Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4036/18.7YIPRT.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: INJUNÇÃO
CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 10/02/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Sempre que ocorrer a transformação do procedimento de injunção numa acção de processo comum, quando a causa de pedir foi minimamente alegada, o Tribunal está vinculado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, por não se verificar concretamente uma situação de inexistência de causa de pedir e consequentemente de ineptidão da petição.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 4036/18.7YIPRT.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central de Competência Cível – J3
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
“(…) – Engenharia e Construção, Lda.” veio intentar contra “(…) – Sociedade de Administração de Bens Próprios, Lda.” um procedimento de injunção onde reclama o pagamento da quantia de € 60.871,97.
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Notificada, a requerida veio deduzir a sua oposição, apresentando ainda pedido reconvencional.
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Nessa sequência, a Autora apresentou articulado de réplica.
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No entendimento do Tribunal «a quo» «a falta de causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial (cfr. artigo 193º, n.º 2) leva à nulidade de todo o processo (cfr. n.º 1 desse artigo 193º do Código de Processo Civil) e, enquanto excepção dilatória (cfr. 288º e 494º, alínea b), do Código de Processo Civil), é fundamento, nesta fase, não para o indeferimento liminar da petição, uma vez que a requerida já foi citada (ou melhor, notificada), nos termos do artigo 234º-A, todos do Código de Processo Civil), mas para a absolvição da instância, nos termos do artigo 493º, n.º 2, do Código de Processo Civil».
Em função disso, decidiu absolver a requerida da instância.
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A sociedade recorrente não se conformou com a referida decisão e as alegações de recurso continham as seguintes conclusões:
A. Não se conformando com a douta Sentença, que julgou a petição inicial inepta, vem dela a Recorrente interpor o presente Recurso de Apelação com fundamento na violação dos artigos 7º e 17º, nº 3, do DL 269/98 de 1 de Setembro e 590º, nºs 2 e 4, do CPC, constituindo nulidade nos termos do artigo 195º do CPC.
B. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter considerado preenchidos os requisitos do procedimento especial de injunção intentado pela Recorrente, e, na sequência da oposição / contestação com pedido reconvencional deduzida pela Recorrida, a da réplica apresentada pela Recorrente, proceder ao agendamento da audiência de discussão e julgamento.
C. Ou, no limite, considerar a eventual deficiência da causa de pedir e convidar a Recorrente ao seu aperfeiçoamento.
D. Atenta a descrição efetuada pela Recorrente no requerimento de Injunção, e ao facto de a Recorrida ter apresentado a sua defesa, contestando os factos através de uma oposição e deduzindo ainda um pedido reconvencional, significa que teve perfeito conhecimento de fatos integradores da pretensão da aqui Recorrente, não poderia a Tribunal o quo decidir como decidiu.
E. No seu requerimento inicial/injunção a Recorrente indicou estarmos perante um contrato de “Empreitada”, e na descrição dos factos:
“1. A Requerente dedica-se, no âmbito da sua atividade, à construção civil, serviços de engenharia, compra e venda de imóveis, compra e venda de materiais de construção, realização de projetos de arquitectura e engenharia, importação e exportação, serviços de transporte de mercadorias, aluguer de automóveis, Fiscalização de obras.
2. No exercício da sua atividade, celebrou com a Requerida um contrato de empreitada para construção de uma moradia unifamiliar localizada em Vale (…), (…), Lagoa.
3. A Requerente executou os trabalhos/obras constantes das facturas que infra se discriminam e em função dos quais lhe assiste o direito ao pagamento dos montantes ali descritos:
- Factura FT 2017/15, emitida em 31/05/2017, vencida em 31/05/2017, no valor de € 77.728,15;
- Factura FT 2017/26, emitida em 31/07/2017, vencida em 31/07/2017, no valor de € 2.533,41;
- Factura FT 2017/27, emitida em 31/07/2017, vencida em 31/07/2017, no valor de € 16.979,63.
4. A Requerida foi interpelada para proceder ao pagamento dos valores em dívida.
5. Dos montantes que se encontram em dívida a Requerida apenas procedeu ao pagamento do montante de € 38.864,15.
6. Assim, deve a Requerida à Requerente a quantia total de € 60.871,97, composta por € 58.377,04, devida a título de capital, acrescido do valor dos juros de mora calculados desde a data de vencimento de cada uma das facturas até à presente data que resultam em € 2.301,93, com base nas taxas de juros legais aplicáveis às dívidas comerciais, assim como o valor da taxa de justiça para a entrada do presente requerimento, e o valor de € 40,00 devidos a titulo de indemnização pelos custos suportados com a cobrança de divida, cfr. art.º 7º do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio.
7. Ao valor em dívida acresce ainda o valor dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento”.
F. Da descrição supra concluiu o Tribunal a quo concluiu na Sentença proferida e ora em questão que “no caso concreto, a requerente limitou-se a dizer que celebrou contrato de empreitada para construção e que nem todas as facturas se encontram pagas. Nada mais alegou.”
G. Antes de mais, sempre se dirá que no seu requerimento inicial/injunção a Recorrente não alegou factos concretos e essenciais subsumíveis de integrarem a situação nas normas jurídicas definidoras do direito que pretende invocar!
H. Como se mostra claramente articulado o facto jurídico: a realização de trabalhos de construção a pedido da Recorrida.
I. E o mesmo não se reconduz a uma alegação genérica porquanto, tratando-se de uma exposição sucinta, a Recorrente invoca o facto principal, os trabalhos de construção de uma moradia unifamiliar a solicitação da Requerida / Recorrida.
J. Aliás, a Recorrente concretizou na sua réplica em que consistiram os trabalhos da construção da moradia unifamiliar prestados à Recorrida, isto é, especificou em que actividades concretas consistiram tais trabalhos, o que constitui uma ampliação fáctica ou concretização dos factos essenciais que já havia alegado no requerimento inicial.
K. Considerou ainda o Tribunal a quo que: “Nenhuma matéria de facto existe, neste caso. Por esta razão, defende este Tribunal há largos anos a presente posição, mais entendendo que, em situações em que falta totalmente a causa de pedir – não existe qualquer alegação fáctica – não é possível convidar ao aperfeiçoamento”.
Consideração essa que, ignorou os restantes factos explanados na injunção apresentada pela Recorrente.
L. Não só o Tribunal a quo não atendeu à integralidade dos factos e elementos constantes na injunção, ignorando parte deles, como ainda fez uma errada interpretação dos mesmos.
M. Julgou o Tribunal a quo a petição da Recorrente como inepta, nos termos do artigo 193º, nº 2, do CPC, levando à nulidade de todo o processado (cfr. n.º 1 do artigo 193º CPC) e, enquanto excepção dilatória (cfr. 288º e 494º, alínea b), do CPC), é fundamento, nesta fase, não para o indeferimento liminar da petição, uma vez que a Recorrida já foi citada (ou melhor, notificada), nos termos do artigo 234º-A, todos do CPC), mas para a absolvição da instância, nos termos do artigo 493º, n.º 2, do CPC.
N. Não poderia a ora Recorrente estar mais em desacordo, dado que, alegou factos essenciais que constituem a causa de pedir.
O. Parece também ter o Tribunal a quo ignorado a natureza do procedimento de injunção, enquanto providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do D.L. nº 269/98 de 01/09, conforme dispõe o nº 7 do Anexo ao referido diploma, bem como os requisitos de forma e conteúdo exigidos para o procedimento de injunção, designadamente no artigo 10º, nº 2, alíneas d) e e), do DL 269/98 de 01/09.
P. Não só a Recorrente expôs sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão, como formulou o pedido, discriminando sucintamente os factos, o valor de capital, juros e outras quantias.
Q. Pretensão que se traduz no pagamento de quantia devida pela Recorrida decorrente da realização dos trabalhos de construção de uma moradia unifamiliar efectuados pela Recorrente no âmbito do contrato de empreitada celebrado entre ambas.
R. Cumpriu a Recorrente com os requisitos, não só de forma e conteúdo, exigidos para a injunção como utilizou o meio legalmente previsto, ainda que facultativo, para exigir o cumprimento de obrigações emergentes de contrato.
S. Portanto, do teor da injunção decorrem cristalinamente os fundamentos principais do pedido da Recorrente, que assentam na invocação de haver efectuado os trabalhos de construção de uma moradia unifamiliar discriminados nas facturas que elencou, após solicitação pela Recorrida.
T. Terá de se concluir também a Recorrida compreendeu perfeitamente a pretensão, os fatos descritos pela Recorrente e o pedido efectuado, pois da oposição deduzida extrai-se que a Recorrida alega, inclusive, a prestação e execução dos trabalhos por parte da Recorrente à Recorrida, deduzindo um pedido reconvencional sobre os defeitos e erros de construção.
U. Tudo isto seriam questões a serem discutidas em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, o que veio o Tribunal a quo a impedir com a Sentença proferida.
V. Forçoso é também de concluir que o Tribunal a quo não poderia ter deixado de considerar que a Recorrida compreendeu a pretensão da Recorrente, pois tomou conhecimento da mesma, tendo, inclusivamente feito constar na Sentença: “Por outro lado, é certo que o requerido contestou”.
W. Não se compreende como pode o Tribunal a quo ter considerado que o requerimento intentado pela Recorrente padecia, por completo, de falta/omissão de causa de pedir.
X. Admitindo-se que a causa de pedir apresentada pela Recorrente pudesse ser insuficiente/deficiente, poderia e deveria o Tribunal a quo, convidar a Recorrente a aperfeiçoar a sua petição inicial, o que não fez.
Y. Face a todo o exposto supra, deve, a Sentença de que ora se recorre ser modificada no que concerne à ineptidão da petição inicial e à absolvição da Recorrida da instância.
Z. Deverá o Tribunal ad quem modificar a Sentença recorrida ordenando o prosseguimento dos autos com a marcação de Audiência de Discussão e Julgamento, ou, se assim não se entender, com o convite à ora Recorrente para aperfeiçoar a sua petição inicial.
AA. Caso decida em sentido oposto, estará em clara violação do disposto nos artigos 590º, nº 2 e 4, do CPC e do artigo 17º, nº 3, do DL 269/98, de 1 de Setembro.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a douta sentença proferida».
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Houve lugar a resposta da contraparte, que defende a manutenção da decisão proferida.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação da questão da existência (ou falta) de causa de pedir.
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III – Factos com interesse para a justa resolução do caso:
1 – “(…) – Engenharia e Construção, Lda.” veio intentar contra “(…) – Sociedade de Administração de Bens Próprios, Lda.” requerimento de injunção onde reclama o pagamento da quantia de € 60.871,97.
2 – O requerimento de injunção continha a seguinte factualidade:
“1. A Requerente dedica-se, no âmbito da sua actividade, à construção civil, serviços de engenharia, compra e venda de imóveis, compra e venda de materiais de construção, realização de projectos de arquitectura e engenharia, importação e exportação, serviços de transporte de mercadorias, aluguer de automóveis, Fiscalização de obras.
2. No exercício da sua actividade, celebrou com a Requerida um contrato de empreitada para construção de uma moradia unifamiliar localizada em Vale (…), (…), Lagoa.
3. A Requerente executou os trabalhos/obras constantes das facturas que infra se discriminam e em função dos quais lhe assiste o direito ao pagamento dos montantes ali descritos:
- Factura FT 2017/15, emitida em 31/05/2017, vencida em 31/05/2017, no valor de € 77.728,15;
- Factura FT 2017/26, emitida em 31/07/2017, vencida em 31/07/2017, no valor de € 2.533,41;
- Factura FT 2017/27, emitida em 31/07/2017, vencida em 31/07/2017, no valor de € 16.979,63.
4. A Requerida foi interpelada para proceder ao pagamento dos valores em dívida.
5. Dos montantes que se encontram em dívida a Requerida apenas procedeu ao pagamento do montante de € 38.864,15.
6. Assim, deve a Requerida à Requerente a quantia total de € 60.871,97, composta por € 58.377,04, devida a título de capital, acrescido do valor dos juros de mora calculados desde a data de vencimento de cada uma das facturas até à presente data que resultam em € 2.301,93, com base nas taxas de juros legais aplicáveis às dívidas comerciais, assim como o valor da taxa de justiça para a entrada do presente requerimento, e o valor de € 40,00 devidos a titulo de indemnização pelos custos suportados com a cobrança de divida, cfr. artigo 7º do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio.
7. Ao valor em dívida acresce ainda o valor dos juros vincendos até integral e efectivo pagamento”.
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3 – Notificada, o requerida veio deduzir a sua oposição, apresentando ainda pedido reconvencional.
4 – Nessa sequência, a Autora apresentou articulado de réplica.
5 – Fundado na falta da causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, o Juízo Central de Competência Cível de Portimão entendeu que ocorria uma nulidade de todo o processo, absolvendo o requerido da instância.
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IV – Fundamentação:
O Decreto-Lei nº 269/98, de 1/09, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei nºs 383/99, de 23/09, 183/2000, de 10/08 e 38/2003, de 17/02, define injunção como a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, tal como ressalta da simples leitura do artigo 7º do diploma em apreço.
Ao transpor para a ordem jurídica interna a Directiva 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho de 2000, o Decreto-Lei nº 32/2003 alargou o âmbito de aplicação do regime de injunção previsto no DL nº 269/98, estabelecendo medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais.
No domínio do conteúdo e da forma, no requerimento deve o requerente expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão, tal como proclama o nº 2 do artigo 10º do regime instituído pelo Decreto-Lei nº 269/98, de 01/09.
Na óptica do Tribunal de Primeira Instância «a exposição sucinta dos factos que à pretensão servem de fundamento, assume particular relevância, pois neles consiste a causa de pedir, susceptível de apreciação judicial no caso (como é o dos autos) de o procedimento se transformar em acção declarativa».
Ao analisar o conteúdo do requerimento executivo, o Julgador «a quo» defende que «a requerente limitou-se a dizer que celebrou contrato de empreitada para construção e que nem todas as facturas se encontram pagas. Nada mais alegou.
Por outro lado, a alegação dos factos integradores de uma determinada pretensão não pode caber ao requerido. A este apenas cabe defender-se».
Para tanto fundamenta a sua posição nos ensinamentos de Alberto dos Reis[1], de Salvador da Costa[2] e de Miguel Teixeira de Sousa[3], bem como na jurisprudência que entendeu ser pertinente para a justa resolução do caso[4].
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Aquilo que se pergunta é se a factualidade descrita no ponto 2 dos factos com interesse para a justa resolução do caso é suficiente (caso em que se deve revogar a decisão recorrida), se a descrição fáctica contém insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto, por nela não se encontrar articulados todos os factos principais (circunstância em que se justificaria a emissão de um despacho de aperfeiçoamento) ou se, efectivamente, não foi concretizada a causa de pedir (hipótese em que a decisão proferida se mostra conforme às exigências processuais legais)?
Esta questão entrelaça a matéria da causa de pedir com os princípios do dispositivo e da controvérsia precipitados no artigo 5º do Código de Processo Civil e com o alcance do ónus da substanciação e dos poderes investigatórios do Tribunal.
A ineptidão da petição inicial, embora seja uma excepção dilatória, gera a anulação de todo o processado. De acordo com a tese da substanciação, que o actual Código de Processo Civil acolhe, a causa de pedir é formada por factos sem qualificação jurídica, ainda que com relevância jurídica[5].
A causa de pedir desdobra-se, analiticamente, em duas vertentes: a) uma factualidade alegada, que constitui o respectivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota; b) uma vertente normativa significante na perspectiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico, ao abrigo do preceituado na 1ª parte do artigo 664.º do CPC [a que corresponde o actual artigo 5º do NCPC]; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta[6].
Relativamente à falta de causa de pedir o vício em discussão apenas ocorre quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer[7].
A ineptidão da petição inicial fundada na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir poderá ocorrer, na visão de Remédio Marques[8], quando «o autor substancia e não identifica em concreto os factos que servem de fundamento ao pedido de condenação».
A ineptidão sobrevém quando não pode saber-se «qual a causa de pedir, ou, por outras palavras, qual o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para enunciar o seu pedido»[9].
Alberto dos Reis sublinha ainda que «o que interessa, no ponto de vista da apresentação da causa de pedir, é que o acto ou facto de que o autor quer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição»[10], adiantando ainda que «a petição pode ser redundante e difusa, pode conter factos e razões de direito impertinentes e desnecessários para o conhecimento da acção, sem que isso resvale na ineptidão»[11].
Em sentido idêntico se pronuncia Abílio Neto que avaliza a tese que só a omissão total do pedido ou da causa de pedir ou a sua formulação em termos de tal modo obscuros que não se compreenda qual a tutela jurídica pretendida pelo autor ou o facto jurídico em que alicerça o pedido, que não a mera imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência, constitui vicio gerador de ineptidão[12].
De acordo com o ensino de Anselmo de Castro para que «a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – artigo 193º, nº 2, al. a)[13] – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento»[14].
A jurisprudência nacional afirma consensualmente que há falta de causa de pedir quando não são alegados os factos em que se funda a pretensão do autor; há insuficiência da causa de pedir quando aqueles factos são alegados, mas são insuficientes para determinar a procedência da acção[15]. Isto é, a petição inicial apenas é inepta, por falta de causa de pedir, quando o autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão[16].
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O requerente de uma injunção não está dispensado de invocar, no requerimento, os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, certo que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves e, como a pretensão do requerente só é susceptível de derivar de um contrato ou de uma pluralidade de contratos, a causa de pedir, embora sintética, não pode deixar de envolver o conteúdo das respectivas declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do seu incumprimento por parte do requerido[17].
Este apelo ao regulamento negocial combinado é assumido pela jurisprudência nacional como um dos factores essenciais a enunciar na descrição fáctica de um requerimento de injunção fundado no incumprimento contratual num acordo de empreitada[18] [19].
Tendo a sociedade Autora invocado a celebração com a Ré de um contrato de empreitada, cujo preço não se encontra integralmente pago, constituem elementos essenciais da causa de pedir o acordo sobre a realização de certa obra (resultado), mediante o pagamento de um preço, ainda que este seja apenas determinável.
A densidade da factualidade relevante poderá variar em função da natureza do objecto e da sua aptidão económica[20]. E da análise do requerimento inicial verifica-se que, na generalidade, os factos essenciais se encontram reflectidos no enunciado da acção (celebração de um contrato de empreitada em que o preço não se encontra integralmente satisfeito), mas a mesma factualidade não está completa ao nível da descrição sumária do regulamento contratual ajustado, admitindo-se ainda que a relação das obras realizadas pudesse ser mais exaustiva.
É seguro que este elemento constitutivo não pode ser substituído pela simples remissão para o conteúdo das facturas, pois as mesmas nem sempre reproduzem o sentido vinculante do acordo celebrado e têm uma vocação essencialmente contabilística e fiscal, sem embargo da sua configuração prioritária como meio de prova.
Assim, mesmo à luz do novo paradigma do Código Processo Civil, que se encontra impresso no artigo 5º, nº 2 – e da distinção legal entre factos essenciais, complementares e instrumentais ali contida [21] [22] [23] [24] –, com referência ao princípio da aquisição processual precipitado no artigo 413º do Código de Processo Civil e ao disposto no artigo 512º do mesmo diploma, os factos notórios e instrumentais que viessem a ser apurados em sede de audiência poderiam não ser bastantes para completar o silogismo jurídico proposto pela parte activa.
E, assim, apesar da natureza sucinta do procedimento, o requerimento de injunção nunca pode abdicar da enunciação acabada dos factos que integram a causa de pedir. E, por conseguinte, como sucede no caso dos autos, sempre que ocorrer a transformação do procedimento numa acção de processo comum, quando a causa de pedir foi minimamente alegada, o Tribunal está vinculado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados.
O Tribunal entendeu que nas «situações em que falta totalmente a causa de pedir» não é admissível a possibilidade de aperfeiçoamento. E concordamos com esta tese[25] [26]. Porém, na hipótese concreta, a descrição fáctica apenas contém insuficiências ou imprecisões na exposição ou na concretização da matéria de facto, por nela não estarem presentes todos os factos principais constitutivos da obrigação e isto dita o recurso a simples despacho de aperfeiçoamento e não à declaração de nulidade de todo o processado, com a consequente absolvição da instância.
A jurisprudência tem vindo a entender que a omissão do despacho ao convite ao aperfeiçoamento é uma irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa. E, assim sendo, revoga-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que, não julgando inepta a petição, ordene o prosseguimento dos autos, com a emissão de um despacho de aperfeiçoamento ao abrigo dos poderes de gestão provisionados no artigo 590º[27] do Código de Processo Civil.
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IV – Sumário:
1. O regulamento negocial combinado é um dos factores essenciais a enunciar na descrição fáctica de um requerimento de injunção fundado no incumprimento contratual num acordo de empreitada.
2. Sempre que ocorrer a transformação do procedimento numa acção de processo comum, quando a causa de pedir foi minimamente alegada, o Tribunal está vinculado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, por não se verificar concretamente uma situação de inexistência de causa de pedir e consequentemente de ineptidão da petição.
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso apresentado, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra em que, não julgando inepta a petição, se ordene o prosseguimento dos autos, com a emissão de um despacho de aperfeiçoamento ao abrigo dos poderes de gestão do artigo 590º do Código de Processo Civil.
Custas do presente recurso a cargo da parte vencida a final – e na respectiva proporção, se for o caso –, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 02/10/2018
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
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[1] No Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 370, o referido autor afirma que não pode a requerente limitar-se a formular um pedido, tem de indicar a fonte desse direito, o facto ou acto de que, no seu entender, o seu direito procede.
[2] Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 146, defende que «o que verdadeiramente releva como causa de pedir é a descrição da origem do direito de crédito invocado pelo requerente ou a permuta a que se reporta mas, contra a natureza das coisas, porventura sob o desígnio desajustado da máxima simplificação, o impresso só lhe reserva o espaço de sete linhas», adiantando ainda que «de qualquer modo, se o requerente não puder expor sucintamente os factos integrantes do contrato ou dos contratos em causa e da omissão relativa ao respectivo incumprimento no espaço que o impresso lhe reserva, então a solução não pode deixar de ser a de apresentar um requerimento autónomo, isto é, à margem do impresso legalmente definido».
[3] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex – Edições Jurídicas, Lisboa, 1996, página 304.
[4] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2004 e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/06/2011, ambos em www.dgsi.pt, citando este último os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22/06/2005, 24/02/2011 e 21/11/2006, acessíveis no supra mencionado sítio da internet.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a Teoria do Processo Declarativo, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, páginas 158.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/06/2010, in www.dgsi.pt.
[7] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/1974, BMJ, 235-310, de 26/02/1992, in www.dgsi.pt e do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/06/1985, in BMJ 348-479 e de 01/10/1991, in BMJ 410-893.
[8] Acção Declarativa à luz do Código revisto, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, página 276.
[9] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 1980, página 309.
[10] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, página 371.
[11] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, página 369.
[12] Breves Notas ao Código de Processo Civil, 2005, página 61.
[13] A que corresponde o actual artigo 186º do Novo Código de Processo Civil.
[14] Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, Almedina, Coimbra, 1982, página 221.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/02/2010, in www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/09/2016, in www.dgsi.pt.
[17] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/12/2004, in www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/10/2013, in www.dgsi.pt, refere que «a mera remissão para facturas emitidas e juntas é insuficiente (principalmente, quando as mesmas se ficam por uma descriminação vaga e genérica), uma vez que a causa de pedir é constituída pelos concretos negócios/contratos celebrados e não pelas facturas (que não passam de documentos para fins contabilísticos e fiscais)».
[19] No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/05/2014, in www.dgsi.pt, assinala que «uma factura não é, só por si, fundamento (causa de pedir) duma pretensão pecuniária, ainda que efectivada por intermédio de requerimento de injunção; em que, mesmo na injunção, a causa de pedir está no concreto negócio/contrato celebrado (que a factura se limita a documentar para fins contabilísticos e fiscais).
Sendo tal contrato de empreitada e pretendendo o empreiteiro o pagamento do preço da obra tem que alegar o regulamento contratual combinado (as obras a realizar e os preços combinados), após o que deve dizer quais foram exacta e concretamente os trabalhos/obras executados, em função dos quais (nos termos do regulamento contratual antes alegado) lhe assiste o direito ao preço/pagamento peticionado».
[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/06/2010, in www.dgsi.pt, citando Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, in RLJ Ano 124º, página 259.
[21] Isabel Alexandre, A Fase de Instrução no Processo Declarativo Comum, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex – Edições Jurídicas, Lisboa, 1997, pág. 280, que salienta que os factos que se pretendem provar podem ser factos instrumentais ou factos essenciais complementares ou concretizadores e, como tal, não terem sido alegados pelas partes nos articulados, atendendo a que o artigo 264º, nº 1 (a que corresponde actualmente o artigo 5º do Código de Processo Civil), apenas estabelece um ónus de alegação dos factos que integram a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as excepções.
[22] Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, pág. 201, advoga que «factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material», enquanto que «factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu».
[23] Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, pág. 52, que ensina que se tratam de factos que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.
[24] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2014, págs. 15 e 16.
[25] Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 06/11/2003, in www.dgsi.pt, que o poder-dever que ao juiz é atribuído pelo artigo 590º, nºs 2, al. b) e 4 [a actualização do artigo é aqui promovida], do Código de Processo Civil, de convidar as partes a suprir excepções dilatórias susceptíveis de sanação não é utilizável nos casos de ausência ou grave insuficiência de alegação da matéria de facto que se traduza na falta de indicação da causa de pedir.
[26] No mesmo sentido, podem ser consultados os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/01/2013 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/10/2016, in www.dgsi.pt.
[27] Artigo 590.º (Gestão inicial do processo):
1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de excepções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5 - Os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.