Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
79/08.7TBSRP-A.E1
Relator:
ACÁCIO NEVES
Descritores: DOAÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
NULIDADE
Data do Acordão: 06/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
As doações de sociedades comerciais só serão ilegais se estiverem em oposição aos interesses delas.
Não poderá ser havida como ilegal uma doação de um lote de terreno a um proprietário, para que este dê o seu consentimento a um loteamento que ficaria diminuído em área e valor, acaso não invadisse terreno de tal proprietário.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

“A” intentou, em 27.03.2008, acção declarativa ordinária contra “B”, pedindo que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso e se declare transmitido para o autor o direito de propriedade do lote n° 37 do Loteamento …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 23721, Livro B-60, da freguesia de …, concelho de …, livre de hipotecas ou quaisquer ónus ou encargos.
Alegou para tanto e em resumo o seguinte:
Tendo registados a seu favor 4 lotes de terreno para construção urbana, em 31 de Março de 2005, veio a ser registada a alteração de autorização do respectivo loteamento, do que resultou a redução das áreas dos seus 4 lotes.
As alterações ao alvará de loteamento foram autorizadas pelo autor, sendo certo que a concessão do alvará de loteamento dependia dessa autorização.
Nessa perspectiva, e face à diminuição da área dos lotes do autor, a ré concordou em entregar ao autor o lote de terreno com o n° 37, cuja aquisição foi registada a favor da ré.
Com vista a formalizar tal acordo, foi celebrado em 22 de Março de 2005, entre autor e ré o denominado "Acordo de Regularização de Compensação e Contrato Promessa de Doação (doc. 11), nos termos do qual ficou reconhecido: que a ré é titular do alvará de loteamento n° 4/83, emitido pela Câmara Municipal de …, correspondente à operação urbanística de loteamento denominado …, em …; que o autor é proprietário dos lotes nºs 2, 21, 22 e 23; que as condições do licenciamento foram alteradas por iniciativa da Câmara Municipal sobre toda a área lotada; que da alteração do alvará resultou a redução da área dos lotes do autor; e que a ré necessitava do consentimento do autor para promover a regularização da dita alteração.
Nos termos desse acordo, o autor disponibilizou-se a dar o seu consentimento desde que recebesse uma compensação pela diminuição das áreas, tendo autor e ré acordado que essa compensação seria feita mediante a transmissão gratuita, por parte da ré, da propriedade do lote n° 37 - compensação essa que foi qualificada como "doação".
Na sequência disso, autor e ré celebraram um acordo denominado de "Da promessa de Doação" (doc. 11), nos termos do qual a ré prometeu transmitir, livre de hipotecas ou quaisquer ónus ou encargos, ao autor, sem que este tivesse que proceder a qualquer contrapartida, a propriedade do prédio urbano denominado por lote 37 do Aldeamento …, e tendo o autor prometido aceitar a transmissão dessa propriedade, acordando ainda que a escritura seria feita pela ré, avisando ao autor da data, hora e local da mesma, com 5 dias de antecedência.
Todavia, apesar de instada, diversas vezes e por diversos meios, para marcar a escritura, a ré não o fez, recusando-se a cumprir com o acordado, apesar de já se encontrarem averbadas na Conservatória do Registo Predial as alterações às áreas dos lotes.
Citada, contestou a ré.
Invocou a nulidade do contrato promessa de doação por violação do disposto no art. 6°, n° 1 do CSC, pelo facto de as sociedades terem em vista a obtenção de lucros, o que está em contradição com a liberalidade, não usual, inerente ao contrato promessa de doação.
Invocou ainda a anulabilidade do mesmo contrato promessa com base na existência de coacção moral, uma vez que, sabendo que a ré necessitava do seu consentimento escrito para promover os averbamentos de alteração às descrições prediais e inscrições matriciais dos lotes do aldeamento e por saber que, estando a ré obrigada a liquidar desde 2000 a contribuição autárquica sobre os lotes de sua propriedade, estava impedida de vender para o efeito alguns dos lotes, o autor comunicou à ré que não assinaria qualquer autorização escrita a menos que lhe fosse entregue o lote n° 37, sem se apurar se tinha algum prejuízo e qual o seu valor.
E invocou ainda o enriquecimento sem causa, alegando que em face da imposição pela Câmara Municipal de redução das áreas dos lotes, por cedência ao domínio público, foram aumentadas como contrapartida as áreas de implantação e de construção (com excepção de dois lotes da ré), e daí que os restantes proprietários dos outros lotes tenham dado o seu consentimento, sendo certo que, em face disso, até aumentou o valor dos lotes, estando-­se assim perante um manifesto caso de enriquecimento em causa.
Concluindo no sentido de:
a) ser declarado nulo o contrato promessa de doação junto aos autos pelo autor como doc. n° 11, por violação do disposto no art. 6°, n° 1 do CSC, atento o preceituado no art. 294° do CC;
b) caso assim se não entenda, ser o mesmo contrato promessa de doação anulado, por coacção moral, prevista no art. 255°, n° 1 do CC, nos termos do disposto no art. 256° do CC;
c) e, ainda assim não se entendendo, que seja a acção julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a ré dos pedidos contra si formulados, sob pena de a transmissão do direito de propriedade representar um manifesto caso de enriquecimento sem causa.

Replicou o autor, pugnando pela improcedência das excepções invocadas.

Fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador, nos termos do qual se julgaram improcedentes as invocadas excepções relativas à nulidade e anulabilidade do contrato promessa de doação e ao enriquecimento sem causa- tendo ainda sido elaborados os factos assentes e a base instrutória.

Inconformada com o despacho saneador, na parte em que nele se julgaram improcedentes as excepções por si invocadas, interpôs a ré o presente recurso de apelação (admitido com subida em separado), em cujas alegações, pedindo a alteração do despacho saneador, no sentido de serem julgadas procedentes as excepções peremptórias invocadas, com as legais consequências, apresentou as seguintes conclusões:
1ª - A aferição da validade do contrato promessa de doação controvertido nos autos constitui uma questão fulcral, nuclear para a boa decisão da causa.
2a - Resulta do disposto no artigo 6°, n° 1 do CSC que a capacidade de gozo das sociedades comerciais "compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim."
3ª - A designada capacidade de gozo ou de direito das sociedades comerciais é, assim, limitada pelo seu fim.
4a - Esse fim é o lucro, ou melhor, a obtenção de um lucro resultante de uma actividade económica para distribuir pelos sócios.
5ª - Se o acto praticado em nome de uma sociedade é contrário ao seu fim lucrativo, esse acto é nulo, atendendo, inclusive, ao teor do artigo 294° do CC.
6a - Acrescendo que, se a sociedade não tem capacidade de gozo para a prática de um acto, também os membros do seu órgão de representação não o podem praticar.
7ª - Do designado princípio da especialidade das pessoas colectivas, consagrado no artigo 160°, n° 1 do CC, resulta ainda que as sociedades comerciais não podem fazer doações por isso ser contrário à sua finalidade própria.
8a - A capacidade de gozo das sociedades não compreende, deste modo, a prática de actos gratuitos, de natureza não lucrativa.
9a - A promessa de doação de um imóvel é contrária ao fim da apelante - a obtenção do lucro através da venda ou revenda de imóveis.
10ª - Não se encontrando entre as liberalidades previstas no n° 2 do artigo 6° do CSC, porquanto não se trata manifestamente de um donativo usual ou de uma doação remuneratória, não cabendo ainda na prossecução directa dos fins institucionais da apelante.
11ª - Tratando-se, pelo contrário, a promessa de doação controvertida nos autos de uma promessa de doação normal de um imóvel, ela é contrária ao fim lucrativo da ré, estando excluída do âmbito da sua capacidade de gozo.
12ª - Pelo que, o contrato promessa que constitui o objecto do presente litígio deve ser considerado nulo, por ser contrário à lei e violador do princípio da especialidade das pessoas colectivas.
13ª - O Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo entendeu ainda que não se verifica a excepção de anulabilidade do contrato promessa controvertido nos autos por coacção moral, por não se verificar no caso em apreço o requisito da "ilicitude da ameaça."
14ª - No seu entender, "esta ameaça é inequivocamente lícita já que o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305° do CC) entre os quais se inclui o direito de consentir ou não, na alteração das áreas do seu lote de terreno."
15ª - O direito de propriedade deve, no entanto, ser exercido dentro dos limites impostos pelas restrições, quer de interesse público, quer de interesse privado, que a lei expressamente consagra, por força do disposto no artigo 1305° do CC.
16a - Devendo ainda ser exercido dentro dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, nos termos estipulados no artigo 334° do CC.
17ª - No caso em apreço, a apelante necessitava do consentimento escrito do apelado para promover, junto da Conservatória do Registo Predial e do Serviço de Finanças competentes, os averbamentos de alteração às descrições prediais e às inscrições matriciais dos lotes que integram o loteamento …
18ª - Tendo a alteração do alvará de loteamento em questão sido imposta pela Câmara Municipal de …, de forma a melhorar a circulação viária.
19ª - O apelado sabia que a falta da sua autorização expressa inviabilizaria a alteração do alvará de loteamento, e que essa circunstância acarretaria um grave prejuízo económico para a apelante, por a impossibilitar de transaccionar os lotes que lhe pertenciam.
20ª - O Apelado transmitiu, assim, ao sócio gerente da apelante, “C”, que apenas prestaria o seu consentimento à referida alteração caso a apelante lhe entregasse, gratuitamente, um lote de terreno para construção.
21ª - A não prestação do consentimento necessário à alteração do alvará de loteamento constitui um direito dos proprietários dos lotes que o integram.
22ª - No entanto, o exercício do referido direito não pode ser utilizado como uma arma para conseguir objectivos que nada têm a ver com a qualidade de proprietário.
23ª - A ameaça é ilícita quando entre o negócio pretendido e o exercício do direito não existe uma conexão que justifique a ameaça feita, como sucede no caso dos autos.
24ª - A ameaça do apelado é ilícita, face à ilegitimidade de conseguir uma vantagem indevida - a doação de um bem imóvel - mediante a ameaça do exercício do direito de não prestar o consentimento necessário à alteração do alvará do loteamento, inviabilizando dessa forma o seu registo.
25ª - A situação sub judice configura, atento o que ficou exposto, um caso de manifesta coação moral, prevista no artigo 255º, n° 1 do CC, a qual origina a anulabilidade do negócio, nos termos do disposto no artigo 256º do CC.
26ª - O apelado agiu ainda com manifesto abuso de direito, de conhecimento oficioso, porquanto excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do seu direito de propriedade, ao aproveitar a sua posição privilegiada e a consequente necessidade do seu acordo expresso, para dessa forma extorquir à apelante a promessa de doação de um lote de terreno, de valor claramente superior ao do prejuízo por si sofrido.

Contra-alegou o autor, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Em face do conteúdo das conclusões das alegações da apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso (art. 690°, nº 1 do CPC), são as seguintes as questões de que cumpre conhecer (havendo, para o efeito, que atender aos elementos constantes dos autos e referidos no relatório supra):
- nulidade do contrato promessa de doação;
- anulabilidade do contrato promessa de doação;
- abuso de direito.

Factualidade assente, desde logo dada como provada no âmbito dos factos assentes:
A) Mostra-se inscrito pela ap.07/960117, a aquisição a favor do autor “A”, dos lotes de terreno para construção urbana com os nºs 2, 21, 22 e 23, descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob os nºs 00886/050290, 00888/050290, 00889/050290 e 00890/050290, sitos na …, Freguesia de …, Concelho de …, com as seguintes áreas: o Lote 2 com 960 m2 e os lotes 21, 22 e 23 com a área de 266,50 m2, cada, cf. Certidão do registo predial junta como Doc. 1 (fls.7-20) que aqui se dá por reproduzido.
B) Mostra-se inscrita pela ap. 12/050331, a alteração do loteamento, de 26/06/2002, do prédio que abrange os lotes do autor, cf. Certidão do registo predial junta como Doc. 1 (fls. 7- 20) que se dá por reproduzido).
C) Por escrito particular de 21/03/2005, “A”, declarou que "(...) para os efeitos do n° 3 do art. 36° o do DL n° 334/94 de 28 de Dezembro, que autorizo as alterações ao Alvará de loteamento, n° 4/83 de 18 de Outubro, de “B”, referente à área de cedência obrigatória de loteamento às áreas dos lotes e sua localização, constantes da planta de síntese, bem como no seu quadro geral de áreas parcial que se anexa.”, cf Cópia da declaração junta como Doc. 2 (fls. 21-27) que aqui se dá por reproduzido.
D) Os supra mencionados lotes de terreno n° 2, 21, 22 e 23 estão inscrito na matriz predial urbana, Freguesia de …, Concelho de …, sob o artigo 2907, 2630, 2631 e 2632, respectivamente, da Repartição de Finanças de …, cf Cópias das cadernetas prediais urbanas juntas como Doc. 3 (fls.28), 4 (fls.29), 5 (fls.30) e 6 (fls.31) que se dão por reproduzidos.
E) Em 24/01/2008 foi lavrada certidão do Serviço de Finança de …, na qual consta, para além do mais (. . .) os prédios urbanos abaixo descritos, inscritos sob a matriz predial da freguesia do …, registaram no ano de 2005, a requerimento dos titulares, as seguintes rectificações de áreas:
- Artigo 2630 - localização: loteamento da zona do …, Lote 21; Área inicial: 266,501112 (ano 1993);
Área actual rectificada: 224,20m2.
- Artigo 2631 - localização: loteamento da zona do …, Lote 22; Área inicial: 266,50 m2 (ano 19.93);
Área actual rectificada: 224,201112 .
- Artigo 2632 - localização: loteamento da zona …, Lote 23; Área inicial: 266,50 m2 (ano 1993);
Área actual rectificada: 224,20m2 .
- Artigo 2907 - localização: loteamento da zona do …, Lote 2, Área inicial: 960,00m2 (ano de 1993);
Área actual rectificada: 542,00m2.
Mais certifico que o prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia do … sob o Artigo 3340 - localização: …, lote 37, regista a área actual de 224,20m2, coincidente com a área inicial de construção em 2002. ", cf Certidão das finanças junta como Doc. 7 (fls.32-33) que aqui se dá por reproduzido.
F) As alterações aos lotes de terreno decorreram das alterações que foram feitas ao Alvará de loteamento nº 4/83, de 18 de Outubro, referentes à área de cedência obrigatória do loteamento.
G) O A viso da Câmara Municipal de … relativo à rectificação do alvará de loteamento urbano n° 4/84, foi publicado em …, na III Série do DR, cf Cópia do diário da república, junta como Doc. 8 (fls. 34.36) que aqui se dá por reproduzido.
H) Destas alterações dependia a concessão, pela Câmara Municipal de …, do alvará de loteamento, sendo que o loteador era, na altura, a Ré, cf Cópia de declaração de autorização junta como Doc. 2 (fls.21-27) que aqui se dá por reproduzido.
I) O lote 37 do Loteamento do …, destinado a construção urbana, com 224,20 m2, está descrito na Conservatória do Registo Predial de …, Freguesia de …, com o n° 02687/050331, cf. Certidão do registo predial junta como Doc. 9 (fls.37-40) que se dá por reproduzido.
J) Mostra-se inscrita pela ap. 09/821023 a aquisição do Lote 37 a favor da ré, cf. Doc. 9 (fls. 37-40) que aqui se junta e dá por reproduzido.
K) o lote n° 37 está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3440 da Repartição de Finanças de …, cf. Cópia da caderneta predial junta como Doc. 10 (fls.41) que aqui se dá por reproduzido.
L) Em 22/03/2005, o autor enquanto segundo outorgante e a ré enquanto primeiro outorgante, por escrito particular que denominaram de "Acordo de regularização de compensação e contrato-promessa de doação" cf. Cópia junta como Doc. 11 (fls.42-45) que aqui se dá por reproduzido, acordaram entre si:
"(. . .) e considerando:
1. que o Primeiro outorgante, enquanto promotor da operação urbanística de loteamento denominado loteamento …, sito em …, é titular do correspondente Alvará de Loteamento, na 4/83, emitido pela Câmara Municipal de …;
2. que o Segundo Outorgante é proprietário dos lotes identificados como Lotes números 2, 21, 22 e 23 do Loteamento supra referido em 1.;
3. que as condições do licenciamento da operação de loteamento em referência foram alteradas por iniciativa da Câmara Municipal de … por força da implementação, sobre a área loteada, e em execução de Plano de Urbanização, da rede viária que se reconduz às denominadas Rotunda da … e Estrada de ligação à estrada de …;
4. que, por força da alteração acabada de referir, procedeu-se à correspondente alteração do Alvará supra citado, tal como publicado no D.R. IIIª Série, nº 278, de 2 de Dezembro de …;
5. que tais alterações - da área loteada e do Alvará de loteamento - tiveram como consequência a redução da área dos lotes propriedade do Segundo Outorgante, por cedência ao domínio público, tendo-se aumentado as respectivas áreas de implantação e de construção mas alterado as áreas de logradouro por cedência para o domínio público;
6. que o Primeiro Outorgante necessita do consentimento expresso do Segundo Outorgante para promover, junto do Serviço de Finanças e Conservatória do Registo Predial competentes, os averbamentos de alteração às inscrições matriciais e descrições prediais dos lotes que integram a operação de loteamento no seu todo, de molde a regularizar documentalmente a mesma;
7. que o Segundo Outorgante se encontra disponível para dar o seu consentimento a tal alteração de inscrições matriciais e descrições prediais com a contrapartida da percepção de uma compensação pela diminuição das áreas de logradouro dos seus lotes afectas ao domínio público;
8. que as partes chegaram a acordo no sentido de efectivar tal compensação em espécie, através de transmissão gratuita, do Primeiro Outorgante para o Segundo, da propriedade de um lote extra em troca da afectação ao domínio público das áreas diminuídas aos lotes de que este último já era proprietário;
9. que, não constituindo a operação jurídica tendente a concretizar esta compensação uma verdadeira permuta, acordaram as partes em efectivar a transmissão acabada de referir através de doação do lote denominado extra, pelo respectivo valor patrimonial fiscalmente determinado, suportando o Primeiro Outorgante o respectivo custo.
É celebrado o presente Acordo de Regularização de Compensação e Contrato Promessa de Doação, que se regerá pelas seguintes cláusulas: (. . .)
Primeira
(…) o Primeiro Outorgante, na qualidade de promotor da operação urbanística de loteamento denominado …, sito em … (…) acorda em compensar o Segundo Outorgante, proprietário dos Lotes números 2, 21, 22 e 23 do mesmo Loteamento, pela diminuição das áreas de logradouro destes últimos provocada pela alteração das condições do licenciamento da operação de loteamento em referência, efectuada por iniciativa da Câmara Municipal de …, por força da implementação, sobre a área loteada, e em execução de Plano de Urbanização, da rede viária se reconduz às Rotundas … e Estrada de ligação à estrada de …
Segunda
A compensação seria efectivada através da transmissão, a operar do Primeiro para o Segundo Outorgante, da propriedade do lote determinado Lote número 37 do Loteamento supra referido, a qual será efectivada através de doação, nos termos e condições constantes da promessa de doação estipuladas adiante no presente acordo.
Terceira
Em contrapartida da compensação ora acordada a efectivar através de doação, e considerando que o Primeiro Outorgante necessita do consentimento expresso do Segundo Outorgante para promover, junto do Serviço de Finanças e Conservatória do Registo Predial competentes, os averbamentos de alteração às inscrições matriciais e descrições prediais dos lotes que integram a operação de loteamento no seu todo, de molde a regularizar documentalmente a mesma, o Segundo Outorgante dá desde já e na presente data o seu consentimento expresso a tal alteração de inscrições matriciais e descrições prediais, subscrevendo com assinatura reconhecida por semelhança, os impressos próprios tendentes a formalizar tal regularização, nomeadamente, a Declaração para Inscrição ou Actualização de Prédios Urbanos na Matriz - Modelo I (a ser presente no competente Serviço de Finanças) e a Declaração de Autorização, Requisição de Registo e Declarações Complementares (a serem presentes na Conservatória do Registo Predial de …).
II
Da Promessa de doação
Quarta
O Primeiro Outorgante é dono e legítimo proprietário do prédio urbano denominado por Lote número 37, do Loteamento do …, sito na freguesia de …, concelho de …, titulado pelo Alvará de Loteamento n° 4/83, emitido pela Câmara Municipal de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo na 3440 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 23721 do Livro B-6, ambos da mesma freguesia.
Quinta
Pelo presente contrato, a Primeira Outorgante promete doar, livre de hipotecas ou quaisquer ónus ou encargos, ao Segundo Outorgante, o imóvel identificado na cláusula anterior e este promete aceitar a doação.
Sexta
Para efeitos de escritura pública e atento o que fica considerado supra preambularmente, o valor da doação ora acordada é de € 5.044,50 (cinco mil e quarenta e quatro euros e cinquenta centimos) correspondente ao valor patrimonial do imóvel prometido transmitir.
Sétima
1. A escritura pública de doação do prédio objecto do presente contrato será celebrada até trinta dias depois a data constante do despacho da Conservatória do Registo Predial de … que considerar averbadas às descrições do Loteamento em causa as alterações às áreas dos respectivos Lotes, conforme a alteração ao Alvará de Loteamento referida supra preambularmente.
2. A marcação da referida escritura será feita pelo Primeiro Outorgante, que deve avisar o Segundo Outorgante da data, hora e local da sua celebração com, pelo menos, cinco dias de antecedência.
3. O Segundo Outorgante compromete-se a entregar ao Primeiro os documentos necessários, pela sua parte, à outorga da escritura. ( ... )
Nona
O presente contrato fica sujeito à faculdade de execução específica prevista no art. 830.º do Código Civil. "
M) Em 18/02/2008, o autor requereu a notificação judicial da ré para que, no prazo de 20 dias a contar da sua notificação, marcasse a escritura de doação tendo juntado os documentos comprovativos de tal exigência da promessa de doação e da alteração da autorização do loteamento, cf. notificação judicial avulsa junta como Doc. 12 (fls.46-66) que aqui se dá por reproduzido.
N) O autor enviou uma carta registada, com carimbo de expedição de 03/03/2008, para que a escritura de doação fosse marcada, tendo tal carta sido devolvida, como outra que se encontra dentro desta carta, com a indicação de não reclamada, cf. Carta devolvida junta como Doc. 13 (fls. 68) que aqui se dá por reproduzida ..
O) Mostra-se inscrita pela ap.12/05033 1, na ficha nº 008650290, da Conservatória do Registo Predial de …, as alterações às áreas dos respectivos lotes, à qual o autor deu o seu consentimento em cumprimento cláusula terceira do acordado em O), cf. Certidão do registo predial junta como Doc. 1 (fls. 7 -20) que aqui se dá por reproduzido.
P) Mostra-se inscrita pela ap. 0811982-10-22 na Conservatória do Registo Predial/Comercial de …, a constituição de sociedade por quotas, com o capital de € 24.939,90 euros, com a firma “B”, tendo como objecto social: urbanização e loteamento de terrenos, edificação de imóveis por construção directa ou empreitada, compra e venda de prédios e revenda dos adquiridos, para esse fim, sendo a forma de obrigar a assinatura de um gerente, cf. Certidão do registo comercial junta como Doc. 1 da contestação (fls.127-129) que aqui se dá por reproduzido.
Q) A alteração do alvará de loteamento na 4/83 foi imposta pela Câmara Municipal de … de forma a melhorar a circulação viária, quando em execução do plano de urbanização houve necessidade de construir a Rotunda da … e a estrada de ligação à Estrada de …, obras que foram parcialmente implantadas sobre a área do Loteamento do …, cf. Cópia do alvará de loteamento na 4/83, junto como Doc. 2 da contestação (fls. 131- 139) e certidão da alteração ao alvará de loteamento junto como Doc. 3 da contestação (fls. 140-145) que aqui se dão por reproduzidos.
R) Por despacho da 1ª ajudante em exercício da Conservatória do Registo Predial de …, junto como Doc. 4 (fls. 146-148) que aqui se dá por reproduzido, consta, para além do mais: "Em caso de alteração de loteamento - que gera uma recomposição dos lotes e dos espaços de utilização colectiva - a alteração das correspondentes descrições faz-se por averbamentos de actualização das anteriores descrições e eventual abertura das novas. Este procedimento pressupõe, no entanto que resulta provado terem os titulares dos lotes afectados requerido a sua alteração ou dado o seu expresso consentimento. ".

Quanto à nulidade:
Estabelece o nº 1 do art. 6° do Código das Sociedades Comerciais que "a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular", estabelecendo por sua vez o nº 2 do mesmo artigo que "as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta ".
Sendo certo que, conforme bem salienta a apelante, as sociedades comerciais têm por escopo ou por finalidade a obtenção de lucros, destinados a serem repartidos pelos respectivos sócios ou accionistas, o que no fundo resulta do disposto no citado artigo 6º do CSC é que a delimitação da capacidade das sociedades comerciais se faz em função do respectivo lucro.
Por outro lado devem efectivamente ser tidos como nulos os actos praticados pelos titulares dos órgãos de uma sociedade comercial que não estejam abrangidos pela capacidade desta (ac. do STJ de 17.02.2000, in BMJ, 949, 366).
É assim inequívoco que as doações, enquanto liberalidades (atenta a noção estabelecida no nº 1 do art. 9400 do C. Civil) contrárias à prossecução do fim das sociedades, excepção feita àquelas que sejam consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade (as quais, nos termos do citado na 2 do art. 6º do CSC, não são havidas como contrárias ao fim da sociedade) terão que ser havidas como nulas.
Porém, não bastando que se trate, sem mais, de liberalidades, necessário se torna que as mesmas não visem o interesse da sociedade (ac. da RP de 20.05.99, in BMJ, 487, 369).
Todavia, o certo é que, face à factualidade alegada e dada já como provada, se nos afigura não estar englobado nessa situação o contrato promessa de doação em causa nos autos.
Com efeito, independentemente da qualificação que foi dada ao contrato promessa em questão (de doação) ou da sua efectiva qualificação, haveremos de convir que a promessa de doação feita pela ré apelante jamais pode ser considerada como uma mera liberalidade, desprovida de qualquer interesse para a sociedade ré. Na verdade, conforme alegado e provado nos autos, a promessa de doação foi feita pela ré apelante como condição ou compensação para o facto de o autor consentir, juntos das respectivas entidades, na alteração do loteamento de que a ré era promotora, alteração essa da qual viria a resultar a diminuição das áreas dos 4 lotes propriedade do autor.
Independentemente de se tratar de iniciativa sua ou de imposição da Câmara Municipal, é manifesto que a ré, enquanto promotora do loteamento urbano, tendo em vista a prossecução do seu fim, ou seja, a obtenção de lucros (mediante a aprovação do loteamento e a venda de lotes ou de construção para venda ... ) tinha todo o interesse real em ver aprovada e efectivada a alteração do loteamento.
Mas, se para o efeito, tinha que obter obviamente o consentimento do autor (e, eventualmente, de outros proprietários de outros lotes) e se a alteração do loteamento implicava a diminuição das áreas dos 4 (não apenas um, note-se ... ) lotes do autor, nada mais natural que este quisesse ser compensado e que a ré (no seu manifesto interesse!!!!) tivesse acabado por anuir á pretensão do autor, prometendo doar-lhe (transmitir-lhe) o lote nº 37 do qual é proprietária.
Desta forma, haveremos de concluir no sentido de que, contrariamente ao que defende a ré apelante, o acto relativo à outorga da promessa de doação em causa nos autos deve ser considerado como compreendido no âmbito da capacidade da sociedade ré, porquanto as obrigações dela emergentes se mostram necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim.
E, assim sendo, haveremos igualmente que considerar e concluir, conforme bem se considerou no despacho recorrido, no sentido da inexistência da invocada nulidade.

Improcedem assim, nesta parte, as conclusões da apelante.

Quanto à anulabilidade:
Considera a ré apelante que a exigência feira pelo autor, no sentido da entrega gratuita de um lote de terreno como condição para viabilizar a alteração do alvará de loteamento constitui uma ameaça ilícita, estando-se perante uma manifesta situação de coacção moral prevista no art. 255°, n° 1 do C. Civil, que conduz à anulabilidade do negócio, nos termos do disposto no artigo 256° do mesmo diploma.
Nos termos do disposto no nº 1 do citado art. 255°, "diz-se feita sob coacção moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração ", estabelecendo por sua vez o art. 256° que "a declaração negocial extorquida por coacção é anulável ".
Todavia, nos termos do n° 3 daquele primeiro artigo "não constitui coacção a ameaça do exercício normal de um direito ".
Resulta assim que, conforme referem P. Lima e A. Varela (in C. Civil Anotado, vol. I, em anotação ao art. 255°), para que possa ser considerada como coacção, a ameaça tem de ser ilícita, não podendo ser entendida como tal o mero exercício de um direito.
Ora, no caso dos autos, é a nosso ver manifesto que, ao exigir determinada contrapartida (a entrega de um lote) nas circunstâncias em que o fez, o autor, ora apelado, mais não fez do que agir no exercício de um direito, ou seja na defesa do seu direito de propriedade sobre os quatro lotes, cujas áreas iriam diminuir significativamente (num dos casos para pouco mais de metade) em resultado da alteração do loteamento.
Enquanto proprietário desses quatro lotes, gozava o autor, nos termos do disposto no art. 1305° do C. Civil, dos respectivos direitos de uso, fruição e disposição.
Assim, e porque a aprovação da alteração do alvará de loteamento, iria provocar a diminuição das áreas dos seus lotes, nada mais natural e legítimo que o autor procurasse obter da ré (a entidade directamente interessada, enquanto promotora do loteamento) alguma compensação, sendo certo que, conforme bem se refere no despacho recorrido, se essa exigência de compensação é ou não proporcional ao ganho obtido pela ré, trata-se de "matéria que se situa no estrito âmbito da liberdade negocial das partes e bem assim, na própria esfera pessoal do autor, a quem é lícito dispor da forma que melhor lhe aprouver, dos seus bens".
Com efeito, conforme se considerou no ac. do STJ de 21.04.2009 (em que é relator Urbano Dias, in www.dgsi.pt) o simples aproveitamento de uma situação económica menos favorável de uma parte negocial pela outra tem que ser visto como resultado do normal funcionamento do mercado, seja qual for o negócio concretizado.
Está assim em causa o normal exercício de um direito, que não uma ameaça ilícita de um mal, estando assim, a nosso ver, fora de causa a existência de coação moral (vide acs. do STJ de 05.03.2001, em que é relator Azevedo Ramos, e de 20.02.2003, em que é relator Araújo Barros, ambos igualmente in www.dgsi.pt ).
Nestes termos, não se estando perante uma situação de ameaça ilícita, forçoso será concluir-se, conforme bem se considerou no despacho recorrido, no sentido da inexistência de coacção moral, a que alude o n° 1 do art. 255º do C. Civil, e, em consequência, no sentido da improcedência da invocada anulabilidade do contrato promessa em causa nos autos.
Improcedem assim, igualmente nesta parte, as conclusões do recurso.

Quanto ao abuso de direito:
Invoca ainda, por último, e pela primeira vez, a ré apelante a existência de abuso de direito (conclusão 26a) dizendo para tal que o apelado excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do seu direito de propriedade, ao aproveitar a sua posição privilegiada e a consequente necessidade do seu acordo expresso, para dessa forma extorquir à apelante a promessa de doação de um lote de terreno, de valor claramente superior ao do prejuízo por si sofrido.
Mau grado o facto de, conforme refere a apelante, se tratar de matéria de conhecimento oficioso, o certo é que se trata de questão que, não tendo sido suscitada ao nível da 1ª instância, só agora o foi, em sede de recurso.
Trata-se assim de uma questão nova que só agora foi suscitada e que, como tal, nem sequer devia ter sido suscitada, uma vez que, como é sabido, os recursos visam a modificação das decisões objecto de impugnação, através de reexame das questões nelas tratadas (porque anteriormente suscitadas) que não a apreciação de questões nova (vide, entre outros, acs. do STJ de 06.01.88 in BMJ, 373, 462 e de 18.01.94, in BMJ, 433,588).
Ainda assim, sempre se dirá que, a nosso ver, carece de fundamento a invocada existência de abuso de direito.
Desde logo porque, pela forma como coloca a questão (vide conclusão 26a), a apelante não questiona a existência de abuso de direito no que se refere ao exercício do direito à execução específica (emergente do contrato promessa de doação), direito esse que na presente a acção o autor pretende fazer valer, mas sim a validade do próprio contrato, face às circunstâncias em que o mesmo foi celebrado.
Ao dizer que, ao aproveitar-se da posição privilegiada em que se encontrava o autor extorquiu à apelante a promessa de doação, o que a apelante pretende por em causa é a validade da próprio negócio (contrato promessa) e, por consequência, o próprio direito (à execução específica) que o autor pretende fazer valer.
Ora, como é sabido, a figura do abuso de direito assente precisamente em primeiro lugar, na existência do direito e, só depois, no exercício abusivo do mesmo.
Improcedem assim, igualmente nesta parte, as conclusões do recurso.

Termos em que se acorda em negar provimento à apelação e em confirmar a decisão recorrida (saneador, na parte em que nele se decidiram as invocadas excepções peremptórias).
Custas pela apelante.
Évora, 25 de Junho de 2009