a presente ação foi intentada na sequência da revisão de incapacidade que padece o cônjuge da A., fixada em 69,8781%, com IPATH, desde 20-01-2017, sendo que o cônjuge da A. foi desvalorizado, entre outros, pelo Capítulo III, n.º 5.2.6 a) da Tabela Nacional de Incapacidades –Disfunção eréctil – aprovada pelo DL 352/2007, de 23/10.
3. “A causa de pedir constitui a enunciação dos factos, com relevo jurídico, de que emerge o direito à tutela jurisdicional solicitada” (CPC Anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Vol. I, pág. 219, nota 11 ao art.º 186º).
4. Como decorre do art.º 18º da Lei n.º 100/97, a indemnização por danos não patrimoniais emergentes de acidente de trabalho só tem lugar quando o acidente provenha de culpa da entidade patronal ou do seu representante, nomeadamente por violação das normas de segurança, sendo regulada nos termos gerais do instituto da responsabilidade civil aquiliana, nomeadamente nos termos do artº 483º, nº 1 do Código Civil, danos cuja reparação nem sequer é da responsabilidade da seguradora de acidentes de trabalho, nem a título subsidiário e muito menos principal, como decorre do art.º 37º n.º 2 desse diploma.
5. De acordo com jurisprudência e doutrina de há muito consagrados, são cinco os pressupostos da responsabilidade civil, tal como a define o artº 483º, nº 1: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
6. A A. não alega quaisquer factos susceptíveis de integrar pelo menos dois destes pressupostos, nomeadamente o facto ilícito e o nexo de imputação à entidade patronal do seu cônjuge.
7. Assim, a causa de pedir na presente ação é unicamente o acidente de trabalho, pelo que, nos termos do artigo 126.º, alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, que compete aos Juízos do trabalho conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, devendo a pretensão da A. ser deduzida por apenso àqueles autos, nos termos do art.º 154º, nº 1 do CPT.
8. A incompetência material é exceção dilatória, de conhecimento oficioso e determina a absolvição da instância, nos termos dos art.ºs 99º, n.º 1, 577º, alínea a) e 578º do CPC, deverá o douto despacho saneador ser revogado, no segmento em que julgou o Tribunal materialmente competente e a recorrente absolvida da instância cm o que se fará a costumada Justiça!»
A autora contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se o Tribunal de que provém o recurso é ou não absolutamente competente, em razão da matéria, para conhecer do objeto da ação, como se entendeu no despacho saneador recorrido, ou se, ao invés, tal competência é do Tribunal de Trabalho, como sustenta a recorrente.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual a considerar para a decisão do recurso, são os que constam do relatório que antecede.

O DIREITO
A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais[1].
Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstrato ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fração do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou a determinação das causas que lhe tocam; em sentido concreto ou qualitativo, será a suscetibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa[2].
Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.»[3].
No caso em apreço, a questão suscitada tem a ver com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.
Dispõe o artigo 64° do CPC[4] que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», acrescentando o artigo 65°, do mesmo Código, que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».
Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer do Tribunal de Conflitos, quer do STJ, quer do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, sendo que em sede da indagação a proceder em termos de se determinar a competência material do tribunal é irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da ação, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão[5].
Nestas condições, importa recortar, com precisão, o efeito jurídico que a recorrente pretende obter com a ação e o ato ou facto – a causa petendi – de que, no seu entender, o direito indemnizatório alegado procede.
A autora/recorrida visa com a ação a condenação da ré/recorrente, no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil.
Escreveu-se na decisão recorrida:
«Da análise do pedido e da causa de pedir, não resulta que a A. configure a acção como emergente de acidente de trabalho, mas como de responsabilidade civil, em que o acidente de trabalho sofrido pelo marido fundamenta o pedido que deduz contra a seguradora responsável pelos danos decorrentes do acidente. Neste caso, afigura-se irrelevante os termos em que ocorreu o acidente de trabalho (já decidido no âmbito do processo próprio), mas apenas as sequelas que dele derivaram e que terão reflexo na esfera jurídica da A., e que serão geradoras de danos.»
Salvo o devido respeito, não é assim.
O facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é efetivamente o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.
Na verdade, percorrendo a petição inicial, verificamos que até ao artigo 20º a autora se limita a descrever o evento ocorrido com o seu marido e as circunstâncias que caracterizam o mesmo como acidente de trabalho, nos artigos 21º a 41º refere as repercussões que a incapacidade atribuída ao marido (disfunção eréctil) teve na relação do casal, e nos restantes artigos quantifica os danos alegadamente sofridos.
Ou seja, a autora peticiona uma indemnização por danos não patrimoniais que fundamenta nas lesões e sequelas sofridas pelo marido em consequência de acidente de trabalho, da responsabilidade da recorrente, sem que alegue um único facto ilícito gerador de responsabilidade civil nos termos do artigo 483º do Código Civil.
Não se trata aqui da análise de uma situação autonomizada – o direito de indemnização reclamado pela autora - em relação a toda a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho.
E que assim é, foi reconhecido pelo próprio Tribunal a quo, quando na audiência preliminar, a respeito da identificação do objeto do litígio, fez consignar que «[a] presente acção destina-se a responsabilizar a CC – Companhia de Seguros, S.A., pelos danos não patrimoniais causados em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima o marido (da autora), …, e que lhe causou disfunção eréctil» (sublinhado nosso).
Só assim se compreende, outrossim, que a autora tenha demandado a ré seguradora, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho.
Ora, a aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 30.04.2019[6], «[c]onsagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados».
O recurso merece, pois, provimento.

Sumário:
I – Visando a autora com a ação a condenação da ré no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil, o facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.
II - A aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se o Tribunal comum incompetente em razão da matéria para conhecer da ação, absolvendo-se a ré/recorrente da instância.
Custas pela recorrida, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
*
Évora, 19 de dezembro de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88 e 89.
[2] cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, p. 7, este último citado no acórdão do STJ de 30.04.2019, proc. 100/18.0T8MLG-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais adiante citados sem indicação de origem.
[3] cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 128.
[4] Em consonância, aliás, com o artigo 211º da CRP: «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.» «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
[5] Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, proc. 07/12 e os acórdãos do STJ de 13.03.2008, proc. 08A391, e 12.02.2009, proc. 09A0078.
[6] Citado supra (nota 2).