Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
276/19.0GCSSB.E1
Relator: CARLOS DE CAMPOS LOBO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CUMPRIMENTO
JULGAMENTO
RECUSA
QUESTÃO PRÉVIA
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A suspensão provisória do processo é hoje um instituto de consenso, a aplicar sempre que o crime for punível com prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público determina a suspensão do processo, verificados os pressupostos fixados na lei.
II. O incumprimento das injunções haverá de resultar de posicionamento culposo ou até reiterado, na linha do que ocorre na revogação da suspensão da pena de prisão (56.º, n.º 1, al. a) CPenal), devendo, pelo menos, ser imputável ao arguido a nível de negligência grosseira ou se tratar de um estar repetidamente assumido, devendo, por isso, o MP, antes de se decidir pela revogação, indagar/apurar das razões do incumprimento.
III. Tendo sido revogada a suspensão provisória do processo e remetido o processo a Juízo, mostrando-se aqui liminarmente que a razão suporte dessa revogação não se verifica e que todo o condicionalismo exigido na decisão da suspensão provisória do processo foi escrupulosamente cumprido, inexiste causa justa para acusar e/ou não estão reunidas as condições necessárias para o desenrolar da ação penal, emergindo questão prévia impeditiva do seu prosseguimento.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção)

I – Relatório

1. O processo de inquérito com o nº 276/19.0GCSSB, que correu termos na Comarca de Setúbal, no Ministério Público – DIAP - Secção de Sesimbra, teve origem em denúncia apresentada por AA, a qual se constituiu assistente, contra BB, destinando-se a investigar factos eventualmente cometidos por este, suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), 2, alínea a), 4 e 5 do CPenal.

2. Findo o inquérito, a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu despacho propondo a suspensão provisória do processo (cf. fls. 113 a 116) – artigo 281º do Código de Processo Penal (diploma que se passa a designar de CPPenal) -, o que veio a obter a concordância da Mmª Juiz - cf. fls. 118 e 119.


3. Tendo decorrido o prazo de suspensão provisória do processo a Digna Magistrada do Ministério Público, concluindo pelo não cumprimento cabal das condições impostas, por parte do arguido, procedeu à revogação da aludida suspensão determinando que os autos prosseguissem os seus termos, deduzindo assim acusação para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular – cf. fls. 146 a 151.

4. Por despacho proferido em 8 de fevereiro de 2022, a Mmª Juiz da Comarca de Setúbal – Setúbal – Juízo de Competência Genérica de Sesimbra – J2 rejeitou a acusação pública deduzida, entendendo estar patente uma questão prévia que obsta à apreciação do mérito da causa.

5. Inconformado com tal despacho, o Digno Mº Pº dele recorreu, extraindo da respetiva motivação do recurso as seguintes conclusões: (transcrição)
1) O douto despacho de que ora se recorre enferma de erro de apreciação e interpretação da norma do artigo 311.º do Código de Processo Penal, ao determinar a rejeição da acusação pública proferida, e consequentemente determinou a devolução dos autos ao Ministério Público fez incorrecta interptetação da norma processual penal envolvida.
2) Efectivamente, a Meretissima Juiz de Direito não podia sindicar as razões da opção do Ministério Público, quando no final do prazo, da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo e, com esse fundamento rejeitar a acusação.
3) Aliás, só o arguido se pode opor à opção do Ministério Público requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua, estando os seus direitos sempre garantidos por essa via.
4) Posto isto, somos de entendimento que não assiste razão à Meretissima Juiz de Direito quando decidiu pela rejeição da acusação, e razão pela qual se pugna pela revogação do Douto Despacho proferido, e consequentemente, seja proferida Decisão no sentido de recebimento da acusação proferida.
A decisão recorrida violou a disposição legal constante dos artigos 287º, nº2 e nº3, do CPP e dos artigos 217º, 218º e 256º, do CP.

6. Notificados o arguido e a assistente, do despacho de admissibilidade do recurso e deste, não apresentaram qualquer resposta.

7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do CPPenal, emitiu parecer pronunciando-se também no sentido da procedência do recurso, acompanhando o posicionamento assumido pelo Ministério Público na 1ª instância - Somos do parecer que o recurso interposto se mostra pertinente e acompanhamos a respectiva motivação e conclusões tiradas[1].

8. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Questões a decidir

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art.º 410°, n.°2 do CPPenal, o âmbito do recurso é dado, nos termos do art.º 412º, nº1 do citado complexo legal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido - jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Digno Mº Pº, importa apreciar e decidir a seguinte questão:
- possibilidade legal da rejeição da acusação a coberto do estipulado no art.º 311º do CPP, por se verificar uma questão prévia obstativa do conhecimento do mérito da causa.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido pronunciou-se da seguinte forma: (transcrição)


Em 25.11.2021, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal.


Compulsados os autos, verifica-se que, em 09.07.2020, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo “pelo período de 12 (doze) meses, mediante o cumprimento das seguintes injunções:
- Abster-se de praticar quaisquer comportamentos agressivos (físicos, verbais ou psicológicos) para com a assistente;
- Até ao termo do prazo, entregar a quantia de €300,00 (trezentos euros) à APAV;
- No decurso do aludido prazo, apenas contactar a vítima no estritamente necessário para efeitos de visita do filho menor de ambos, a qual, se perante a vítima, deverá decorrer sempre mediante acompanhamento de familiar.” (sic).
Em 25.11.2021, o Ministério Público revogou a suspensão provisória do processo, por entender que não havia sido cumprida a injunção que consistia na entrega da quantia de € 300,00 (trezentos euros) à APAV.
Verifica-se que efetivamente, à data, o arguido havia sido notificado para juntar aos autos o comprovativo do cumprimento de tal injunção e não o fez e a APAV informou, em 02.11.2021, que não existia qualquer registo de pagamento, pelo que o Ministério Público deduziu acusação, pois os elementos de que dispunha levavam a crer que uma das injunções não havia sido cumprida.
Em 10.12.2021, o arguido juntou aos autos seis comprovativos de transferências bancárias e, em 27.01.2022 e 04.02.2022, a APAV veio informar que foi efetuado o pagamento, entre janeiro e julho de 2021, do montante total de € 300,00 (trezentos euros) e adjudicado aos presentes autos, ou seja, a informação prestada anteriormente estava incorreta.
Em face do exposto, conclui-se que o arguido cumpriu as injunções que foram determinadas no âmbito da suspensão provisória do processo.
Determina o artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa que:
Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, consagrando o princípio ne bis in idem.
Conforme plasmando no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-03-2016, processo n.º 361/12.9GTABF.E1:
A inexistência de causa de revogação da suspensão provisória do processo determina o arquivamento do inquérito, pelo que a dedução de uma acusação nessas circunstâncias equivale materialmente à instauração de um “novo processo”, pelos mesmos factos, contra o mesmo agente.
A ausência de reação processual tempestiva por parte do arguido, nomeadamente ao não requerer a abertura de instrução, não obsta à decisão judicial sobre a (i)legalidade da acusação que não pode deixar de ser rejeitada no momento a que se refere o art. 311.º do CPP.
Determina o artigo 311.º do Código de Processo Penal que:
1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
Tendo em consideração que o instituto da suspensão provisória do processo pressupõe que as soluções de consenso acautelam a proteção dos bens jurídicos e as necessidades preventivas e que o arguido cumpriu as injunções determinadas, qualquer condenação posterior pelos mesmos factos representaria uma violação do princípio ne bis in idem e do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, o que constitui uma questão prévia que obsta à apreciação do mérito da causa.
Em face do exposto, rejeito a BB.
Notifique.

2.2. Da questão a decidir

Como acima se expendeu, o thema decidendum cinge-se à verificação ou não, de quadro processual bastante que possibilite sustentar a decisão recorrida de rejeição da acusação deduzida, por se patentear uma questão prévia que obste à apreciação do mérito da causa.
A suspensão provisória do processo, que em algum momento, foi vista como sendo um desvio ao princípio da legalidade, porquanto significaria a faculdade do Ministério Público não deduzir acusação, assumindo-se como um mecanismo processual surgido sob o signo da oportunidade[2], é hoje algo de pacífico em que se prefere o caminho do consenso à “solução de conflito” e desde que verificadas as respetivas condições de aplicação.
Diga-se também que o legislador de 2007 veio substituir a expressão normativa “pode o Ministério Público” por “o Ministério Público determina” e consagrar, sempre que o crime “for punível com prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público determina a suspensão do processo, verificados os pressupostos fixados na lei
[3].
Neste circunspecto, parece assim resultar que há que dar relevo a caminho que favoreça/perscrute solução facilitadora do dito consenso, ao invés do conflito.
Será neste registo que importará abordar a situação trazida a apreciação em sede de recurso.
Exulta que o arguido, em consequência da suspensão provisória dos autos aplicada, cujo despacho lhe foi notificado em 27 de julho de 2020, entre outras injunções, ficou sujeito a entregar a quantia de 300 euros à APAV, até ao termo do prazo da suspensão – 27 de julho de 2021 -, ou seja, no tempo de 12 meses.

Mais exorbita que o Digno Mº Pº, considerando que o arguido (…) não cumpriu uma das injunções que lhe foram impostas, tendo sido regularmente notificado do despacho que determinou a suspensão provisória do processo[4], decidiu revogar tal suspensão e deduzir acusação, o que fez por decisão proferida em 25 de novembro de 2021.
Decorre do preceituado no art.º 282.º, nº 4, alínea a) do CPPenal que o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas caso o arguido não cumpra as injunções e regras de conduta.
Pese embora a literalidade do aludido normativo, parece pacífico que o incumprimento deverá resultar de posicionamento culposo ou até reiterado, na mesma linha do que decorre do regime ínsito no art.º 56º, nº1, alínea a) do CPenal, devendo, pelo menos, ser imputável ao arguido a nível de negligência grosseira ou se tratar de um estar repetidamente assumido, devendo, por isso, o Digno Mº Pº, antes de se decidir pela revogação, indagar/apurar das razões do incumprimento[5].
Cabe salientar que a doutrina e a jurisprudência têm entendido que numa situação em que se apresente um eventual incumprimento das regras ou injunções da suspensão provisória do processo, deve ser aplicado analogicamente o regime próprio da suspensão da execução da pena constante dos art.ºs 492.º a 495.º do CPPenal e art.ºs 55.º e 56.º do CPenal[6].
Na verdade, o funcionamento automático da revogação, em caso de incumprimento, violaria, desde logo, o princípio da culpa e, num domínio mais abrangente, a própria dignidade da pessoa humana, mote basilar de qualquer sistema jurídico moderno, pelo que, para além dos dados/elementos objetivos que assolem, necessário se torna que se apurem e ponderem as razões que subjazem ao todo o sucedido, podendo apenas equacionar-se a prossecução dos autos, no caso do incumprimento ser imputável ao arguido[7].
Por seu turno, importa ainda afirmar que se entende que perante um quadro de incumprimento, há que avaliar se os objetivos suporte da decisão de suspensão se mostram total ou irremediavelmente comprometidos, tónica esta que pressupõe que se salvaguarde uma possibilidade, ainda que mínima, do exercício do contraditório[8].
Do exame do processado e tendo desde logo em atenção todo o teor do despacho proferido pelo Digno Mº Pº a fls. 146 e 147, parece resultar claro que nada foi ponderado/analisado nas sobreditas dimensões, surgindo a revogação da mera e simples constatação objetiva de um suposto incumprimento.
Nada ressalta de todo o excurso processual presente, pelo menos com clareza, que demostre que verificado o pretenso incumprimento – não pagamento da quantia de 300 euros, elemento/dado objetivo – se tenha tentado apurar da existência ou não de motivos justificativos e, bem assim, facultar por alguma forma a possibilidade do contraditório.
Com efeito, em nenhum momento se aprecia o comportamento do arguido quanto ao alegado incumprimento e, também digno de registo, tendo o Digno Mº Pº entendido pelo não respeito do imposto e aceite pelo arguido, nada fez no sentido de apurar da existência ou não de possíveis e ponderosas razões para tal[9].
Sendo cristalino, crê-se, que tal não configura nulidade insanável, face ao taxativo elenco decorrente do estatuído no art.º 119º do CPPenal, e que ninguém arguiu qualquer nulidade e/ou irregularidade, uma possível prévia diligência no sentido de ouvir o arguido e apurar das razões de um eventual incumprimento, teriam permitido um debruce sobre a efetiva e real situação e, concomitantemente, a verificação do preenchimento da condição imposta e aqui em sindicância.
Não o tendo feito o Digno Mº Pº, a verdade é que se veio a apurar de modo insofismável, já depois de deduzida a acusação e nas condições suprarreferidas, que o arguido, em tempo, procedeu ao pagamento da quantia de 300 euros a que se havia obrigado, o que ocorreu entre 24 de janeiro de 2021 e 5 de junho de 2021, o que fez mediante 6 prestações de 50 euros cada – cf. fls. 166, 167, 182 e 183.
Assim sendo, estando obrigado a cumprir com essa injunção pecuniária entre 27 de julho de 2020 e 27 de julho de 2021, é patente o cabal respeito pela injunção imposta.
Perante este quadro, cumpre então indagar se bem andou o Tribunal ad quo ao ter concluído pela existência de uma questão prévia que obsta ao conhecimento do mérito da causa.
Decorre do regime expresso no CPPenal que sempre que um processo é remetido para julgamento, o juiz deve começar por o sanear, conhecendo, entre outras vicissitudes, as questões prévias que possam emergir dos autos e que obstem ao conhecimento do mérito e cujos elementos permitam, desde logo pronunciamento[10].
Efetivamente, se nesta altura do processo existe qualquer motivo suficientemente provado que vá certamente impedir que se conheça do fundo da questão, é boa política não continuar no processo sem lhe arredar esse motivo, se for possível, ou pôr-se aqui termo ao processo, se não for possível arredá-lo[11].
Para além de tal resultar de necessidades de economia e celeridade processual, seria completamente inútil receber uma acusação, designar dia para audiência e à mesma dar pelo menos início, quando seja patente a existência de uma causa/razão/motivo que impede a apreciação do mérito da causa[12].
Ora de todo o historial decorrente dos autos, exulta à evidência que o arguido cumpriu atempadamente a injunção pecuniária que lhe foi imposta e que sinais existiam que poderiam conduzir a que o Digno Mº Pº de tal tivesse a possibilidade de conhecimento e concomitante reavaliação da situação, ainda antes de remeter os autos para julgamento.
Por força do despacho proferido a fls. 172, parece seguro que foram dados a conhecer factos ilustrativos de transferências bancárias para a APAV, totalizando a quantia de 300 euros. É certo que até então o arguido não o havia comprovado e que a APAV, muito provavelmente por lapso – veja-se que posteriormente veio a clarificar que o pagamento havia sido feito -, havia informado os autos no sentido do não pagamento.
Todavia, em presença de dúvidas, e face a determinados elementos existentes, pensa-se que se impunha, pelo menos, tentar esgotar todos os meios no sentido de apurar/clarificar o real quadro factual, como aliás se fez posteriormente em momento antecedente ao recebimento da acusação.
Face a este circunstancialismo, tal como o propugnado pelo Tribunal recorrido emerge, crê-se, uma questão prévia[13] a ponderar que, salvo melhor e mais avisada opinião, se entende que se pode assumir como uma efetiva condição de procedibilidade.
Entendendo-se tal como pressuposto ou condição para o exercício da ação penal ou como existência de justa causa para se desencadear a ação penal, entre outras situações, parece poder afirmar-se in casu, que sendo claro que a razão suporte da revogação da suspensão não se verifica e que todo o condicionalismo exigido na decisão da suspensão provisória do processo foi escrupulosamente cumprido, inexiste causa justa para acusar e/ou não estão reunidas as condições necessárias para o desenrolar da ação penal.
Caso assim se não entenda, o que se não concede, é por demais transparente, tal como o defendido pelo Tribunal a quo, que assola um quadro violador de máximas norteadoras do ordenamento jurídico português, mormente o princípio ne bis in idem – art.º 29º, nº5 da CRP[14] – e o princípio da necessidade – art.º 18º, nº2 do mesmo complexo legal, que reclamam que verificado que o arguido foi indevidamente acusado, se retirem as devidas consequências e, nessa medida se repare, no imediato a ilegalidade cometida. Aliás, como já se apontou, não se descortina como é que o Digno Mº Pº perante a existência de notas que poderiam demonstrar que o arguido havia efetivamente cumprido a condição fixada, não esgotou todas as hipóteses que estariam ao seu alcance no sentido do esclarecimento/clarificação e prosseguiu com o processo nos termos sobreditos.
Dar seguimento aos autos, estribado numa mera formalidade, e pura e simplesmente defender que aqui só o arguido se pode opor à opção do Ministério Público requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua[15], para além de poder significar um ónus probatório que se duvida caber ao arguido[16], seria um prolongar de ilegalidade cometida e sobejamente demonstrada face a todos os elementos que foram coligidos e, ainda, insistir na prática de atos processuais inúteis com tudo o que isso acarreta.
Não se desconhece variado entendimento no sentido defendido pelo Digno Mº Pº e que em muitas situações de incumprimento de injunções e regras de conduta, “a forma se sobrepõe (demasiadas vezes) ao conteúdo”[17] e, nessa medida, se defende que perante a inércia do arguido ao não ter requerido a abertura de instrução, nada mais resta que prosseguir com os autos. Contudo, não é esse o caminho que aqui se sufraga.
Persistir no curso do processo na linha do pensamento adiantado e aqui pretendido pelo Digno Mº Pº significaria, em última instância, dar lugar a uma nova ação contra o mesmo agente, sustentada nos mesmos factos, configurando o mesmo crime, em evidente confronto ao que reza o art.º 29º, nº5 da CRP, violando a máxima ne bis in idem, segundo a qual a mesma conduta criminosa não pode ser valorada, apreciada e julgada com vista à aplicação de uma sanção, por mais do que uma vez. A cada infração cabe apenas e só uma punição, não podendo o agente ser novamente perseguido criminalmente no âmbito do exercício do poder punitivo do Estado[18].
Assim se conclui que a decisão recorrida não merece qualquer censura, devendo ser mantida, sendo de negar provimento ao recurso interposto pelo Digno Mº Pº.

III - Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes Secção Criminal – 2ª Subsecção - desta Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo Digno Mº Pº mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas por o Mº Pº não estar sujeito a tributação (art.ºs 513º a 515º/1 CPPenal, à contrario sensu e 4º/nº 1, alínea a) do RCP).

Évora, 21 de junho de 2022
(o presente acórdão, integrado por onze páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, nº 2, do C.P.P.)

Carlos de Campos Lobo
António Condesso - Adjunto
Gilberto Cunha - Presidente


__________________________________________________
[1] Cf. fls. 201.
[2] CAEIRO, Pedro, Legalidade e Oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente do sistema”, in Revista Ministério Público 84, 2000, p. 39.
[3] Neste sentido, também, MENDES, Paulo de Sousa, Lições de Processo Penal, Almedina, 2015, p. 83 - “após a revisão de 2007, o CPP impõe, excepto nos crimes em que a medida legal da pena não o admita, que o Ministério Público privilegie uma solução de consenso, em vez de uma solução de conflito. As alterações introduzidas no CPP quanto à suspensão provisória do processo clarificam a obrigatoriedade da sua aplicação quando verificados os respectivos pressupostos e requisitos”
[4] Cf. fls. 147 dos autos.
[5] Neste sentido, GASPAR, António Henriques, SANTOS CABRAL, José António Henriques dois Santos, COSTA, Eduardo Maia, OLIVEIRA MENDES, António Jorge de, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, Código de Processo Penal – Comentado, Edição de 2016-2ª Edição Revista , Almedina, pg. 946 e ainda, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, pg.741 – “ Não há revogação automática da suspensão provisória do processo, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento.”
[6] Neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-09-2017, Processo n.º 81/14.0GTCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt e, bem assim, Revista do Ministério Público, Ano 34, n.º 134, Abril-Junho 2013, pp 43-61.
[7] Neste sentido, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário de Código de Processo Penal, Tomo III Artigos 191º a 310º, 2ª Edição, 2022, Almedina, pg. 1173.
[8] Neste sentido, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Ibidem, pg. 1174.
[9] O Digno Mº Pº limitou-se a reproduzir os elementos existentes nos autos até então, sem proceder a qualquer valoração da culpa do aqui agente – “O arguido foi notificado para em 10 dias juntar aos autos o comprovativo do cumprimento da injunção pecuniária – cf. fls. 137, nada tendo junto ou dito até à presente data. Solicitada informação à APAV – cf. fls. 143, veio esta Entidade referir que não existe qualquer pagamento por parte do arguido- cfr. fls. 143”.
[10] Como nas palavras de LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume II (Artigos176º a 361º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, pg. 519 –o processo penal, transitado para a área jurisdicional e, antes de ser presente à audiência, tem de passar por um trabalho de expurgação ou saneamento de tudo quanto possa constituir embaraço ou obstáculo à apreciação e resolução do que verdadeiramente está em causa.
[11] OSÓRIO, Luís, Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. V, pg. 11, citado por LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume II (Artigos176º a 361º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, pg. 519
[12] Neste sentido Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, Coimbra Editora, pp.765 e 766.
[13] Como é defendido por GASPAR, António Henriques, SANTOS CABRAL, José António Henriques dois Santos, COSTA, Eduardo Maia, OLIVEIRA MENDES, António Jorge de, MADEIRA, António Pereira, GRAÇA, António Pires Henriques da, Ibidem, pg.989, Manda a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto (…) Deverá verificar, pois, da eventual ocorrência de qualquer circunstância, seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo.
[14] Consagra-se aqui a proibição de uma dupla valoração dos mesmos factos, pretendendo-se conferir garantias de que o cidadão não será confrontado com possíveis arbitrariedades do jus puniendi do Estado. Neste sentido, MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Volume I, Preâmbulo Princípios Fundamentais Direitos e Deveres Fundamentais, Artigos 1ºa 79º, 2ª Edição Revista, 2017, Universidade Católica Editora, pg. 491.
[15] Requerimento de Recurso do Digno Mº Pº, cf. fls. 193 vº.
[16] Parece questionável que perante uma decisão de revogação da suspensão provisória do processo, se imponha ao arguido provar que cumpriu as injunções e não antes ao Mº Pº, autoridade judiciária a quem compete tomar a decisão de revogação, provar a bondade dessa decisão e, consequentemente, demonstrar que houve incumprimento.
[17] CONDE FERREIRA, Incumprimento parcial dos prazos, injunções e regras de conduta fixados na suspensão provisória do processo”, in Revista do Ministério Público, 134, 2013, p. 50).
[18] Ver neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-03-2016, Processo n.º 361/12.9GTABF.E1, disponível em www.dgsi.pt, e também citado no despacho recorrido.