Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
371/13.9GBSSB.E1
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: DEMANDANTE CIVIL
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
MATÉRIA DE FACTO
PARTE CIVIL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1 - A demandante cível tem legitimidade para recorrer de facto na estrita medida em que esses sejam essenciais à eventual procedência do pedido cível, isto é, aos que digam respeito aos pressupostos de responsabilidade civil, mas que não colidam com a possibilidade de alterar a factualidade central penal, ao menos no que diz respeito à integração no tipo de ilícito e à culpa penal.
2 - Por isso se pode afirmar que falta legitimidade à demandante para impugnar os factos com reflexo na tipicidade, ilicitude e culpa penal se mantiver a simples qualidade de demandante civil e se, simultaneamente, não se constituir assistente.
3 - A não constituição como assistente tem, nestes casos, um claro peso negativo, mas aceite pelo legislador como uma consequência natural das opções do lesado. Trata-se de matéria de índole penal e com consequências penais. Se a recorrente optou por se não habilitar, via constituição como assistente, à discussão paritária da matéria penal, isso tem como consequência ser intocável, o objecto penal do processo.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 371/13.9GBSSB

Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Setúbal – Sesimbra, Sec. Comp. Gen., J2 - correu termos o processo supra numerado no qual foi julgado BB, …, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 alínea a) e 2 do Código Penal.
*
CC, ofendida, formulou pedido de indemnização civil, peticionando a condenação do arguido no pagamento da quantia de € 45.000 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros legais. Não se constitui assistente nos autos.
A final - por sentença lavrada a 07 de Fevereiro de 2018 - veio a decidir o Tribunal recorrido, julgar improcedente por não provada a acusação pública e, em consequência decidiu absolver o arguido BB da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º n.º 1 alínea a) e 2 do Código Penal. Mais decidiu julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante cível e, em consequência, absolver o arguido do pedido.
*
Inconformada, a demandante cível interpôs recurso, com as seguintes conclusões:
1º- Da matéria de facto assente como provada e não provada que decorre do texto da Douta sentença, entende a recorrente que:
2º - A sentença ora recorrida enferma de irregularidades processuais, nomeadamente, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação e valoração da prova.
3º - Contradição insanável entre a prova produzida e a decisão.
4º - O arguido praticou o crime pelo qual vem acusado, deve ser CONDENADO.
5º - Em virtude da vasta prova produzida, o Tribunal “ a quo” estaria limitado a Condenar o arguido.
6º - Como se não fosse suficiente, a Meritíssima Juíza do Tribunal “ a quo”, agiu de forma desproporcionada, tendenciosa e exagerada, no que tece as testemunhas arroladas pela Demandante, a Vitima, desvalorizando as declarações, a postura e as expressões, valorando apenas as testemunhas arroladas pelo arguido, estas ultimas que nada sabem ou presenciaram sobre os factos,
Contudo,
7º - Sempre a Meritíssima Juiz teve para com os Advogados presentes, Arguidos e restantes sujeitos processuais uma postura urbana e de enorme respeito a considerar.
8º - Somente no que tece as testemunhas arroladas pela Demandante e a esta ultima, cometeu a Meritíssima Juiz o exagero de tentar justificar o injustificável, desvalorizando nomeadamente o depoimento do filho de ambos, DD, que vivenciou, sofreu e ainda sofre com todos os traumas e episódios que lembra e outros que faz por esquecer, este o nosso profundo lamento.
Mais:
9º - Se Assim o podem admitir, a decisão não se pode sustentar face a suposições que suportam os factos que o Tribunal considerou não provados, o arguido teria que ser Condenado.
10º- Da análise dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido, resulta que nenhuma consegue com certeza identificar qualquer episodio, dado que nem tão pouco conviviam com o casal, com excepção dos familiares directos, Mãe e Pai do arguido que, sem qualquer duvida apenas abonam a seu favor.
11º - A Ofendida/Demandante/Vitima viveu anos obrigada a omissão do sofrimento causado pelo arguido na consequência da violência domestica, facto totalmente desvalorizado pela Meritíssima Juiz, chegando a mesma a estranhar o sentimento de revolta e raiva sentidos pela Demandante.
Mais ainda,
12º - A Ofendido disse de forma inequívoca tudo o que passou “nas mãos” do arguido, e ainda foi por isso, lamentavelmente, censurada.
13º - O arguido é um homem violento, possui diversas armas e intimidou e ameaçou a Demandante e o seu filho diversas vezes, ao longo de vários anos, e disso não restam dúvidas.
14º - A Meritíssima Juiz do Tribunal “ a quo” como já foi relatado no decurso da elaboração deste recurso, tentou demonstrar que as declarações das testemunhas arroladas pela Demandante não condiziam com a veracidade dos factos, nomeadamente o próprio filho das partes que vivenciou todo o “terror” de violências e ameaças.
Ora,
15º - Na verdade e na boa acessão da mesma, nada se passou da forma como a Meritíssima Juiz quis parecer.
16º - Assim sendo, jamais poderá ser dado como não provado, de forma objectiva, a pratica dos factos pelo arguido.
17º - Não restam duvidas da pratica e da culpabilidade, gravosa, pelo arguido, devendo o mesmo ser Condenado,
Contudo,
18º - O entendimento da Meritíssima Juiz do Tribunal “ a quo” não foi o mesmo, fundamentando a sua decisão com base na sua livre convicção.
Ora vejamos,
19º - Diz a lei criminal que a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do juiz. A livre apreciação da prova, que estrutura a formulação da convicção do julgador, o seu juízo crítico e rigoroso sobre toda a prova produzida em julgamento, não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e Imotivável. A valoração da prova para a convicção de condenação ou de absolvição tem de ser racional, objetiva e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos. Só assim permite ao julgador objetivar a apreciação dos factos para efeitos de garantir uma efetiva motivação da decisão.
20º - O juízo crítico e rigoroso sobre a prova e a sua ligação a cada facto a provar, sendo a tarefa mais difícil do julgador, é o momento determinante para termos uma decisão de qualidade. A fundamentação da matéria de facto, (provada ou não provada) e o grau de certeza e de convicção na motivação são os ingredientes indispensáveis de qualquer sentença. O que custa é arrumar os factos e valorar o grau de credibilidade da prova. Se assim agir qualquer juiz cumpre a sua missão, o que não foi o caso.
21º - A defesa considera que ficou provada a prática do crime pelo arguido, pelo qual vinha acusado, só podendo o mesmo ser CONDENADO.
22º - Na determinação da medida da pena, e para alem dos antecedentes criminais, o Tribunal deveria ter levado em consideração o tipo de crime, violência domestica, e a profissão desenvolvida pelo arguido, agente do … bem como ao uso diário de armas e a clara falta de segurança a que o mesmo estava obrigado.
23º - O arguido deve por tudo isto ser CONDENADO PELO CRIME DE VIOLENCIA DOMESTICA, P.P. pelo art. 152.º n.º 1 alínea a) e 2 do Código Penal,
Bem como, pelo pagamento à Demandante o valor referente ao pedido de indemnização civil, no pagamento da quantia de € 45.000 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros legais.
Tendo em consideração todo o exposto, sem prescindir do douto suprimento de Vossas. Exas. deve o presente recurso ser apreciado em conformidade, merecer provimento.
Revogar-se a douta sentença em crise na parte ao ora recorrente, apreciar a prova efetivamente produzida em julgamento e pela verificação da clara culpabilidade do arguido neste crime de violência domestica, Condenando sem qualquer duvida o arguido,
Ou,
Ordenar-se o reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do art.º 426º do CPP a fim de serem supridos os vícios.
Termos pelos quais deve ser concedido provimento ao presente recurso.
*
A Digna Procuradora-Adjunta junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, concluindo:
O Tribunal a quo, por sentença datada de 07.02.2018, absolveu o arguido BB da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, do Código Penal e do pedido de indeminização civil formulado;
Inconformada com tal decisão, a demandante civil interpôs o presente recurso;
Não assumindo a posição de assistente mas tão só de ofendida/demandante civil, não tendo a mesma legitimidade para pugnar pela alteração da matéria de facto fixada na sentença, pelo que se impõe a rejeição do recurso, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 401º, nº 1, alínea c), 414º, nº 2 e 420, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal;
(…)
Ainda que assim não se entenda, sempre o recurso deverá ser rejeitado nos termos das disposições conjugadas dos artigos 412º, nº 1, 2, 3 e 4 e 414º, nº 2, do Código de Processo Penal, uma vez que a Recorrente não observou o ónus da impugnação d efacto e de direito, a que estava legalmente vinculada, por se tratar, conforme a própria indicou, de recurso sobre a matéria de facto e de Direito;
Sendo certo que se limita a alegar que a prova produzida não foi bem valorada, que o arguido deverá ser condenado pela prática do crime de que vem acusado e que os factos julgados não provados deveriam ter sido julgados provados, sem que indique qualquer disposição legal que haja sido violada ou erradamente aplicada pelo Tribunal a quo ou quais as provas concretas que impunham decisão diversa da formulada no que respeita aos factos provados e não provados;
Ainda que o recurso interposto venha a ser apreciado, o que não se concede, sempre se dirá que o Tribunal a quo fez uma correcta, adequada e irrepreensível valoração da prova produzida, de acordo com o princípio estabelecido no artigo 127º, do Código de Processo Penal;
Encontrando-se a decisão devidamente fundamentada, conforme exigido pelo artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal;
Pese embora em sentido divergente daquele que a ora Recorrente pretendia;
A ora Recorrente não fez qualquer prova dos factos que alegou no pedido de indemnização civil que formulou, pelo que, ainda que a decisão tivesse sido no sentido da condenação do arguido, não deveria o pedido de indemnização civil proceder;
A douta sentença ora recorrida não merece qualquer reparo ou censura;
Por tudo, a decisão proferida e ora em crise deverá manter-se nos precisos termos em que foi proferida.
*
Respondeu igualmente o arguido, com as seguintes conclusões:
A. QUESTÃO PRÉVIA I (Recorribilidade da Sentença)
1. A Recorrente não foi admitida a intervir nos presentes autos como assistente, porquanto, em 10/07/2017, o Requerimento de Protecção jurídica, por si, formulado junto do ISS foi alvo de indeferimento e a mesma não procedeu ao pagamento da respectiva taxa de justiça (art. 8.º, n.º 1 do RCP), pelo que só foi admitida a sua intervenção enquanto Demandante Cível;
2. Atentando que, in casu, a Recorrente não detém a qualidade de Assistente, está-lhe vedada a possibilidade de alterar a matéria de facto fixada na sentença recorrida nos termos que pretende e que constituem o fundamento do recurso que interpôs;
3. Falta-lhe a legitimidade para recorrer da decisão penal e isso arrasta a ilegitimidade para todo o recurso, porquanto in casu não é possível autonomizar a matéria do recurso civil da do penal;
Isto é,
4. É apodíctico carecer a Demandante Cível de legitimidade para, assimetricamente à conformação do Ministério Público, vir discutir em sede recursiva o acervo factual virtualmente consubstanciador do tipo-de-ilícito criminal e/ou correspondente nexo de imputação subjectiva;
De salientar que,
5. Conforme resulta do disposto no n.º 3, do art. 414.º do CPC, a decisão do Tribunal a quo que admitiu o Recurso não vincula o Tribunal ad quem;
Assim sendo,
6. Nos termos expostos, considerando os fundamentos recursivos apresentados, sem autonomização da questão civil, carece a Demandante Cível de legitimidade para o recurso, impondo-se a sua REJEIÇÃO, por inadmissibilidade legal, nos termos conjugados dos artigos 401.º, n.º 1, alínea c), 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP, procedendo, assim, a questão prévia ora suscitada;
Porém,
Sem conceder,
7. Caso se entenda que a Recorrente tem legitimidade para recorrer da decisão sub judice nos termos em que o fez, sempre se dirá que, porque ocorreu absolvição penal, a procedência da impugnação da matéria de facto nunca poderá conduzir à revogação da decisão absolutória penal, como decorre do preceituado no art. 402.º, n.º 2, alínea c) do CPP, apenas permitindo que dos recursos interpostos por partes civis se extraiam consequências favoráveis e nunca desfavoráveis para o arguido;
8. (…) Pelo exposto, deverá SER NEGADO PROVIMENTO ao recurso interposto pela Demandante Cível, confirmando-se, na íntegra, a douta Sentença recorrida, como é de elementar Justiça!
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, e não desatendendo às razões invocadas, deve o presente Recurso:
a) Ser REJEITADO, por inadmissibilidade legal (Falta de Legitimidade da Demandante Cível), nos termos conjugados dos artigos 401.º, n.º 1, alínea c), 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP
Caso assim não se entenda,
No que não se concede,
b) Ser REJEITADO, por inobservância da vinculação normativa prescrita no n.º 2 do art. 412.º do CPP;
Alternativamente,
c) Ser REJEITADO, por incumprido das exigências legais previstas no art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP;
Em caso de entendimento diverso,
E sem conceder,
d) Deve SER NEGADO PROVIMENTO ao recurso interposto pela Demandante Cível, confirmando-se, na íntegra, a douta Sentença recorrida!
*
A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
*
B - Fundamentação:
B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. A demandante cível CC e o arguido BB casaram no dia 15 de maio de 1999, tendo o casamento cessado por divórcio decretado por sentença proferida a 18 de novembro de 2013 e transitada em julgado a 18 de dezembro de 2013, proferida pelo 1.º Juízo de Família e Menores do Seixal.
2. Em resultado da união entre a demandante cível e o arguido nasceu, no dia 14 de Junho de 2000, DD.
3. O supra aludido casal residiu na habitação sita na … Corroios, Seixal, entre 1999 e 2005, sendo que passou a residir na residência sita na Rua …Quinta do Conde, a partir de 2006, juntamente com o filho menor do casal, e até ao dia 13 de janeiro de 2013, data em que a demandante cível CC saiu de tal residência e foi, inicialmente, após a separação, residir para junto da sua irmã …
4. Durante os catorze anos em que viveram juntos eram frequentes as discussões.
5. O arguido, por ser agente do “…”, possuía, pelo menos, duas armas de fogo.
6. Na sequência de uma discussão com a demandante cível o arguido destruiu uma porta do interior da residência dos pais da demandante cível.
7. No dia 19 de Abril de 2013, pelas 23 horas, a demandante cível CC deslocou-se até à residência sita na Rua … Quinta do Conde, a fim de tratar de assuntos relacionados com uma carta que havia sido enviada para a mesma pelo Tribunal, sendo que, nessa ocasião, a demandante cível já não se encontrava a residir na Quinta do Conde e deslocou-se ao local acompanhada pela sua irmã … e pelo filho da demandante cível e do arguido.
8. Em seguida, a demandante cível deslocou-se ao quarto onde se encontravam roupas que lhe pertenciam, com o propósito de retirar tais objetos pessoais do local, tendo o arguido ido atrás daquela.
9. Em circunstâncias concretamente não apuradas, a demandante cível empurrou o arguido, fazendo com que o mesmo se desequilibrasse e caísse em cima da cama, sendo que o arguido, de imediato, se levantou.
10. Posteriormente às circunstâncias de tempo vertidas em 7., mas em data não concretamente apurada, no parque de estacionamento que se situa em frente da agência “…”, na Quinta do Conde, após o arguido e a demandante cível terem estado a tratar de assuntos relacionados com a venda da moradia do casal na aludida agência, em circunstâncias concretamente não apuradas mas na sequência de a demandante cível ter dito ao arguido – através de expressões cujo teor não se apurou – que este não seria um bom pai, o arguido disse à demandante cível “Cobra! Má mãe”.
11. No dia 8 de Maio de 2015, à noite, junto à escola de futebol …imediatamente após ter terminado um treino de futebol do então menor DD, gerou-se uma discussão entre o arguido e a demandante cível.
12. O arguido conhecia e conhece a natureza do relacionamento que manteve com a demandante cível CC.
13. O arguido exerce funções de técnico-adjunto de …, auferindo mensalmente cerca de € 1300.
14. O arguido reside com a cônjuge e um filho menor em casa arrendada, pagando de renda a quantia de € 750.
15. A cônjuge do arguido exerce as funções de …, auferindo mensalmente cerca de € 1000.
16. O arguido efetua o pagamento de uma pensão de alimentos no montante de € 200.
17. Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.
*
B.1.2 - Factos não provados:
(…)
*
B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:
*
«IV. MOTIVAÇÃO:
(…)
***
Cumpre conhecer.
É sabido que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A requerente cível estende a sua inconformidade aos seguintes pontos, que são as questões colocadas ao labor deste tribunal:
a) - reparos à conduta da Mmª Juíza na pendência da audiência e pela sua análise da prova na sentença recorrida – conclusões 5ª, a 8ª, 14ª e 20ª, in fine;
b) - insatisfação quanto à apreciação da prova realizada pelo tribunal recorrido (que a recorrente apelida de “irregularidades processuais, nomeadamente, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação e valoração da prova”) - conclusões 1ª a 4ª, 9ª a 20ª;
c) - a pretensão de ver o arguido condenado pelo crime imputado – conclusões 21ª a 23ª;
d) - a procedência do pedido cível formulado – parágrafo posterior à conclusão 23ª.
*
B.2 – A primeira parte da insatisfação da recorrente, centrando na pessoa da Mmª Juíza o próprio do resultado do julgamento, é uma manifestação de uma absoluta inutilidade recursiva.
E as razões invocadas são de uma manifesta sem razão que apenas demonstra:
- a contradição do invocado nas conclusões 7ª e 8ª;
- a pretensão de limitar a liberdade da Mmª Juíza de fazer uma apreciação probatória que pudesse ser desfavorável à recorrente;
- o desejo implícito de que este Tribunal da Relação se deixe influenciar pelo ataque intuitu personae feito à Mmª Juíza.
De facto trata-se, em qualquer das agora indicadas conclusões, de uso de argumentum ad hominem (traduzível por “ataque pessoal”), que se concretizam num ataque à pessoa que usou um argumento e deixando-se incólume o argumento que ela apresentou.
Trata-se, pois, de uma falácia lógica. A falácia lógica dita ad hominem pode assumir várias formas. No caso trata-se de argumento ad hominem abusivo, consistindo este no evitar atacar a afirmação feita, limitando-se o “argumento” a atacar a pessoa que a proferiu.
Como se vê, trata-se de uma inutilidade recursiva. Não tem qualquer efeito útil para o recurso da requerente cível.
Acresce que, a entender existente qualquer violação de regra de produção probatória, deveria a recorrente ter deduzido recurso interlocutório sobre a matéria.
*
B.3 – A requerente cível deduziu pedido de indemnização civil mas não se constituiu assistente por falta de pagamento da respectiva taxa. [1]
Desta forma o recurso que interpôs entende-se limitado à matéria cível, por para mais lhe faltar legitimidade, como facilmente se deduz da letra e do espírito dos artigos:
- 74.º, nsº 1 e 2 do Código de Processo Penal ("Legitimidade e poderes processuais"): “2 - A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes”.
- 401.º Código de Processo Penal: "1 - Têm legitimidade para recorrer: c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas; (...)".
- e n.º 2 do artigo 400º: "Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada".
Ou seja, a demandante tem legitimidade para interpor o presente recurso, mas limitado à parte da decisão contra si proferida - ou seja, da absolvição do pedido cível - mas não tem legitimidade para recorrer da decisão no âmbito da matéria penal ou da que tenha consequências penais.
Esta simples asserção não origina grandes problemas de interpretação na delimitação do que seja matéria cível/penal relativamente a boa parte das matérias que podem ser objecto de recurso.
Mas suscita uma perplexidade nos casos, como o presente, em que a base de facto da decisão é a mesma, quer para a decisão penal, quer para a cível, ou nos casos em que uma parte, não obstante fundamental, dos factos impugnados tem relevância penal e cível.
Perplexidade que nem sempre é notada se houver simultaneidade de recursos a suscitar questões sobre ambas as matérias, cível e penal, por mais de um personagem processual, designadamente se ao recorrente, apenas demandante cível, se juntarem o Ministério Público, e/ou o assistente e/ou o arguido.
Mas não havendo mais recursos, para além do recurso de demandante cível, aquela perplexidade ganha outros contornos e levanta várias dúvidas: pode o demandante interpor recurso sobre toda a base de facto, incluindo sobre a que tem apenas ou também tem reflexos penais? Não obstante a inacção de Ministério Público, assistente e arguido? E não terá já ocorrido caso julgado penal relativamente a estas personas processuais?[2]
E pode um demandante cível alterar o resultado final do pleito penal através do “seu” recurso cível? Pode, em alternativa envergonhada, alterar-se a matéria factual relativamente ao crime, designadamente a integradora do tipo de ilícito e culpa, e decretar que tais alterações apenas valem para a matéria cível, criando dessa forma uma contradição de julgados no interior do processo, da própria decisão?
A resposta parece-nos ser, sempre, de evidência negativa.
Admite-se, no entanto, que a demandante cível tem legitimidade para recorrer de facto na estrita medida em que esses sejam essenciais à eventual procedência do pedido cível, isto é, aos que digam respeito aos pressupostos de responsabilidade civil, mas que não colidam com a possibilidade de alterar a factualidade central penal, ao menos no que diz respeito à integração no tipo de ilícito e à culpa penal.
Por isso se pode afirmar que falta legitimidade à demandante para impugnar os factos com reflexo na tipicidade, ilicitude e culpa penal se mantiver a simples qualidade de demandante civil e se, simultaneamente, não se constituir assistente.
A não constituição como assistente tem, nestes casos, um claro peso negativo, mas aceite pelo legislador como uma consequência natural das opções do lesado. Trata-se de matéria de índole penal e com consequências penais. Se a recorrente optou por se não habilitar, via constituição como assistente, à discussão paritária da matéria penal, isso tem como consequência ser intocável, o objecto penal do processo.
Daí que se possa desde já afirmar que a impugnação de factos dados como “não provados” e que, a darem-se como provados, tem reflexo crime, se devam considerar fora da legitimidade para a interposição de recurso neste caso concreto.
Nesta senda, de forma mais ou menos explícita, tem sido tornada pública vária jurisprudência, inclusive desta Relação.
Assim:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2003 (Proc. 03P619, rel. Cons. Lourenço Martins):
“I - O demandante civil, não constituído assistente, carece de legitimidade para recorrer da decisão penal que, por "arrastamento", traz a improcedência do pedido civil.
II - Não resulta da lei essa faculdade de recurso nem do sistema, na medida em que o papel do demandante civil, que não é assistente, se subordina, como regra, às posições tomadas pelos outros sujeitos processuais, salvo na parte da decisão contra si directamente proferida”.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2004 (Proc. 03P1801, rel. Cons. Henriques Gaspar):
“ III - …, o demandante civil não tem legitimidade para recorrer da matéria penal visando apenas a condenação do arguido, agora sem benefício da atenuação especial que foi aplicada.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-05-2005 (Proc. 942/05, rel. Belmiro Andrade)
“I - Tendo o arguido sido absolvido da acção penal, o lesado que formulou a sua pretensão indemnizatória no processo penal poderá discutir os pressupostos (fácticos e de direito) do direito invocado, na estrita medida necessária à cabal apreciação dos pressupostos da indemnização, com a restrição de que não podem ser desvirtuados os superiores interesses da acção penal, respeitando-se designadamente o princípio da proibição da reformatio in peius!”.
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-01-2006 (proc. 2461/05-1, relator F. Ribeiro Cardoso):
“1. Ao recorrente, intervindo na simples veste de demandado, falece o pressuposto processual de legitimidade para atacar os aspectos penais da condenação, pois, a lei não coloca ao alcance das suas prorrogativas processuais, o ataque – ao menos o ataque frontal – ao decidido em sede estritamente penal da sentença recorrida, com a qual o arguido se conformou.
2. Essa prorrogativa está reservada exclusivamente ao Ministério Público, aos assistentes e ao arguido condenado.
3. Ao demandado apenas assiste o direito de impugnar por via de recurso o segmento da sentença contra si proferida, que é, obviamente, a matéria relativa à indemnização civil - sua responsabilidade, prejuízos decorrentes do facto ilícito e quantum indemnizatório”.
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-03-2006 (Proc. 1563/05-1, rel. Ricardo Silva):
“II – Temos, assim, como primeira observação, que não se reconhece legitimidade para recorrer em matéria penal, ao ofendido ou queixoso, mas apenas àquele que se tiver constituído assistente.
III – Por outro lado, verifica-se que a lei separa a legitimidade do assistente, para o recurso da decisão contra si proferida – que não pode deixar de ser a de âmbito penal -, da do demandante civil, para o recurso da parte da decisão contra si proferida.
V – Assim às partes civis é assegurada a legitimidade para o recurso da parte das decisões contra si proferidas, tendo de entender-se que são decisões proferidas contra a parte civil as que se referem ao pedido civil e não outras.
VI – O que traz como sub corolário desta conclusão que quando o recurso civil tenha implícito o recurso em matéria penal, o recorrente, para ser parte legítima, terá de ter a dupla qualidade de parte civil e de assistente, pois que o artº 401º do CPP não consente outra interpretação ao ter diferenciado a legitimidade para recorrer do arguido e do assistente, por um lado, e da parte civil, por outro.
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-01-2010 (Proc. 142/06.9GAOFR.C1, rel. Elisa Sales):
“1. A legitimidade do demandante para recorrer, restringe-se à intervenção na prova do pedido de indemnização civil, não podendo questionar a parte penal da sentença recorrida.
2. Não pode o recorrente/demandante civil pretender a alteração da matéria de facto dada como não provada (a qual considera que deveria ser dada como provada) e, por via desta alteração a condenação dos arguidos pela prática dos crimes por que se encontravam acusados e, ainda em consequência da condenação penal, a sua condenação nos pedidos de indemnização civil deduzidos contra aqueles”.
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-12-2012 (Processo: 141/09.9GBSTC.E1, rel. Ana Bacelar Cruz):
“I. Não obstante o teor do n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal – onde se consagra que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado –, na situação dos autos, a improcedência da acusação penal não podia deixar de arrastar consigo o pedido de indemnização civil, face à identidade dos factos em que se alicerçam [a responsabilidade penal e civil] e ao teor dos que foram julgados como provados e não provados.
II. A lei apenas confere ao Ministério Público e ao assistente legitimidade para recorrer em matéria penal.
Em suma, a demandante cível não constituída como assistente pode impugnar a matéria de facto, desde que uma alteração a essa matéria de facto não tenha consequências na matéria penal já julgada e que não tenha sido objecto de recurso pelo Ministério Público, arguido e assistente.
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B.4 – Fazendo agora a aproximação ao caso concreto, que pode a recorrente impugnar em sede de matéria de facto?
Na medida em que os danos por si qualificados como não patrimoniais – ou seja, os constantes do factos não provados de a) a x) – integram a matéria penal em função das característica próprias do ilícito penal em presença, eles são por si intocáveis.
Algo diverso se diga do único dano patrimonial por si alegado, o constante do facto dado como não provado em y, despesas de cariz médico que, não obstante não concretizado, se presumem danos resultantes da prática criminosa imputada.
Tal dano, tal como está alegado e foi dado como não provado, nunca poderia – por absoluta indeterminação – ser dado como provado. Desconhecendo-se o tipo de danos alegados nunca seria possível fazer a destrinça entre danos resultantes da prática de um crime e outros danos de cariz médico. E como isso briga com a legitimidade da requerente para a interposição do recurso, a sua consideração fica vedada dada a indeterminação dos danos.
Mas aqui poderia conjecturar-se que o recurso não poderia ser objecto de rejeição por falta de legitimidade, sim por simples improcedência.
Acontece que o pedido formulado e a sua improcedência não permite ver verificado o primeiro dos requisitos previstos no artigo 400º, n.º 2 do C.P.P. na medida em que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido, o que não ocorre no presente caso.
Assim, sempre o recurso sobre a matéria cível se deve entender rejeitado.
Por isso que a pretensão da recorrente cível de ver o arguido condenado pelo crime imputado – conclusões 21ª a 23ª – e da procedência do pedido cível formulado – parágrafo posterior à conclusão 23ª – sejam matéria que se situa fora da sua possibilidade processual de recurso.
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B.5 – O âmbito da matéria restante, aquilo que no recurso da recorrente se poderia tratar como insatisfação quanto ao uso do princípio da livre apreciação da prova, também se situa igualmente fora da sua possibilidade de recurso, pois que toda ela diz respeito a matéria de facto com clara incidência na tipicidade, ilicitude e culpa penal, que afectaria o caso julgado já formado por ausência de recurso de quem tinha tal legitimidade, o Ministério Público e o arguido, sempre se adianta.
Aquilo que a recorrente apelida de “irregularidades processuais, nomeadamente, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação e valoração da prova” e “contradição entre a prova e a decisão”, mais não são que os vícios de conhecimento oficioso constantes do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, que se não descortinam na leitura da decisão recorrida.
Mesmo que fosse possível aceitar a possibilidade de a recorrente colocar em crise a matéria de facto penal, sempre nos depararíamos com a inexistência dos pressupostos processuais que permitem a impugnação dessa matéria de facto.
Recordemos que o recurso de facto – excluindo a invocação dos vícios da revista alargada (artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal), estes por simples referência ao texto da decisão recorrida – tem que se centrar na alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação (artigo 412º, nsº 3 e 4 do C.P.P.).
A recorrente pretende seguir a segunda via já que não invoca vícios de conhecimento oficioso e apresenta nas motivações razões com base na sua interpretação de declarações e depoimentos. Mas nesse caso impunha-se à recorrente o cumprimento do ónus de impugnação especificada contido nos números 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
A impugnação ampla da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, a incidir sobre os erros de julgamento e sobre a prova produzida em audiência de julgamento, apresenta quatro pressupostos essenciais e uma razão de ser. [3]
Assim, sistematizando, ao recorrente seria exigível que cumprisse os seguintes ónus processuais:
a) – A observância do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância – al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;
b) - A especificação das provas a atender - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;
c) - Que essas provas imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;
d) - Por referência ao consignado em acta, esta entendida em sentido amplo e aqui com o significado de “gravações” sonoras, com indicação concreta das passagens em que se funda a fundamentação, no caso de prova pessoal (por impossibilidade de ter acesso à oralidade e imediação) - nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Isto porque a reponderação de facto pela Relação se cinge a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso.
A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. Do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico. Motivo porque é inócuo pedir uma ilimitada, irrestrita, apreciação da prova, que constituiria um mero segundo julgamento.
Ora, no caso a recorrente – em absoluto - não cumpre nenhum dos ónus previstos nos nsº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, nem nas motivações, nem nas conclusões, o que tornaria o seu argumentário não passível de convite à correção.
Portanto, o recurso na parte em que invoca a existência de erro na apreciação da prova por impugnação ampla da matéria de facto sempre seria, igualmente, de rejeitar por manifesta improcedência.
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C - Dispositivo
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em rejeitar o recurso por falta de legitimidade da recorrente e por manifesta improcedência.
Custas pela recorrente, requerente cível, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) U.C.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 12 de Julho de 2018
João Gomes de Sousa (relator)
António Condesso

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[1] - Neste ponto seguiremos o acórdão por nós relatado nesta Relação de Évora a 16 de Abril de 2013 (proc. 1458/10.5PAOLH.E1).

[2] - Quase tudo é preferível – e por isso que se não use - ao aberrante conceito de “operadores judiciários”.
[3] - Seguimos aqui o já por nós relatado no acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Janeiro de 2010 (proc. 138/06.0GBSTR.C1) e noutros arestos desta Relação de Évora.