Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
249/07.5TBBNV.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: CONCORRÊNCIA DESLEAL
CONFUSÃO
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nos actos de confusão aptos a provocar concorrência desleal, a intenção é causar confusão no público, de modo que o consumidor médio, no momento de decidir qual o produto que quer e por não saber distinguir entre os dois, opta por aquele que verdadeiramente não queria.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. Nos actos de confusão aptos a provocar concorrência desleal, a intenção é causar confusão no público, de modo que o consumidor médio, no momento de decidir qual o produto que quer e por não saber distinguir entre os dois, opta por aquele que verdadeiramente não queria.
2. A circunstância dos produtos fabricados por dois concorrentes obedecerem a determinadas normas regulamentares sobre dimensões, forma e resistência, não significa o afastamento de todos os concorrentes do mercado, pois todos terão de obedecer a tais regras.
3. E daí que as diferenças de produtos concorrentes sujeitos a tais normas regulamentares possam ocorrer através da aposição da respectiva marca e de aspectos acessórios relativos à apresentação do produto.
4. Estando em causa um produto destinado a um mercado exclusivamente profissional, no qual os utilizadores finais reconhecem com facilidade a origem dos produtos, a susceptibilidade de confusão é reduzida.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Santarém, Sociedade Portuguesa (…), S.A., demandou (…) – Pré-Fabricados de Cimento, Lda., pedindo a condenação desta no seguinte:
· indemnização por danos não patrimoniais, a liquidar em momento ulterior, com fundamento em responsabilidade civil extra contratual, decorrente de ilícito de concorrência desleal, consubstanciado na confusão instaurada no mercado, atenta a utilização pela mesma de modelo industrial protegido pelo INPI a favor da demandante;
· indemnização por danos patrimoniais, correspondente ao lucro que a A. deixou de auferir em virtude dos postes que deixou de vender, a liquidar em momento ulterior;
· em alternativa, uma indemnização por danos patrimoniais, correspondente aos royalties devidos pela produção e comercialização de postes de acordo com o modelo industrial da A., também a liquidar em momento ulterior.

Após julgamento, foi proferida sentença absolvendo a Ré de todos os pedidos, pelo que a A. recorre e conclui:
I. O facto 2.1.8, pelo Tribunal a Quo julgado provado, entra em manifesta contradição com o facto igualmente provado e identificado pelo nº 2.1.5. de onde consta: Na acção mencionada em 2.1.4. [Alínea D) dos Factos Assentes], a Ré declarou que havia deixado de fabricar qualquer poste com a configuração questionada pela Autora a partir de 17 de Maio de 2004, e que deixaria de os comercializar a partir de Julho de 2004, porque iria passar a produzir postes de acordo com o modelo industrial nº 27498, concedido por despacho de 29 de Setembro de 1999 e cedido à Ré a partir de Janeiro de 2003, tendo efectuado uma alteração da sua linha de produção para tal efeito. [Alínea F) dos Factos Assentes]
II. É assim a Recorrida que reconhece, confessando, que produziu e comercializou, até 17 de Maio e Julho de 20094, respectivamente, postes com a configuração questionada pela Recorrente (i.e. o seu modelo industrial).
III. Da prova produzida e gravada resulta igualmente que aquele facto, a ser provado, deveria ter sido apenas o seguinte: Os postes referidos no ponto anterior [2.1.7.] são semelhantes aos postes objecto do título referido em 2.1.3 [Alínea C) dos Factos Assentes].
IV. Os factos não provados vertidos nos números 2.2.1, 2.2.2. e 2.2.3. deveriam, ao contrário, ter sido julgados provados.
V. Admitindo não o serem, deveriam sempre, por decorrência do acolhimento do pedido da Recorrente, relegada a sua liquidação e quantificação para execução da sentença.
VI. Em consequência da fundamentação exposta e revisão da prova requerida deve a Douta Sentença a Quo ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção ou, alternativamente, regressarem os autos à Instância de Julgamento de molde a preencher as manifestas lacunas de fundamentação em repetição dos actos de julgamento e produção de prova que V. Exas. julgarem adequados.

A resposta propõe a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

A primeira instância considerou provado o seguinte:[1]
1. Autora e Ré são sociedades comerciais que se dedicam ao fabrico e comercialização de postes de betão armado para linhas eléctricas.
2. A Autora requereu, em 27 de Fevereiro de 1947, o registo de um Modelo Industrial para um poste ao qual foi atribuído o n.º 3959 (actualmente, o n.º 9883).
3. Em 10 de Março de 1948 o Instituto da Propriedade Industrial emitiu o título de depósito do Modelo Industrial n.º 9883 a favor da Autora.
4. A Autora intentou acção judicial contra a Ré, a qual correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Benavente sob o n.º 354/2002, peticionando que esta se abstivesse de produzir e comercializar postes iguais ou semelhantes aos fabricados e explorados pela Autora.
5. Na acção mencionada em 4., a Ré declarou que havia deixado de fabricar qualquer poste com a configuração questionada pela Autora a partir de 17 de Maio de 2004, e que deixaria de os comercializar a partir de Julho de 2004, porque iria passar a produzir postes de acordo com o modelo industrial n.º 27498, concedido por despacho de 29 de Setembro de 1999 e cedido à Ré a partir de Janeiro de 2003, tendo efectuado uma alteração da sua linha de produção para tal efeito.
6. Com o fabrico de postes referidos em 4., a Ré angariou mais clientes do que os que anteriormente possuía.
7. A Ré, em 1987, iniciou a produção e comercialização de postes para linhas eléctricas de várias medidas e alturas, em betão.
8. Os postes referidos no ponto anterior (7.) são semelhantes aos postes objecto do título referido em 3., contudo apresentam algumas diferenças de forma que os distinguem, nomeadamente:
a) Os postes incluídos no modelo industrial referido em 3. são compostos por almofadas que nos seus 4 cantos ou ângulos estão em esquadria, enquanto os postes fabricados pela Ré os cantos das almofadas não estão cortados em esquadria;
b) a quantidade de almofadas é diferente num e noutro.
9. Os postes referidos no ponto anterior (8.), eram fabricados com as especificações técnicas da Direcção Geral de Energia.
10. Os postes para linhas eléctricas em Portugal só podem ser fabricados com as características técnicas exigidas pela EDP.
11. O produto postes de betão tem um leque de clientes restrito. Sendo os mesmos a própria EDP e, além dela, os empreiteiros que trabalham para os donos de obra, como os Municípios ou empresas que têm de implantar linhas de abastecimento eléctrico.
12. A EDP define e normaliza a altura dos vários postes; a resistência dos postes aos diferentes esforços a que são sujeitos, quer pelos cabos quer pelo vento; a carga suportada pelos postes; as furações da cabeça do poste, para fixação de ferragens de suporte dos cabos; a inclinação das faces dos próprios postes, os chamados jorramentos; e, finalmente, os formatos dos próprios postes, designados formatos U e I.

Por seu turno, a primeira instância declarou não provada a seguinte matéria:
- O fabrico e a comercialização, pela Ré, dos postes referidos em 8, gerou confusão no mercado entre os mesmos e os produzidos pela Autora.
- A margem de lucro da Ré por cada poste vendido entre os anos de 1987 e 2004 foi, pelo menos de 5%.
- E entre 1987 e 2004 a Ré teve uma facturação média anual relativa à produção e comercialização de tais postes de € 1.000.000,00.

APLICANDO O DIREITO
Da impugnação da matéria de facto:
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º n.º 5 do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[2].
Por outro lado, o art. 662.º do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
No que concerne ao ponto 8. (2.1.8. na sentença recorrida), a recorrente pretende que se considere provada, apenas, a semelhança entre os postes produzidos pela Ré entre 1987 e 2004 e os postes objecto do título industrial obtido pela Ré em 1948, eliminando-se a referências às diferenças ali descritas (n.º de almofadas e forma dos seus ângulos). Argumenta, para o efeito, que os postes produzidos pela Ré entre 1987 e 2004 não o foram de acordo com o modelo a que se refere a al. F) dos factos assentes. No entanto, as diferenças entre tais postes estão confirmadas no relatório pericial (respostas dos peritos aos quesitos n.ºs 1, 3, 5, 6, 7, 8 formulados pelo Tribunal), estão documentadas nos desenhos apresentados pela própria A. com a sua petição inicial a fs. 45 e 46, e a testemunha (…), engenheiro reformado da EDP, confirmou que os postes desenhados à esquerda nos mencionados documentos eram os comercializados pela Ré desde 1987 e apresentavam diferenças com os da A. (6m05s a 8m10s), embora as considerasse meramente decorativas, pois do ponto de vista funcional tinham ambos de obedecer à Norma relativa à respectiva forma, altura e resistência. Deste modo, não se detectando outros elementos probatórios bastantes para afastar a convicção da primeira instância, improcede esta parte da impugnação da matéria de facto.
Pretende a recorrente, ainda, que todos os factos considerados não provados pelo tribunal recorrido deveriam, ao invés, ter sido declarados como provados. Quanto à confusão no mercado entre os postes produzidos pela A. e pela Ré entre 1987 e 2004, está em causa um produto de utilização restrita a profissionais, e não ao consumidor médio – havendo a notar que, até 1987, a A. monopolizava este mercado, por ser o único fabricante deste tipo de postes em Portugal. Quando a Ré surgiu no mercado, os profissionais conheciam perfeitamente a origem de uns e de outros – como é patente no depoimento da testemunha José Martinho – e se os podiam utilizar conjuntamente, tal devia-se apenas à circunstância de obedecerem à Norma relativa à respectiva forma, altura e resistência. Não existindo, assim, quaisquer elementos probatórios demonstrando a confusão no mercado entre os postes produzidos pela Ré entre 1987 e 2004 e os produzidos pela A., também neste ponto improcede a impugnação.
Quanto à A margem de lucro da Ré por cada poste vendido entre os anos de 1987 e 2004 e a facturação média anual relativa à produção e comercialização de tais postes, a A. não produziu prova de tal matéria – a testemunha (…) tinha conhecimento dos factos relativos à A., mas desconhecia qual a efectiva margem de lucro da Ré neste tipo de produtos e a respectiva facturação média anual, pelo que bem andou a primeira instância ao declarar tal matéria como não provada.
Em resumo, a impugnação da matéria de facto improcede na íntegra.

Da concorrência desleal por confusão de produtos
A A. funda a sua causa de pedir no art. 317.º, al. a), do Código da Propriedade Industrial, versão original, segundo o qual constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente os actos susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue. De igual modo dispunha o art. 260.º do anterior Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL 16/95, de 24 de Janeiro.
Está em causa, pois, um acto susceptível de prejudicar outro agente económico e que se consubstancia num desvio de clientela em benefício de um concorrente, pretendendo-se, assim, obter clientela alheia, efectiva ou potencial. O desvio de clientela pode produzir-se através da criação ou expansão de clientela própria, de modo idóneo a reduzir ou suprimir a clientela alheia, real ou possível.
Os actos de concorrência ocorrem não apenas entre actividades económicas em relação de identidade, substituição ou complementaridade, mas ainda entre todas aquelas que se dirigem ao mesmo tipo de clientela.
Quanto ao conceito de actos contrários às normas e usos desonestos de qualquer ramo de actividade, reporta-se não apenas aos códigos de boa conduta elaborados pelos agentes económicos (maxime, as associações profissionais), mas ainda aos padrões sociais de conduta, avaliados de acordo com o procedimento do comerciante médio, sendo assim desleal a actuação concorrencial que fira a consciência ética daquele comerciante padronizado.
Esta conduta contrária às normas e usos honestos deverá, em princípio, ser pretendida pelo agente, devendo este ter consciência de que está a praticar um ato ilícito (acto doloso). Embora seja de admitir a negligência, fundada na violação de deveres objectivos de cuidado, quanto a deslealdade gerar desconformidade objectiva.
Quanto aos actos de confusão, a intenção é causar confusão no público, de modo que o “consumidor médio, no momento de decidir qual o produto que quer e por não saber distinguir entre os dois, vai optar por aquele que verdadeiramente não queria. No caso de o consumidor não saber distinguir as actividades de cada concorrente, a confusão será entendida em sentido restrito, quando o consumidor sabe qual a actividade de cada um dos concorrentes mas associa-as indevidamente, a confusão já será em sentido amplo.”[3]
Expostos os princípios gerais, analisemos o caso concreto, adiantando desde já que não se vislumbra o acto de confusão alegado pela A., como bem se decidiu na sentença recorrida.
Com efeito, a circunstância dos postes obedecerem a determinadas normas regulamentares sobre dimensões, forma e resistência, não pode significar o afastamento de todos os concorrentes do mercado, pois todos terão de obedecer a essas regras. E daí que as diferenças, numa situação como a dos autos, se efectuem quer através da aposição da respectiva marca, quer através de aspectos acessórios, não violadores daquelas normas, relativos à apresentação do produto.
E, neste ponto, as diferenças detectadas entre os postes fabricados pelas partes, não permite concluir pela intenção de confusão no mercado, conclusão esta que é confirmada pela circunstância do produto em causa se destinar a um mercado exclusivamente profissional, no qual os utilizadores finais reconhecem com facilidade a origem dos produtos, tanto mais que os adquirem ao fabricante, conhecendo, assim, a origem do produto. Logo, pode-se afirmar ser reduzida a susceptibilidade de confusão em produtos destinados, apenas, a utilizadores profissionais.
Não se tendo, assim, provado a ocorrência de um acto de confusão, com o propósito da Ré desviar a clientela da A., a solução de julgar improcedente a causa é a que se apresenta conforme às disposições legais aplicáveis, pelo que improcede o recurso na íntegra.

DECISÃO
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
As custas pela A..

Évora, 28 de Junho de 2017
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
__________________________________________________
[1] A numeração dos factos será alterada de acordo com a estrutura deste documento, transformando o facto 2.1.1. da sentença recorrida no facto 1, e sucessivamente.
[2] Cfr. o Acórdão da Relação de Guimarães de 04.02.2016, no Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «Para que a decisão da 1.ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.»
De igual modo, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, no Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível na mesma base de dados, decidindo que «O Tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.»
[3] Rita Cardoso Alves, in A Concorrência Desleal, tese de dissertação em mestrado, Universidade Católica Portuguesa, publicada em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/17336/1/Tese%20Rita%20Alves.pdf.