Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO JOÃO LATAS | ||
Descritores: | PECULATO DE USO REENVIO PARCIAL | ||
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Data do Acordão: | 12/02/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
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Sumário: | 1. A apropriação de dinheiro ou qualquer coisa móvel, enquanto elemento normativo do tipo de peculato, previsto no art. 375.º do Código Penal, não abrange as hipóteses de mera utilização de dinheiro com intenção de restituição, mas apenas a disposição de quantia monetária afeta a fins públicos com o propósito de a integrar no seu património como coisa sua. 2. O n.º1 do art. 376.º do C. Penal pune, como peculato de uso, a conduta do funcionário que, temporariamente, fizer uso, em benefício próprio, de dinheiro, público ou particular, que esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções. Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. Relatório 1. - Nos autos com o número em epígrafe que correm termos no 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Faro, foram pronunciados para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal coletivo: - JG, EV, AC, AS, CG e CT, imputando-se: - ao arguido JG, a prática de cinco crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375° n.º1 do CP; - ao arguido EV, a prática de dois crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375° n.º1 do CP; - ao arguido AC, a prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; - ao arguido AS, a prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; - ao arguido CG a prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; - ao arguido CT, a prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP. 2. – - Realizada audiência de Julgamento, decidiu o tribunal coletivo: - Absolver o arguido JG da pronúncia da prática de cinco crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375° n.º1 do CP; - Absolver o arguido EV da pronúncia da prática de dois crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375° n.º1 do CP; - Absolver o arguido AC da pronúncia da prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; - Absolver o arguido AS da pronúncia da prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; - Absolver o arguido CG da pronúncia da prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; - Absolver o arguido CT da pronúncia da prática de dois crimes de auxílio material, p. e p. pelo art. 232° do CP; 3. – Recorre agora o MP da parte do acórdão que absolveu o arguido JG da prática de dois dos cinco crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375° n.º1 do C, que lhe vinham imputados (situações I e III apreciadas no acórdão absolutório), extraindo da sua motivação as seguintes: «CONCLUSÕES: Pelo exposto, em conclusão: a) o recurso visa somente a reapreciação da decisão quanto ao arguido JG; b) Impugna-se a decisão proferida sobre matéria de facto em relação ao ponto p) dos factos não provados do acórdão recorrido; c) Os documentos juntos ao processo, especificamente o cheque a fls. 610, a carta a fls. 44, o recibo do anexo 23 da perícia apensa e os cheques de fls. 137 a 140 evidenciam que o arguido, tendo levantado em 7/6/2002 o cheque que a AF emitira para pagamento do Hotel …, durante cerca de 6 meses não fez entrega desse dinheiro nem satisfez tal pagamento ao Hotel; d) os documentos citados, apreciados segundo as regras da experiência, comprovam que "O arguido JG guardou o montante levantado, referido em 16, para si, fazendo-o seu e gastando-o em seu proveito" ; e) Assim, deve a matéria de facto fixada no acórdão ser alterada, dando-se como provados os factos que constam da alínea p) do nº 3 do acórdão recorrido; f ) o acórdão deu como provado, com base em depoimentos e documentos que especifica, que o arguido procedeu ao pagamento de uma dívida pessoal de 26 635,59€ com um cheque (e fundos)da AF; g) mas, com base nessa mesma prova, julgou não provado que o arguido se tivesse "apropriado" de tal montante e que "o quis fazer, sabendo que não podia apoderar-se dessa quantia e gastá-la a em seu proveito e com dano patrimonial para a AF"; h) constitui um erro notório na apreciação da prova que, estabelecendo os elementos probatórios que o arguido gastou o dinheiro da AF para pagar dívidas pessoais, desses mesmos elementos probatórios se conclua que o arguido não se "apropriou" do montante que despendeu; i) sendo essencialmente a partir dos factos objetivos provados e das circunstâncias que os envolvem que têm de se surpreender os elementos subjetivos que a decisão implica, há erro notório na apreciação da prova no acórdão ao (não) avaliar os concretos factos e circunstâncias mencionados; j) assim, há erro notório na apreciação da prova, vício que resulta do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum - art. 410, n º 2, C) do CPP - em relação aos factos não provados descritos na alínea C) do acórdão; l) constando da sentença todos os elementos que conduziram à decisão recorrida e não sendo necessários outros para uma nova decisão, a aplicação das regras da experiência comum àqueles elementos permite corrigir a parte da matéria de facto incorretamente fixada; m) devendo portanto ser alterada a matéria de facto fixada no acórdão recorrido, dando-se como provados os factos constantes da alínea C) do nº 3 do mesmo; n) nas designadas situação I e situação III do acórdão, considerando todos os factos provados, estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de peculato p. e p. no art. 375, nº 1 do CP; o) ao contrário do que defende o acórdão recorrido, não podem os funcionários tomar de empréstimo o dinheiro que lhes está confiado, sendo irrelevante para verificação do crime de peculato a intenção do funcionário de vir a devolver o dinheiro; p) não existe uma "lacuna de punibilidade" no art. 376, n:1 do CP em relação ao "dinheiro" pois, pelas suas características especiais, o seu desvio, aproveitamento ou utilização implicam que o agente o tenha feito seu e que, consequentemente, o crime do art. 375, nO:1 do CP se tenha consumado de imediato; q) atentas as circunstâncias relevantes, conforme art. 71 do CP, as penas justas e adequadas para o arguido são de 2 anos de prisão (situação I) e de 1 ano e 6 meses de prisão (situação III), e em cúmulo 2 anos e 6 meses de prisão; r) não se verificando exigências de prevenção especial ou geral que imponham o cumprimento da pena de prisão, deverá ser suspensa na sua execução por igual período, conforme art. 50º do CP; s) pelo que o acórdão recorrido deverá ser parcialmente revogado, condenando-se o arguido JG pela prática de dois crimes ps. e ps. no art. 375, nº :l do CP, nas penas de 2 anos e de 1 ano e 6 meses de prisão, em cúmulo na pena de anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução. » 4. – Notificados, o arguido recorrido e os demais arguidos nada disseram. 5. - Neste Tribunal da Relação, a senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. 6 – Cumprido o nº.2 do art.417º do CPP, não foi apresentada resposta. 7. - O acórdão recorrido (transcrição parcial): « 2. Factos provados 1) Os arguidos foram membros da direção da Associação de Futebol… entre 2002 e 2005, sendo estes os cargos que ocupavam: JG- Presidente; AC - Tesoureiro; EV- Vice-Presidente; AS- Vogal; CG - Vogal; CT - Vogal do Conselho Técnico. 2) A Associação de Futebol…é uma associação de utilidade pública, o que foi instituído pela Declaração da Presidência do Conselho de Ministros de --- de abril de 1984, publicada no Diário da Republica, II Série de….. Situação I: 3) O arguido JG organizou em 12 e 13 de junho de 2002, em Fortaleza, na R. F. do Brasil, um "Congresso de Futebol…", sendo que a sua organização não foi decidida pela Direção da AF e foi publicitada como sendo custeada pelo arguido JG. 4) Embora o evento se realizasse entre os dias 12 e 13 de junho de 2002, a estadia dos participantes do Congresso durou entre 8 e 15[1] de junho de 2002. 5) Para a realização do evento o arguido JG contactou agências de viagens, entre as quais a agência "H". 6) No âmbito deste contacto e por via da realização do congresso, a "H" deveria receber 26.635,59 euros, tendo esta emitido a fatura n.º 118/191089-2[2], para pagamento pela Associação de Futebol… 7) O arguido JG procedeu ao pagamento da fatura emitida pela "H" através do cheque 98938411[3] da conta bancária que a AF tem no BPI e com fundos da AF. 8) O arguido JG sabia que a quantia de 26.635,59 euros, que entregou à "H", não era sua mas da AF. 9) O arguido JG antes de efetuar o pagamento referido em 8, assumiu o compromisso de devolver o dinheiro à AF, devolução que ocorreu em maio de 2003[4]. Situação II: 10) A A. entregou ao arguido João Gomes o cheque 2570769844, sacado sobre a conta 17077714 do BCP, no valor de 5.000 euros. 11) A A…, Lda entregou ao arguido JG o cheque 9470743420, sacado sobre a conta 17077714 do BCP, no montante de 2.493,99 euros, datado de 24.05.2002, tendo como tomadora a AF. 12) Os arguidos JG e EV assinaram o verso deste cheque. Situação III: 13) Teve lugar um torneio em março de 2002 e as equipas que o disputaram ficaram alojadas no Hotel …, em Monte Gordo. 14) Esse alojamento seria pago pela Associação de Futebol…e importou em 13.363,22 euros. 15) A Associação de Futebol emitiu para pagamento do Hotel… um cheque datado de 07.06.2002, no montante de 13.846,10 euros, sacado sobre a conta 7666869101 do BPN, cheque que foi emitido ao portador e entregue ao arguido JG. 16) O arguido João Gomes não entregou o cheque ao Hotel … e levantou o montante titulado. 17) A dívida ao Hotel … extinguiu-se por encontro de contas ocorrido em data não apurada. Situação IV: 18) Em 18 de fevereiro de 2004 teve lugar a inauguração do Estádio do Algarve, com um desafio entre as seleções nacionais de Portugal e Inglaterra. 19) O jogo era uma organização da Federação Portuguesa de Futebol, cabendo à AF a distribuição dos bilhetes de ingresso, onde se incluíam ingressos de cortesia, entregues por convite. 20) A AF tinha o encargo de vender e distribuir os bilhetes e controlar as entradas para o jogo. 21) Após o jogo, apurou-se que, por conta da AF, tinham sido distribuídos bilhetes no valor de 427.365 euros. 22) Não foi recebida a quantia correspondente a cerca de 500 bilhetes – não considerando os bilhetes referidos em 23. 23) A Federação Portuguesa de Futebol tinha entregue à AF 200 bilhetes destinados a ser oferecidos a convidados. 24) Os arguidos AS e AC tinham levantado bilhetes, entregando os respetivos valores. 25) Os arguidos JG e EV levantaram bilhetes. 26) Os arguidos JG e EV não entregaram os valores de bilhetes que levantaram, tendo o arguido JG oferecido bilhetes (além dos referidos em 23). 27) Em reunião prévia ao jogo com representantes da FPF, a AF, através do arguido JG, referiu que precisava de mais bilhetes para oferecer, o que foi aceite pela FPF, devendo estes bilhetes ser descontados na percentagem das vendas que cabia à AF, sendo esta uma prática que ocorre em todos os jogos da FPF organizados pelas Associações de Futebol. Situação V: 28) Em 19 de fevereiro de 2004, a direção da AF efetuou uma reunião em que se encontravam presentes JG, EV, AC, AC, CG e CT, que assinaram a ata. 29) Dessa reunião foi lavrada a ata n.º 22 da época de 2003/2004, na qual foi decidido, por unanimidade, aprovar a oferta dos ingressos para os filiados da AF e ás entidades oficiais que solicitaram ingressos, como a Câmara Municipal de Castro Marim, Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, Câmara Municipal de Alcoutim, Câmara Municipal de Lagoa, Câmara Municipal de Loulé, Câmara Municipal de Aljezur, Governo Civil de Faro, Região de Turismo do Algarve, Bombeiros Municipais, Proteção Civil, Junta de Freguesia da Sé, Imortal de Albufeira Futebol SAD, num total de 510 bilhetes, perfazendo o montante global de 11.495 euros. 30) A Região de Turismo do Algarve recebeu 10 bilhetes da AF, a Câmara Municipal de Aljezur 2 bilhetes, a Câmara Municipal de Alcoutim 1 bilhete, a Câmara Municipal de Lagoa 2 bilhetes, a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António 4 bilhetes, e a Câmara Municipal de Castro Marim 10 bilhetes, num total de 29 bilhetes. 31) Os arguidos sabiam que agiam em nome da Associação de Futebol e que esta é uma pessoa coletiva de utilidade pública. 32) Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente. 3. Factos não provados Não se logrou provar que: a) o congresso referido em 3 foi organizado pela AF, cabendo apenas a iniciativa ao arguido JG (e não a organização, como consta de 3 dos factos apurados), que usou para esse fim as estruturas da AF. b) a estadia referida em 4 ocorreu também no dia 16, e o tempo dos participantes no congresso, para além dos dias 12 e 13 de junho, foi dedicado a agendas de lazer. c) o arguido apropriou-se dos 26.635,59 euros referidos em 6 a 8, o que previu e quis fazer, sabendo que não podia apoderar-se dessa quantia e gastá-la em seu proveito e com dano patrimonial para a AF[5]. d) em 10 de outubro de 2002 a A., Lda patrocinou a Associação de Futebol com a quantia de 5.000 euros, através do cheque 2570769844, referido em 10, e com vista à realização do Torneio Inter-Regiões Sub-18. e) a quantia referida em 10 era destinada à AF mas o arguido JG apropriou-se do montante titulado pelo cheque, fazendo-o seu. f) o arguido JG sabia que esta quantia se destinava a ser entregue à Associação de Futebol, o que não fez, antes a guardando para si e gastando-a em proveito próprio, com dano patrimonial para a AF, o que previu e quis. g) o arguido JG depositou o cheque referido em 10 numa conta bancária sua. h) o cheque referido em 11 foi entregue ao arguido JG em 24 de maio de 2002 e era destinado à Associação de Futebol. i) o arguido JG depositou esse cheque numa sua conta bancária do BPI, apropriando-se do montante titulado pelo cheque, fazendo-o seu e usando-o em proveito próprio. j) o arguido JG sabia que esta quantia de 2.493,99 euros se destinava a ser entregue à Associação de Futebol, o que não fez, antes a guardando para si e gastando-a em proveito próprio, com dano patrimonial para a AF, o que previu e quis. l) o arguido EV sabia que esta quantia de 2.493,99 euros, entregue pela A. ao arguido JG, não se destinava a ele mas que se destinava a ser entregue à Associação de Futebol, e, no entanto, endossou o cheque, como Diretor da AF, de modo a que aquele JG pudesse usar tal quantia em proveito próprio, com dano patrimonial para a AF, o que previu e quis. m) os arguidos agiram em comunhão de esforços e de intentos na prossecução de um plano traçado entre ambos, n) em 13, tratava-se do Torneio Inter-Regiões Sub-18 e foram quatro as equipas alojadas no Hotel… o) o cheque referido em 15 tinha o valor de 13.363,22 euros. p) o arguido JG guardou o montante levantado, referido em 16, para si, fazendo-o seu e gastando-o em seu proveito. q) a AF vendeu 16.996 bilhetes, que geraram uma receita bruta no valor referido em 21 dos factos provados. r) os bilhetes referidos em 22 eram 510, tendo o valor de 11.495 euros. s) dos bilhetes referidos em 23, 100 tinham o valor nominal de 30 euros e 100 o valor nominal de 25, tendo todos ficado na posse do arguido JG. t) Os arguidos AS e AC tinham reservado bilhetes, e os bilhetes referidos em 24 foram por eles vendidos. u) os arguidos JG e EV reservaram bilhetes e venderam esses bilhetes. v) o arguido EV apropriou-se de 300 euros provenientes da venda de 10 bilhetes no valor nominal de 30 euros cada, quantia que fez sua e gastou em seu proveito. x) o arguido JG vendeu bilhetes no valor de 5.695 euros, sem prestar contas de tal valor, ficando com o mesmo e gastando-o em seu proveito. z) Como aqueles dirigentes que assinaram a ata sabiam, e das entidades referidas, apenas a Região de Turismo do Algarve recebeu 10 bilhetes da AF, a Câmara Municipal de Aljezur 2 bilhetes, a Câmara Municipal de Alcoutim 1 bilhete, a Câmara Municipal de Lagoa 2 bilhetes, a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António 4 bilhetes, e a Câmara Municipal de Castro Marim 10 bilhetes, num total de 29 bilhetes. aa) Os arguidos AS, AC, CG e CT sabiam que não tinham sido oferecidos 510 bilhetes e que o que faziam constar da ata apenas se destinava a ocultar o facto dos arguidos JG e EV terem ficado com os bilhetes, os terem vendido e de se terem apropriado do produto da sua venda em proveito pessoal. ab) sabiam que lhes competia elaborar e assinar a ata com elementos verdadeiros e não de ficção, como era o caso, e que deste modo ajudavam os arguidos JG e EV a guardar as quantias provenientes da venda dos bilhetes, o que previram e quiseram. ac) os arguidos sabiam que as suas condutas não lhes eram permitidas. ad) o arguido AS não teve conhecimento, ao assinar a ata 22, que era falso o que aí constava quanto ao número de bilhetes de cortesia, acreditando que era verdadeira. ae) as informações constantes da ata foram todas prestadas pelo arguido JG. 4. Fundamentos da decisão sobre os factos em discussão O apuramento dos factos reportados em 1 e 2 decorreu dos documentos de fls. 564[6], 557 e 377/574. O apuramento dos factos descritos em 3 a 7 assentou nos depoimentos, honestos e críveis, das testemunhas MD [funcionária da AF há 20 anos], AF [desempenhou funções na AF, mormente na área financeira] e HB [vogal da direção da AF de 1998 a janeiro de 2001, sendo a partir de 2002 funcionário da AF], em conjugação com os documentos de fls. 101, 203, 205, 207 e ss., 218 e ss. e 290 e ss. dos autos e fls. 10, 12, 14, 16 e 18 do exame pericial apenso. Em particular, a entrega do cheque em causa ao arguido JG resultou dos depoimentos das aludidas testemunhas AF e HB [sendo que, notoriamente, apenas este arguido tinha interesse na utilização do cheque no pagamento da dívida, pessoal, à H]. No que toca ao descrito em 9, atendeu-se especialmente aos depoimentos das aludidas testemunhas AF e HB, relatando a primeira, de forma convincente, os factos em causa, sendo a sua versão corroborada pelo depoimento desta segunda testemunha. O apuramento destes factos, nestes termos, explica ainda a exclusão da matéria descrita na al. c) dos factos não provados. A data de pagamento decorreu do depoimento desta última testemunha, articulado com os documentos de fls. 40/41 (e apesar do recibo de fls. 18), todos do exame pericial apenso. O apuramento dos factos descritos em 10 e 11 decorreu do depoimento da testemunha DL [representante da A à data dos factos], a qual reportou a matéria em causa em termos diretos e serenos, em conjugação com os documentos de fls. 110 e 127 (cheque de 5.000 euros) e 379 (e 43 e 109) (cheque de 2.439,99 euros). Quanto ao descrito em 12, atendeu-se ao teor de fls. 370 (onde se veem as assinaturas), em conjugação com o depoimento da aludida testemunha MD, que as reconheceu. No que toca aos factos não provados descritos nas al. d), e) [na sua primeira parte] e h) dos factos não provados, não foi produzida prova cabal ou convincente sobre essa matéria. Assim, e de um lado, a testemunha DL afirmou que os valores em causa não eram destinados à AF, a título de patrocínio ou outro. De outro lado, o primeiro dos cheques em causa (5.000 euros) estava emitido em nome do arguido. Perante estes dados, os documentos de fls. 41/42 e 34 do exame pericial apenso (incluindo um recibo de 5.000 euros), cujo significado a aludida testemunha DL não confirmou, eram claramente insuficientes para suportar a matéria excluída. Por fim, e quanto ao cheque 9470743420, no montante de 2.493,99 euros, continuou a valer o depoimento da testemunha DL, quando negou que o valor titulado se destinasse à AF, apesar de esta entidade constar do cheque como sua tomadora - circunstância que a testemunha não explicitou por, segundo afirmou, apenas assinar o cheque, cabendo a uma sua colaboradora o seu preenchimento. Perante estes elementos, ou mais em rigor, perante o depoimento do autor do pagamento (DL), não foi possível formar uma convicção segura sobre a matéria excluída [sendo que, no limite, sempre persistiria uma dúvida, racionalmente fundada nos referidos elementos probatórios, e irremovível, que deveria beneficiar o arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo]. Os depoimentos das testemunhas AF e JR [fez parte da direção da AF] foram, nesta parte, inaproveitáveis porque meramente indiretos (baseando-se até, o segundo, em meros comentários de origem não identificada). Quanto aos factos das al. e) [na sua segunda parte], f), i) [na sua segunda parte], j), l) e m) dos factos não provados, o apuramento dessa matéria ficou prejudicada pela exclusão dos factos objetivos em que ela se baseava. Nenhuma prova confirmou a matéria das al. g) e i) [na sua primeira parte], e bem assim a data de entrega do cheque (que não tem que coincidir com a data que nele está aposta) referida na al. h). O apuramento dos factos descritos em 13 a 16 assentou nos depoimentos da aludida testemunha MD e de GR [diretor do Hotel… à data dos factos], em conjugação com os documentos de fls. 44 e 52/56 do exame pericial apenso e 610 dos autos [a assinatura do verso foi reconhecida pela testemunha MD como sendo do arguido JG], e de fls. 141 e ss. dos autos [que a testemunha GR referiu se reportarem aos serviços prestados] e 59 do exame pericial apenso [que a testemunha MD também referiu reportar-se ao cheque emitido] - sendo que a conjugação destes documentos (pelo n.º das faturas referidas a fls. 59 do exame pericial, correspondentes ás que constam de fls. 141 e ss. dos autos) também revela estarem em causa os mesmos serviços. Em especial, e quanto à parte final de 16, levou-se em conta o verso do cheque, cujos elementos revelam que o cheque foi levantado (por quem o assina no verso, ou seja, o arguido JG), não tendo sido depositado em conta bancária. O cheque em causa (fls. 610) revela o seu valor, explicando a exclusão da matéria descrita na al. o) dos factos não provados. A diferença entre o valor devido ao Hotel e o valor do cheque deve-se a lapso da AF, explicitado a fls. 87. O descrito em 17 decorreu do documento de fls. 685 dos autos, o qual, contudo, não exprimia a data relevante [notando-se, ainda, que existe a fls. 59 do exame pericial apenso um recibo de dezembro de 2002 (aparentemente dando quitação) que é depois contrariado pelo documento de fls. 44 (do mesmo mês de 2002) onde o Hotel reclama o pagamento, o que impediu que a eles se atendesse para fixar qualquer data relevante]. No que concerne à al. p) dos factos não provados, não foi feita prova direta da apropriação. Ela poderia inferir-se da circunstância de o valor titulado pelo cheque ter sido levantado pelo arguido (facto descrito em 16), sem que tal valor tenha sido logo entregue ao Hotel… [como já parece decorrer de fls. 44 mas resulta diretamente de fls. 685 e na medida em que aqui se refere que a extinção do crédito do Hotel se dá por «encontro de contas», coisa diversa do pagamento]. Como se sabe, esta inferência constitui o mecanismo interno da prova por presunção [ou, segundo outra perspetiva, da presunção enquanto operação lógica de demonstração de factos ignorados], sendo que ela apenas pode ser aceite, nos seus resultados lógicos, quando conduza a um resultado unívoco, revestido de uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável. Ora, sucede que a referida inferência é perturbada pela circunstância de a dívida àquele Hotel se vir a extinguir sem intervenção da AF [como decorre do facto de a sua contabilidade não refletir novo pagamento ou acerto de contas, e de o recibo de fls. 59 do exame apenso reportar o cheque como forma de pagamento da dívida], havendo ainda um outro episódio em que valores da AF foram usados pelo arguido JG a título transitório, isto é, sem intenção de apropriação. O que bastaria para, motivando explicações alternativas, igualmente possíveis ou admissíveis, introduzir na inferência um elemento de incerteza que prejudica o seu resultado probatório. Impedindo, aliás, a formação de uma convicção segura sobre a efetiva apropriação do dinheiro pelo arguido. Acresce ainda que se ignora também a forma como ocorre o acerto de contas que o Hotel invoca para considerar saldada a dívida (aspeto que a testemunha GR não conseguiu esclarecer), e assim em que elementos ela se baseia, e desde quando eles existem. Pelo que não está de todo arredada a possibilidade de o arguido JG ter efetuado realmente um adiantamento ao Hotel, como a testemunha MD disse que ele afirmara quando foi emitido o cheque da AF. Ou, ao menos, a possibilidade de a extinção da dívida ao Hotel se ter efetuado com compensação (acerto de contas) com crédito (do arguido JG ou de terceiro) sobre o Hotel, que já existisse na data em que o arguido JG levantou o cheque, e crédito com o qual este contasse. De todo o modo, abriam-se várias possibilidades plausíveis que, não sendo arredadas (nem esclarecida a situação), sempre beneficiariam o arguido. Donde se ter excluído a matéria em causa. Quanto à al. n), não foi produzida qualquer prova que a revelasse. O apuramento dos factos descritos em 18 a 20 decorreu das declarações, atendíveis, dos arguidos AC, AS e JG, que reportaram tais factos. Tais declarações sustentaram ainda a matéria descrita em 24. Quanto ao descrito em 21, atendeu-se ao documento de fls. 513, que corresponde à última informação disponível sobre a matéria (embora fls. 479 e 688/9, mais antigos, indiquem valores diferentes). Estes documentos explicam ainda a exclusão do descrito na al. q) dos factos não provados, por não confirmarem esta matéria. No que concerne ao descrito em 22, atendeu-se aos depoimentos das testemunhas MD e DB [secretário da FPF à data dos factos], ás declarações do arguido JG (quando admitiu que houve cerca de 500 bilhetes que não foram vendidos, donde se não ter recebido o seu valor) e aos depoimentos, críveis e honestos, das testemunhas MD e HB. O documento de fls. 466 (reforçado a fls. 1316) sustentou a fixação do descrito em 23. No que concerne ao descrito em 25 e na primeira parte de 26, atendeu-se ao depoimento, especialmente convincente, da testemunha MD, que confirmou que os bilhetes cujo valor faltava (onde se incluíam os bilhetes entregues ao arguido EV) não foram pagos, tendo sido incluídos nesses termos no mapa de fls. 688. Quanto ao pagamento que o arguido AC afirma ter efetuado por conta do arguido EV, as declarações deste arguido, pela sua inconsistência, flutuação e incoerência em tudo o que excedeu os dados objetivos descritos em 18 a 20 dos factos provados, mostraram-se imprestáveis, impedindo que aqui se atribuísse a essas declarações qualquer valor persuasivo. No que toca ao descrito na segunda parte de 26, o arguido JG afirmou ter oferecido os bilhetes que levantou, ao abrigo de acordo com a FPF obtido em reunião prévia à realização do jogo. Tal reunião foi comprovada pela referida testemunha DB, em termos críveis e isentos [justificando, aliás, o apuramento dos factos descritos em 27], o que consubstanciaria um elemento corroborador da versão daquele arguido. No mesmo sentido (corroborando ofertas além dos 200 convites) depunha a testemunha JB [a qual confirmou que foram oferecidos bilhetes «vendáveis», ou seja, bilhetes que estavam para além dos 200 «convites» oferecidos pela FPF] ou a testemunha HB [pelo elenco de entidades que referiu e que beneficiaram de bilhetes oferecidos]. De outra banda, nenhuma prova direta foi produzida que tendesse a revelar a realização de qualquer venda (por qualquer dos arguidos). Em sentido tendencialmente contrário à existência da oferta de bilhetes, monta a circunstância de nem todas as entidades que foram indicadas como sendo as beneficiárias dos bilhetes (no documento de fls. 688 e na ata de fls. 435) terem confirmado a imputação (e as confirmações efetuadas ficam muito aquém do número de bilhetes em causa). Sem embargo, também se nota que a menção da ata de fls. 435 parece ser meramente exemplificativa («como», diz-se aí), o que se tende a confirmar face ao depoimento da aludida testemunha HB [que indica ofertas a entidades diversas das elencadas]. Nestes termos, e por fim, o único elemento probatório coincidente com a imputação efetuada resumia-se ás declarações do arguido AC quando afirmou que o arguido JG teria dito que vendera alguns destes bilhetes. Mas, além de se tratar de declarações indiretas (com o elenco de dificuldades que suscita no âmbito das declarações de arguidos[7]), reportando factos que o arguido JG negou, já se deixou dito que as declarações daquele AC se mostraram, realmente, imprestáveis, não permitindo fundar nelas qualquer valoração válida. Perante estes dados, teve-se por seguro que eles não permitiam, de todo, sustentar a venda imputada aos arguidos [e daí a exclusão dos factos descritos nas al. v) e x) dos factos não provados]. Quanto à versão do arguido JG, reportada à oferta dos bilhetes, ela mostrou-se razoável e verosímil, sendo, como se disse, de algum modo sustentada pelo acordo descrito em 27 dos factos provados[8] ou pelos aludidos depoimentos de JB e HB. Fica, apenas, fragilizada pela aludida imprecisão quanto à indicação das entidades beneficiadas com as ofertas, a qual pode suscitar algumas reservas à versão do arguido. Nestes termos, considerou-se que subsistia aqui uma dúvida sobre a ocorrência das invocadas ofertas, racional e objetivamente fundada nos aludidos elementos probatórios, e que não era suscetível de ser ultrapassada por outros meios probatórios disponíveis, a produzir. Ora, constitui corolário do princípio in dubio pro reo que toda a dúvida, incluindo a dúvida sobre factos favoráveis ao arguido, se deve resolver de forma que favoreça este arguido. Sendo que, tratando-se aqui de um princípio que opera no domínio do facto, ele deve ser esgrimido nesta sede [quando se fixam os factos pertinentes] e deve conduzir desde logo à descrição do facto favorável. Até porque este princípio prescinde da convicção do tribunal na resolução da dúvida fundada. Como refere C. Líbano Monteiro, «diz o princípio que os primeiros [factos favoráveis ao arguido] devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos» [in Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora 1997, pág. 53; também assim Teresa Beleza, com a colaboração de Frederico Isasca e Rui Sá Gomes, Apontamentos de Direito Processual Penal, 1992, pág. 86]. Pretender relegar o seu uso para momento posterior [«do direito»] equivale a esquecer o alcance (exclusivamente probatório) do princípio e a recorrer a um artifício, ficcionando um facto [ao operar com uma dupla negação (não se provou que o facto ocorreu mas também se não provou que o facto não ocorreu) para concluir em termos abstratos pelo facto duvidoso, esquecendo que a dupla negação, em termos ônticos, nada significa] que, em termos processuais, ou existe ou não. E, também em termos processuais, o que o aludido princípio diz é que tanto é seguro, para a verdade material que importa à decisão, o facto demonstrado de forma certa, como o facto que beneficia o arguido e sobre cuja existência permanece uma dúvida fundada. Donde o apuramento desta matéria. O apuramento dos factos reportados em 28 e 29 decorreu da ata documentada a fls. 435. Quanto ao descrito em 30, atendeu-se ao teor de fls. 442, 444 (445/6), 448, 450, 452, 454, 456, 458, 460 e 462. Quanto ao descrito em 8, 31 e 32, decorria, com apoio nas regras da normalidade, das descritas condutas dos arguidos, à luz dos cargos que desempenhavam. Quanto aos factos não provados descritos nas als. a), b), r) [teve-se por insuficiente a menção constante da ata de fls. 435 por não ter sido explicitada a origem dessa menção], s) e t), u), e z) a ae) dos factos não provados, foram excluídos por não ter sido produzida prova que os confirmasse ou por se terem apurado factos distintos, incompatíveis com aqueles que se excluíram. Os demais factos constantes da contestação do arguido AS são, em si, irrelevantes (sendo, quanto muito, dados indiciários da sua alegada ignorância). 5. Apreciação dos crimes imputados Imputa-se ao arguido JG a prática de cinco crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375° n.º1 do CP. Segundo aquele art. 375º n.º1 do CP, incorre em responsabilidade criminal o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções. São, assim, os seguintes os elementos típicos objetivos deste crime; i. que o agente dos factos seja um funcionário, ii. que ocorra a apropriação, por parte deste, de dinheiro ou coisa móvel (pública ou particular), iii. que a apropriação seja ilegítima, e iv. que o dinheiro ou a coisa móvel apropriada lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções. Salientando o elemento típico «apropriação», por verdadeiramente nuclear do tipo de ilícito em causa, este corresponde «ao ato de fazer seu o bem, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor» [C. Ferreira da Cunha, CCCP, III, pág. 697/8]. Ou, em outra formulação, aquela apropriação «traduz-se sempre (…) precisamente na inversão do título de posse ou detenção (…): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela – naturalmente, através de atos objetivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais – uti dominus» [F. Dias, CCCP, II, pág. 103]. No que toca à situação I, e num plano objetivo, não se provou que o arguido se tenha apoderado do cheque ou dinheiro em causa (i. é, integrado no seu património), apurando-se antes que o arguido realizou uma utilização precária e temporária (e não uti dominus) de dinheiro da AF. O que excluiria a existência daquela apropriação enquanto elemento nuclear objetivo do crime de peculato. Esta asserção não é pacífica quando se trata de bens fungíveis, como o dinheiro, afirmando alguns que a restituição do próprio bem desviado não é possível (dada a sua fungibilidade) e, por isso, qualquer uso indevido, ainda que com intenção de restituição, corresponde logo a uma apropriação. A que acresce, face aos contornos do caso, que, de um ponto de vista estritamente civilista, a utilização do dinheiro da AF, com a obrigação de o devolver, poderia permitir a afirmação da existência de um mútuo, o qual importaria a transferência da propriedade das coisas mutuadas (o dinheiro usado pelo arguido), nos termos do art. 1144º do CC, e, com esta transferência da propriedade, ocorreria ainda uma apropriação. Considera-se, porém, que esta perspetiva, além de estritamente conceitual e, por isso, distante dos interesses em causa, viola o sentido punitivo da previsão legal pois a fungibilidade do dinheiro implica que a coisa restituída seja equivalente, em todos os sentidos, à coisa primeiramente retirada [sem perda de qualidades ou utilidades], e esta equivalência importa, por sua vez, a manifesta artificialidade da afirmação da existência de uma apropriação da coisa fungível pelo seu mero uso já que o que se visa devolver é, de qualquer ponto de vista, idêntico ao que primeiramente se retirou e, neste sentido, é ainda a mesma coisa que se devolve, não existindo aqui qualquer efetiva apropriação (inversão do título da posse). Tal solução é, pois, violadora da tipicidade penal (e também do sentido punitivo da norma, pois esta visa punir a privação definitiva do bem e não a privação temporária, inerente à intenção de uso). Aliás, esta solução assenta em pressupostos técnicos que só fazem sentido para um jurista. No sentido corrente que interessa ao destinatário da norma (e à tutela penal que a previsão delimita), a valoração comunitariamente comum da apropriação excluiria do seu âmbito qualquer utilização sob o animus da devolução futura. De outro lado, a referida perspetiva civilista não quadra com o regime penal em causa pois este supõe que o agente se converte em dono da coisa usurpada por ato seu definitivo e incondicional (inversão do título da posse[9]), pelo qual ele se quer substituir ao verdadeiro titular da coisa, sem intenção de devolução, abstraindo de qualquer efeito estritamente civil da traditio [ou seja, não é este título civil que determina a existência da apropriação pois esta transcende a eventual qualificação civil da situação]. Além disso, ou também por isso, a apropriação que se associasse ao regime do citado art. 1144º do CC teria um caráter exclusivamente formal-civil que não corresponderia ao comportamento apropriativo penalmente relevante. Donde não ter este regime civil relevo específico no caso. Acresce, embora como consequência desta constatação, que também se revela, agora num plano subjetivo, que o arguido não tinha uma vontade apropriativa daqueles bens já que ele tinha noção do caráter precário da utilização de bens da AF que efetuava, assumindo o compromisso de devolver esses bens (como fez). Desta forma, sempre se excluiria o dolo do arguido (no seu elemento volitivo) no que toca à apropriação. Donde não estar preenchida a hipótese legal. O que os factos reportam é uma utilização, indevida, de fundos da AF na satisfação de um interesse particular do arguido JG, o que poderia suscitar a aplicação do regime do art. 376º n.º1 do CP [peculato de uso], segundo qual faz incorrer em responsabilidade criminal o funcionário que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções. Sucede que aquilo que os factos revelam é que o arguido utilizou fundos da AF (matéria descrita em 7 dos factos provados), i. é, dinheiro, para solver a sua dívida perante a H., sendo a utilização do cheque apenas o instrumento de mobilização desses fundos (o meio de pagamento). Pelo que aquilo que é usado abusivamente é apenas o dinheiro da AF, sendo que este art. 376º n.º1 não contempla o uso abusivo de dinheiro, por razões literais, já que só se reporta a veículos ou coisas móveis, sendo que nestas coisas móveis se não inclui o dinheiro (como resulta da comparação com o n.º1 do art. 375º, onde o dinheiro vem tratado como algo diferenciado da coisa móvel). Por isso se considera, embora a solução não seja pacífica, que ocorre aqui uma lacuna de punibilidade que impede a punição do arguido a este título. Quanto à situação II [envolvendo a imputação de dois delitos] e à situação III, os factos apurados também não revelam a existência de qualquer apropriação [os factos que a exprimiam foram excluídos, por não provados]. O mesmo vale, ainda quando à situação III, e porque foram excluídos (por não provado) os factos atinentes à venda de bilhetes e apropriação do respetivo valor, sendo estes que sustentavam a responsabilização criminal dos arguidos em causa. De outra banda, a circunstância de os arguidos JG e EV não terem apresentado o dinheiro de bilhetes que levantaram, os quais foram oferecidos, não corresponde à prática do delito imputado porquanto, não se demonstrando que eles se apropriaram do valor da sua venda, aquela prática estava coberta pelo acordo com a FP referido em 27. (…) » Cumpre apreciar e decidir o presente recurso. II. . FUNDAMENTAÇÃO 1. – Delimitação do objeto do recurso e dos poderes de cognição do tribunal ad quem. Conforme é pacificamente entendido, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no art.410º, nºs.2 e 3, do mesmo Código. O MP limita o seu recurso a dois dos cinco crimes de peculato p. e p. pelo art. 375° n.º1 do CP, pelos quais fora pronunciado o arguido JG. a) Começa por impugnar, nos termos do art. 412º nº3 do CPP, a decisão proferida sobre a matéria de facto que julgou não provada a factualidade descrita sob a al. p) da matéria de facto não provada, relativa à situação III, considerando que aquela mesma factualidade deve constar, antes, entre a matéria de facto provada, com base nos elementos de prova que indica; b) Invoca ainda o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do nº2 do art. 410º do CPP, relativamente à situação I, pois o acórdão deu como provado, com base em depoimentos e documentos que especifica, que o arguido procedeu ao pagamento de uma dívida pessoal de 26 635,59€ com um cheque (e fundos) da AF, mas, com base nessa mesma prova, julgou não provado que o arguido se tivesse "apropriado" de tal montante e que "o quis fazer, sabendo que não podia apoderar-se dessa quantia e gastá-la a em seu proveito e com dano patrimonial para a AF"- (al. c) da factualidade não provada). Entende o recorrente que também neste caso o tribunal ad quem deve proceder à modificação da matéria de facto, por dispor de todos os elementos necessários, julgando provada esta última factualidade. c) Em consequência, deve o tribunal ad quem condenar o arguido JG como autor dos dois crimes de peculato p. e p. pelo art. 375º do C.Penal. Conclui o recorrente que devem ser aplicadas ao arguido as penas de prisão que indica, sendo a pena única suspensa na sua execução. São, pois, estas as questões suscitadas pelo MP recorrente, a decidir no presente recurso. d) Oficiosamente, impõe-se ainda decidir de eventual vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º nº2 a) do CPP) no que respeita a ambas as situações, em função da interpretação do art. 376º nº1 do C. Penal (Peculato de uso) que perfilhamos. 2. Decidindo Começaremos por decidir as questões relativas à designada situação I da factualidade provada na parte I desta fundamentação, decidindo na parte II as questões colocadas pela designada situação III. 2.1. – Do invocado erro notório na apreciação da prova. a) O MP recorrente entende que o tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, ao julgar provado que o arguido procedeu ao pagamento de uma dívida pessoal de 26 635,59€ com um cheque (e fundos) da AF, julgando simultaneamente não provado, com base nessa mesma prova, que o arguido se tivesse "apropriado" de tal montante. Estes factos respeitam à chamada situação I, descrita sob os nºs 3 a 9 da factualidade provada que, por comodidade de expressão e leitura, aqui se transcrevem de novo. « Situação I: 3) O arguido JG organizou em 12 e 13 de junho de 2002, em Fortaleza, na R. F. do Brasil, um "Congresso de Futebol…", sendo que a sua organização não foi decidida pela Direção da AF e foi publicitada como sendo custeada pelo arguido JG. 4) Embora o evento se realizasse entre os dias 12 e 13 de junho de 2002, a estadia dos participantes do Congresso durou entre 8 e 15[10] de junho de 2002. 5) Para a realização do evento o arguido JG contactou agências de viagens, entre as quais a agência "H". 6) No âmbito deste contacto e por via da realização do congresso, a "H" deveria receber 26.635,59 euros, tendo esta emitido a fatura n.º 118/191089-2[11], para pagamento pela Associação de Futebol. 7) O arguido JG procedeu ao pagamento da fatura emitida pela "H" através do cheque 98938411[12] da conta bancária que a AF tem no BPI e com fundos da AFA. 8) O arguido JG sabia que a quantia de 26.635,59 euros, que entregou à "H", não era sua mas da AF. 9) O arguido JG, antes de efetuar o pagamento referido em 8, assumiu o compromisso de devolver o dinheiro à AF, devolução que ocorreu em maio de 2003[13]. Contrariamente ao que constava do despacho e pronúncia, não resultou provado que: «a) o congresso referido em 3 foi organizado pela AF, cabendo apenas a iniciativa ao arguido JG (e não a organização, como consta de 3 dos factos apurados), que usou para esse fim as estruturas da AF. b) a estadia referida em 4 ocorreu também no dia 16, e o tempo dos participantes no congresso, para além dos dias 12 e 13 de junho, foi dedicado a agendas de lazer. c) o arguido apropriou-se dos 26.635,59 euros referidos em 6 a 8, o que previu e quis fazer, sabendo que não podia apoderar-se dessa quantia e gastá-la em seu proveito e com dano patrimonial para a AF[14]. Do confronto entre os factos julgados provados e não provados, constata-se que o arguido JG, presidente da Associação de Futebol (AF) organizou, por sua iniciativa e a expensas suas, um Congresso de Futebol no Brasil, resultando clarificada a referência algo ambígua do despacho de pronúncia ao afirmar que A AF organizou um congresso. Constata-se igualmente da factualidade provada que o arguido era responsável perante a agência de viagens H pela quantia de 26.635,59 euros, por despesas com o referido congresso, e que utilizou um cheque sacado sobre uma conta bancária da AF para proceder ao pagamento daquela mesma quantia, altura em que assumiu s o compromisso de devolver aquele dinheiro à AF, o que veio a fazer em maio de 2003. Pretende o recorrente que ao julgar provado este facto, o tribunal a quo não podia deixar de julgar igualmente provado que o arguido JG se apropriou daquela mesma quantia, o que previu e quis fazer, sabendo que não podia apoderar-se dessa quantia e gastá-la em seu proveito e com dano patrimonial para a AF, pois usou dinheiro da AF para pagar as suas dívidas. Conforme pode ler-se da motivação de recurso, entende o recorrente que «…face às provas que estabeleceram que o arguido despendeu o dinheiro da AF para fins pessoais, não pode dessa mesma prova resultar que o arguido não se “apropriou” do dinheiro, independentemente de ter ou não assumido o compromisso de posteriormente o vir a devolver e de efetivamente o ter devolvido.» Ou seja, considera o recorrente que, para efeitos do preenchimento do elemento objetivo do crime de peculato previsto e punível pelo art. 375º do CPP, o funcionário que usa em proveito próprio ou alheio quantia que tem na sua posse por via das suas funções, apropria-se da quantia respetiva mesmo que proceda à sua restituição conforme seu propósito inicial. “ Pelas suas características especiais o seu [do dinheiro] desvio, aproveitamento ou utilização implicam que o agente o tenha feito seu e que, consequentemente, o crime do art. 375º nº1 do CP se tenha consumado de imediato” – cfr conclusão p). b) Conforme resulta do ora exposto, a decisão sobre o vício invocado passa necessariamente pela interpretação do conceito de apropriação utilizado no art. 375º nº1 do CPP, relativamente ao qual se coloca a questão de saber se engloba os casos em que o funcionário se propõe ab initio restituir as quantias em dinheiro ou os valores objeto da sua ação. Vejamos 2.1.1. – Antecipando conclusões, entendemos, contrariamente ao MP recorrente, que a apropriação típica do crime de peculato (art. 375º), tal como sucede com o crime de abuso de confiança, implica que o agente (in casu o funcionário) proceda à inversão do título da posse, passando a dispor do dinheiro, bens móveis ou valores como se fossem seus (com animus domini) [15], o que é incompatível com o propósito, anterior ou contemporâneo da conduta objetiva, de proceder à sua restituição em momento posterior. Na verdade, parece-nos artificioso o entendimento de que qualquer utilização indevida de dinheiro em benefício do funcionário implica a sua apropriação por parte deste, com o argumento de que, tratando-se de dinheiro ou outros bens fungíveis, a restituição do próprio bem desviado não é possível porque o seu uso determina o desaparecimento da coisa em si, só podendo ser substituída por outra igual em natureza e quantidade) e, por isso, qualquer uso indevido, ainda que com intenção de restituição, corresponde necessariamente à sua apropriação[16]. Na verdade, apesar das reservas colocadas na doutrina e jurisprudência[17] a tal respeito, parece-nos que quer o crime de peculato (375º), quer o crime de peculato de uso (376º) não tutelam a substância dos bens patrimoniais protegidos, mas o valor de disposição ou de uso que os mesmos representam para a prossecução dos fins públicos a que se encontram afetos, pelo que a natureza fungível do dinheiro e outras coisas ou valores não os torna insuscetíveis de utilização temporária a non domino. Como bem se diz na decisão recorrida, supra transcrita, “… a fungibilidade do dinheiro implica que a coisa restituída seja equivalente, em todos os sentidos, à coisa primeiramente retirada [sem perda de qualidades ou utilidades], e esta equivalência importa, por sua vez, a manifesta artificialidade da afirmação da existência de uma apropriação da coisa fungível pelo seu mero uso já que o que se visa devolver é, de qualquer ponto de vista, idêntico ao que primeiramente se retirou e, neste sentido, é ainda a mesma coisa que se devolve, não existindo aqui qualquer efetiva apropriação (inversão do título da posse).”. Por outro lado, não faz sentido do ponto de vista da justiça relativa e da gravidade do ilícito, considerar a utilização temporária de uma dada quantia em tudo idêntica ao apossamento da mesma com o intuito de a fazer sua, tal como não faria sentido a punição do empréstimo abusivo a terceiro com pena até 3 anos (cfr art. 375º nº3 do C.Penal) e a punição de ação materialmente equivalente com pena de 1 a 8 anos de prisão (art. 375º nº1 do C.Penal), só porque a disposição temporária de dinheiro foi feita a favor do agente neste último caso. Em nosso entender, não há que procurar resolver eventuais dificuldades de prova em sede de delimitação da tipicidade integrando no ilícito mais grave todas as situações em que se apure a utilização de dinheiro em proveito próprio, de tal modo que mesmo nos casos – como o presente – em que se prove não haver, ab initio, intenção de fazer sua a quantia desviada do seu fim público, mas simplesmente de utilizá-la até posterior restituição, o agente seria punido como se fosse aquele primeiro o seu propósito. Concluímos, pois, que a apropriação de dinheiro ou qualquer coisa móvel, enquanto elemento normativo do tipo de peculato previsto no art. 375º do C. Penal, não abrange as hipóteses de mera utilização de dinheiro com intenção de restituição, mas apenas a disposição de quantia monetária afeta a fins públicos com o propósito de a integrar no seu património como coisa sua. 2.1.2. Assim sendo, não merece reparo a decisão do tribunal a quo que julgou não provada a apropriação da quantia em causa (pertencente à AF), que utilizou para pagar dívida sua, uma vez que se encontra provado que o fez assumindo o compromisso de devolver o dinheiro à AF, antes da utilização daquele o dinheiro, devolução que ocorreu em maio de 2003. 2.2. - Questão diversa desta mas que integra igualmente o objeto do presente recurso por constituir um dos fundamentos da absolvição do arguido questionada no presente recurso, é a de saber se o tribunal a quo, ao considerar que o art. 376ºnº1 do C. Penal não pune a utilização a non domino, temporária, de dinheiro por funcionário (conforme melhor veremos infra), deixou de se pronunciar sobre factos que, de acordo com o entendimento jurídico contrário, são relevantes para a decisão da causa, ou seja, para a eventual condenação do arguido JG como autor de um crime de peculato de uso p. e p. pelo art. 376º nº1 do C. Penal, incorrendo deste modo no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provado (art. 410ºnº2 a) do CPP), relativamente à factualidade designada de situação I. Na verdade, ao interpretar o art. 376º no sentido da não punibilidade, o acórdão recorrido não formulou, naturalmente, qualquer juízo sobre a prova do dolo correspondente. No entanto, caso entendamos de modo diverso, terá que concluir-se que o acórdão recorrido deixou de pronunciar-se sobre factos que estavam já implicitamente afirmados na pronúncia e que, em todo o caso, foram objeto de discussão da causa, sendo relevantes para a decisão de causa de acordo com um dos sentidos plausíveis da questão de direito (vd infra). 2.2.1. – Da punibilidade da utilização de dinheiro a non domino como peculato de uso nos termos do art. 376º do C. Penal. Importa, pois, decidir previamente, no plano da interpretação normativa, se o art. 376º do C. Penal prevê a punição da utilização abusiva de dinheiro a non domino como peculato de uso ou se, como decidiu o tribunal a quo, não se prevê ali a mera utilização abusiva de dinheiro, mas apenas de veículos ou outras coisas móveis, verificando-se uma lacuna de punibilidade. Adiantamos desde já que, diferentemente do decidido pelo tribunal a quo, entendemos que o art. 376º do C. Penal pune a conduta do funcionário que, temporariamente, fizer uso temporário de dinheiro, público ou particular, que esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, em benefício próprio. Na verdade, apesar de o confronto entre a descrição típica do art. 376º nº1 e a do art. 375º nº1 apontarem num primeiro momento para interpretação diversa, uma vez que o art. 375º nº1 se refere expressamente a dinheiro ou qualquer coisa móvel, enquanto o art. 376º menciona antes veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável (sem se referir expressamente a dinheiro), entendemos que não se verifica qualquer lacuna de punibilidade. Por um lado, do ponto de vista estritamente literal, a letra daquele art. 376º nº1 abarca no seu sentido corrente a utilização a non domino de dinheiro, uma vez que também o dinheiro é considerado coisa móvel, quer no seu sentido técnico-jurídico em direito civil (cfr arts 205º e 204º, do C.Civil) e em direito penal (v.g art. 203º-furto), quer na linguagem geral ou comum. Por outro lado, o indício representado pelo contexto normativo próximo (elemento sistemático) no sentido da exclusão de dinheiro do âmbito do art. 376º não é tão forte e evidente como à primeira vista pode parecer, visto que a escolha de palavras pelo legislador parece dever-se mais ao valor de exemplo ou à frequência com que o dinheiro, por um lado, e os veículos, por outro, são tomados como objeto do desvio ilícito no crime de peculato (art. 375º) e no crime de peculato de uso (art. 376º), respetivamente, do que com o eventual propósito de delimitar entre si o âmbito de previsão de ambas as normas. Na verdade, também quanto aos veículos se entende que os mesmos estão incluídos na locução qualquer coisa móvel, para efeitos do art. 375º nº1, apesar de serem expressamente referidos no art. 376º e não lhes ser feita qualquer menção no art. 375º, situação que é idêntica à que se verifica com a ausência de referência expressa a dinheiro no art. 376º, apesar do seu destaque no art. 375. Isto é, tanto no que respeita aos veículos como ao dinheiro, não pode concluir-se da sua referência expressa num dos tipos e da sua ausência no tipo legal confinante, que o legislador pretendeu deixar de fora cada uma daquelas coisas do âmbito de previsão da norma onde não são expressamente mencionados. Por último, outros elementos da interpretação, maxime de ordem teleológico-objetiva ou racional, convergem no sentido de a utilização de dinheiro a non domino, em benefício do agente, ser punível como crime de peculato de uso, resultado interpretativo este que corresponde, assim, ao “ pensamento legislativo” (cfr art. 9º C. Civil) no caso concreto, ou seja, a finalidade e o âmbito normativo do texto legal[18] em causa. Por um lado, como aludido supra, a circunstância de o dinheiro e outras coisas fungíveis, ou mesmo consumíveis, implicarem que a sua utilização coincida com a sua destruição ou dispersão de forma equivalente (como é o caso do dinheiro), não impede a sua substituição por outras iguais em natureza e quantidade, sendo certo que o que se protege no crime de peculato de uso não é a coisa na sua substância mas sim a sua afetação ao uso público a que se encontra adstrita, pelo que o desvio meramente temporário e a non domino de dinheiro diferencia-se claramente da respetiva apropriação. Por outro lado, considerando como nós e o tribunal recorrido, que o tipo legal de peculato (art. 375º nº1) apenas prevê e pune a apropriação de dinheiro e não a sua utilização a non domino em benefício do funcionário, a não punição desta última conduta não encontraria justificação material face à punição inquestionável de outras situações que, no mínimo, são de igual gravidade, do ponto de vista da respetiva ilicitude. É o caso do art. 375º nº3 que pune o empréstimo a terceiro de dinheiro afeto à satisfação de fins públicos, como aludido supra, do art. 376º nº1 que pune expressamente a utilização temporária de quaisquer outros bens móveis de valor apreciável e do art. 376º nº2 que pune com a mesma moldura penal do nº1 o funcionário que, sem justificação, der a dinheiro público destino público diferente do legalmente previsto. Quedaria, pois, sem explicação a diferença de tratamento que se verificaria, podendo afirmar-se que a dupla proteção[19] concedida pelos tipos penais de peculato (art. 375º) e de peculato de uso (art. 376º) a bens jurídicos patrimoniais, por um lado, e ao bom andamento, legalidade e transparência da administração, por outro, ficariam parcialmente frustradas com a ausência de punição para a utilização abusiva a non domino de dinheiro afeto a fins públicos em benefício do próprio funcionário. Ora, como diz K. Larenz ao referir-se ao que designa de critérios teleológico-objetivos da interpretação, integram esta categoria os fins objetivos do direito, entre os quais assume particular importância “…o princípio da igualdade de tratamento do que é (segundo as valorações gerais do ordenamento jurídico) igual (ou de sentido idêntico). A diferente valoração de previsões valorativamente análogas aparece como uma contradição de valoração, que não é compaginável com a ideia de justiça, no sentido de «igual medida». Evitar tais contradições de valoração é, portanto, uma exigência tanto para o legislador como para o intérprete.»[20]. Não esquecemos que em direito penal tais contradições de valoração podem ter que ser aceites pelo intérprete, por força das limitações decorrentes do princípio da legalidade, maxime quando a interpretação adequada a evitá-las não cabe no sentido possível das palavras[21]. Não é, porém, o que se verifica no caso presente, pois, como vimos, dinheiro cabe pacificamente no significado de coisa móvel usada pelo legislador no art. 376º nº1 do C. Penal, pelo que não se verifica aqui o limite garantisticamente imposto pelo princípio da legalidade, afirmado sob o brocardo nullum crimen sine lege scripta, nullum crimen sine lege stricta. Com o limite à interpretação resultante do sentido possível da letra da lei, não pode confundir-se o sentido que, por vezes, de forma impressiva e imediata, parece resultar do elemento sistemático ou contexto significativo da lei (na terminologia de Larenz), não só porque nem sempre se retira o que ele parece valer numa primeira abordagem como, sobretudo, porque a força ou sugestão interpretativa resultante daquele mesmo contexto pode servir de orientação na procura do pensamento legislativo, mas nunca representa um limite ao resultado interpretativo a que se chegue à luz de outros elementos ou critérios interpretativos, contrariamente ao que sucede com o sentido literal possível das palavras da lei. Concluímos, pois, que os elementos interpretativos considerados, maxime, o princípio de que à igualdade de previsões valorativas deve corresponder igualdade de tratamento legislativo, nos conduzem a considerar, contrariamente ao tribunal a quo, que a utilização a non domino em benefício de funcionário de dinheiro afeto a fins públicos, é punível como peculato de uso nos termos do art. 376º nº1 do C. Penal[22], sentido este que constitui um dos sentidos possíveis da locução coisa móvel utilizada naquele nº1 e que não é sequer contrariado pelo confronto daquele preceito com o nº1 do art. 375º, como procurámos fundamentar, embora o resultado interpretativo não fosse diverso mesmo que reconhecêssemos maior peso interpretativo à comparação entre a redação de ambos os preceitos, como referimos. 2.2.2. - Sendo assim, somos levados a constatar, como aludido supra, que a interpretação do art. 376º do C.Penal seguida pelo tribunal a quo no sentido da não punibilidade da utilização de dinheiro naqueles termos, o levou a não incluir na factualidade provada ou não provada, factos com manifesto interesse para a decisão da causa que foram objeto da discussão da causa e que se encontravam mesmo implícitos nos factos descritos na acusação. Na verdade, ao afirmar que o arguido JG quis apropriar-se da quantia de €26 635,59 a que se reporta a situação I, o despacho de pronúncia contém igualmente a afirmação de que aquele arguido gastou o dinheiro afeto a fim público para os fins pessoais descritos, ou seja, para pagamento de dívida pessoal, da sua responsabilidade, perante a agência H, com o propósito de o restituir, como restituiu, bem sabendo que o não podia fazer mas fazendo-o conforme quis. Os factos agora destacados são relativos ao dolo correspondente à utilização abusiva temporária do dinheiro (pois o tribunal a quo pronunciou-se apenas – negativamente - sobre o dolo de apropriação), e o seu não conhecimento pelo tribunal a quo constitui o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art. 410º n2 al. a) do CPP, na medida em que aquela factualidade é determinante para a decisão da questão da culpabilidade de acordo com uma das soluções plausíveis[23] da questão jurídico-penal da punibilidade do desvio temporário de dinheiro, nos termos do art. 376º do C.Penal, sendo de conhecimento oficioso, conforme é pacificamente entendido. Decidir-se-á infra (2.4), das consequências processuais do vício, no caso concreto. II 2.3. – Da impugnação da decisão que julgou não provada a factualidade ora descrita sob a al. p) dos factos não provados. 2.3.1. - Por facilidade de exposição e leitura transcreve-se de novo a factualidade ora em causa, sintetizando os argumentos do recorrente e a fundamentação da decisão do tribunal recorrido. a) «Situação III: 13) Teve lugar um torneio em março de 2002 e as equipas que o disputaram ficaram alojadas no Hotel.., em Monte Gordo. 14) Esse alojamento seria pago pela Associação de Futebol…e importou em 13.363,22 euros. 15) A Associação de Futebol…emitiu para pagamento do Hotel …um cheque datado de 07.06.2002, no montante de 13.846,10 euros, sacado sobre a conta 7666869101 do BPN, cheque que foi emitido ao portador e entregue ao arguido JG. 16) O arguido JG não entregou o cheque ao Hotel e levantou o montante titulado. 7) A dívida ao Hotel extinguiu-se por encontro de contas ocorrido em data não apurada. Facto não provado p) o arguido JG guardou o montante levantado, referido em 16, para si, fazendo-o seu e gastando-o em seu proveito. Apesar de não constar entre os factos provados ou não provados, tal omissão constituirá mero lapso material, pois decorre necessariamente do descrito sob aquela alínea p) que o tribunal não julgou igualmente provado que, “ O arguido JG previu e quis guardar para si o montante em causa.”. b) Na apreciação crítica da prova, o tribunal fundamentou este julgamento negativo (al. p) dos factos não provados, nos seguintes termos: - O MP recorrente funda a sua impugnação no teor dos seguintes documentos: - De fls 610 (cheque emitido pela AF e que o arguido levantou na mesma data-7.6.2002); - De fls 44 (cópia de uma carta do Hotel para a AF, com data de 27.12.2002, onde se diz que “…relativamente ao nosso anterior pedido de pagamento no valor de €13.362,62….não recebemos até hoje qualquer resposta;…a fim de evitar que o processo seja remetido para cobrança …agradecemos que efetue o pagamento”, o que revela que 6 meses depois de o arguido ter levantado o cheque o pagamento ao Hotel não havia sido feito; - De fls 137 a 140, cópias de dois cheques emitidos pelo arguido no montante que o hotel tinha a receber, o que demonstra que nas respetivas datas (20.12.2002 e 30.01.2003, o arguido ainda tentava pagar ao Hotel o que este tinha a receber da AF e que ele desviara para si. c) Do teor destes documentos retira o MP a conclusão de que não pode existir qualquer dúvida que o arguido não efetuou o pagamento que era devido ao hotel durante mais de 6 meses, o que não pode deixar de significar que “ O arguido JG previu e quis guardar para si o montante em causa.”, pelo que deve este facto constar entre a factualidade provada. 2.3.2. - Sem razão, porém, pois não obstante o valor indiciário do teor dos documentos em causa, não são os mesmos de tal forma concludentes que se imponha a conclusão retirada pelo MP, ou seja, de que o arguido quis guardar para si o montante em causa. Na verdade, do teor dos documentos em causa apenas pode retirar-se com certeza que o arguido levantou a quantia de €13 365,62 titulada pelo cheque e que não entregou nessa data aquela mesma quantia ao Hotel, a qual se encontrava ainda por satisfazer cerca de 6 meses depois, mas esses factos, que se encontram já provados sob o nº 16 da factualidade provada, não permitem que se extraia indubitavelmente a conclusão de que o arguido se apropriou (querendo fazê-la sua) da quantia em causa, pelas razões expressas pelo tribunal a quo na apreciação crítica da prova e que aqui se repetem: -« No que concerne à al. p) dos factos não provados, não foi feita prova direta da apropriação. Ela poderia inferir-se da circunstância de o valor titulado pelo cheque ter sido levantado pelo arguido (facto descrito em 16), sem que tal valor tenha sido logo entregue ao Hotel [como já parece decorrer de fls. 44 mas resulta diretamente de fls. 685 e na medida em que aqui se refere que a extinção do crédito do Hotel se dá por «encontro de contas», coisa diversa do pagamento]. Como se sabe, esta inferência constitui o mecanismo interno da prova por presunção [ou, segundo outra perspetiva, da presunção enquanto operação lógica de demonstração de factos ignorados], sendo que ela apenas pode ser aceite, nos seus resultados lógicos, quando conduza a um resultado unívoco, revestido de uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável. Ora, sucede que a referida inferência é perturbada pela circunstância de a dívida àquele Hotel se vir a extinguir sem intervenção da AF [como decorre do facto de a sua contabilidade não refletir novo pagamento ou acerto de contas, e de o recibo de fls. 59 do exame apenso reportar o cheque como forma de pagamento da dívida], havendo ainda um outro episódio em que valores da AF foram usados pelo arguido JG a título transitório, isto é, sem intenção de apropriação. O que bastaria para, motivando explicações alternativas, igualmente possíveis ou admissíveis, introduzir na inferência um elemento de incerteza que prejudica o seu resultado probatório. Impedindo, aliás, a formação de uma convicção segura sobre a efetiva apropriação do dinheiro pelo arguido. Acresce ainda que se ignora também a forma como ocorre o acerto de contas que o Hotel invoca para considerar saldada a dívida (aspeto que a testemunha GR não conseguiu esclarecer), e assim em que elementos ela se baseia, e desde quando eles existem. Pelo que não está de todo arredada a possibilidade de o arguido JG ter efetuado realmente um adiantamento ao Hotel, como a testemunha MD disse que ele afirmara quando foi emitido o cheque da AF. Ou, ao menos, a possibilidade de a extinção da dívida ao Hotel se ter efetuado com compensação (acerto de contas) com crédito (do arguido JG ou de terceiro) sobre o Hotel, que já existisse na data em que o arguido JG levantou o cheque, e crédito com o qual este contasse. De todo o modo, abriam-se várias possibilidades plausíveis que, não sendo arredadas (nem esclarecida a situação), sempre beneficiariam o arguido. Donde se ter excluído a matéria em causa.» Na verdade, dado que os factos objetivos descritos e a prova documental em que assentam é compatível com a apropriação do dinheiro em causa ou com a mera utilização temporária do mesmo, não podendo sequer afastar-se a hipótese de não ter sequer existido utilização abusiva temporária em proveito do arguido, bem andou o tribunal a quo ao julgar não provada a apropriação. 2.3.3. - Todavia, a factualidade descrita sob os nºs 13 a 17 do acórdão recorrido e o trecho da apreciação crítica da prova ora transcrito, colocam em destaque que na discussão da causa foi suscitada uma dimensão da factualidade que o tribunal a quo não apurou, não a julgando provada ou não provada, mas que tem inegável relevância para a decisão da causa. Referimo-nos à hipótese de o arguido JG ter usado a referida quantia a título transitório, isto é, sem intenção de apropriação, mas em proveito próprio, bem sabendo que o fazia e querendo fazê-lo tal como sucedeu no episódio retratado na chamada situação I, supra escalpelizada, hipótese factual que o próprio tribunal a quo equaciona, sem que, porém, tenha tomado qualquer decisão sobre a mesma, o que se compreende dada a interpretação do art. 376º do C. Penal que assumiu (não punibilidade), mas levou a que o quadro factual apurado não permitisse decidir a causa de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito controvertida (interpretação do art. 376º do C. Penal). Significa isto que o tribunal recorrido deixou de pronunciar-se sobre facto que, revelando interesse para a decisão sobre a questão da culpabilidade, resultou da discussão da causa, não o inserindo no rol dos factos provados nem no rol dos não provados, o que constitui o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que resulta do texto da decisão recorrida, como vimos. III 2.4. – As consequências processuais dos vícios. Nos termos do art. 426º do CPP os vícios previstos no art. 410º nº2 do CPP dão lugar ao reenvio do processo para novo julgamento, ainda que parcial, sempre que o tribunal ad quem não possa decidir da causa. a) No caso sub judice, a decisão sobre a matéria de facto, de índole objetiva e subjetiva, relativa à designada situação III implica a produção de prova, impondo-se reenviar parcialmente o processo à 1ª instância para novo julgamento parcial, com vista a esclarecer «se o arguido JG usou temporariamente a quantia de €13 365,62 a que se refere o nº 16 dos factos provados em proveito próprio, bem sabendo que o fazia e querendo fazê-lo.» b) Dado que o processo sempre terá que ser reenviado à 1ª instância, sê-lo-á igualmente para que relativamente à designada situação I, o tribunal a quo possa decidir, com base na prova produzida e na que entenda ser eventualmente de produzir, se «Ao agir como descrito sob os nºs 3), 6), 7), 8 e 9), da factualidade provada, o arguido JG bem sabia que usava temporariamente quantia de €26 635,59 em seu proveito, o que quis fazer.» Realizado o julgamento quanto aos pontos de facto por apurar e seguidos os trâmites processuais que se revelarem necessários, designadamente o disposto no art. 358º do CPP e nos arts. 369º e 371º, do C.P.P., se houver lugar ao seu cumprimento, decidirá então o tribunal a quo da qualificação jurídico-penal dos factos de acordo com a interpretação do art. 376º nº1 do C.Penal objeto do presente recurso, aplicando as penas que ao caso couber, em conformidade com o decidido em matéria de facto. III. Dispositivo Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo MP, ainda que com fundamentação diverso, decidindo reenviar o processo para julgamento parcial relativamente aos pontos de facto indicados supra em 2.4. a) e b) e subsequente apuramento dos factos relativos à determinação da sanção eventualmente a aplicar, bem como os ulteriores termos a que haja lugar. Sem custas Évora, 2 de Dezembro de 2010 (Processado em computador. Revisto pelo relator.) ------------------------------------------------------- (António João Latas) ------------------------------------------------------- (Carlos Jorge Viana Berguete Coelho) _________________________________________________ [1] Fls. 220/222, os quais revelam que, apesar de fls. 291, a estadia terminou efetivamente no dia 15 (fls. 328 reporta-se a uma proposta, não concretizada) [2] Fls. 10 do exame pericial apenso [3] Recibo a fls. 12 do exame pericial apenso [4] Fls. 40/41. [5] A matéria da segunda parte desta alínea só se compreende em função da intenção de apropriação, não revelada, razão pela qual também se excluiu. [6] Existe um lapso na numeração do processo (de fls. 579 passa para fls. 560): estas fls. 564 são as que constam depois deste «retrocesso» na numeração (poderiam ser, assim, fls. 564-A) [7] Que o art. 129º do CPP não contempla. [8] O documento de fls. 690, de autoria e origem ignorada, não teve relevo probatório. [9] Pois o crime de peculato ainda pode ver-se como um abuso de confiança qualificado pela qualidade do agente. [10] Fls. 220/222, os quais revelam que, apesar de fls. 291, a estadia terminou efetivamente no dia 15 (fls. 328 reporta-se a uma proposta, não concretizada). [11] Fls. 10 do exame pericial apenso. [12] Recibo a fls. 12 do exame pericial apenso. [13] Fls. 40/41. [14] A matéria da segunda parte desta alínea só se compreende em função da intenção de apropriação, não revelada, razão pela qual também se excluiu. [15] “ Como afirma Conceição Ferreira Cunha em anotação ao art. 375º do C. Penal, “A conduta punida por este tipo legal consiste na apropriação ilegítima; por apropriação deve entender-se o ato de fazer seu o bem, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor; a apropriação é ilegítima desde logo porque não deriva de nenhum título aquisitivo da propriedade…” – Cfr Comentário Conimbricense do C. Penal, III, p. 697-8. No mesmo sentido veja-se o trecho de F. Dias citado no acórdão recorrido e transcrito supra. [16] Vd a enunciação e apreciação crítica deste argumento em Comentário Conimbricense do C. Penal, Vol. III, p. [17] Vd sumário do Ac STJ de 28.10.1992, Proc. 43 064, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, C.Penal Anotado, 2º Vol, 1996 pp 1198 e 1200. Embora citado como exemplo da posição jurídica segundo a qual a utilização de dinheiro com intenção de restituição constitui, ainda, crime de peculato, não é esse o entendimento que se retira do Ac RP de 25.05.1988 CJ XIII-3/251, pois nesse caso apenas se provou que o mesmo restituiu posteriormente as quantias desviadas tendo-se mesmo julgado provado que o arguido agiu com intenção de fazer sua propriedade as importâncias desviadas; como se diz na fundamentação de direito daquele acórdão, “.A restituição da quantia furtada não prova que a mesma não chegou a ser objeto de furto” – cfr pp 252 e 253. [18] Conforme refere, por todos, A. Taipa de Carvalho, “No sentido de evitar interpretações judiciais discricionárias ou mesmo arbitrárias, o nosso Código Civil, art. 9º, indica os critérios ou fatores de interpretação. De acordo com este artigo, as disposições são válidas … para todos os ramos do direito, incluindo o penal, o intérprete-aplicador deve procurar descobrir qual é o “pensamento legislativo”, isto é, qual é a finalidade e o âmbito normativo da lei: as situações fácticas ou os casos concretos abrangidos pela norma jurídica. (…) - Cfr Direito Penal. Parte Geral. Questões fundamentais, Porto-2003, pp 207. Ora o art. 9º atribui corretamente ao texto legal ou teor legal duas funções essenciais: por um lado, e logicamente, o texto legal é o ponto de partida da interpretação (art. 9º nº1); por outro lado, e também corretamente, o texto legal impede uma interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art. 9º-2).” – [19] Vd sobre os bens jurídicos protegidos nos crimes de peculato, Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense citado pp. 688 e 705. [20] Cfr Karl Larenz, Metodologia da Ciência do direito, 5ª ed., FCG, 2009 p. 471-2. [21] Ganha foros de quase unanimidade também entre nós, que em face do art. 29º nº3 da CRP e 1º nº3 do C.Penal/82 a interpretação de normas incriminadoras em direito penal tem como limite o sentido possível das palavras. Como, por todos, pode ler-se em Larenz, “…o sentido literal a extrair do uso linguístico geral ou, sempre que ele exista, do uso linguístico especial da lei ou do uso linguístico jurídico geral, serve à interpretação, antes de mais, como uma primeira orientação, assinalando, por outro lado, enquanto sentido literal possível (…) o limite da interpretação propriamente dita.” – Cfr ob. cit. p. 457 (negrito nosso). Na jurisprudência portuguesa pode ver-se, por todos, o AFJ do STJ nº 7/2006, de 12.10.06, DR 1ª Série de 28.11.2006. [22] Expressamente neste sentido, Pinto de Albuquerque, Comentário do C. Penal, 2008, p. 892. Também é este o entendimento de Conceição Ferreira da Cunha Comentário Conimbricense, Tomo III supracitado), se bem a interpretamos, pois apesar de referir que o confronto do nº1 do art. 376º com o artigo precedente, (onde se faz referência expressa ao dinheiro), bem como a referência exemplificativa a veículos, a fazerem inclinar para negação da possibilidade de as coisas fungíveis, tais como o dinheiro ou a gasolina, serem objeto do tipo legal previsto no art. 376º do C.Penal (p. 711), acaba por concluir que, “…tendo em conta todos argumentos avançados, ser preferível incluir no nº1 do presente tipo legal [art. 376º] todas as coisas móveis de valor apreciável, - quer sejam fungíveis, quer infungíveis -, por ser a solução que apesar de não ser a mais conforme com a redação do art. 376º em confronto com a do tipo legal anterior, ser a que conduz a soluções mais justas (p. 713-4), rematando que, “ O desvio (uso) quer de dinheiro público, quer de particulares para fins privados …estará contido na factualidade típica do nº1 (a aceitarmos que o tipo legal abrange as coisas fungí9veis”. – p. 716. [23] Vd, por todos, o Ac STJ de 4.10.06, em cujo sumário pode ler-se: “ É um dado adquirido em termos dogmáticos que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, visto a sua importância para a decisão, por exemplo para a escolha ou determinação da pena.»- acessível em www.stj.pt (sumários). | ||
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Decisão Texto Integral: |