Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | ALBERTO JOÃO BORGES | ||
| Descritores: | DIFAMAÇÃO NÃO PRONÚNCIA | ||
| Data do Acordão: | 05/20/2014 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | I - O que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo país e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. II – Não primando pela cortesia ou dever de respeito que deve nortear as relações entre os cidadãos (incluindo entre os contribuintes e agentes da administração fiscal), a conduta do arguido não ultrapassa o âmbito da crítica – do serviço de finanças e do seu dirigente – crítica que é legítima, no contexto em que se insere, enquanto manifestação de indignação/desabafo, face à atuação daquele serviço de finanças. III – Por conseguinte, as expressões usadas pelo arguido na mensagem eletrónica enviada para o Gabinete do Sr. Ministro das Finanças, inseridas no RAI, não podem considerar-se, objetivamente, ofensivas da honra e consideração do assistente, pois que,de acordo com o sentimento da generalidade das pessoas de bem, não é razoável considerar-se que tais expressões, no contexto em que foram proferidas, mereçam qualquer juízo de censura por parte da comunidade e, por isso, sejam susceptíveis de pôr em causa a honra ou consideração devida ao assistente. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. No Tribunal Judicial de Santarém (JIC) correu termos o Proc. n.º 21/13.3TASTR (autos de instrução), no qual, na sequência da instrução requerida pelo assistente JM, melhor identificado a fol.ªs 2 destes autos, foi decidido não pronunciar o arguido A., também melhor identificado a fol.ªs 2 dos presentes autos, pela prática do crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180, 182, 184 e 184, todos do CP, que aquele lhe imputara no requerimento de abertura de instrução. 2. Recorre o assistente daquele despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões (fol.ªs 105 e 106): a) Consta da documentação junta aos autos que em 12.07.2012 o arguido enviou para o Gabinete do Sr. Ministro das Finanças uma msg electrónica (mail) subordinada ao título “Perseguição, roubo, coacção e extorsão praticados pelo Serviço de Finanças de Santarém”. Nesse mail o arguido profere, dentre outras, as seguintes afirmações, com referência ao ora recorrente, ao tempo Chefe do Serviço de Finanças de Santarém: - Desde há três anos que estou a ser perseguido pelo serviço de finanças de Santarém,…; - … se a postura desse serviço fosse informar em vez de desinformar…; - há dias mandaram-me um mail a exigir…, este acto ainda por cima cobarde…; - Este acto se fosse praticado por um criminoso comum chamar-se-ia tentativa de extorsão, praticado por um chefe de finanças chama-se como?!!!; - … Se andasse a roubar era chefe de finanças, não era empreiteiro! - … o Chefe de Finanças de Santarém tem interesse pessoal em sacar o máximo dinheiro possível, nem que seja com perseguição, coacção e extorsão! b) Em suma, o arguido afirmou que o ora recorrente persegue os contribuintes, é cobarde, pratica extorsão, rouba, persegue, coage, extorque. E todas estas afirmações foram produzidas contra este no exercício das suas funções públicas e por causa das mesmas. c) Assim os factos objetivamente constantes dos autos integram a prática de um crime de difamação, previsto e punível pelo artigo 180 do Código Penal, e porque o arguido quis dirigir-se diretamente ao ora recorrente, no exercício das suas funções e por causa das mesmas, o crime tem de qualificar-se necessariamente como agravado, nas condições previstas no art.º 184 do mesmo código. d) Infelizmente, não o entendeu assim o Sr. Juiz recorrido, porque confundiu órgãos da Administração Fiscal com os titulares desses mesmos órgãos. Para além disso, e erradamente, estribou-se no art.º 37 da Constituição, quando no concreto, e perante a tensão dialética dos direitos antagónicos em presença, a honra, o bom nome e a imagem do ora recorrente têm necessariamente de prevalecer, pois não se trata de uma figura pública e muito menos da área da política. e) Ao decidir por esta forma o tribunal recorrido contribuiu para a anarquia, para a destruição do tecido social, para o rompimento da precaríssima paz social que se vive na atualidade no nosso país, pois deu cobertura total aos desmandos injustificáveis e não motivados, perpetrados pelo arguido, apesar de p mesmo ter agido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que toda essa sua conduta era proibida por lei. f) Em face do exposto, verifica-se que os factos descritos integram a prática do crime de difamação previsto e punível pelo art.º 180 do Código Penal, agravado por força do disposto no art.º 184 do mesmo código. Cumulativamente, verificam-se os pressupostos para o pedido de indemnização civil então formulado, aquando do pedido de abertura de instrução. g) Deve revogar-se a decisão recorrida e substituir-se por outra que pronuncie o arguido pela prática de um crime de difamação agravado e admita o respetivo pedido de indemnização civil. 3. Responderam o Ministério Público junto da 1.ª instância e o arguido (A), concluindo a sua resposta nos seguintes termos: 3.1. O Ministério Público a) Os argumentos vertidos na douta decisão recorrida merecem o nosso aplauso e são pertinentes, pelo que a decisão recorrida, enquanto corolário lógico da argumentação expendida, tem a nossa concordância. b) As expressões concretamente utilizadas pelo arguido não são ofensivas da honra e consideração do assistente, pelo que nãos e encontra preenchido o elemento objetivo do crime de difamação. c) Deve, pois, ser mantida a decisão recorrida. --- 3.2. O arguido A.: a) Perante a factualidade provada nos sobreditos autos de instrução, e face à motivação da douta decisão recorrida e à sua fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica, constata-se que a mesma foi elaborada com criteriosa ponderação das circunstâncias assentes e sem qualquer reparo digno de registo, pelo que andou bem o Mm.º Juiz de Instrução quando decidiu não pronunciar o arguido A. pela prática do crime de difamação agravada que lhe é imputado nestes autos. b) E isto porque, perante as circunstâncias do caso in concretum, o confronto entre os princípios constitucionais in focu (entenda-se, entre o direito ao bom nome e à honra e, por outro lado, o direito à liberdade de expressão e informação), faz com que vença o direito que o contribuinte tem a reclamar perante órgãos públicos. c) O mesmo é dizer que, estando em causa um direito à reclamação de um contribuinte perante entidades públicas, a identificação das pessoas que fazem parte da “máquina” da Administração Fiscal resulta esbatida perante o interesse público da defesa do cidadão/contribuinte, não apresentando especial relevância o visado das expressões enquanto “pessoa humana” mas, outrossim, enquanto funcionário público. d) Pelo que, do que resulta dos autos, as afirmações do arguido não passaram de críticas objetivas à atuação de um serviço público e à legislação fiscal. e) Termos em que sempre haveria a considerar que os juízos de apreciação proferidos pelo arguido/recorrido – dirigidos ao chefe de finanças enquanto órgão da administração tributária (e não enquanto à pessoa do próprio) – seriam atípicos, por não ultrapassarem o âmbito da crítica objectiva, crítica que, no “horizonte de contextualização” resultante dos presentes autos (crítica/reclamação a um órgão tributário), é também patente que ela se situa na área do seu comportamento estritamente profissional e não atinge o núcleo da dignidade pessoal do chefe de finanças. f) Neste enquadramento qualquer desabafo – ainda que expresso de um modo menos adequado – não deverá considerar-se suficiente ou bastante para ofender a honra e a dignidade do ora recorrente, podendo, ainda, descortinar-se que, apesar de algum exagero linguístico, não existem expressões humilhantes ou susceptíveis de rebaixar a pessoa do assistente, e que, por isso, só por si, ficariam excluídas do tipo legal de crime a que respeita o crime de difamação agravado. g) Pelo que somos de concluir que bem andou a decisão instrutória ao não pronunciar A. pela prática do crime de difamação agravada dos art.ºs 180 n.º 1, 183 n.º 2, 184 e 132 n.º 2 al.ª l) do Código Penal. h) Nestes termos, deverá manter-se in totum o despacho de não pronúncia e, em consequência, serem os presentes autos arquivados. --- 3. Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 143 a 145). 4. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP), atenta a questão – única – colocada pelo recorrente nas conclusões do recurso, enquanto peça delimitadora do seu objeto, que é a de saber se a factualidade indiciada (que não vem questionada) preenche os elementos objetivos do tipo de crime imputado ao arguido. --- 5.1. Decorrida a investigação – na sequência da participação do assistente JM (fol.ªs 2 a 4) – veio o Ministério Público a ordenar o arquivamento dos autos, pelas razões que constam de fol.ªs 30 a 31 v.º, tendo então o assistente deduzido a acusação de fol.ªs 36 a 39, imputando ao arguido a prática de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180 e 184, ambos do CP, e deduzido pedido de indemnização civil. 5.2. Realizada a instrução e efetuado debate instrutório, foi proferida a decisão (de não pronúncia) que consta de fol.ªs 91 a 97, onde se escreveu: “… No caso dos autos os factos objetivos imputados ao arguido não estão em discussão, sendo suficientemente provados pelo documento de fol.ªs 8 e 9 e confessados pelo arguido nas suas declarações (fol.ªs 22)” – tais factos, tal como constam do requerimento de abertura de instrução/acusação, consistem numa msg electrónica (mail) enviada para o Gabinete do Sr. Ministro das Finanças, na qual, sob o título “Perseguição, roubo, coacção e extorsão praticados pelo Serviço de Finanças de Santarém”, o arguido escreveu, entre outras, as seguintes afirmações, com referência ao ora recorrente, ao tempo Chefe do Serviço de Finanças de Santarém (as expressões pelas quais o arguido vem acusado no requerimento de abertura de instrução): “- Desde há três anos que estou a ser perseguido pelo serviço de finanças de Santarém,…; - … se a postura desse serviço fosse informar em vez de desinformar…; - há dias mandaram-me um mail a exigir…, este acto ainda por cima cobarde…; - Este acto se fosse praticado por um criminoso comum chamar-se-ia tentativa de extorsão, praticado por um chefe de finanças chama-se como?!!!; - … Se andasse a roubar era chefe de finanças, não era empreiteiro! - … o Chefe de Finanças de Santarém tem interesse pessoal em sacar o máximo dinheiro possível, nem que seja com perseguição, coacção e extorsão!” --- Mais consta do despacho recorrido: “… os visados por estas afirmações são, respectivamente, o Serviço de Finanças de Santarém e o seu chefe, que à data dos factos era o assistente. Tratam-se de órgãos da Administração Pública que, por via das suas funções e atribuições, têm o poder de tomar decisões que têm impacto, muitas vezes profundo, na vida dos cidadãos, sendo executores do poder do Estado sobre os seus cidadãos. A Constituição da República Portuguesa prevê tanto o direito à honra e ao bom nome (artigo 37) como o direito à liberdade de expressão, cumprindo pois operar a concordância prática entre estes direitos, comprimindo um ou outro consoante as circunstâncias o ditem, mas sem afetar o seu núcleo essencial. O artigo 37 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estatui que «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações». É à luz deste comando constitucional que deve ser interpretada a lei criminal, tendo o mesmo especial relevância quando estamos perante a crítica à atuação de titulares de órgãos de qualquer poder público, seja este Legislativo, Administrativo ou Judicial. De facto, estes órgãos derivam os seus poderes da legitimidade democrática do Estado e, como tal, devem sofrer constantes escrutínio por parte dos cidadãos e devem ter a faculdade de livremente os criticar, sem censura. Não pode a faculdade dos cidadãos de criticar a atuação dos órgãos do Estado estar condicionada ao facto de tais críticas serem «justas» ou «equilibradas», pois muitas vezes essa justiça ou equilíbrio são impossíveis de concretizar objetivamente. … Mas num mundo onde a literacia é deficiente para uma grande maioria dos cidadãos, que têm dificuldade na expressão verbal e escrita e não sabem transmitir ênfase às suas declarações sem recorrer a excessos de linguagem, o direito deve adaptar-se à realidade. … o arguido agiu no exercício de seu direito de criticar e censurar a atuação do Serviço de Finanças de Santarém e do seu dirigente máximo, na altura o assistente), não sendo as suas ações típicas do crime em apreço. Notamos que o arguido afirma: - estar a ser perseguido pelo serviço de finanças de Santarém; - que a postura desse serviço deveria ser informar e não desinformar; - que lhe foi dirigida uma notificação para pagamento de um IMI que já estava pago, tendo o arguido sido informado ao balcão que não existia nenhum alerta de dívida, ato que qualifica como cobarde e extorsionário; - que por lapso do TOC que as Finanças (leia-se a legislação fiscal) o obrigam a ter não foi considerado o IVA suportado pelo arguido com algumas aquisições, apesar de documentos que o comprovam; - para pagamento da dívida resultante deste lapso foi penhorado o vencimento da esposa, conduta que qualifica como roubo. Tudo isto são críticas objectivas e legítimas à atuação de um serviço público e à legislação fiscal, ainda que tenham sido articuladas de forma indelicada e de difícil compreensão. … de uma forma algo enganadora o assistente insere no seu RAI a expressão «… o Chefe de Finanças de santarém tem interesse pessoal em sacar o máximo de dinheiro possível nem que seja com perseguição, coação e extorsão!». Analisada esta expressão fora de contexto pareceria que o arguido está a afirmar que o Sr. Chefe de Finanças tem de facto algum interesse pessoal e ilegítimo em extorquir dinheiro aos contribuintes. No entanto, esta expressão só pode ser interpretada no contexto da frase em que foi proferida, que é «Gostaria como cidadão que me informasse se os prémios por eficácia fiscal se mantêm, ou seja, se o chefe de finanças de Santarém tem interesse pessoal em sacar o máximo de dinheiro possível, nem que seja com perseguição, coação e extorsão!». Analisada no seu verdadeiro contexto, temos, não uma acusação infundada, mas uma dúvida legítima de um cidadão e uma crítica á concessão de vantagens patrimoniais a funcionários que podem influenciá-los a ter condutas menos próprias para com os administrados. Citamos aqui, como o fez o Ministério Público no seu despacho de arquivamento, o Ac. do STJ de 03-06-2009, que afirma que «Na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem fora da tipicidade de incriminações como a difamação os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académias… os sobre os atos da administração pública… a atipicidade da crítica objetiva não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações críticas, e o direito à crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas». … não obstante os excessos de linguagem e falta de urbanidade que pautam os escritos do arguido, estes estão sempre ligados à crítica e atuações concretas de um órgão da administração pública e, portanto, não integram o tipo legal de crime de difamação… o facto de tais críticas poderem ser injustas ou inverídicas não tem qualquer relevância para qualificação jurídico penal destes factos…”. 5.3. A instrução visa a comprovação judicial da acusação em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento; ela termina pela decisão instrutória, onde o juiz avalia os elementos de prova carreados para os autos, concretamente, se os mesmos são suficientes para se concluir que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (ou medida de segurança) – na afirmativa, o juiz decidirá que a causa deve ser submetida a julgamento, proferindo despacho de pronúncia, na negativa, ele optará por uma decisão de arquivamento, proferindo despacho de não pronúncia (art.º 308 do Código de Processo Penal). Na instrução impõe-se alcançar, não a demonstração da realidade dos factos, mas apenas indícios, ou seja, sinais da ocorrência de um crime e de que este foi cometido pelo agente a quem é imputado, não constituindo, nesta fase, os dados probatórios, pressuposto da decisão de fundo, mas de simples determinação judicial de prosseguimento dos trâmites processuais até julgamento. A lei define actualmente (art.º 283 n.º 2 do CPP) o que deve entender-se por indícios suficientes, no seguimento da orientação da doutrina e jurisprudência que vigoraram no domínio da lei processual anterior: “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”. Não basta, pois, a existência de quaisquer indícios, é necessário que tais indícios sejam de tal modo fortes que o julgador adquira a convicção, pela análise conjugada dos mesmos, de acordo com as regras da experiência e critérios de razoabilidade, que em julgamento – com a discussão ampla – se poderão vir a provar, com um juízo de certeza (e não de mera probabilidade), os elementos constitutivos da infracção. 5.4. Tais indícios, assim entendidos, não se verificam no caso em apreço, como bem se deixou expresso na decisão recorrida – com um cuidado e rigor que aqui merecem ser destacados – decisão que, por isso, se transcreveu quase na íntegra, face à clareza dos argumentos utilizados, que merecem o nosso inteiro acolhimento. --- Em primeiro lugar deve anotar-se que as expressões constantes do RAI/acusação – que o assistente imputa ao arguido, sob o título “Acusação”, e que, no seu entender, integrarem o crime de difamação – não podem ser lidas e apreciadas tal como constam descritas na acusação, descontextualizadas, transmitindo um sentido que efetivamente não têm. De facto, elas inserem-se num texto bem mais extenso, onde o arguido escreve (no texto que segue constam a negro as expressões que o assistente retirou e fez constar da acusação como consideradas difamatórias): - “… desde há 3 anos que estou a ser perseguido pelos erviço de finanças de Santarém, que através de cartas mails, telefonemas me tenta coagir a pagar dívidas que não existem ou que não deveriam existir se a postura dos serviços fosse informar em vez de desinformar até ao ponto em que já podem dizer «pois tem razão, mas já passou o prazo para reclamar»”; - “Ainda há dias me mandaram um mail a exigir, já com ameaça de penhora, o pagamento de um IMI que já está pago há algum tempo, este acto, ainda por cima cobarde, porque defende-se agora o chefe dos erviço de finanças que no fim do mail diz que caso já tenha pago ignore este mail, não pode ter sido motivado pelo «sistema» com que eles tanto gostam de se defender, porquanto o próprio director do atendimento na direção de finanças de santarém… me confirmou, após a minha reclamação perante tanta perseguição, que não existe relativamente ao contribuinte… nenhum alerta de dívida”; - “Este acto, se fosse praticado por um criminoso comum chamar-se-ia com certeza tentativa de extorsão, praticado por um chefe d finanças chama-se como?!!! Esta atitude persecutória… teve agora mais um acto que foi a penhora do vencimento da minha companheira, que nada tem a ver com o assunto, porquanto a suposta dívida que, por estupidez ou interesse em atingir objectivos que proporcionem mais prémios por eficácia fiscal, dizem existir tem a ver com uma actividade que eu tive em nome individual e que por erro do TOC que as finanças me obrigaram a ter, que declarou o IVA da venda de bens dessa actividade à empresa, mas não entregou em sede de IRS o mapa com o valor da venda e da compra desses bens. Logo, as finanças decidiram que eu vendi os bens, mas não aceitaram que os comprei, mesmo com as facturas entregues. Deve ser por comparação com os próprios, mas diria que se andasse a roubar era chefe de finanças, não era empreiteiro”; - “Gostaria, como cidadão, que me informassem se os prémios por eficácia fiscal se mantém, ou seja, se o chefe de finanças de santarém tem interesse pessoal em sacar o máximo de dinheiro possível, nem que seja com perseguição, coação e extorsão!…”. --- Estabelece o art.º 180 n.º 1 do CP: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração… é punido…”. Trazendo à colação os ensinamentos de Beleza dos Santos sobre o que deve entender-se por “honra” e “consideração”, escreve aquele autor que entende-se por honra “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale; refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral”, e por consideração “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público; refere-se ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou, ao menos, de não o julgar um valor negativo” (Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injuria, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92, n.º 3152, pág. 167/168). E continua aquele autor: “Nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível… Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”. Por outras palavras, o que é ofensivo da honra e consideração alheia não é aquilo que o é para o concreto ofendido, mas sim o que é considerado como tal pela generalidade das pessoas de bem de um certo país e no contexto sócio-cultural em que os factos se passaram, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. O assistente era, à data dos factos (julho de 2012), o chefe do Serviço de Finanças de Santarém, o “rosto visível” do Estado – na área de competência daquele serviço – enquanto entidade que, além do mais, cobra os impostos dos cidadãos e, por isso, uma figura pública, não enquanto cidadão, mas enquanto responsável por um serviço público e pela imagem que transmite aos cidadãos/utentes da eficácia e transparência desse serviço. Nesta perspetiva, nunca como hoje os serviços de finanças foram tão criticados, quer pela mediatização do seu modo de funcionamento – trazendo a público as falhas do sistema, como, v.g, os recentes casos de cobrança de coimas pela falta de pagamento do IUC ou, ainda mais recente, a questão levantada pela DECO relativamente ao IMI cobrado “a mais” pelo Estado – quer pela situação económico-financeira em que vivem os cidadãos/contribuintes, muitos deles com graves dificuldades de sobrevivência, a que não é alheio o constante aumento de impostos e uma apertada fiscalização pelos serviços de finanças. É nesta perpetiva – social e económica – em suma, as circunstâncias concretas do caso, que tem de ser analisada a conduta do arguido, cujas dificuldades económicas bem se evidenciam no próprio requerimento de abertura de instrução (fol.ªs 35), concretamente, quando questiona a “falta de informação do serviço de finanças” e se insurge contra o mau funcionamento desse serviço, seja porque lhe pede, sob cominação de mais uma penhora, o pagamento de mais uma importância que já estava paga, seja porque não levou em consideração o IVA que suportou com algumas aquisições, face aos documentos que – segundo alega – o comprovam. E nesta perspetiva a conduta do arguido não ultrapassa o âmbito da crítica – do serviço de finanças e do seu dirigente – crítica que é legítima, no contexto em que se insere, enquanto manifestação de indignação/desabafo, face à atuação da serviço de finanças, sendo certo que vem a doutrina e a jurisprudência reconhecendo que o “exercício do direito de expressão, designadamente, enquanto direito de informar, de opinião e de crítica constitui o próprio fundamento do sistema democrático” (acórdão do STJ de 7.03.2007, in www.dgsi.pt, em excerto transcrito no parecer do Ministério Público), o qual, aliás, tem consagração expressa na Constituição da República (art.º 37 n.º 1). Por outro lado, não pode esquecer-se – como se assinala, aliás, na decisão recorrida – que estamos perante crítica à atuação do serviço de finanças (e respetivo chefe), cujos poderes – enquanto titular de um órgão da administração pública – derivam da “legitimidade democrática do Estado e como tal devem sofrer constante escrutínio por parte dos cidadãos”, que devem ter a “faculdade de livremente os criticar, sem censura”, por sua vez, aqueles – enquanto investidos de tais poderes, assumindo, em maior ou menor grau, o papel de figuras públicas – estão, consequentemente, expostos à crítica, sendo a sua atuação, enquanto servidores da coisa pública, susceptível de crítica. Como se escreve no acórdão da RP de 1.10.2008, Proc. 4859/08-1, “os cidadãos com uma exposição pública da sua imagem devem ter de suportar maiores ataques do que o cidadão comum que, precisamente por não se querer submeter a essa exposição, deve beneficiar de maior tutela penal”. Consequentemente, as expressões imputadas ao arguido no RAI, no contexto em que se inserem – que se infere do texto supra transcrito, mas também da situação fiscal do arguido e das razões que motivaram a sua conduta – não primando pela cortesia ou dever de respeito que deve nortear as relações entre os cidadãos (incluindo entre os contribuintes e agentes da administração fiscal), não podem considerar-se, objetivamente, ofensivas da honra e consideração do assistente, pois que – repete-se - de acordo com o sentimento da generalidade das pessoas de bem, não é razoável considerar-se que tais expressões, no contexto em que foram proferidas, mereçam qualquer juízo de censura por parte da comunidade e, por isso, sejam susceptíveis de pôr em causa a honra ou consideração devida ao assistente. Nestas circunstâncias, temos de concluir que os autos não contêm indícios suficientes – entendidos estes nos termos supra expostos – de que o arguido cometeu o crime de difamação pelo qual foi acusado e, consequentemente, que justifiquem a sua submissão a julgamento, pois que este, a ocorrer, redundaria seguramente na sua absolvição. Estamos a falar, naturalmente, em indícios, pois não é este o momento próprio para julgar, mas em indícios que, relacionados e conjugados, permitem formar a convicção - uma forte convicção – que em julgamento, caso o arguido fosse pronunciado, seria seguramente absolvido. 5. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida. Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.ºs 515 n.º 1 al.ª b) do CPP e 8 n.º 5 e Tabela III anexa do RCP). (Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado) Évora, 2014/ 05 /20 (Alberto João Borges) (Maria Fernanda Pereira Palma) |