Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
206/11.7TBPTG-M.E1
Relator: SÍLVIO SOUSA
Descritores: COMPETÊNCIA ORGÂNICA
INSOLVÊNCIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Em matéria de competência para preparar e julgar processos de insolvência, a actual organização do sistema judiciário não inovou; assim, estes processos, instaurados, aquando da vigência da anterior organização judiciária, nos juízos cíveis, por inexistência de tribunal de comércio, devem transitar, em consequência da organização vigente, para a instância local (secção cível), se na comarca não existir secção de comércio.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação nº 206/11.7 TBPTG-M.E1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

Declarada a insolvência da sociedade (…), S.A., em 26 de Janeiro de 2012, pelo Tribunal Judicial de Portalegre (1º juízo), foram os autos, em virtude da entrada em vigor da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, remetidos, posteriormente, à Secção Cível da Instância Central da Comarca de Portalegre, que, apesar da oposição do Exmo. Procurador da República, declarou-se “materialmente competente para preparar e julgar a ação”.


Inconformado com o decidido, apelou o Exmo. Procurador, culminando as suas alegações, com as seguintes “conclusões”:

- A Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto) estabelece a competência dos tribunais;
- Estatui o artigo 117.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto que: “ 1 - Compete (…). 2 - Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a essas secções (…)”;
- Em conformidade com o preceituado no artigo 128.º, alínea a) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, compete às secções de comércio preparar e julgar os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
- Por força do disposto no artigo 1.º do CIRE, o processo de insolvência é “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação de credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” (artigo 1.º do CIRE);
- Assim, o processo de insolvência não constitui uma ação declarativa cível de processo comum, mas um processo de execução especial, como claramente resulta do aludido artigo 1.º do CIRE, conjugado com o disposto no artigo 212.º do Código de Processo Civil, pelo que o processo de insolvência não se mostra abrangido pelo preceituado na referida alínea a) do nº 1 do artigo 117.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto;
- Por definição do artigo 1.º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal, que possui um processamento próprio especial, estruturado praticamente na íntegra no CIRE e não no Código de Processo Civil, pelo que, no que concerne ao processo de insolvência, não se mostra verificado o pressuposto a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 117º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (“exercício de competências previstas no Código de Processo Civil”);
- Deste modo, o processo de insolvência não está, também, abrangido pelo nº 2 do artigo 117.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, pois que não se verifica o preenchimento dos pressupostos estabelecidos pela alínea b) desse mesmo normativo;
- Com efeito, no que tange ao processo de insolvência, não está aqui em causa o exercício das competências previstas no Código de Processo Civil, pois que, no processo de insolvência, as competências são estabelecidas exaustivamente pelo CIRE e só residualmente, por aplicação do disposto no artigo 17.º desse diploma, haverá recurso às normas do Código de Processo Civil;
- O processo de insolvência não está também abrangido pela alínea d) do artigo 117.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto;
- Na verdade, não existe outra (qualquer) norma na Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que atribua competência à Secção Cível da Instância Central para a preparação e julgamento dos processos de insolvência;
- Mas, ao contrário, existe de facto, uma disposição legal que confere à instância local de competência genérica (que podem ser desdobradas em secções cíveis e criminais) competência para preparar e julgar os processos de insolvência (independentemente do seu valor);
- Com efeito, estatui o artigo 130.º, nº 1, a) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto que: “1- Compete às secções de competência genérica: b) Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou a tribunal de competência territorial alargada, (…)”;
- Desta sorte, não se enquadrando, como não se enquadra, o processo de insolvência na competência da secção cível da instância central, pelos motivos supra expendidos, terá de se enquadrar, necessariamente, na competência residual da instância local (secção cível);
- Aliás, esta intenção do legislador era já patente na lei anterior no que concerne à competência das varas cíveis, sendo que a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto quis, sem dúvida, manter excluídas da competência das secções cíveis da instância central os processos especiais;
- Essa intenção ressalta claramente do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 117.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto;
- Assim, a decisão do Tribunal “a quo” contraria o próprio espírito do legislador, sendo a sua interpretação contrária ao disposto no artigo 9.º do Código Civil;
- Deste modo, a decisão do Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 117.º, nºs 1 e 2, 128.º, 130.º, nº 1, a) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, 1.º, 17.º do CIRE, 212.º do Código de Processo Civil e 9.º do Código Civil.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” e substituída por outra que, julgando procedente a invocada exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, considere a Instância Central de Portalegre incompetente materialmente para a tramitação dos presentes autos.


Inexistem contra-alegações.


Face às conclusões das alegações, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação da seguinte questão: saber em que secção – Central ou Local – devem ser tramitados os processos de insolvência, quando, na comarca, não haja secção de comércio.


Foram colhidos os vistos legais

Fundamentação


A - Decisão recorrida


“ (…)


Efetuado este enquadramento legal, duas interpretações distintas do disposto no nº 2 do artigo 117.º estão aqui em causa. A primeira, estritamente literal e que foi adotada pelo Ministério Público, coloca a enfâse no teor das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 117.º, ou seja, o processo de insolvência não é uma ação declarativa cível de processo comum. Do mesmo modo, pese embora seja um processo de execução universal, no âmbito da insolvência não se exercem as competências previstas no Código de Processo Civil, a não ser subsidiariamente, pelo que o processo de insolvência também não poderá ser qualificado como mera ação executiva de natureza cível. Assim, de acordo com este entendimento, o disposto nas alíneas a) e b) do artigo 117.º nunca poderá ser extensivo à alínea a) do nº 1 do artigo 128.º, uma vez que os processos aí contemplados não se enquadram nas primeiras alíneas referidas.


Desde já se deixa aqui expresso que este entendimento tem um forte argumento na letra da lei. Porém, de acordo com o nº 1 do artigo 9.º do Código Civil, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei. Ora, o enquadramento menos óbvio no disposto no nº 1 do artigo 117.º, relativamente aos processos contemplados na alínea a) do nº 1 do artigo 128.º não é caso único, tendo em consideração as alíneas seguintes, as quais não cabe aqui dissecar. Para além do mais, analisando “as condições especificas em que é aplicada (a lei)”, em obediência ao referido nº 1 do artigo 9.º do Código Civil, os processos de insolvência correspondem à quase totalidade do volume processual das ações de “comércio” existente nas comarcas onde não há secção de comércio. De acordo com esta análise, seguir o entendimento literal já frisado implicaria que o nº 2 do artigo 117.º ficava praticamente esvaziado de conteúdo prático, sendo a sua aplicação meramente residual.


Nesta conformidade, entendemos que a interpretação a fazer do teor do nº 2 do artigo 117.º não deverá ser unicamente literal, mas também teleológica. Assim, quando esta norma remete para as ações que caibam às secções de comércio, entendemos que tal alusão refere-se à totalidade dessas ações, independentemente de as mesmas não se enquadrarem nas definições de ações declarativas cíveis comuns ou ações executivas de natureza cível. Porém, a secção cível apenas será competente pra preparar e julgar tais ações nas mesmas condições em que é competente para as ações declarativas cíveis de processo comum ou ações executivas de natureza cível, isto é, desde que tenham um valor superior a €500000.


(…)”.


B - O direito


- Ao intérprete é, também, exigido que “atenda, por um lado às circunstâncias em que foi elaborada (a lei), e por outro às condições específicas do tempo em que é aplicada, isto é, que a interpretação seja coerente com o sistema de valores que a comunidade aceita como fundamento da própria convivência”[1];


- Sempre que a vontade real do legislador não seja clara e inequívoca, importa ter em consideração “critérios de carácter objetivo”, como sejam o da presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e o da rejeição de um sentido decisivo da lei, se no texto desta “não se encontrar um mínimo de correspondência verbal”[2];


- O processo de insolvência é um processo especial[3];


- Na anterior organização do sistema judiciário, os juízos cíveis tinham uma competência residual, ou seja, preparavam e julgavam os processos de natureza cível que não fossem da competência das varas cíveis[4];


- Por seu turno, estas, nomeadamente, preparavam e julgavam ações declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação e exerciam competências previstas no Código de Processo Civil, em determinado tipo de ações executivas; além disso, preparavam e julgavam ações declarativas em matéria de comércio, em caso de inexistência de tribunais de comércio [5];


- Estes eram competentes para, nomeadamente, preparar e julgar o processo de insolvência e respetivos apensos e incidentes [6];


- Na vigente organização do sistema judiciário, a instância local tem, também, uma competência residual, isto é, prepara e julga os processos relativos a causas não atribuídas a outra seção da instância central[7];


- Por outro lado, a secção cível da instância central, nomeadamente, prepara e julga ações declarativas cíveis, na forma de processo comum e de valor superior a € 50.000,00, e exerce competências previstas no Código de Processo Civil, no âmbito de ações executivas da natureza cível de idêntico valor; além disso, prepara e julga ações declarativas, na forma de processo comum, em matéria de comércio, e exerce competências, previstas no Código de Processo Civil, no âmbito de ações executivas, relacionadas com a mesma matéria, nas comarcas onde não haja secção de comércio[8];


- À secção de comércio compete, nomeadamente, preparar e julgar os processos de insolvência e respetivos apensos e incidentes[9].


C- Aplicação do direito


Comparando a atual organização do sistema judiciário com a anterior, a única alteração substancial encontrada coincide – na área do objecto do recurso – com o alargamento da competência da Secção Cível da Instância Central, a ações executivas, em matéria de comércio, em caso de inexistência de secção de comércio, na comarca. As restantes são de ordem formal, decorrente a nova designação dos tribunais.


Assim, e relativamente à questão suscitada no recurso, o legislador não inovou. Por isso, a contribuição do elemento teleológico para a interpretação da lei vigente é de escasso valor. Equivale isto a dizer que o legislador não se pautou pelo objetivo de dar mais “conteúdo prático” ao nº 2 do artigo 117.º da Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto.


Não tendo o legislador inovado, na área em causa, os presentes autos – instaurados num juízo cível, sem impugnação da sua competência – devem transitar para o órgão jurisdicional que lhe sucedeu – a instância local (secção cível).


Efetivamente, tendo em consideração que o processo de insolvência é um processo especial – “um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação de credores pela forma prevista num plano de insolvência (…)” –, que a competência da Secção Cível da Instância Central está limitada, em caso de inexistência, na Comarca, de secção de comércio, a ações declarativas cíveis de processo comum, em matéria de comércio, e ao exercício de competências previstas no Código de Processo Civil, no âmbito de ações executiva relacionadas com a mesma matéria, e que o legislador exprimiu “o seu pensamento em termos adequados”, é logico concluir que a preparação e julgamento de processos de insolvência e respetivos apenso ou incidentes escapam à competência material da dita Instância Central.


Procede, deste modo, o recurso.


Em síntese[10]: em matéria de competência para preparar e julgar processos de insolvência, a atual organização do sistema judiciário não inovou; assim, estes processos, instaurados, aquando da vigência da anterior organização judiciária, nos juízos cíveis, por inexistência de tribunal de comércio, devem transitar, em consequência da organização vigente, para a instância local (secção cível), se na comarca não existir secção de comércio.


Decisão


Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando procedente a apelação, revogar a decisão recorrida, com a consequente remessa dos autos à instância local (secção cível).


Sem custas.


Évora, 12 de Março de 2015


Sílvio José Teixeira de Sousa


António Manuel Ribeiro Cardoso


Acácio Luís Jesus das Neves


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[1] Artigo 9º, nº 1 do Código Civil e Jacinto Fernandes Rodrigues Basto, in Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 39.
[2] Artigo 9º, nºs 1 e 2 do Código Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, págs. 58 e 59.
[3] Artigo 212º., nº 8 do Código de Processo Civil.
[4] Artigo 99º. da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
[5] Artigo 97º., nºs 1, a) e b) e 2 da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
[6] Artigo 89º., nºs 1, a) e 3 da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
[7] Artigo 130º., nº 1, a) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.
[8] Artigo 117º., nºs 1, a) e b) e 2 da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.
[9] Artigo 128º., nºs 1, a) e 3 da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.
[10] Artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.