Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
352/20.6PATNV.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: PROVA INDICIÁRIA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
DADOS DE BASE
PROVA PROÍBIDA
BURLA INFORMÁTICA
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Não é inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos nºs 2 e 5 do artigo 32º da Constituição, a interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal.
Importa, pois, concluir que o recurso a prova indiciária, designadamente a presunções judiciais, não contende com o princípio da presunção de inocência do arguido.

II - Tendo sido solicitadas e obtidas informações que dizem respeito a dados que não se reportam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei nº 32/2008, de 17/07, tratando-se de dados de base, que se consubstanciam em elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os quais constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação” e “o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4.º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa, inexiste utilização de prova proibida.

III - O crime de burla informática logra-se, assim, através de uma afetação/lesão patrimonial na esfera do ofendido, obtida com recurso a uma intromissão nos sistemas e meios informáticos; meios informáticos estes nos quais está subjacente alguma forma de fraude ou artifício.

A relação com o crime base da “burla”, assente no engano e erro, é dirigido, ainda aqui, na pessoa do ofendido, uma vez que as máquinas são insuscetíveis de engano. O erro, engano ou artifício é causado sobre a pessoa do ofendido relativamente ao uso não consentido dos seus dados pessoais e informação bancária, ou aplicações informáticas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 352/20.6PATNV, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi a arguida AA condenada, por sentença de 19/09/2023, nos seguintes termos:

Pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1, do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à razão diária de 5,50 euros, no montante global de 825,00 euros.

Pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1 e nº 2, da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009, de 15/09, na versão em vigor à data da prática dos factos), na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.

Mais foi condenada a arguida/demandada a pagar ao demandante BB a quantia de 680,00 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais.

E, ainda, condenada foi a arguida a entregar ao Estado Português a quantia de 680,00 euros a título de perda de vantagens, nos termos do artigo 110º, nº 1, alínea b) e nºs 3, 4 e 6, do Código Penal.

2. A arguida não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

a) O presente recurso emana da discordância em relação ao acórdão que condenou a recorrente pela prática de um crime de Burla Informática e um crime de Falsidade Informática.

b) As razões de discordância com a decisão são, simultaneamente, de facto e de direito:

c) Desde logo, por seu entender, haver insuficiência da matéria de facto, dada como provada para a condenação do recorrente - alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P.

d) O Tribunal recorreu à prova proibida, nos termos do vertido no Acórdão do TC sobre os metadados;

e) Mais se diga que, o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que o recorrente tinha algo a haver com a burla.

f) O acórdão em crise enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada sob os n.ºs 1 a 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, parte do 7 e do 8., existindo erro de julgamento.

g) Pelo que, a Arguida deve ser absolvida;

h) O acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supracitadas.

i) Considera incorretamente julgados os factos provados sob os artigos 1 a 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, parte do 7 e do 8 e toda a matéria de facto tendente à formação da convicção de que a recorrente teve qualquer participação nos factos.

j) A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais consequências, como é de justiça.

k) Em qualquer circunstância, deve revogar-se o acórdão recorrido e substituí-lo por outro que, fazendo correcta apreciação e valoração da prova produzida, a absolva da prática dos crimes em que foi condenada.

l) A Arguida vinha acusada em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade informática e um crime de Burla Informática;

m) Após a realização de audiência e julgamento a Recorrente, foi condenado pela prática de um crime de Falsidade Informática, previsto e punido pelo artigo 3º da Lei do Cibercrime, na pena de 1 (um) ano e 6 (meses) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

n) Entende a ora Recorrente, que o Tribunal Recorrido não fez um adequado enquadramento da legislação aplicável aos factos dados como provados.

o) Sendo certo que, na data da prática dos factos, realmente, os factos dados como provados e praticados pela Recorrente subsumiam-se à previsão legal aplicada pelo sr. juiz quo;

p) Sucede que, com a entrada em vigor da lei 79/2021, de 24-11, entendemos que os factos infra indiciados são punidos, apenas, pelo artigo 225º n.º 1 alínea d) do Código Penal ou por via da burla informática;

q) Na verdade, este diploma legal veio trazer alterações na área dos chamados crimes de Mbway;

r) Assim sendo, deverá ser aplicado o estatuído no artigo 2.º n.º 4, do Código Penal, aplicando-se, em consequência o regime mais favorável à Recorrente.

s) O que implica a absolvição da Recorrente.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, revogada a Sentença Recorrida, que deve ser substituído por outro que decidida em conformidade com a prova produzida e junta aos Autos.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer como se transcreve:

Recurso é o próprio, com efeito e regime de subida adequados. Nada obsta ao respectivo conhecimento.

No âmbito do processo acima referenciado, a Mma Juiz “a quo” lavrou sentença onde concluiu:

Nestes termos, e pelo exposto, julgo a acusação procedente por provada e, em consequência, decide-se:

1. Condenar a arguida AA, pela prática em coautoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de burla informática p. e p. pelo art.º 221, n.º 1 do Código Penal, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de €825,00 (oitocentos e vinte e cinco euros).

2. Condenar a arguida AA, pela prática em coautoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de falsidade informática p. e p. pelo art.º artigo 3.º, n.º 1 e 2 da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro na versão em vigor à data da prática dos factos) na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova a elaborar pela DGRSP.

3. Julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE, por provado, o pedido cível formulado nos autos e, consequentemente, condeno a demandada AA a pagar ao demandante, BB, a quantia de 680,00€ (seiscentos e oitenta euros), a título de danos patrimoniais sofridos, absolvendo-se do demais peticionado.

4. Condenar a arguida AA, a entregar ao Estado Português a quantia de 680,00€ (seiscentos e oitenta euros) a título de perda de vantagens, nos termos do art. º 110.º, n.º 1, alínea b), 3, 4, e 6 do Código Penal

Inconformada, a arguida apresentou recurso da decisão da 1ª instância tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição integral):

a) O presente recurso emana da discordância em relação ao acórdão que condenou a recorrente pela prática de um crime de Burla Informática e um crime de Falsidade Informática.

b) As razões de discordância com a decisão são, simultaneamente, de facto e de direito:

c) Desde logo, por seu entender, haver insuficiência da matéria de facto, dada como provada para a condenação do recorrente - alínea a) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P.

d) O Tribunal recorreu à prova proibida, nos termos do vertido no Acórdão do TC sobre os metadados;

e) Mais se diga que, o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que o recorrente tinha algo a haver com a burla

f) O acórdão em crise enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada sob os n.ºs 1 a 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, parte do 7 e do 8., existindo erro de julgamento.

g) Pelo que, a Arguida deve ser absolvida;

h) O acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supracitadas.

i) Considera incorretamente julgados os factos provados sob os artigos 1 a 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, parte do 7 e do 8 e toda a matéria de facto tendente à formação da convicção de que a recorrente teve qualquer participação nos factos.

j) A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais consequências, como é de justiça.

k) Em qualquer circunstância, deve revogar-se o acórdão recorrido e substituí-lo por outro que, fazendo correcta apreciação e valoração da prova produzida, a absolva da prática dos crimes em que foi condenada.

l) A Arguida vinha acusada em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade informática e um crime de Burla Informática;

m) Após a realização de audiência e julgamento a Recorrente, foi condenado pela prática de um crime de Falsidade Informática, previsto e punido pelo artigo 3º da Lei do Cibercrime, na pena de 1 (um) ano e 6 (meses) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

n) Entende a ora Recorrente, que o Tribunal Recorrido não fez um adequado enquadramento da legislação aplicável aos factos dados como provados.

o) Sendo certo que, na data da prática dos factos, realmente, os factos dados como provados e praticados pela Recorrente subsumiam-se à previsão legal aplicada pelo sr. juiz quo;

p) Sucede que, com a entrada em vigor da lei 79/2021, de 24-11, entendemos que os factos infra indiciados são punidos, apenas, pelo artigo 225 n.º 1 alínea d) do Código Penal ou por via da burla informática;

q) Na verdade, este diploma legal veio trazer alterações na área dos chamados crimes de Mbway;

r) Assim sendo, deverá ser aplicado o estatuído no artigo 2.º n.º 4, do Código Penal, aplicando-se, em consequência o regime mais favorável à Recorrente.

s) O que implica a absolvição da Recorrente.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, revogada a Sentença Recorrida, que deve ser substituído por outro que decidida em conformidade com a prova produzida e junta aos Autos.

A nossa Ex.ma Colega na 1ª instância respondeu, com (muito) acerto, ao recurso apresentado pela arguida tendo, na oportunidade, formulado as seguintes conclusões (transcrição integral):

iii. CONCLUSÕES

1. A recorrente invoca os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro de julgamento sobre a matéria de facto, quando, no fundo, apenas discorda da forma como o Tribunal a quo valorou a prova produzida.

2. O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

3. O Tribunal a quo não incorreu em erro de julgamento em matéria de facto, tendo analisado criteriosamente a prova produzida em audiência de julgamento, bem assim a pré-constituída, e recorrido com correção e sem qualquer arbitrariedade à prova indiciária e às regras da experiência comum e da lógica.

4. Os factos dados como provados na sentença integram, do ponto de vista objetivo e subjetivo, e para além do mais, o crime de falsidade informática, que, à data dos factos, estava previsto e era punível pelo disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro).

5. Com a alteração operada pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro, que entrou em vigor em 24/12/2021, o n.º 2 do citado artigo 3.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, deixou de punir de forma qualificada a falsidade informática que incidia, então, sobre cartões bancários de pagamento.

6. Na decorrência, o regime jurídico dos cartões de pagamento passou a ser regulado pelo disposto no artigo 225.º do Código Penal, bem assim pelo disposto nos novos artigos 3.ºA, 3.ºB, 3. C e 3.ºE da Lei do Cibercrime.

7. A conduta da arguida dada como provada na sentença passou assim a integrar o crime previsto no artigo 3.ºA da Lei do Cibercrime, que integra as manipulações informáticas abusivas de meios de pagamento eletrónicos (não corpóreos).

8. Este novo artigo 3.ºA apresenta uma moldura penal mais gravosa do que a prevista para o crime de falsidade informática, tal como regulado pela Lei do Cibercrime em vigor à data dos factos (artigo 3.º, n.ºs 1 e 2).

9. E, assim sendo, em cumprimento do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, decidiu o Tribunal a quo condenar a ora recorrente pela lei em vigor à data dos factos, por se ter afigurado que a mesma lhe seria mais favorável; decisão que também não nos merece reparo.

Nesta conformidade, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida.

Apreciando

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 e de 24- 3-1999 e ainda Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, pág. 103).

A proliferação deste tipo de comportamentos criminais tem conhecido um assinalável acréscimo sendo vulgarmente conhecidas por burlas “MBWAY” (1).

Porém, as autoridades policiais e judiciárias têm conseguido identificar, um conjunto muito alargado de procedimentos que surgem na maioria das situações em análise nos nossos tribunais (2).

Nesse particular e atenta a explanação clara e elucidativa, transcreve-se o referido no Ac. Relação de Évora de 25.05.2021, onde se consagra”…Ora o MB WAY é uma aplicação destinada primordialmente ao pagamento de quantias com origem e destino em duas contas bancárias diferentes, sobre as quais tenham sido emitidos cartões bancários, utilizando para o efeito os números telefónicos dos titulares dos respectivos cartões (de origem e de destino da quantia em causa).

Na aplicação MB WAY, a movimentação de quantias efectua-se mediante a autenticação por via do número de telefone do titular do cartão e de um PIN, definido pelo próprio, aquando da adesão ao serviço. As situações criminosas que têm ocorrido processam-se genericamente da seguinte forma:

• o agente dos factos escolhe as suas vítimas em plataformas de venda online, procurando aí identificar pessoas que tenham disponibilizado objectos para venda;

• depois, contacta telefonicamente tais pessoas, manifestando a vontade firme de comprar esses objectos e dispondo-se a pagar os mesmos de imediato, mesmo sem os ver e sem ter qualquer garantia de que os mesmos satisfaçam o seu interesse;

• manifesta o intuito de pagar os mesmos por via da aplicação MB WAY;

• em regra, caso a vítima seja conhecedora deste processo de pagamento, o agente dos factos desliga logo a chamada, não voltando a estabelecer qualquer contacto;

• porém, caso a vítima não conheça a aplicação MB WAY, o agente dos factos desenvolve um processo ardiloso, tendo em vista ter acesso à conta bancária daquela.

Em muitos dos casos, o agente dos factos convence a vítima de que, para poder pagar-lhe (o que manifesta que fará de imediato), esta tem que deslocar-se a uma caixa Multibanco. Se a vítima aceita fazê-lo, uma vez aí, dá-lhe instruções para aderir ao serviço MB WAY, por via do menu disponível na aplicação informática do Multibanco. Dá-lhe ainda instruções para que, no campo onde deve inserir-se um número de telemóvel, insira o número do telefone do agente do crime, e que insira ainda um PIN indicado pelo mesmo. Ou seja, na prática, além de convencer a vítima a aderir ao serviço MB WAY, o agente dos factos convence-a ainda a que associe a aplicação ao número de telemóvel dele, fixando um código PIN igualmente por ele definido. Na posse do número de telemóvel da vítima e do PIN, o agente do crime consegue aceder ao cartão bancário e à conta bancária daquela. Por isso pode, desde logo, consultar o seu saldo bancário.

Além disso, por via do serviço MB WAY, pode ordenar movimentos bancários a partir da conta da vítima (transferências para outros cartões ou contas bancárias), ou pagamentos de compras. Pode ainda efectuar levantamentos em numerário em caixas Multibanco (este é, aliás, um dos casos mais frequentes) (https://cibercrime.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/alerta_mbway _2020_04_07.pdf).

O caso indiciado nos presentes autos e ora presente à alta apreciação de Vossas Excelências, também obedece a este figurino/“modus operandi”.

Como bem salienta a Ex.ma Colega junto da 1ª instância, a arguida invoca “vício da insuficiência para a decisão” (pontos c) e f) das conclusões).

Porém, sempre se dirá, desde já, que a arguida / recorrente labora num equívoco.

Com efeito, estabelece o art. 410 n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (3).

A verdadeira “pedra de toque” é a decisão recorrida, em si mesma.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” (4) (5), vício previsto no artigo 410 nº 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito (6).

Não tendo o Tribunal indagado das condições pessoais (familiares) e económicas do arguido verifica-se a existência deste vício e, por força disso, preenchida a alínea a) do nº 2 do artº 410 do CPP (7).

Reafirma-se que, a “insuficiência para a decisão de facto provada, deve resultar dos factos dados como assentes, isto é, do texto da sentença.”(8)

Porém e salvo sempre melhor e mais elevado entendimento, não se alcança a existência do propalado vício na sentença proferida pelo Tribunal de … pelo que falece razão à arguida / recorrente.

Aliás, a sentença é clara relativamente à responsabilidade criminal da arguida ao referir que: “…A análise do extrato bancário de AA permite facilmente então perceber as movimentações e saída dos fundos ali constantes, nomeadamente, (i) que a arguida rececionou no dia 11.9.2020, através de quatro ordens de transferência provindas diretamente da conta do ofendido sita na …, o montante global de 680,00€; (ii) montante este que foi rececionado na sua conta, da qual é titular exclusivo, tendo, de imediato, no próprio dia, procedido ao levantamento de 680€, pessoalmente, e não numa caixa ATM multibanco, precisamente por saber que o limite máximo diário permitido por qualquer atm multibanco é de 400,00€ (cf.https://www.multibanco.pt/operacoes/levantamento)…” (negrito e sublinhado da nossa responsabilidade).

Mais adiante refere, com propriedade: “…Paralelamente, a inexistência de qualquer saldo bancário registado na conta da arguida antes e após a ocorrência destes factos, indiciam que esta não desempenhava funções de mera mula de terceiros (conforme alegado pelo Il. Defensor da arguida em sede de alegações), i.e., de mero executor; significa, antes pelo contrário, que tinha pleno conhecimento de todo o plano gizado.

Finalmente, o Tribunal permitiu-se, com recurso a regras da experiência comum levadas a cabo por um cidadão médio, normalmente instruído, e da lógica abstrata, chegar à autoria dos factos praticados, com recurso a factos indiciários, como, e em suma (conforme já explanado supra), a exclusividade da conta bancária da arguida, o facto de a conta da arguida apenas por esta poder ser movimentada, as transferências dos montantes descritos na acusação para a conta desta e os subsequentes levantamentos em numerário efetuados logo após a receção daquelas na conta da arguida.

A sentença ora posta em crise, conjuga, de forma harmoniosa, o depoimento do ofendido, mormente a colocação do anúncio no “…” por parte deste, o recebimento do telefonema, o desenvolvimento da conversação mormente no que tange à aplicação “MBWAY”, a documentação bancária que identifica a saída de dinheiro da conta do ofendido para a da arguida, o levantamento, presencial, por esta, da totalidade da importância transferida, bem como o facto (nada despiciendo) de a conta esta (arguida) não apresentar saldo nem antes nem depois da(s) referidas transferências oriundas da conta do ofendido até ser encerrada.

Igualmente, não merece censura, a sentença de … quando refere, com acerto: “…Ora, confrontadas as molduras penais previstas na versão originária do art.º 3º, n.º 2 da Lei do Cibercrime, em vigor à data da prática dos factos, com a versão prevista no art.º 3º-A da Lei do Cibercrime na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro, verifica-se que pese embora as alterações jurídicas verificadas no tipo incriminador pelo qual a arguida deverá ser aqui condenada, o regime jurídico legal posterior apresenta uma moldura penal menos favorável ao arguido, punindo os factos aqui dados como provados com pena de prisão de 3 a 12 anos.

Restará aplicar à arguida, assim, a moldura prevista na versão da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, em vigor à data da prática dos factos, a qual prevê uma moldura de pena de prisão de 1 a 5 anos.

IV – DO CONCURSO DE CRIMES

A arguida deverá ser condenada, conforme analisado supra, por um crime de falsidade informática, previsto e punido pelo art.º 3º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro e, bem assim, por um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo art.º 221º, n.º 1 do Código Penal.

Merece a nossa concordância a posição expressa pela Mma Juiz “a quo”, em conformidade com o disposto no artº 2 nº 4 do CP.

Não assiste qualquer razão à arguida pelo que não deve ser dado provimento ao recurso da arguida.

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado pela arguida AA e manter a douta sentença recorrida.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/valoração de prova proibida/violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

Enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 11 de Setembro de 2020, a arguida AA ou alguém não concretamente identificado, mas de comum acordo com a arguida, acedeu à plataforma … e visualizou um anúncio de venda de uma cama e de um colchão, que havia sido publicado pelo ofendido BB.

2. A arguida, mediante plano que previamente elaborou ou aderiu ao longo da sua execução, juntamente com outros indivíduos não concretamente identificados, decidiram então que iriam, em comunhão de esforços, induzir o ofendido a fornecer-lhes as suas credenciais de acesso à aplicação mbway, permitindo aos mesmos retirar, sem autorização, valores da sua conta bancária, associada àquela aplicação.

3. Assim, em execução daquele plano, no mesmo dia, em hora não concretamente apurado, mas pouco depois das 13:00 h, a arguida ou alguém com ela naquele plano, cuja identidade não se logrou apurar, fazendo uso do número de telemóvel … correspondente a um cartão pré-pago sem dados de titularidade e a partir da localidade de …, contactou BB e mostrou-se interessada em adquirir os artigos que este tinha publicitado para venda no site …, mais transmitindo que pretendia efetuar o pagamento do preço por transferência bancária, solicitando-lhe o envio do número do seu cartão bancário associado à sua conta bancária, para poder fazer a transferência.

4. Seguidamente, a arguida, ou alguém com ela naquele plano, cuja identidade não se logrou apurar, mas com o acordo da arguida, utilizou aqueles dados para solicitar a associação da aplicação mbway à conta do ofendido, induzindo, depois, o ofendido a fornecer-lhe as credenciais de acesso à aplicação mbway que, este, entretanto recebera no seu telemóvel, o que o ofendido fez convencido que desta forma seria, de imediato, transferido para a sua conta bancária, o preço acordado, quando na verdade, estava a fornecer a terceiros todos os dados necessários para poderem aceder à sua conta bancária.

5. Uma vez na posse daqueles dados, a arguida, ou alguém com ela naquele plano, não concretamente identificado, mas sempre com o conhecimento e o acordo da arguida, acedeu àquela conta bancária do ofendido, com o NIB … sedeada no …, através da aplicação MBWAY, assim obtendo pleno controlo de movimentação sobre a mesma, e de imediato nela deu ordens de transferência a débito, tudo sem o conhecimento ou a autorização do seu titular.

6. Mais concretamente, a arguida emitiu: 4 ordens de transferência bancária a débito sobre a conta do ofendido, acima identificada, nos montantes de 500 €, 100 €, 50 € e 30 €, no montante global de 680,00 € (seiscentos e oitenta euros), operações que tiveram como destino a conta bancária com o NIB …, sedeada junto da …, titulada exclusivamente pela arguida, e que não tinha saldo antes da concretização dessas operações.

7. Pouco depois, pelas 14:27 h, após a concretização das transferências e por forma a evitar a reversão das mesmas, a arguida procedeu ao levantamento ao balcão, da indicada quantia de 680,00 €, numa agência da … de …, deixando a sua conta praticamente sem saldo, furtando-se ainda a quaisquer posteriores contactos com o ofendido.

8. O ofendido foi assim ilegitimamente desapossado do dinheiro que lhe pertencia e que estava à ordem da sua conta bancária, no montante global de 680,00 € (seiscentos e oitenta euros) correspondente ao benefício patrimonial que obteve a arguida.

9. Com a conduta descrita supra, a arguida, ou alguém de identidade não apurada, mas com o conhecimento e o acordo da arguida, sempre com intenção de obterem e repartirem entre si vantagens patrimoniais que sabiam não lhes serem devidas, contactou o ofendido BB sem qualquer intenção de adquirir os bens / artigos por aquele anunciados.

10. A arguida atuou nos termos supra descritos, em conjugação de esforços e de intentos com outra pessoa cuja identidade não foi possível apurar, com o propósito concretizado de convencer o ofendido a fornecer-lhe as credenciais de acesso à aplicação MBWAY, mediante a informação de que se assim o fizesse, receberia de imediato o preço do objeto que tinha sido previamente negociado para compra e venda.

11. Bem sabia a arguida que tal não correspondia à verdade e que o visado desconhecia o modo de funcionamento daquela aplicação.

12 Tudo com o propósito, concretizado, de aceder indevidamente à conta bancária do ofendido, através da aplicação MBWAY, para obter o acesso a dados confidenciais bancários protegidos por lei e o controlo sobre a sua movimentação, e, desta forma, fazer suas as quantias monetárias supra descritas que aí se encontravam disponíveis, sem a sua autorização e contra a vontade daquele.

13. Bem sabendo que lhe causava uma perda pecuniária que ascende aos valores movimentados, querendo agir da forma como o fez.

14. Não se coibindo assim a arguida, ou alguém com ela naquele plano não concretamente identificado, mas sempre com o conhecimento e o acordo da arguida, de emitir ordens electrónicas de transferências bancárias a débito sobre a conta bancária do ofendido, fazendo-se passar por este, bem sabendo que desta forma interferia no tratamento de dados e induzia em erro a entidade bancária que concretizava tais operações, o que igualmente quis e conseguiu.

15. Quis e conseguiu a arguida determinar a entidade bancária do ofendido a viabilizar os movimentos bancários acima descritos em seu benefício, como se de ordens validamente emitidas pelo titular da conta se tratasse, bem sabendo que tal não correspondia à realidade, por não corresponderem à vontade do ofendido, o que quis e conseguiu.

16. A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Quanto ao pedido de perda de vantagens

17. A arguida recebeu com a prática dos atos supra descritos a quantia de 680,00€.

18. A arguida aumentou o seu património, pelo menos, no referido montante.

19. A arguida deu aos referidos montantes destino não concretamente apurado.

Mais se provou que

20. A arguida encontra-se desempregada, vive em casa própria, para a qual não suporta qualquer tipo de prestação fixa mensal.

21. A arguida é titular de dois veículos automóveis registados em seu nome.

22. A arguida não é beneficiária da Caixa Geral de Aposentações, não efetuando quaisquer descontos para o efeito.

23. A arguida recebe subsídio social de inserção no montante de 460.04 € e aproximadamente 50,00€ de abono de família.

24. Não sabe ler nem escrever.

25. A arguida não tem antecedentes criminais.

Quanto aos factos não provados, considerou inexistirem.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Nos termos do art.º 374º, n.º 2 do CPP, ao relatório seguir-se-á a fundamentação acerca de todos os elementos de facto dados como provados e não provados, feita de forma concisa, pese embora após um exame crítico dos elementos probatórios que formaram a convicção do julgador.

Conjugado o art.º 124º do CPP com o art.º 127º do mesmo diploma legal, facilmente se compreende que devem ser carreados para a instrução todos os factos que assumam relevância para a existência, ou não, do crime ou medida de segurança a aplicar, cuja prova será apreciada pelo Tribunal segundo as regras da experiência e a convicção a que livremente chegou sobre esta.

Esse exame crítico não poderá senão traduzir-se nos motivos que levaram o Tribunal a optar pela maior ou menor valoração de um documento em detrimento de outro, no convencimento por credibilidade do testemunho de certas testemunhas em relação a outras, ou das próprias declarações da arguida em relação àquelas, tendo em conta a apreciação conjunta da globalidade dos elementos probatórios apresentados e uma análise crítica de toda a prova produzida, atendendo sempre às regras da experiência, juízos de normalidade e espírito crítico, nomeadamente:

• Extrato do … de fls. 11;

• Notas de lançamento do … de fls. 12/15;

• Informações da … de fls. 41, 58/60;

• Informações da SIBS de fls. 48/56, 87;

• Informações da … de fls. 89/93, 128;

• Talões de levantamento ao balcão de fls. 129/130;

• CRC cuja junção ora se determinou;

• Informação das bases de dados do tribunal de ref.ªs 2298495, 2298494, 32592154, 3292137, 32592136, 32592133, 32592132, 32592131 e 32592129.

• Depoimento, prestado em sede de audiência de discussão e julgamento, de BB.

• Declarações da arguida, prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento respeitantes às suas condições socioeconómicas.

No que respeita à prova dos demais elementos de facto considerados provados, o Tribunal baseou-se na livre apreciação de prova – cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal – sobre a prova documental junta aos autos e o teor do depoimento do ofendido BB.

De forma sincera, espontânea, coerente e clara, não revelando hostilidade para com a arguida, foi pelo ofendido relatado que durante a pandemia, não se recorda do mês e do ano, por volta da 13h00 (porque estava a grelhar peixe), o contactaram telefonicamente por causa do anúncio que tinha colocado online (de uma cama e um colchão) no …, por 300€; que o contacto surgiu pouco depois de ter publicado o anúncio.

Esclarece que o interlocutor ao telefone afirmou que era de uma empresa, que faziam várias recolhas, pelo que não teria de se preocupar com a recolha dos seus bens; que o sujeito queria pagar, não regateou preço, apesar de não estar disponível para pagar de forma imediata, só na altura do levantamento.

Mais esclarece de forma perfeitamente espontânea e sem hostilidade, que o sujeito em causa lhe ia pedindo os dados bancários, a que ele, inocente, foi acedendo e informando em conformidade, nomeadamente do n.º do seu cartão multibanco, do n.º do seu NIB e um código MBway que recebera no meu telefone. Perguntado sobre o porquê de ter sido feito o pagamento com recurso a esta aplicação e não uma simples transferência, afirma que o sujeito arranjava várias desculpas para não proceder ao pagamento por transferência bancária, nomeadamente o facto de o seu banco não trabalhar com o … e … (que é o banco onde o ofendido tem conta bancária).

Após fornecer toda esta informação, afirma que houve um silêncio, desconfiou que o pudessem estar a furtar, pelo que desligou de imediato a chamada, foi verificar a sua conta através da aplicação homebanking do seu Banco e percebeu que já tinham efetuado quatro transferências, uma de 500,00€, uma de 100,00€, uma de 50,00€ e uma de 30,00€.

Afirma que à data das suas declarações continua prejudicado em 680,00€, com a agravante que se sente mal, impotente e inseguro quanto a possíveis situações como estas lhe poderem voltar a acontecer.

Afirma que quando fez estas operações todas, acreditava que iria ter o dinheiro na sua conta; tendo sido levado a uma situação de erro/engano, crente que ia receber dinheiro pelos bens anunciados, e não que lhe ia ser sacado o mesmo da sua própria conta.

De resto, este depoimento do ofendido corrobora toda a informação documental junta aos autos, nomeadamente extrato do … de fls. 11; notas de lançamento do … de fls. 12/15; informações da …de fls. 41, 58/60; informações da SIBS de fls. 48/56, 87; informações da … de fls. 89/93, 128; talões de levantamento ao balcão de fls. 129/130.

O extrato do … de fls. 11 e as notas de lançamento do … de fls. 12 a 15 confirma a ocorrência de quatros transferências MBway realizadas no dia 11.9.2020, nos valores indicados na acusação e confirmados pelo ofendido, provenientes da conta bancária titulada pelo ofendido no Banco … com o NIB … (parte do facto 5 e 6)

Já da prova documental extraída das informações da … de fls. 41, 58/60; informações da SIBS de fls. 48/56, 87, verifica-se que o número utilizado pela arguida ou alguém com ela naquele plano cuja identidade não se logrou apurar, fez uso do número de telemóvel …, correspondente a um cartão pré-pago, sem dados de titularidade, usado a partir de … (parte do facto 3).

Por outro lado, as informações da … de fls. 89/93, 128, dão ciência da informação respeitante àquilo que se verificou na conta bancária titulada exclusivamente pela arguida, com o NIB …, sedeada junto da … (facto 6). Nestas tabelas, é percetível a movimentação dos valores ali existentes, mesmo dias antes à prática dos factos descritos na acusação, nomeadamente, e para aquilo que aqui importa:

(i) imediatamente antes da data dos factos (11.9.2020), a conta bancária em causa, titulada pela arguida, encontrava-se praticamente sem saldo, sendo que, após o levantamento integral dos 680,00€, continuou a ficar, mais uma vez, praticamente sem saldo;

(ii) uma prática continuada de recebimento de transferências por MBway, com imediatos e subsequentes levantamentos, no próprio dia, ou dia seguinte: (1) em 21.8.2020 regista-se no histórico uma transferência recebida de 417,25€, tendo se seguido, no dia imediatamente subsequente, três ordens de levantamentos, duas de 150,00€ e uma de 40€, com o remanescente a ser gasto em compras diversas, também no próprio dia; (2) em 6.9.2020 volta registar-se no histórico uma transferência recebida de 750,00€, a qual é imediatamente levantada no dia seguinte, no valor de 748,00€; (3) em 9.9.2020 regista-se no histórico cinco transferências recebidas de 1070,00€ no total (sendo uma de 750,00€, outra de 250,00€, outra de 50,00€ e outras duas de 10,00€) a qual é imediatamente levantada no dia seguinte, no valor de 1070,00€.

(iii) Após os factos descritos acima, sendo o último praticado a 11.9.2020 (o dos presentes autos), a conta permaneceu mais de dois meses inativa, tendo posteriormente sido encerrada.

Por último, da prova documental junta ao processo, os talões de levantamento ao balcão de fls. 129/130 atestam e dão fé que foi a própria arguida quem, apondo a sua assinatura na ordem de levantamento constante de fls. 130, titular exclusiva da conta em questão, procedeu ao levantamento em numerário de 680,00€, no mesmo dia 11.9.2020.

A análise do extrato bancário de AA permite facilmente então perceber as movimentações e saída dos fundos ali constantes, nomeadamente, (i) que a arguida rececionou no dia 11.9.2020, através de quatro ordens de transferência provindas diretamente da conta do ofendido sita na …, o montante global de 680,00€; (ii) montante este que foi rececionado na sua conta, da qual é titular exclusivo, tendo, de imediato, no próprio dia, procedido ao levantamento de 680€, pessoalmente, e não numa caixa ATM multibanco, precisamente por saber que o limite máximo diário permitido por qualquer atm multibanco é de 400,00€ (cf.https://www.multibanco.pt/operacoes/levantamento/).

A arguida procedeu ao levantamento imediato das referidas quantias, no próprio dia, bem sabendo que, acaso não o fizesse nesses dias, corria o risco de ver as quantias em causa estornadas. Levantou todo este dinheiro, de forma imediata, precisamente por saber que o mesmo provinha de uma forma de obtenção ilícita, nomeadamente a prática de crimes patrimoniais perpetuados contra e sem autorização do seu proprietário, o que fazia parte de um plano do qual tinha conhecimento e intervenção direta.

A participação da arguida não é de somenos, sendo fundamental no plano gizado de empobrecimento do ofendido e enriquecimento próprio, uma vez que não se limita a ter uma conta bancária titulada em seu nome, como procede a uma intervenção direta de levantamento, no próprio dia, das quantias retiradas da conta pessoal do ofendido e que sabia não lhe pertencerem; dinheiro que apressadamente se dirige a levantar, para não correr o risco de ver o seu saldo, recentemente detido na sua conta, retirado.

Na convicção do Tribunal, a arguida era a principal pessoa interessada em proceder à operação em causa e envolver-se no plano construído conjuntamente com terceiro cuja identidade não se pôde apurar, e que implicou um benefício monetário para si; era, assim, a principal interessada no esquema efetuado contra o ofendido, de enriquecimento patrimonial à custa deste.

Também aqui valem as considerações afetas às regras da experiência comum, da lógica abstrata e dos critérios de normalidade, uma vez que (i) a conta bancária beneficiária do dinheiro e transferência estava na disponibilidade da arguida; (ii) o benefício obtido, recebido na sua conta e por si levantado, serve apenas os seus interesses, sendo que o referido benefício patrimonial nunca foi restituído ao ofendido, permanecendo, por isso, até à data, o empobrecimento deste e enriquecimento daquele.

Daí porque, também pelas mesmas regras da experiência comum e lógica abstrata de comportamento de um cidadão médico, o Tribunal tenha facilmente que concluir não se tratar de uma situação de erro ou lapso, o facto de o referido dinheiro ter sido transferido e movimentado para a conta bancária da arguida. Demonstra-o bem a circunstância de o dinheiro ter sido dissipado no próprio dia pela arguida, com levantamento em numerário, obviando-se ao cancelamento de futuras transferências. Assim como o demonstra bem a circunstância de o referido dinheiro, até à data, não ter sido devolvido ao ofendido; algo que um qualquer homem médico, cidadão comum, colocado na situação de alguém que recebe, desconhecendo a causa e proveniência, saldos bancários na sua conta, imediatamente teria tido o cuidado de devolver ou indagar junto do remetente se não lhe pertencesse.

Paralelamente, a inexistência de qualquer saldo bancário registado na conta da arguida antes e após a ocorrência destes factos, indiciam que esta não desempenhava funções de mera mula de terceiros (conforme alegado pelo Il. Defensor da arguida em sede de alegações), i.e., de mero executor; significa, antes pelo contrário, que tinha pleno conhecimento de todo o plano gizado. Repare-se que subjacente a toda a sua conduta está uma cidadã que, cautelosamente, cuida da forma como gere a sua conta bancária pessoal, mantendo-a sem fundos, por forma a lograr pleno êxito no enriquecimento patrimonial, sem riscos, nomeadamente de posterior estorno de valores por suspeita de práticas ilícitas.

A arguida não se limitou a receber valores na sua conta bancária pessoal e exclusiva e a levantá-los, mesmo sendo conhecedora da proveniência ilícita da sua origem. A arguida sabia, e comportou-se com o comportamento de quem sabe, o papel que tinha num plano previamente gizado; papel sem o qual o plano não funciona, por inexistir forma de lograr o enriquecimento desejado.

Ademais, a importância do papel absolutamente fundamental desempenhado pela arguida é denotado, ainda, por ser aquele que implica uma exposição criminal (ao contrário do papel do coautor que, em chamada telefónica, efetuada com recurso a um cartão pré-pago, se limita a extrair dados informáticos ao ofendido, inseri-los num sistema informático e efetuar transferências através da aplicação mbway).

Tudo isto demonstra que, mesmo não tendo sido a arguida a telefonar ao ofendido (até porque este afirma que a voz ouvida pela chamada telefónica correspondia à de um indivíduo de sexo masculino), esteve envolvida no plano em causa, conhecia o esquema de burla elaborado, do telefonema realizado e dos procedimentos bancários que se lhe seguiam, tendo intervenção ativa, conhecendo-o na sua integralidade e globalidade, assumindo o risco da exposição criminal (com a titularidade enunciada da conta bancária) e percebendo exatamente o seu contributo e intervenção direta no mesmo.

Nem de outra forma se poderão interpretar os comportamentos por si praticados.

A ausência de valores antes do depósito das transferências reportadas nos presentes autos, o seu imediato levantamento no dia da realização da transferência, bem como a ausência de posteriores valores depositados na mesma conta em datas subsequentes, indiciam que a arguida não só sabia perfeitamente o motivo dos valores serem transferidos para a sua conta, como o papel que tinha de imediatamente os levantar, uma vez que não poderia deixar a conta, nos dias subsequentes, com qualquer tipo de fundo, mantendo-a “a zeros”.

Na situação em apreço nos presentes autos, verifica-se, assim, que o título de imputação da prática dos factos à arguida, na qualidade de coautora material da prática dos crimes pelos quais vem acusada, parte de uma série de factos conhecidos e acima listados através de prova documental e testemunhal: a realização de um telefonema, que conduziu o ofendido a praticar atos, em erro, e com recurso a uma aplicação informática, que lhe causaram prejuízo e um enriquecimento paralelo e simultâneo da arguida.

Partindo destes factos conhecidos e indubitáveis, o Tribunal permitiu-se, com recurso a regras da experiência comum levadas a cabo por um cidadão médio, normalmente instruído, e da lógica abstrata, chegar à autoria dos factos praticados, com recurso a factos indiciários, como, e em suma (conforme já explanado supra), a exclusividade da conta bancária da arguida, o facto de a conta da arguida apenas por esta poder ser movimentada, as transferências dos montantes descritos na acusação para a conta desta e os subsequentes levantamentos em numerário efetuados logo após a receção daquelas na conta da arguida [Ac. do TRC de 24.5.2023, proc. n.º 84/20.5GBPMS.C1 (Rel. PAULO GUERRA), disponível em www.dgsi.pt].

As presunções simples ou naturais, mais não são do que meios lógicos de apreciação de elementos de prova, funcionando como alavancas de permitem chegar à convicção do julgador e que cedem, todavia, em cado de dúvidas sobre a sua exatidão no caso concreto. Dúvidas que, no entendimento do Tribunal, perante os factos acima dados como provados e a prova junta aos autos, não existem.

Ao saldo efetuado a partir do facto conhecido para o facto desconhecido presidem critérios sérios, procedimentos lógicos e intelectuais que permitem afirmar, segundo as regras de experiência comum, o referido facto não anteriormente conhecido, mas que, de forma natural, resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, para além da dúvida razoável, da interpretação conjunta de todos os factos conhecidos.

Quanto à prova dos elementos subjetivos, nomeadamente a forma de atuação, intenção, propósito, consciência, vontade e conhecimento da lei, tal prova resulta, uma vez mais, do cotejo de todas as provas valoradas nos autos, da sua apreciação conjunta, a par do uso de regras de normalidade prática e de experiência comum, raciocínio lógico-dedutivo.

Tendo em conta a natureza subjetiva do dolo e dos demais elementos subjetivos acima

elencados e a sua insusceptibilidade de apreensão direta pelo Tribunal, é por meio de presunções judiciais assentes no princípio da normalidade e regras experiência comum e construído com base em factos materiais provados, que se permite o Tribunal dar como provada a sua existência.

Ora, atendendo à matéria de facto dada como provada e as regras da experiência comum, lógica racional e princípio da normalidade prática do cidadão mediano, o Tribunal conclui que a intenção criminosa da arguida se erigiu sob os moldes de dolo direto, uma vez que sempre soube, de acordo com o plano gizado, que não tinha qualquer interesse em adquirir o bem anunciado, mas apenas fazer crer o ofendido, erroneamente, que o faria, para que desta forma a conduzir à cedência da informação bancária de que necessitava para, com ela, proceder à realização de transferências bancária para uma conta por si titulada e desse valor se apoderar, o que veio a acontecer, bem sabendo que essa sua conduta era proibida por lei.

Por outro lado, também não se demonstrou que o benefício tivesse sido dirigido a terceiro que não a beneficiária, uma vez que o dinheiro em causa estava na sua disponibilidade, tendo sido pela própria levantado, pessoalmente, da sua conta bancária.

Em suma, os factos 1 a 6, 8 a 10, 17 a 19, foram dados como provados atento o que foi o depoimento credível e espontâneo do ofendido, acima analisado, amparado na documentação supra listada e apreciada que corrobora esta versão dos acontecimentos. Documentação que ampara igualmente a conclusão do tribunal para a prova dos factos 7.

A par da apreciação da prova documental e testemunhal que amparou o convencimento do Tribunal quanto à prática dos factos acima descritos, estes foram igualmente dados como provados com base nos raciocínios lógico indutivos e presunções judiciárias acima melhor explanadas, as quais representaram, igualmente, o mecanismo processual adequado e suficiente a estabelecer a nossa convicção quanto à prova dos elementos subjetivos dos tipos incriminadores em questão e descritos nos factos 9 a 16, bem como à forma de participação da arguida no plano gizado.

Os factos 20 a 24 resultam das declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de discussão e julgamento, livremente apreciadas pelo Tribunal, que delas se convenceu, a par das pesquisas oficiosamente determinadas em sede de audiência de discussão e julgamento – cfr. pesquisas efetuadas ref.ª 2298495, 2298494, 32592154, 3292137, 32592136, 32592133, 32592132, 32592131 e 32592129.

O facto n.º 25 foi dado como provado porquanto assente em instrumento exarado por autoridade pública, enquanto documento autêntico e possuidor de força probatória plena, cuja autenticidade ou veracidade não foi posta em causa pela arguida, nomeadamente o certificado de registo criminal desta – tudo cfr. art.º 169º do Código de Processo Penal e art.os 363.º, n.º 1 e 2, 364º, 370º, n.º 1 e 371.º, n.º 1 do Código Civil.

Apreciemos.

Nulidade da sentença por falta de fundamentação

Ainda que não tenha sido vertida com precisão nas conclusões da motivação de recurso, ressalta claramente desta (do seu corpo) a invocação pela recorrente da nulidade da sentença por falta de fundamentação, assinalando que “o salto dado entre o telefonema, e burla MBAY e a coautoria por ser titular da conta é demasiado grande e insustentável” e bem assim que “face à totalidade da prova direta apurada e na sua sequência, entendemos que deveriam ter sido produzidos raciocínios lógicos e subsumíveis às regras da experiência do Tribunal (prova indireta) e conducentes a diverso resultado final, designadamente em sede de existência de uma coutoria material, sabe-se lá com quem, dos crimes imputados.”

Conforme resulta do estabelecido no artigo 374º, do CPP, a estrutura de uma sentença comporta três partes distintas, a saber: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Quando tal não suceda, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

Esta imposição de fundamentação, acolhida no texto constitucional no seu artigo 205º, nº 1 e materializada também no artigo 97º, nº 5, do CPP, como tem acentuado a doutrina e a jurisprudência, - vd. Sérgio Poças, Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Revista Julgar, nº 3, 2007, pág. 23 e, por todos, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 408/07, de 11/07/2007, in www.pgdl.pt. - cumpre duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, afirmada nas leis adjectivas, que visa essencialmente: impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão; permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação; colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, que apenas ganha evidência com referência, a nível constitucional, ao dever de motivação e que procura acima de tudo tornar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.

Os motivos de facto não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – cfr. Marques Ferreira, Meios de Prova - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 228 e segs., traduzindo-se, pois, o exame crítico, na menção das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, a afirmação das provas que mereceram aceitação e das que lhe mereceram rejeição, a razão de determinada opção relevante por uma ou outra das provas, os motivos substanciais da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal priveligiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção – neste sentido, Acórdãos do STJ de 16/01/2008, Proc. nº 07P4565, de 26/03/2008, Proc. nº 07P4833 e de 15/10/2008, Proc. nº 08P2864, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Ora, percorrendo a motivação da decisão recorrida, verifica-se que contém a especificação dos factos provados, a menção à inexistência de não provados, a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, mormente aqueles em que assentou a convicção do tribunal e, de forma até bem desenvolvida, o exame crítico desses meios de prova, com explicitação da sua credibilidade, concretamente no que tange ao depoimento prestado pelo ofendido e documentos juntos aos autos, estes mesmo de forma individualizada.

E, basta a simples leitura, sem grande esforço interpretativo, para concluir que foi feita a explicitação detalhada dos elementos probatórios tidos em conta e do raciocínio lógico-dedutivo que culminou no entendimento que os factos tinham de considerar-se como provados, nos termos em que o foram, não se patenteando o salto lógico apontado.

Mas, na verdade, o que pretende a recorrente ao invocar esta nulidade é tão só colocar em causa a valoração probatória efectuada pelo tribunal a quo e a convicção formada.

Só que, a nulidade da sentença por falta ou deficiência de fundamentação apenas se verifica quando inexistem ou são ininteligíveis as razões do tribunal a quo, o que não é o caso, não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o mesmo chegou (o que não significa também que aqui o sejam), muito menos quando essa pretensa enfermidade é colocada no plano da dissensão da recorrente quanto à aludida valoração.

Face ao exposto, a decisão recorrida não padece de nulidade, considerando o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP, pelo que cumpre negar provimento ao recurso quanto a esta questão.

Verificação do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Sustenta a recorrente que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Como vimos, o apontado vício, a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alínea a), do CPP, só releva se resultar do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. É um vício da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.

Verifica-se a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

Refere-se, por isso, à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito (e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova) e ocorre quando, nas palavras de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Editorial Verbo, 2000, pág. 340, “a matéria de facto se apresenta como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito” porque o Tribunal “deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão” - Ac. do STJ de 03/07/2002, Proc. nº 1748/02-5ª; a insuficiência “decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão”, ou seja, quando da decisão revidenda resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição – Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, consultável em www.dgsi.pt e Ac. do STJ de 21/06/2007, Proc. nº 07P2268.

Ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto, enquanto vício desta, com as consequências a que conduz – o reenvio do processo para novo julgamento quando não for possível decidir da causa, conforme consagra o nº 1, do artigo 426º, do CPP - não se identifica nem com a eventual insuficiência da prova produzida para se poder ter por assente a factualidade apurada pelo tribunal recorrido, nem com a dos factos provados para a decisão que está em causa, antes concerne à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, ainda que com orientação diferente da prosseguida, não estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas, eventualmente, face a erro de julgamento e de subsunção dos factos provados ao direito.

Ora, não suscita a recorrente (quer no corpo da motivação de recurso, quer nas respectivas conclusões) questão alguma que resulte da insuficiência da matéria de facto provada, enquanto vício da matéria de facto nos termos legalmente configurados e que densificado pela jurisprudência nacional se mostra, mas tão só, relativamente à sua actuação, exprime a divergência quanto à forma como foi apreciada pelo julgador da 1ª instância a prova produzida em audiência (pugnando por ser insuficiente para a comprovação dos factos que vieram a ser dados como assentes), a convicção firmada e a subsunção efectuada dos factos ao direito, o que naquele se não enquadra.

Com efeito, a factualidade que provada se mostra permite uma decisão segundo as várias soluções plausíveis para as questões em causa, mesmo eventualmente diversa da que foi encontrada pelo tribunal a quo.

Face ao que, não estando verificado o apontado vício, improcede o recurso neste segmento.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/valoração de prova proibida/violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo

A recorrente discorda também da matéria de facto dada como provada nos pontos 1 a 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e parte dos vertidos nos pontos 7 e 8 (bem assim “toda a matéria de facto tendente à formação da convicção de que a recorrente teve qualquer participação nos factos”) dos fundamentos de facto da decisão revidenda, fazendo apelo, entre o mais, ao depoimento da testemunha BB, prestado em audiência de julgamento.

Ora, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de discriminar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º (cumprindo, actualmente, face à revogação deste nº 3 pela Lei nº 94/2021, de 21/12, que entrou em vigor em 22/03/2022, considerar a remissão como feita para o seu nº 1), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.

Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência – o que se verifica no caso em apreço - o que não obsta a que, nesta eventualidade, o recorrente, querendo, também proceda à transcrição dessas passagens).

Analisando as conclusões e a motivação (corpo) da peça recursória, constata-se que cumpridas se não mostram as exigências legais.

Com efeito, assinalam-se, ainda que de forma quase totalizante face aos dados como provados, os concretos pontos de facto considerados como incorrectamente julgados.

Contudo, não se especificam quais as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com individualização das específicas passagens que alicerçam a impugnação, pois a recorrente limita-se a mencionar o que terá declarado a testemunha BB.

E, nem relacionado se mostra o conteúdo específico desse meio de prova susceptível de impor decisão diversa com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do nº 3, do artigo 412º, do CPP, a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida - a demonstração desta imposição compete também à recorrente.

Com efeito, nem na motivação de recurso (corpo da mesma), nem nas respectivas conclusões, a recorrente estabelece a relação entre um concreto segmento, individualizado pela menção ao seu início e termo, do depoimento trazido à colação e o ponto ou pontos de facto que, por este meio, almeja alterar.

Não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão.

Não tendo cumprido a arguida (nas conclusões ou sequer no corpo da motivação, realça-se pela repetição) o ónus de impugnação especificada a que estava vinculada, não pode este Tribunal da Relação conhecer do respectivo recurso nesta parte afectada e defeso estava fazer-lhe convite para aperfeiçoamento, pois trata-se de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso e esse procedimento equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso – neste sentido, Ac. do STJ de 07/10/2004, Proc. nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt e Acs. do Tribunal Constitucional nºs 259/2002, de 18/06/2002 e 140/2004, de 10/03/2004, ambos consultáveis no sítio respectivo.

Não obstante, o que realmente resulta, desde logo, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal da arguida sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Analisemos então.

O tribunal recorrido dá-nos a conhecer, como transcrito se mostra, o percurso de formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada colocada em causa e, também, as razões da valoração que fez relativamente aos documentos juntos aos autos e à credibilidade do depoimento da testemunha referida, resultando dessa exposição que a prova foi valorada com razoabilidade e os elementos apontados na sentença como relevantes para a decisão de facto foram coerentemente explanados e valorados de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum.

Mas, a recorrente invectiva ainda, se bem se compreende, o tribunal de 1ª instância por ter utilizado indevidamente a denominada “prova indirecta”, considerando não verificados os seus requisitos.

Mas, não tem a razão pelo seu lado, como passamos a explicitar.

Conforme resulta da elucidação feita pelo tribunal recorrido quanto a como formou a sua convicção relativamente à matéria em causa, considerou o mesmo a prova indirecta ou por presunções.

De acordo com o artigo 349º, do Código Civil, “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, admitindo-se as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, como se extrai do artigo 351º do mesmo.

E é perfeitamente possível o recurso à prova indirecta ou indiciária para chegar à convicção que formou o tribunal a quo, pois esta prova (que se distingue da prova directa) é admitida no nosso ordenamento jurídico também no âmbito do processo penal – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt e também o Ac. do Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127º, do CPP, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal.

A prova indirecta ou indiciária reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova – presunções naturais.

A factualidade que provada está e contra a qual a recorrente se insurge efectivamente, pelo menos parte dela, não tem correspondência directa no depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha BB (sendo certo que a arguida exerceu o seu direito de não prestar declarações), mas resulta da conjugação lógica de todos os elementos probatórios que mereceram a confiança do tribunal, alicerçando-se na verificação de uma relação de normalidade entre os indícios e a presunção que deles se extraiu, dando-se a conhecer na sentença sob censura de forma cristalina o raciocínio através do qual, partindo de tais indícios, se concluiu pela verificação dos factos objecto da crítica.

A propósito, o Ac. da Relação de Guimarães de 17/05/2010, Proc. nº 368/06.5GACBC.G1, disponível em www.dgsi.pt, dá-nos conta do seguinte:

“Segundo a jurisprudência espanhola do Tribunal Constitucional e do Tribunal Supremo, com o aplauso geral da doutrina, a eficácia probatória da prova indiciária está dependente da verificação de quatro requisitos:

Prova dos indícios: Os indícios devem estar plenamente provados por meio de prova directa e não serem meras conjecturas ou suspeitas, por não ser possível construir certezas sobre simples probabilidades;

Concorrência de uma pluralidade de indícios: embora a validade da regra “indicium unus indicium nullus” seja cada vez mais questionada (cfr., criticamente, Miranda Estrampes, La minima actividad probatoria en el proceso penal Barcelona, 1997, págs. 233-240), salvo em casos excepcionais, um único facto (indício) impede a formulação de uma convicção judicial com base na prova indiciária. Para além dessa pluralidade exige-se ainda que os indícios sejam periféricos relativamente ao facto a provar, assim como estejam interligados com o facto nuclear carecido de prova e que não percam força pela presença de contraindícios que neutralizem a sua eficácia probatória;

Raciocínio dedutivo: entre os indícios provados e os factos que deles se inferem deve existir um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional. A falta de concordância ou irracionalidade deste nexo entre o facto base e o facto deduzido tanto pode ter por fundamento a falta de lógica ou de coerência na inferência como o carácter não concludente por excessivamente aberto, débil ou indeterminado.

Motivação da sentença: o tribunal deve explicitar na sentença o raciocínio em virtude do qual partindo dos indícios provados chega à conclusão da culpabilidade do arguido. Por isso, “a sentença baseada em indícios deve ter uma extensa e abundante motivação” (Francisco Pastor Alcoy, Prueba Indiciaria y Presuncion de Inocencia, cit. pág. 63)” - fim de citação.

Aderindo a este entendimento, resulta da sentença recorrida que se mostram preenchidos estes requisitos.

Vejamos em concreto.

Provado está, documentalmente, que as ordens de transferência bancária a débito sobre a conta titulada pela testemunha/ofendido BB, nos montantes de 500,00 euros, 100,00 euros, 50,00 euros e 30,00 euros, respectivamente, tiveram como destino conta bancária exclusivamente titulada pela arguida, que não apresentava praticamente saldo antes da concretização dessas operações.

Pouco depois da realização das transferências, nesse mesmo dia e apenas cerca de uma hora e meia depois, a arguida procedeu ao levantamento, ao balcão, pessoalmente (e foi a própria quem apôs a sua assinatura na ordem de levantamento), do montante global transferido, sendo certo que após essa data, a conta bancária da arguida permaneceu inactiva por mais de dois meses, tendo vindo a ser encerrada posteriormente.

O tribunal recorrido explicita cabalmente o raciocínio em virtude do qual partindo dos factos provados directamente chega à conclusão pela culpabilidade da arguida.

Ora, a possibilidade de se verificar o desconhecimento e mesmo não concordância da arguida com o estratagema utilizado para conseguir a concretização das aludidas transferências é, dado o seu comportamento activo, reduzidíssima, diremos mesmo de uma altíssima improbabilidade.

Estando plenamente provados por meio de prova directa os indícios, verificando-se concorrência de uma pluralidade dos mesmos e a sua interligação com o facto nuclear a demonstrar, existindo um nexo preciso, directo, coerente, lógico e racional entre os indícios provados e os factos que deles se inferiram e tendo o tribunal recorrido explicitado cabalmente na sentença o raciocínio por via do qual partindo dos indícios provados chegou à conclusão sob os factos dados como provados e agora sob impugnação, nada obstava a que como tal os considerasse, pois preenchidos estão os requisitos da eficácia probatória da prova indiciária.

Assim, resulta claro inexistir utilização incorrecta da prova indirecta, estando a inferência retirada de acordo com as regras da experiência comum (sendo estas, de acordo com Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II volume, Reimpressão da Universidade Católica, Lisboa, 1981, pág. 300, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade).

Sustenta também a recorrente que o tribunal recorrido valorou prova proibida para formar a sua convicção no que concerne à factualidade provada que censura, aduzindo que tal se verificou por via dos “termos do vertido no acórdão do TC sobre os metadados”, pois “as localizações celulares em que se baseia a douta decisão obteve-se com recurso a dados armazenados”.

Analisemos.

Resulta da sentença revidenda que para a formação da sua convicção quanto aos factos provados, atendeu o tribunal, entre o mais, ao teor das informações da … de fls. 41/58/60.

As informações que foram solicitadas em sede de inquérito à operadora de telecomunicações “…” reportam-se ao número de IMEI associado ao número de telefone … em 11/09/2020; outros eventuais números de telefone posteriormente associados a esse mesmo IMEI; a identificação do titular do número de telefone … e, caso se tratasse de número pré-pago não identificado, a identificação do meio de pagamento utilizado e, se foi utilizado o sistema Multibanco, o registo dos pagamentos efectuados no período compreendido entre 01/09/2020 e 31/10/2020.

E o que a operadora informou foi que o nº … corresponde a um cartão pré-pago sem dados; não existiram carregamentos efectuados no Multibanco; o equipamento associado ao cartão … em 11/09//2020 possuía o IMEI que identificam e ainda que este IMEI se encontrava associado a outros cartões (que igualmente identifica) no período entre 11/09/2020 e 25/11/2020.

Pelo Acórdão nº 268/2022, publicado no Diário da República nº 108, Série I, de 03/06/2022, veio o Tribunal Constitucional:

“a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma Lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.”

A Lei nº 32/2008, de 17/07, transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15/03, concernente à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

É manifesto que o referido Acórdão concerne a dados anteriores armazenados, conservados e arquivados no âmbito da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, a que se aplica o regime da Lei nº 32/2008, de 17/07.

Só que, as informações solicitadas e obtidas nestes autos dizem respeito a dados que não se reportam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei nº 32/2008, de 17/07, tratando-se de dados de base, que se consubstanciam em elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os quais constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação” e “o grau de agressão ao direito à intimidade da vida privada (…) é menos gravoso do que os demais metadados elencados no artigo 4.º da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (pois apenas identificam o utilizador do meio de comunicação em causa)”. como se salienta no mesmo Acórdão do Tribunal Constitucional – neste sentido, vd., por todos, Acs. do STJ de 06/09/2022, Proc. nº 4243/17.0T9PRT-K.S1 e de 08/11/2022, Proc. nº 107/13.4P6PRT-D.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.

De onde, inexiste a apontada utilização de prova proibida.

Mas, resulta ainda que a recorrente entende terem sido violados os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

Ora, a violação deste princípio, corolário do da presunção de inocência constitucionalmente tutelado, pressupõe “um estado de dúvida insanável no espírito do julgador”, só podendo concluir-se pela sua verificação quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal encontrando-se nesse estado, optou por decidir contra o arguido (fixando como provados factos dubitativos ao mesmo desfavoráveis ou assentando como não provados outros que lhe são favoráveis) ou, quando embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter – cfr. Ac. do STJ de 27/05/2009, Proc. nº 05P0145 e Ac. R. de Évora de 30/01/2007, Proc. nº 2457/06-1, ambos em www.dgsi.pt.

Percorrendo a decisão revidenda, não resulta da mesma que o tribunal a quo tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis à arguida e nem a essa conclusão (dubitativa) se chega da análise desse mesmo texto à luz das regras da experiência comum.

Não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida e nada nos permitindo concluir que o devesse estar, não se manifesta violado o princípio in dubio pro reo.

E, também se não alcança onde pode ser encontrada a obliteração do princípio da presunção de inocência, pois em passagem alguma da sentença revidenda se manifesta ou sequer se extrai considerar o tribunal a quo que a arguida tinha de demonstrar a sua inocência e também este princípio não obsta a que a convicção se possa formar com base em prova indiciária.

Aliás, o nosso Tribunal Constitucional decidiu já não ser inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal, consagrados nos nºs 2 e 5 do artigo 32º da Constituição, a interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal – cfr. Ac. nº 521/2018, de 17/10/2018, que pode ser consultado no sítio respectivo.

Como ainda se elucida no Ac. da Relação de Guimarães de 09/12/2020, Proc. nº 320/17.5IDBRG.G1, in www.dgsi.pt:

“O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem também já se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso a prova indirecta em processo penal, designadamente no caso John Murray v. Reino Unido decidido por Acórdão de 08 de Fevereiro de 1996 (34), aí se exarando: «a formulação de juízos de inferência incriminatórios encontra-se, segundo o TEDH, condicionada à verificação de determinados pressupostos: (i) a acusação deverá estabelecer previamente, através de prova direta, as circunstâncias que permitem o juízo de inferência; (ii) estas deverão permitir que nelas se apoie a conclusão inferida; e (iii) a conclusão inferida (de que se encontram provados os elementos essenciais do crime) deverá ser estabelecida para além de dúvida razoável. A estes requisitos devem acrescer garantias processuais destinadas a assegurar que o juízo de inferência seja racionalmente exposto e sindicável por via de recurso. Onde tais exigências se mostrem cumpridas – como é o caso do ordenamento processual penal português -, a prova indireta é perfeitamente admissível à luz do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem»”.

Importa, pois, concluir que o recurso a prova indiciária, designadamente a presunções judiciais, não contende com o princípio da presunção de inocência do arguido.

Para que se proceda à alteração da matéria de facto no sentido propugnado pela recorrente teria esta que demonstrar que a convicção obtida pelo tribunal a quo constitui uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das aludidas regras, uma manifestamente errada utilização de presunções naturais, não bastando que apresente uma argumentação no sentido de que outra convicção era possível.

Tal demonstração de que as provas que aponta conduzem inequivocamente a uma convicção diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, não a fez, pelo que não merece acolhimento a sua pretensão de alteração da matéria de facto.

Termos em que, cumpre concluir que da análise efectuada resulta que a factualidade considerada provada objecto de impugnação se apresenta sustentada por prova suficiente, adequada e legalmente permitida, sem margem para dúvidas razoáveis, não se registando obliteração das regras da experiência comum, não havendo, por isso, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão da recorrente de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em audiência em detrimento da do julgador, pois a decisão sobre esta está devidamente fundamentada, tendo sido proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção – artigo 127º, do CPP.

Assim, carecendo de razão a recorrente no que tange à alteração da matéria de facto, tem de se considerar esta definitivamente fixada nos termos mencionados, improcedendo o recurso nesta parte.

Enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida

A recorrente foi condenada pela prática de um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1, do Código Penal e de um crime de falsidade informática, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1 e nº 2, da Lei nº 109/2009, de 15/09, na versão vigente à data da prática dos factos, do que dissente, aduzindo que “com a entrada em vigor da lei 79/2021, de 24-11, entendemos que os factos infra indiciados são punidos, apenas, pelo artigo 225 n.º 1 alínea d) do Código Penal ou por via da burla informática (…) Na verdade, este diploma legal veio trazer alterações na área dos chamados crimes de Mbway (…) Assim sendo, deverá ser aplicado o estatuído no artigo 2.º n.º 4, do Código Penal, aplicando-se, em consequência o regime mais favorável à Recorrente”.

Pois bem.

Diz-se na decisão recorrida a propósito da subsunção jurídica dos factos assentes:

§A. O crime de burla informática vem prevista no artigo 221.º n.º 1 do Código Penal, como sendo um crime praticado por “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Valem aqui as considerações tidas ao crime-base burla e à tutela do bem jurídico protegido por estas disposições, nomeadamente a existência de algumas divergências a respeito da amplitude do bem jurídico protegido. Nas palavras do douto Ac. do TRP, “ao lado do património protege também os valores da lealdade, transparecia e boa fé das transações e a capacidade de cada pessoa se determinar de forma livre e correta nas suas disposições de caracter patrimonial” (Ac. do TRP de 11.1.2017, proc. n.º 1830/12.6JAPRT.P1 (Rel. RENATO BARROSO), disponível em www.dgsi.pt).

O crime de burla visa proteger o bem jurídico do património do ofendido genericamente considerado de uma perspetiva criminal. Mas para que seja o agente punido por este crime, não é só necessário que a lesão ocorra através de uma provocação feita a esse terceiro que limite a sua liberdade de disposição patrimonial, mas que tal ocorra através da ação típica vinculada no preceito acima transcrito.

Razão pela qual se procura punir o ataque ao património do cidadão, mas também a forma pela qual essa lesão patrimonial é conseguida; razão pela qual o crime de burla é uma conduta onde se pune/desvalora simultaneamente o resultado (lesão patrimonial) e a ação típica.

Ação típica esta que é de execução vinculada, cujo resultado tem de ser atingido através de procedimentos e ações que estejam - tipicamente - previstos na descrição dos elementos materiais da infração.

§B. O tipo objetivo da norma é composto dois elementos: (i) a interferência no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programas informáticos, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento; e (ii) a causação de prejuízo patrimonial do enganado ou de uma terceira pessoa, traduzido na verificação de um evento consistente na saída dos bens ou valores da esfera da disponibilidade fática da vítima (sem o qual apenas poderá haver burla informática na forma tentada), independentemente da efetiva verificação do benefício económico do sujeito ativo da infração ou de terceiro.

A conexão que se estabelece entre o crime base burla com a informática, prende-se pela forma como a ação é levada a cabo, i.e., por interferência com o resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento (cit. art.º 221º do Código Penal).

A prestações objetivas a que faz referência o legislador no art.º 221º do Código Penal são de natureza vinculada [cf. Ac. do TRE de 19.11.2015, proc. n.º 133/13.3GBODM.E1 (Rel. CARLOS JORGE BERGUETE), disponível em www.dgsi.pt].

O preceito legal, ao apresentar uma redação vinculada para a realização do ilícito típico, acaba por consagrar uma fórmula legal restritiva, uma vez que, com ela, limitam-se as condutas relevantes para efeitos de burla informática às “manipulações informáticas que se repercutam no resultado do tratamento de dados, alterando-o face àquele que decorreria do regular funcionamento do sistema informático (em que os dados são tratados) e desde que essa alteração decora de uma interferência na estruturação (ou funcionamento) do respectivo programa, da utilização não autorizada, incorreta ou incompleta de dados ou de uma intervenção ilegítima, por qualquer outro modo, no tratamento automatizado” [RITA COELHO SANTOS, “O tratamento jurídico-penal da transferência de fundos monetários através da manipulação ilícita dos sistemas informáticos”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pág. 242, 243].

A interferência no resultado de um tratamento de dados é, naturalmente, consequência da interferência no processamento de dados através dos modos de execução do crime e, bem assim, a causa do prejuízo patrimonial.

Fala-se em estruturação de programa informático incorreta sempre que seja contrária às finalidades traçadas para aquele programa informático; sempre que as instruções dadas pelo agente produzam resultados contrários àquelas finalidades e, por essa via, se logra uma manipulação do programa.

Fala-se em utilização incorreta de dados sempre que são introduzidos dados informáticos não condizentes com a realidade; e em utilização incompleta sempre que esta introdução incida sobre dados verdadeiros, seja introduzida de tal forma parcial que não representam a verdade.

Fala-se em utilização de dados sem autorização sempre que são violadas regras de acesso a dados pessoais, por inexistir consentimento do titular, sem que a sua integridade/veracidade seja questionada.

O crime de burla informática logra-se, assim, através de uma afetação/lesão patrimonial na esfera do ofendido, obtida com recurso a uma intromissão nos sistemas e meios informáticos; meios informáticos estes nos quais está subjacente alguma forma de fraude ou artifício.

A relação com o crime base da “burla”, assente no engano e erro, é dirigido, ainda aqui, na pessoa do ofendido, uma vez que as máquinas são insuscetíveis de engano. O erro, engano ou artifício é causado sobre a pessoa do ofendido relativamente ao uso não consentido dos seus dados pessoais e informação bancária, ou aplicações informáticas.

Sem prejuízo, a norma não prevê nem demanda a verificação de um erro ou engano como elementos objetivos típicos do crime de burla; prevê, sim, a existência de atos de conteúdo material e final idêntico, i.e., exige uma manipulação dos sistemas ou uma utilização não autorizada ou abusiva de dados com vista à causação de um prejuízo patrimonial a terceiro [AZEVEDO, Ana Helena, Burlas Informáticas: Modos de Manifestação, Tese de Mestrado, pág. 37, consultável in http://repositorium.sdum.uminho.pt].

Ora, a arguida, juntamente com terceiro de identidade não concretamente apurada, aproveitou-se da ausência de conhecimento sobre o mecanismo e a forma de funcionamento da aplicação MBWay pelo ofendido, integrando um plano com vista a apropriar-se indevidamente de quantias que sabia não ter direito e não lhe pertencerem, à custa do engano do ofendido e do uso não autorizado ou consentido dos seus dados pessoais bancários em aplicações informáticas.

Houve, assim, uma utilização desconforme da aplicação em causa, nos termos do qual a arguida, conjuntamente com terceiro, fez uso de dados bancários do ofendido sem a sua autorização direta para o efeito, processando-os de uma forma não consentida pelo seu titular.

Dos factos provados resulta de forma evidente a verificação de todos estes elementos objetivos:

i. comprovou-se a deslocação patrimonial da quantia de €680 pertencente ao ofendido. Quantia esta que saiu da sua conta bancária individual e exclusiva para a conta bancária individual e exclusiva da arguida;

ii. mais provou que a deslocação patrimonial em causa foi efetuada com a intenção de obter para si um enriquecimento patrimonial ilegítimo, com o consequente empobrecimento/prejuízo patrimonial do ofendido, que tinha conhecimento e não ignorava.

iii. essa deslocação patrimonial foi obtida à custa do engodo praticado pela arguida ou de terceiro, em conluio com aquele, à pessoa do ofendido, levando-o a crer que, ao fornecer os seus dados pessoais bancários no âmbito do funcionamento de uma aplicação/sistema de pagamento que desconhecia, estaria a fornecer dados bancários para receber o produto de uma venda a que se propôs online, quando, na verdade, estava a fornecê-los para, sem sua autorização e conhecimento, permitir o acesso de terceiros a movimentações e consulta de saldos bancários constantes da sua conta pessoal;

iv. deslocação patrimonial esta que foi lograda com recurso a uma utilização de dados sem autorização e, portanto, com a violação de regras de acesso a dados pessoais do ofendido, sem o consentimento deste.

Encontram-se preenchidos todos os elementos objetivos do tipo de crime burla p. e p. pelo art.º 221, n.º 1 do Código Penal.

§C. No que tange ao tipo subjetivo do crime, resulta da conjugação do art.º 221, n.º 1 do Código Penal com o art.º 13º do Código Penal a não incriminação do crime de simulação de crime por negligência. A contrario sensu pode-se concluir que o crime de burla informática é sempre e necessariamente doloso, bastando-se com o dolo eventual.

Este tipo de crime conta com um elemento subjetivo do tipo específico, como visto acima, por ser um crime de intenção. Não é suficiente o dolo de causar prejuízo patrimonial à vítima, sendo ainda exigível que o agente aja com intenção de obter, através de uma conduta vinculada, um enriquecimento ilegítimo.

Razão pela qual, mesmo que o agente pratique todos os atos vinculados previstos no tipo penal de burla, mas aja com mera intenção de prejudicar (e não de enriquecer ilegitimamente à custa de) terceiro/vítima, não há crime de burla informática. O escopo da sua atuação tem de ser a obtenção de lucro ilícito.

O arguido tem de ser ainda conhecedor dos factos vinculados a que o preceito anuncia. Resulta da factualidade dada como provada que a arguida representou todas as circunstâncias de facto que preenchem os elementos objetivos do ilícito (elemento intencional do dolo) e, ainda assim, deliberadamente decidiu, querendo, juntamente com terceiro de identidade não concretamente apurada, recorrer a mecanismos ardilosos para induzir em erro o ofendido, conduzi-lo a fornecer dados pessoais bancários para, sem o seu conhecimento, procedesse a uma transferência patrimonial através de uma aplicação informática que desconhecia, e, assim, obter um enriquecimento ilegítimo à sua custa (elemento volitivo do dolo), mesmo sabendo da natureza proibitiva que esse comportamento implicaria judicialmente.

Resta senão concluir que a arguida agiu com dolo direto e, nessa medida, dá-se por integralmente preenchido o dolo do tipo exigido pela norma em causa (cfr. art. 14.º, n.º 1 e art.º 221, n.º 1 do Código Penal).

§D. Nos termos do disposto no art.º 26º do Código Penal “ É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”.

Já, por sua vez, dispõe o art.º 27.º do mesmo diploma legal “É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso”.

A arguida vem aqui acusada (e após análise da prova produzida, foi dado como provado) de ter atuado enquanto coautora da prática de um crime de burla informática e de um crime de falsidade informática.

A comparticipação criminosa, construída sob os moldes de coautoria implica a verificação de uma série de elementos, nomeadamente:

(i) um elemento objetivo consistente na intervenção e papel direto na fase da execução do crime perpetrado, i.e., a realização de um facto ilícito típico em conjunto com terceiro.

Como bem se anota na jurisprudência das instâncias superiores “Na execução conjunta, também é pacífico que esta não exige a intervenção de todos os agentes em todos os actos tendentes à produção do resultado típico pretendido, bastando que a actuação de cada um seja elemento componente do conjunto da acção, mas indispensável à finalidade a que o acordo se destinava” [Ac. do TRC de 13.12.2017, proc. n.º 566/15.0T9PBL.C1 (Rel. OLGA MAURÍCIO), disponível em www.dgsi.pt].

(ii) um elemento subjetivo, assente na existência de um acordo prévio ou atual para a concretização de uma execução conjunta de factos e que pressupõe, naturalmente, a intervenção de todos os elementos na elaboração do plano comum – acordo que tem de ser expresso e não retirado de comportamentos concludentes, assim como prévio à execução e contributo individual de cada coautor.

Como se assevera na jurisprudência nacional, “Tal acordo pode não ser expresso, bastando que seja tácito, todavia, neste caso, terá de ser concludente quanto à vontade de executar o facto e de traduzir uma contribuição objetiva conjunta para a realização da ação típica previamente acordada. (…) A execução conjunta, neste sentido, não exige, todavia, que todos os agentes intervenham em todos os actos, mais ou menos complexos, organizados ou planeados, que se destinem a produzir o resultado típico pretendido, bastando que a atuação de cada um dos agentes seja elemento componente do conjunto da ação, mas indispensável à produção da finalidade e do resultado a que o acordo se destina” [Ac. do TRL de 26.9.2018, processo n.º 257/18.0GCMTJ-F.L1-3 (Rel. A.AUGUSTO LOURENÇO), disponível em www.dgsi.pt].

(iii) o domínio funcional do facto, i.e., que o seu papel no conjunto da obra e do plano realizado seja de tal forma importante e fundamental que, de uma perspectiva ex ante, a sua omissão importe a impossibilidade de realização do facto típico ilícito na forma planeada.

Mais uma vez, replicando aqui o que se afirma em instâncias superiores, “No plano objectivo, o co-autor torna-se senhor do facto, que domina globalmente, tanto pela positiva, assumindo um poder de direcção, preponderante na execução conjunta do facto, como pela negativa, podendo impedi-lo, sem que se torne necessária, para a comparticipação estabelecida, a prática de todos os actos que integram o iter criminis” [Ac. Do STJ de 5.6.2012, proc. n.º 148/10.3SCLSB.L1.S1 (Rel. ARMINDO MONTEIRO), disponível em www.dgsi.pt].

É preciso, assim, uma consciência e vontade de colaboração de todos os agentes envolvidos, bem como a intervenção conjunta de todos, nos atos que lhes compita, para o sucesso final do plano gizado. Importa a atuação de cada um, ainda que parcial, uma vez que a sua integração final no todo permite lograr o resultado desejado [Ac. do STJ de 27.9.1995, CJ STJ, III, Tomo 3, pág. 197].

Cada coautor haverá de intervir, na parte que lhe compete, com vista a causar um resultado único, através da atuação concertada de todos, tomada na decisão conjunta de reunião de esforços.

Ao contrário do regime da cumplicidade, previsto naquele art.º 27º do Código Penal, o coautor não presta um mero auxílio material ou moral à prática do facto por ourem; não se limita a apoiar o autor dos factos, não se resume a favorecer a sua realização.

Inexiste qualquer tipo de domínio do facto do interveniente que atue como cúmplice. A prestação de auxílio deste, caso não venha a ser concretizada, não interferirá no resultado final do esquema elaborado. Pese embora contribua positivamente para a realização do facto principal, a efetiva lesão do bem jurídico protegido não chega a ser comprometida caso o cúmplice deixe de executar a tarefa que lhe compete.

Regressando ao caso em concreto, perante a factualidade dada como provada, dúvidas não restam que a arguida atuou efetivamente em coautoria quanto aos crimes de falsidade informática e de burla informática, nos termos que estão descritos e imputados na acusação pública, acima melhor fundamentados em sede de fundamentação da matéria de facto. A arguida agiu conjuntamente e mediante uma conjugação de vontades e de esforços, com outros indivíduos, cuja identidade não foi apurada.

A arguida atuou na forma consumada.

(…)

Tendo ficado provada a realização de todos os atos de execução típicos do crime que análise, não restam dúvidas de que a arguida praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime burla informática, p. e p. pelo art.º 221, n.º 1 do Código Penal.

III. 2. FALSIDADE INFORMÁTICA p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2 da Lei do Cibercrime (na versão em vigor à data da prática dos factos, e atualmente previsto pelo artigo 3.º-A, da Lei do Cibercrime, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 79/2021, de 24 de Novembro)

Dispõe o art.º 3º, n.º 1, 2 e 3 da Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, na versão original que lhe foi dada por este diploma, diploma em vigor à data da prática dos factos:

“1 - Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.

2 - Quando as ações descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados ou incorporados em cartão bancário de pagamento ou em qualquer outro dispositivo que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão.

3 - Quem, actuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objecto dos actos referidos no n.º 1 ou cartão ou outro dispositivo no qual se encontrem registados ou incorporados os dados objecto dos actos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respectivamente.”.

O tipo objetivo do crime de falsidade informática previsto no n.º 1 do artigo 3º da Lei 109/2009 de 15 de setembro, é integrado pela introdução de dados informáticos ou por qualquer outra forma de interferência num tratamento informático de dados, de que resulte a produção de dados ou documentos não genuínos, consumando-se o crime apenas com a produção deste resultado (dados ou documentos não genuínos).

Do ponto de vista do elemento subjetivo do crime, o tipo legal exige o dolo, sob qualquer das formas previstas no art.º 14.º do Código Penal. Em concreto, exige, na realidade, um duplo dolo, enquanto elemento subjetivo especial do tipo, nomeadamente, em primeiro lugar, a intenção de provocar engano nas relações jurídicas, bem como, relativamente à produção de dados ou documentos não genuínos, a particular intenção do agente de que tais dados ou documentos sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se fossem genuínos [Ac. do TRG de 8.3.2021, proc. n.º 254/20.6T9BCL.G1 (Rel. MÁRIO SILVA), disponível em www.dgsi.pt].

Estamos a falar de um crime que tutela uma diversidade de bens jurídicos, nomeadamente a segurança e fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico-probatório “(onde se inclui a segurança nas transações bancárias), embora, pelas razões sobreditas, o crime de falsidade informática, ainda que de forma meramente reflexa, acabe por tutelar também a integridade dos sistemas informáticos [DUARTE ALBERTO RODRIGUES NUNES, “O Crime de Falsidade Informática”, Julgar Online, Outubro 2017, in www.julgar.pt].

Com efeito, toda a Lei do Cibercrime acaba por dirigir o seu foco, preocupação e razões de tutela no sistema informático, por forma a acautelar ataques cada vez mais frequentes e constantes ao sistema informático como um todo [Decisão Quadro n.º 2005/222/JAI]

O crime acaba por se aproximar do crime de falsificação comum, p. e p. no art.º 256º do Código Penal, uma vez que tutela a segurança e credibilidade dos dados e documentos produzidos em computador mediante o tratamento informático de dados. Todavia, sempre terá de ser considerado a verificação necessária de um manuseamento dos dados apto a “interferir” no tratamento (sistema) de dados.

De outra banda, diz-nos a Relação de Évora que “o crime de falsidade informática previsto no artigo 3º da Lei nº 109/2009 visa proteger a segurança das relações jurídicas enquanto interesse público essencial que ao próprio Estado de Direito compete assegurar e não a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes e de dados informáticos” [ac. TRE de 19.5.2015, proc. 238/12.8PBPTG.E1 (Rel. ANTÓNIO LATAS), disponível em www.dgsi.pt].

Em particular no que respeita àquilo que é o enquadramento dos factos aqui dados como provados à subsunção jurídico-legal dos mesmos ao crime de falsidade informática, veja-se aquilo que é explanado nas orientações de 7.4.2020 proferidas pelo Gabinete do Cibercrime da Procuradoria Geral da República:

“O MB WAY é uma aplicação destinada primordialmente ao pagamento de quantias entre duas contas bancárias, sobre as quais tenham sido emitidos cartões bancários, utilizando para o efeito os números telefónicos dos titulares dos respetivos cartões (de origem e de destino da quantia em causa). Na aplicação MB WAY, a movimentação de quantias efetua-se mediante a autenticação por via do número de telefone do titular do cartão e de um PIN, definido pelo próprio, aquando da adesão ao serviço.

As situações criminosas que têm ocorrido processam-se da seguinte forma:

(i) em geral, o criminoso escolhe as suas vítimas em plataformas de venda online, procurando aí identificar pessoas que tenham colocado objetos para venda;

(ii) depois, contacta telefonicamente tais pessoas, manifestando interesse firme de comprar esse objeto e dispondo-se a pagar o mesmo de imediato, mesmo sem o ver e sem ter qualquer garantia de que o mesmo satisfaça o seu interesse;

(iii) manifesta a vontade de pagar o mesmo por via da aplicação MB WAY;

(iv) caso a vítima seja conhecedora deste processo de pagamento, em regra, o criminoso desliga logo a chamada, não voltando a estabelecer qualquer contacto;

(v) porém, caso a vítima não conheça a aplicação MB WAY, o criminoso desenvolve um processo ardiloso, tendo em vista ter acesso à conta bancária daquela;

(vi) para o efeito, o criminoso convence a vítima de que, para poder pagar-lhe, o que diz que fará de imediato, esta tem que deslocar-se a uma caixa Multibanco;

(vii) se a vítima aceita fazê-lo, uma vez aí, dá-lhe instruções para aderir ao serviço MB WAY, por via do menu disponível na aplicação informática do Multibanco;

(viii) dá-lhe ainda instruções para que, no campo onde deve inserir-se um número de telemóvel, insira o número do telefone do criminoso, e que insira ainda um PIN indicado pelo mesmo;

(ix) ou seja, na prática, além de convencer a vítima a aderir ao serviço MB WAY, o criminoso convence-a a que associe a aplicação ao número de telemóvel dele, fixando um código PIN igualmente por ele definido;

(x) nalguns casos, o criminoso dá instruções à vítima para que associe o número de telefone desta (memorizando-o, para o utilizar mais tarde);

(xi) nestes últimos casos, quando a vítima recebe o código de autenticação do serviço MB WAY, o criminoso pede que o mesmo lhe seja fornecido – para assim poder utilizá-lo mais tarde, para ativar efetivamente o serviço.

Na posse do número de telemóvel da vítima e do PIN, o criminoso consegue aceder ao cartão (e à conta bancária) daquela. Pode assim, por via do MB WAY, efetuar transferências para outros cartões (ou contas bancárias), ou pagamentos, ou ainda efetuar levantamentos em numerário, em caixas Multibanco (este é, aliás, o caso mais frequente)” [cit. https://cibercrime.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/alerta_mbway_2020_04_07. pdf , última consulta em 18.9.2023].

Não há dúvidas, perante aquilo que foi a prova produzida e a credibilidade dada à pessoa do ofendido, que conduziu à prova da factualidade respeitante ao plano gizado e às operações realizadas por telefone, o engodo, o consequente fornecimento de dados pessoais bancários e códigos de acesso, que estamos perante aquilo que acima se descreve no relatório em causa.

Por considerar que o enquadramento jurídico se encontra perfeitamente atendível e fundamentado já em instâncias superiores, dispensando-nos de outro relato, reitera-se o que proferido já pelo venerando Tribunal da Relação de Évora, de 25.5.2021, proc. n.º 82/20.9PACTX-A.E1 (Rel. MARTINHO CARDOSO), disponível em www.dgsi.pt, onde, seguindo a doutrina de ALDA DA CONCEIÇÃO COSTA FONTES [“MB WAY – Fraude na Utilização. Subsunção Jurídico-Penal de um Caso”, Revista do Ministério Público, 162, Abril/Junho 2020, pág. 250 e ss], se pode ler:

“Por outro lado, os dados informáticos mencionados no art.º 3.º da Lei do Cibercrime são expressões gerais que descrevem características das entidades sobre as quais operam algoritmos. A palavra tem origem no latim datum (aquilo que se dá), uma informação que permite chegar ao conhecimento de algo ou deduzir as consequências legítimas de um facto, que serve de apoio. Estas expressões devem ser apresentadas de maneira a que possam ser tratadas por computador. Os dados por si só não constituem informação, a menos que esta surja do adequado processamento de dados. A Lei do Cibercrime define também o que são dados informáticos para efeitos jurídico-penais no seu art.º 2.º al.ª b), como qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função.

Posto isto, temos que, quando o agente convenceu/determinou a ofendida a ir ao Multibanco, indicando-lhe todos os passos que teria de proceder para receber a transferência da venda – introduzir o seu cartão de débito, associar-lhe o número de telemóvel indicado pelo agente e inserir o código de seis dígitos que o agente lhe indicava e o que a ofendida fez de forma automática, porque completamente alheia ao esquema pensado pelo agente –, estava, através de outrem, a introduzir dados num sistema informático que criavam uma autenticação falsa.

Ao ser usada a APP com o correcto código PIN de seis dígitos para efectuar um levantamento de dinheiro, o sistema informático da SIBS reconhece a APP como associada a um determinado cartão de débito, e comunica ao sistema informático do banco onde está sedeada a conta associada ao cartão a quantia que se pretende levantar e este sistema há-de, ou não, possibilitar o levantamento e/ou montante, após confirmação do respectivo saldo.

Todas estas operações são informáticas e entre sistemas informáticos de diferentes instituições, mas com vista ao mesmo fim – possibilitar a movimentação de dinheiro ou as transacções comerciais de forma rápida e segura.

Quando alguém associa uma APP a um cartão, ao associar-lhe um telemóvel e escolher um PIN, está a criar um documento de «autenticação» no sistema informático do prestador de serviço. Quando o PIN é criado, ele estabelece uma relação de confiança com o prestador do serviço e o utilizador e cria um par de chaves assimétricas usado na autenticação. De modo que, posteriormente, quando se insere o PIN, este tem como função desbloquear a chave de autenticação e usa a chave para assinar a solicitação enviada ao servidor de autenticação.

Ou seja, quando é escolhido o PIN para a aplicação, o utilizador está a produzir um documento de autenticação electrónica com vista a uma finalidade jurídica relevante – o reconhecimento pela SIBS, no seu sistema informático, como pertencendo verdadeiramente ao utilizador do cartão contratado e, em substituição do cartão, a possibilidade de realizar – sendo reconhecido pelo sistema como legítimo – todas as funções que a aplicação permite.

Logo, se for introduzido um número de telemóvel que não corresponde ao titular do cartão e inserida uma palavra passe que não foi escolhida pelo titular do cartão, mas por alguém actuando sobre a sua vontade e convencendo-o que o seu procedimento o faria receber dinheiro na sua conta e não o contrário, estará a ser produzido um documento de autenticação electrónica/digital falso.

O que preenche o tipo legal do crime de falsidade informática, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2, da Lei do Cibercrime.

E não se diga que assim não pode ser porque quem inseriu os dados foi o próprio titular do cartão.

É que neste caso, ainda que o "executor" das operações de inserção/associação do número do telemóvel e "escolha"/inserção do PIN seja o próprio titular do cartão, ele não o faz de forma livre e esclarecida, mas sim convencido em erro pelo agente (que actua sobre ele à distância, manipulando a respectiva vontade) de que, ao proceder acriticamente, passo a passo, da forma como lhe é indicada ao telefone, está a dar autorização para que alguém (no caso, o seu interlocutor e alegadamente comprador da produto, que, antes de lhe dar as instruções, se assegurou que o titular do cartão não conhecia o meio de pagamento MB WAY), lhe transfira dinheiro para a conta associada ao seu cartão.

Trata-se, pois, de um caso de autoria mediata (cf. art.º 26.° do Código Penal), na medida em que o agente determina outrem a praticar os actos de execução necessários à consumação do mesmo, sem nunca perder o domínio do facto, para o que necessitava que outra pessoa, no caso o próprio titular do cartão, praticasse determinados actos: introdução do seu cartão de débito na ranhura da caixa Multibanco e a inserção do PIN do seu cartão e, de seguida, através da associação do número do telemóvel e do código PIN que lhe são facultados pelo agente, criasse uma autenticação de uma aplicação sua a um cartão alheio como se fosse o próprio utilizador autorizado do cartão – o que é falso.

Assim, temos que o agente/autor mediato:

a) Criou um documento falso – autenticação da aplicação MB WAY na SIBS, inserindo dados no sistema informático – número de telefone e PIN – (elemento objectivo do tipo), associando-a a um determinado cartão de débito (através da introdução/utilização do PIN do cartão), que não lhe pertencia, mas que, a partir deste acto, passa a ser reconhecido como se lhe pertencesse – com o que cria uma “assinatura digital" falsa;

b) Sendo que o fez através de manipulação do titular do cartão, determinando-lhe a prática dos actos de execução, que este executou automaticamente e sem juízo crítico, convencido que estava a consentir coisa completamente diversa (que seria receber dinheiro da venda que estava ciente ter acabado de efectuar);

c) Com intenção de provocar engano nas relações jurídicas (elemento subjectivo especial do tipo) – criar a convicção no sistema informático da SIBS que o utilizador da aplicação MB WAY é o mesmo utilizador, legítimo, do cartão de débito;

d) E com intenção (dolo/elemento subjectivo) de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades jurídicas relevantes – efectuar operações financeiras/transacções, todas as ordens de levantamento e/ou transferência que venham a ocorrer através daquela aplicação – que serão aceites como válidas como sendo emitidas pelo próprio titular do cartão de débito.

De facto, o crime de falsidade informática está consumado com a validação da aplicação – através do método supra descrito.

E, tratando-se de um crime de perigo abstracto, pode até acontecer que através daquela aplicação nunca se venha a processar qualquer operação bancária que venha a produzir prejuízo económico ao ofendido. Efectivamente, o crime de falsidade informática visa proteger o bem jurídico fiabilidade dos documentos no tráfico jurídico probatório (onde se inclui a segurança nas transacções electrónicas) e, reflexamente, a integridade dos sistemas informáticos.

Trata-se aqui de uma interferência no tratamento de dados informáticos, no sentido de influenciar o modo desse tratamento, a fim de o mesmo não ocorrer do modo como, sem a actuação do agente, ocorreria.

Neste caso, com a integração dos dados informáticos no sistema informático – criar a autenticação (input) –, o programa instalado no sistema informático não é alterado, apenas trabalhará com dados falsos e, por isso, o tratamento dos dados daí decorrente – ao utilizar posteriormente a aplicação – vai gerar um resultado falso – uma ordem dada por quem não tinha legitimidade para o fazer – pelo que a ordem que venha a ser gerada pela utilização (output) – também será falsa porque houve falsificação dos dados integrados (o número de telemóvel e o PIN da aplicação não pertencem ao utilizador do cartão de débito)” [negritos nossos].

Compulsada a matéria de facto dada como provada, não há dúvidas de que a conduta praticada pela arguida, em conluio com terceiro de identidade concretamente não identificada, ao introduzir o número de telemóvel que não correspondia ao do ofendido, aquando da criação de uma conta na aplicação MBway com os dados bancários deste, e inserir uma palavra passe que não foi a escolhida pelo lesado, produziu um documento de autenticação eletrónica falso.

Do ponto de vista dos elementos objetivos e subjetivos necessários ao preenchimento do tipo de crime de falsidade informática, previsto e punido nos termos do art.º 3º, n.º 1 e 3 da Lei do Cibercrime, na sua versão originária, temos, de acordo com a factualidade provada, (i) a criação, pela arguida em conluio com terceiro de identidade não apurada, de um documento falso, traduzido na autenticação da aplicação MBway na SIBS mediante a inserção do número de telefone e PIN (obtido com informação do lesado) no respetivo sistema informático e a sua associação a uma determinada conta bancária (do lesado) que não lhe pertencia, com o que cria uma assinatura digital falsa; (ii) a manipulação do titular do cartão, o qual é determinado por terceiro a cumprir com atos de execução do plano gizado, sem ter conhecimento de que o está a fazer; (iii) a intenção de, mediante o esquema em causa, provocar um engano, porquanto cria uma convicção de identidade entre o utilizador da aplicação MBway e o titular do cartão de débito ali autenticado; (iv) e com uma intenção igualmente dolosa de que tais dados e factos possam ser utilizados para finalidades diversas como operações financeiras ou transações, como veio a ocorrer mediante a ocorrência, em concreto, de cinco ordens de transferência de valores para a conta da arguida; (v) sabendo, conhecendo e querendo, ainda assim, praticá-los, aceitando que, com eles, estaria a prejudicar a segurança e credibilidade dos dados e documentos produzidos em computador mediante o tratamento informático de dados.

O diploma em causa veio a ser recentemente alterado pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro 11, a qual, além dos aditamentos efetuados ao art.º 3º, alterou a sua disposição, para o que aqui releva, no n.º 2 desse preceito, passando a dispor “Quando as ações descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados, incorporados ou respeitantes a qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão”.

Estas alterações entraram em vigor no dia 24 de dezembro de 2021 (cfr. art.º 21º da Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro 11).

Por força desta alteração legislativa, o art.º 3º, n.º 2 da Lei do Cibercrime deixou de punir de forma qualificada a falsidade informática que incidia, então, sobre cartões bancários de pagamento.

Alternativamente, porém, o regime jurídico dos cartões de pagamento [expressão que, com a referida alteração legislativa, passou, também, a ser a adotada pelo legislador nacional], passou a ser regulado no âmbito do disposto no art.º 225º, n.º 1, al. b) e, bem assim, a receber um regime, específico, autónomo e especial nos novos art.ºs 3º-A, 3º-B, 3º-C e 3º-E da Lei do Cibercrime, na versão que lhe é dada pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro.

Com efeito, passou a ser enquadrado no âmbito do disposto no art.º 3º-A da Lei do Cibercrime a punição específica contra a contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento e onde, nos termos do qual, se prevê que “Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, contrafizer cartão de pagamento ou qualquer outro dispositivo, corpóreo ou incorpóreo, que permita o acesso a sistema ou meio de pagamento, nomeadamente introduzindo, modificando, apagando, suprimindo ou interferindo, por qualquer outro modo, num tratamento informático de dados registados, incorporados, ou respeitantes a estes cartões ou dispositivos, é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos”.

O crime, mantendo o dolo específico da intenção de provocar engano nas relações jurídicas, implica que se proceda a uma modificação, eliminação ou supressão, interferência no tratamento informático de dados registados, incorporados ou respeitantes a cartões ou dispositivos.

Passou a punir-se nesta sede a falsificação dos dados inseridos em cartões de pagamento, assim como a falsificação de outros dispositivos que permitam o acesso a sistemas de pagamento.

Continua a manter-se a necessidade de ocorrência de uma intervenção informática, no software incorporado num cartão físico (ou noutro dispositivo físico, corpóreo, de acesso a sistema de pagamento), ou uma manipulação informática de software incorporado num dispositivo não corpóreo (aplicação, programa, códigos) de acesso a sistema de pagamento.

No fundo, passou a consagrar-se todo um regime jurídico mais gravoso, cautelosa e criteriosamente dirigido à tutela mais premente das falsidades informáticas incidentes sobre cartões bancários ou de pagamento, ou sistemas a eles associados, considerando a frequência cada vez mais avassaladora dos crimes praticados com recurso a estes instrumentos de pagamento.

Só assim se compreende a interpretação do regime em vigor, considerando a interpretação necessária a ser levada a cabo com a Diretiva (UE) 2019/713 Do Parlamento Europeu E Do Conselho de 17 de abril de 2019, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário e que substitui a Decisão-Quadro 2001/413/JAI do Conselho, que aquela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro visou transpor.

Com efeito, lê-se nos considerandos daquele diploma comunitário, entre outros, “Nos últimos anos, assistiu-se não apenas a um aumento exponencial da economia digital mas também à proliferação da inovação em muitos domínios, inclusive nas tecnologias de pagamento. As novas tecnologias de pagamento implicam a utilização de novos tipos de instrumentos de pagamento, que, apesar de criarem novas oportunidades para os consumidores e as empresas, também aumentam as oportunidades de fraude.

Consequentemente, o regime jurídico tem de permanecer relevante e atualizado no contexto desses avanços tecnológicos com base numa abordagem tecnologicamente neutra” (Considerando 6).

Ora, nos termos do disposto no art.º 2º, n.º 4 do Código Penal, “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior”.

Ora, confrontadas as molduras penais previstas na versão originária do art.º 3º, n.º 2 da Lei do Cibercrime, em vigor à data da prática dos factos, com a versão prevista no art.º 3º-A da Lei do Cibercrime na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 79/2021, de 24 de novembro, verifica-se que pese embora as alterações jurídicas verificadas no tipo incriminador pelo qual a arguida deverá ser aqui condenada, o regime jurídico legal posterior apresenta uma moldura penal menos favorável ao arguido, punindo os factos aqui dados como provados com pena de prisão de 3 a 12 anos.

Restará aplicar à arguida, assim, a moldura prevista na versão da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, em vigor à data da prática dos factos, a qual prevê uma moldura de pena de prisão de 1 a 5 anos.

Esta exaustiva fundamentação de direito no que tange à subsunção dos factos provados aos tipos legais mostra-se na sua totalidade correcta, apresentando-se despiciendo e mesmo irrelevante mais acrescentar, pelo que apenas cumpre concluir que também não merece censura a condenação da arguida/recorrente pelo cometimento dos crimes de burla informática e falsidade informática (entre os quais existe uma relação de concurso efectivo, atenta a diversidade de bens jurídicos protegidos por ambas as incriminações), nos termos em que o foi.

Destarte, ao recurso tem de ser negado provimento.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.

Évora, 23 de Janeiro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

________________________________________

(Artur Vargues)

_______________________________________

(Margarida Bacelar)

_______________________________________

(Jorge Antunes

1 Segue-se, de perto, com a merecida e devida vénia, o que consta do Ac. Relação de Évora de 25.05.2021, relator Martinho Cardoso

2 Nessa matéria, com interesse, Nota prática nº 22 /2021 de 04.03.2021, Gabinete Cibercrime – Procuradoria Geral da República, disponível para consulta em https://cibercrime.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/nota_pratica_mb_way_ii_04_03_2 021.pdf

3 Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Lisboa, Rei dos Livros, 6.ª ed.

4 Simas Santos e Leal-Henriques, referem na obra citada, pág. 74 que: “…só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final…”. Nessa obra e local, os autores dão amplas referências jurisprudenciais sobre a matéria.

5 Por todos, merece referência Ac. do S.T.J. de 20.04.2006, “Caso ...”, relator Rodrigues da Costa que esclarece que: “ A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. o Acórdão de 3/7/2002, Proc. n.º 1748/02 da 3ª Secção, Sumários dos Acórdãos das Secções Criminais, edição anual 2002, p. 242).

6 Sobre esta temática, consultar, com interesse, o recente Ac. Rel do Porto de 01.02.2012, relatora Eduarda Lobo

7 Ac. Rel de Coimbra de 05.11.2008, relator Jorge Gonçalves

8 Ac Rel. de Coimbra de 12.11.2003, relator Inácio Monteiro onde se deixou consagrado que: “…o recorrente quando questiona, não o texto do acórdão, mas o modo como o tribunal colectivo procedeu à apreciação da prova, ataca a decisão com base na violação do – princípio da livre apreciação da prova – e não no vício de erro notório na apreciação da prova.”.