Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
580/18.4T9PTM.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES DA PRÁTICA DO CRIME
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DO SILÊNCIO EM PREJUÍZO DO ARGUIDO
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Os conceitos de «indícios suficientes» (283.º/1 CPP), e de «fortes indícios» (artigo 202.º/1 do CPP) denotam ambos, deveras, uma mesma convicção, firmada numa consistência probatória sustentadora de uma forte probabilidade de futura condenação do arguido.

II. No desenvolvimento da investigação, e depois no libelo, incumbe ao acusador infirmar a presunção de inocência de que goza o arguido, pois que a acusação não tem por finalidade exclusiva a submissão de uma pessoa a julgamento; antes, sobretudo (na verdade), que neste seja aplicada a essa pessoa uma pena ou uma medida de segurança.

III. Do que o arguido cala não se pode extrair efeito que lhe seja desfavorável.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

a) Correu termos na Procuradoria da República da comarca de Faro um inquérito criminal, no termo do qual o Ministério Público acusou os arguidos NRFM e JAGM pela prática, cada um deles, em concurso real, de dois crimes de recebimento indevido de vantagem, previstos no artigo 372.º, § 1.º, do Código Penal (arguido NM) e no artigo 372.º, § 2.º, do Código Penal (arguido JM).

Inconformados reagiram ambos os arguidos requerendo abertura da fase de instrução, para que o Mm.o juiz de instrução criminal (JI) avaliasse da (in)consistência da acusação e determinasse o arquivamento dos autos.

Para tanto alegaram, em síntese, não haver fundamento nem de facto nem de direito para o prosseguimento dos autos para julgamento.

Admitida que foi a instrução vieram a realizar-se diligências instrutórias, procedendo-se igualmente ao debate previsto no artigo 302.º CPP, na sequência do qual veio a ser proferida decisão, em que se considerou não conterem os autos indícios suficientes da prática dos referidos ilícitos, decidindo não os pronunciar.

b) Inconformado com esta decisão recorreu o Ministério Público, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«(…)

2. O Mmo Juiz a quo não fez uma valoração correta e conforme o artigo 127.º do Código de Processo Penal e no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96, do depoimento de fls. 187, 188 e 189 do Senhor FJMM Presidente da Câmara de … à data do depoimento …. Nessa inquirição, o então presidente da Câmara Municipal de … declara, além do mais, "que vai disponibilizar um Técnico para prestar esclarecimentos, que esse técnico é o arguido NM que é … e Chefe da Divisão do Gabinete de …. Tivesse o Mmo Juiz a quo não valorou também a qualidade profissional da testemunha e as suas relações necessariamente próximas com o arguido NM e não chegaria certamente, com a facilidade que chegou à conclusão de que o arguido NM (Técnico… e … da Câmara Municipal de …) não tem, nem nunca teve qualquer poder de decisão ou de ou de conformação sobre qualquer aspeto do Plano Diretor Municipal de … e que não esteve envolvido no processo de revisão do PDM. Não esqueceria também a qualidade profissional da testemunha e as suas relações necessariamente próximas com o arguido NM na valorações e ponderações deste depoimento.

3. O Mmo Juiz a quo também não faz uma valoração correta do depoimento de LAAE, também ele presidente da Câmara Municipal de … à data da sua inquirição em …. Nessa inquirição o então presidente da Câmara de … refere, além do mais que " na verdade o arguido NM é o Chefe da Divisão da Área de … e que entre outras funcões lida com o com o processo de revisão do Plano Diretor Municipal de …. (PDM)."Não esqueceria também a qualidade profissional da testemunha e as suas relações necessariamente próximas com o arguido NM. Sobre este depoimento não se compreende como chegou o Mmo Juiz a quo conclusão de que o arguido NM (Técnico … e … da Câmara Municipal de …) não tem, nem nunca teve qualquer poder de decisão ou de ou de conformação sobre qualquer aspeto do Plano Diretor Municipal de … e que não esteve envolvido no processo de revisão do PDM. Não se compreende também não ter levado em conta a qualidade profissional desta testemunha e as suas relações necessariamente próximas com o arguido NM na ponderação desse depoimento.

4. O Mmo Juiz a quo também não faz uma valoração conforme a Lei das declarações prestadas na pelo arguido JM na Instrução em, confrontado com a doação dos dois veículos … ao arguido NM (por força das suas funções na da Câmara Municipal de …), o arguido JM, repudiou de forma veemente tal factualidade. Diz que vendeu os veículos ao arguido NM e que deste recebeu o respetivo pagamento em numerário. Negou que houvesse qualquer doação e que tivesse qualquer relacionamento próximo com oco-arguido. Tivesse o Mmo Juiz a quo efetuado uma valoração racional e crítica de acordo com as regras da experiência comum e não teria atribuído o cariz de credibilidade que atribuiu ao que o arguido JM disse quando nos dizem consabidas regras de experiência comum que viaturas daquele valores (e outros bem mais baixos) não são pagos, via de regra, em numerário, designadamente quando estão em causa negócios lícitos. Por outro lado não é conhecido qualquer documento de quitação até por que o arguido NM remeteu-se ao silêncio.

5. Tivesse o Mmo Juiz a quo efetuado uma valoração racional e crítica de acordo com as regras da experiência comum e não teria atribuído às declarações da Testemunha APSVC (funcionária do arguido JM) como parece ter feito, dando-lhe uma credibilidade que ele não nos merece. Nessas declarações a testemunha APC -funcionária do arguido JM - asseverou que se lembrava de, no ano de 2014, ter conferido o dinheiro entregue pelo arguido NM ao arguido JM para pagamento das duas viaturas ….

6. O Mmo Juiz recorrido desvalorizou a averiguação realizada sobre os rendimentos do arguido N e a ilação de que esses rendimentos serem insuficientes para cobrirem o valor das dívidas, sendo certo que se o Mmo Juiz a quo tivesse efetuado uma valoração racional e crítica de acordo com as regras da experiência comum chegaria a uma conclusão diferente daquela a que chegou. Dizem-nos as regras da experiência comum que é indiciariamente possível (se não mesmo provável) que as pessoas que recebem vantagens indevidas não terem valores suficientes para adquirir essas vantagens devidamente.

7. O Julgador pode e deve retirar ilações do silêncio do arguido, o que o Mmo Juiz a quo não fez face ao uso da faculdade de se recusar a prestar declarações do arguido NM.

8. Com base nos fundamentos invocados, salvo melhor opinião, devem os parágrafos 8.°, 15.°, 20.° e 27.° da acusação, ser mantidos na sua redação originária, e considerados indiciados.

Em face do exposto impõe-se a revogação da decisão de não pronúncia e a sua substituição por decisão que determine a pronúncia dos arguidos precisos termos formulados na acusação pública, imputando aos arguidos NRFM e JAM pela prática, por cada um deles, em concurso real, de dois crimes de recebimento indevido de vantagem previstos e punidos pelos artigos 65.°, 66.° e 372.º n.° 1 do Código Penal (arguido NM e previstos e punidos pelo artigo 372.° n.° 2 do Código Penal (arguido JM).»

c) Admitido o recurso respondeu o arguido JAM pugnando pela sua improcedência, referindo, em síntese, que:

- Um técnico que esclarece as pessoas do que está ou pode estar no PDM não tem, por si, o poder de o conformar a gosto.

- Provado está nos autos que o arguido NRFM não tinha o poder de decidir o que ficaria, ou não, no PDM, sob pena de se considerar que as entidades regionais tutelares, com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional à cabeça e os titulares dos cargos políticos do Município, nomeadamente o Sr. Presidente da Câmara, os Vereadores e os membros da Assembleia Municipal, a quem cabe aprovar o plano, para nada serviriam;

- Mas à parte isso, o primeiro veículo foi vendido antes do anúncio da revisão do PDM e da tomada de funções do arguido NRFM, e o segundo em momento que facto algum carreado para o processo permita explicar porque seria aí ofertado.

- O arguido JAGM dedica-se também à venda de veículos automóveis em segunda mão, tendo explicado e provado nos autos que fez outras vendas de veículos a dinheiro e até outras vendas de carros a pessoas que trabalham na Câmara, até porque teve stand aberto em frente ao edifício dos Paços do Concelho.

- Não há nos factos, documentos e depoimentos dos autos, nada que, de concreto, indicie de forma séria e minimamente segura que houve doações dos veículos, pelo que, devendo a valoração lógica, ponderada à luz da razão e temperada de experiência, ser o critério, é-o tanto para reconhecer que algo o é, como que não se pode considerar que o seja, só porque se quer que o seja, ou porque em geral o possa ser.

- E para se convencer outrem do nosso ponto de vista, por muito que nele acreditemos, não pode valer tudo, não se pode ignorar factos relevantes (como o arguido vender automóveis), não se pode dizer o que não é verdade (como não se conhecer documento de quitação, quando se carreou para os autos as faturas/recibos das vendas), não se pode valorar o silêncio de um arguido, para prejudicar o outro, que tudo disse, que tudo fez para provar a única verdade - que vendeu dois automóveis, não os deu.

- A prova produzida, documental e testemunhalmente está bem valorada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução e, consequentemente, a sua decisão está bem tomada, porque acusar é já de si um ato socialmente agressivo contra outrem, que não deve ser tomado com base em conjeturas dedutivas assentes em raciocínios generalizantes mas, ignorando as circunstâncias da situação em si, do provado e do não existente como prova, do lógico e atendível à luz do em concreto explicitado.

d) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, considerando, em suma, que o recurso não é merecedor de provimento. Pois que sendo bastante a suspeita para a abertura do inquérito, a mesma era insuficiente para a acusação. Podendo, até, ser questionável a existência dos pagamentos em causa em numerários. Mas as únicas provas existentes nos autos sobre esse aspeto são de sentido diverso ao sustentado no recurso.

e) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

f) O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1).

A única questão que se suscita neste caso é a de saber se os autos contêm indícios suficientes da prática pelos arguidos dos ilícitos pelos quais foram acusados.

2. Natureza da fase de instrução

Dispõe o artigo 286.º, § 1.º do Código de Processo Penal (CPP) que: «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.»

A instrução é uma fase processual de caráter jurisdicional e facultativa, vocacionada para um controlo jurisdicional da decisão que o Ministério Público (ou o assistente, no caso de acusação particular) assumiu no final do inquérito, consistindo na avaliação jurisdicional da acusação ou da decisão de arquivamento, de molde a verificar se estão reunidos os pressupostos legais para levar o feito a juízo.

Este enquadramento normativo traduz os equilíbrios constitucionalmente estabelecidos entre a função jurisdicional (artigo 32.º, § 4.º e 202.º da Constituição), as competências (também constitucionalmente) atribuídas ao Ministério Público (artigo 219.º, § 2.º da Constituição) para a ação penal e a estrutura basicamente acusatória do processo penal (artigo 32.º, § 5.º da Constituição).

Decorrência disso mesmo é a natureza facultativa da instrução (artigo 287.º, § 2.º CPP), a qual não pode iniciar-se oficiosamente (artigo 287.º, § 1.º CPP), estando a decisão final do JI tematicamente vinculada. Isto é, o JI não pode pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução (artigo 309.º, § 1.º CPP).

3. Na decisão recorrida considerou-se indiciada e não indiciada a seguinte factualidade, com a respetiva motivação:

«2. Da avaliação da indiciação e seu grau relativamente aos factos vertidos na acusação.

Os factos vertidos nos artigos 1.º a 7.º da acusação pública relativos, digamos assim, ao percurso profissional do arguido NM estão suficientemente indiciados e tanto é o resultado do exame de fls. 767-774 (avisos publicados no diário da republica).

O facto vertido no artigo 8.º está suficientemente indiciado, mas é curto na sua exposição pois deixa de fora que, além dessa atividade, também o arguido se dedicou à compra e venda de veículos automóveis, se bem com menor expressão, que a realizou com a denominação “J..de JAGM”, portanto, a título individual, que possuiu inclusive um “stand” junto à Câmara Municipal de …, atividade que ainda não encerrou, como por último referiu nas declarações prestadas na instrução, cf. também fls. 172, 532-536, 601-613, 615-619 e depoimento de JS (técnico de contas) a fls. 567-570.

Donde o facto n.º 8 indicia-se com suficiência deste jeito:

O arguido JAGM (adiante designado apenas JM) é empresário em nome individual, desenvolvendo a sua atividade no âmbito do comércio de materiais de construção, designadamente areias, brita, tijolos, cimentos, entre outros materiais e ainda na compra e venda automóveis.

As alegações vertidas nos artigos 9.º a 14.º da acusação pública estão suficientemente indiciadas, cf. também fls. 167-169, 171-173 e diligência externa de fls. 192.

É de enfatizar, todavia, esta circunstância: o arguido NM não tem, nem nunca teve, qualquer poder de decisão ou de conformação sobre qualquer aspeto que se pudesse refletir na definição do Plano Diretor Municipal de …, cf. a este propósito os depoimentos a fls. 187-189 e a fls. 520-522, o que implica alguma cautela na interpretação e fixação dos sentidos possíveis advenientes da utilização da expressão «envolvido no processo de revisão» do PDM utilizada na narração realizada no artigo 13.º, cf. também artigo 29.º.

Como também não existe qualquer prova recolhida nos autos que indicie que o arguido NM tivesse (previamente) informado quem quer que fosse sobre putativas alterações na qualidade/utilizabilidade dos solos que viessem a decorrer da aprovação do PDM.

Estão outrossim suficientemente indiciados os factos vertidos nos artigos 16.º (registo na Conservatória do direito de propriedade em favor do arguido NM relativamente ao veículo de matrícula …), 17.º (aquisição do veículo de matrícula … pelo arguido JM à sociedade “M”), 18.º (entrega do veículo ao arguido NM e que estava na posse deste decorre também do auto de apreensão de fls. 576), 19.º (emissão de fatura-recibo de venda do veículo de matrícula … ao arguido NM), 21.º (registo na Conservatória do direito de propriedade em favor do arguido NM relativamente ao veículo de matrícula …), 22.º e 23.º (aquisição pela “Al”, venda à “M” e compra a esta última pelo arguido JM), 24.º (com base nas declarações do arguido prestadas na instrução onde acrescentou que também o Dr. TJ os acompanhou), 25.º (emissão de fatura-recibo de venda do veículo de matrícula … ao arguido NM), e 26.º (entrega do veículo de matrícula … ao arguido NM e que estava na posse deste decorre também do auto de apreensão de fls. 575), indiciação suficiente que se estriba nas faturas de aquisição dos veículos pelo arguido JM, conjugadas com os comprovativos dos respetivos pagamentos por este efetuados, nas pesquisas do registo automóvel e nas faturas emitidas pelo arguido JM ao arguido NM, documentos que se encontram juntos aos autos, cf. fls. 14, 15, 127-129, 130-140, 141-142, 154-158, 233, 234, 536-538, 563-565v.º, 601-613 e 615- 619, nos autos de apreensão dos veículos a fls. 575 e 576 e, por último, também nas declarações prestadas pelo arguido JM na instrução.

Já, no nosso modo de ver, os autos não contêm elementos probatórios que permitam atribuir idêntica qualificação aos factos vertidos nos artigos 15.º, 20.º e 27.º do libelo.

Antecipamos que tais factos não se podem alçapremar ao patamar da indiciação suficiente por o acervo probatório recolhido não o permitir, pelo menos sem atropelo das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas em sede processual penal, nomeadamente, a presunção de inocência e o in dubio por reo, cf. artigo 32.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa e supra ponto 1.

Tais factos dizem assim:

«Neste contexto, o arguido JM ofereceu, em momentos distintos, os veículos automóveis de marca …, com as matrículas … e …, a NRFM» – artigo 15.º;

«O arguido NM não entregou ao arguido JM qualquer quantia em dinheiro, para pagamento do veículo …» – artigo 20.º;

«O arguido NM não entregou ao arguido JM qualquer quantia em dinheiro, para pagamento do veículo …» – artigo 27.º.

O arguido NM não prestou declarações quanto a estas matérias quando foi interrogado no inquérito.

O arguido JM, por último, nas declarações que prestou na instrução repudiou de forma veemente tal factualidade.

Afirmou que vendeu os veículos ao arguido NM e que deste recebeu o respetivo pagamento em numerário. Negou que houvesse qualquer doação e que tivesse qualquer relacionamento próximo com o coarguido. Trouxe à colação o seu ex-advogado Dr.TJ como a pessoa que o interpelou dando-lhe a conhecer o interesse do coarguido em adquirir as viaturas.

Os autos documentam, de jeito externo às declarações do arguido JM, que este tinha por hábito receber e fazer pagamentos em numerário, que nem tudo era contabilisticamente registado, etc., cf. declarações dos técnicos de contas JS e principalmente JS (prestou serviços para o arguido durante cerca de 15 anos e até Agosto de 2017) e também da testemunha APSVC, esta, por sua vez, ouvida na instrução e a asseverar que se lembrava de ter conferido o dinheiro.

Enfim.

O plano probatório do inquérito a respeito do alegado não pagamento das viaturas limita-se à averiguação realizada sobre os rendimentos do arguido NM e à ilação de aqueles serem insuficientes para cobrirem os valores das vendas.

A aparente fecundidade da ilação fica, porém, francamente abalada quando se atenta nas seguintes circunstâncias:

Em primeiro lugar, no plano dos rendimentos analisados.

A análise limitou-se aos rendimentos declarados. E rendimentos declarados não equivale à inexistência de outros rendimentos.

Nem todos os rendimentos, mesmo que obtidos licitamente, são necessariamente declarados. Tanto depende, por regra, de ação do respetivo titular. E se se quer esconder o dinheiro que não se declara para, por ex., fugir ao fisco, por certo que a opção não será depositá-lo em instituição bancária nacional…

Em segundo lugar, também não se pode afastar a possibilidade de os valores utilizados no pagamento dos veículos (em numerário como referiu o arguido JM) poderem ter outra origem, isto é, não provirem dos salários.

E aqui abre-se uma multiplicidade de hipóteses que vão de atos lícitos a atos ilícitos, do simples empréstimo ao branqueamento (cf. a referência a este na inquirição realizada pelo OPC a fls. 387).

Quem escolhe?

Poder-se-á dizer que qualquer das hipóteses anteriores não tem sustento por o arguido NM não ter prestado declarações, por se ter remetido ao silêncio.

Se o silêncio não o pode prejudicar, também não o pode beneficiar, aduz-se amiúde.

Todavia, este simples modo ver está inquinado.

É que a prova indiciária – e a ela temos de recorrer – exige a inexistência de hipóteses alternativas prováveis para a explicação do facto desconhecido, ou por outras palavras, que os factos indiciadores (estes autonomamente provados) sejam certos, objetivos e seguros quando apontam em determinada direção.

E aqui o único facto indiciador é constituído pela análise aos rendimentos declarados.

O que é curto para só com ele se concluir pela indiciação suficiente dos factos ora em causa (artigos 15.º, 20.º e 27.º da acusação) para mais tendo em atenção a posição do arguido JM de veemente negação de tal factualidade, da emissão das correspondentes faturas, da declaração destas ao fisco, e, por relevante, da não averiguação/análise dos rendimentos deste último (os autos não documentam qualquer análise às contas bancárias deste).

O mais que se poderá inferir é que existem indícios e, no limite, todo um espaço de dúvida quanto a terem sido pagos, ou não, os veículos pelo arguido NM, espaço de dúvida alicerçado nas declarações prestadas pelo arguido JM, por último, na instrução, de onde resultou, além de tudo o mais, também a sua habitualidade na utilização de numerário.

Duvidas que devem ser resolvidas em benefício dos arguidos em decorrência do princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência, artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Em conformidade, não considero suficientemente indiciados os factos narrados nos artigos 15.º, 20.º e 27.º da acusação pública.

Em decorrência de tudo o até aqui exposto, também não se indiciam com suficiência, ante a sua natureza, os factos vertidos nos artigos 29.º a 30.º do libelo.

3. Relevância.

Não se indiciaram com suficiência os factos de natureza objetiva e subjetiva que poderiam configurar a prática dos imputados crimes de recebimento indevido, passivo e ativo, previstos e punidos pelo artigo 372.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.»

4. Indícios suficientes para levar o caso a julgamento

Pretende o recorrente que os autos contêm «indícios suficientes» para sustentar a imputação factológica e normativa feita no libelo relativamente aos arguidos nele acusados

Sustenta essa pretensão no seguinte:

- nos depoimentos de FM e LE, que foram presidentes da Câmara Municipal de … no períodos em referência;

- na valoração do silêncio do arguido NM;

- na desvalorização do depoimento da testemunha AC, funcionária do arguido JM.

Mas não tem razão, como bem aponta o parecer do Ministério Público junto deste tribunal de recurso.

Expliquemos melhor.

Com a dedução da acusação pública não se tem legalmente por fim, apenas, a submissão de uma pessoa a julgamento. Antes, sobretudo (na verdade), que neste seja aplicada a essa pessoa uma pena ou medida de segurança (artigo 283.º, § 1.º e 2.º CPP), para o que é impreterível a passagem pelo areópago do julgamento.

Sendo por isso mesmo que a lei exige, para a produção do libelo, a existência de indícios probatórios suficientes da autoria e da prática do ilícito (artigo 283.º, § 1.º e 2.º CPP), juízo probatório esse que é o que também se prevê para a pronúncia (artigo 308.º, § 1.º CPP).

Embora a lei se exprima de modo literalmente algo diverso («indícios suficientes» nos normativos citados; e «fortes indícios» no § 1.º do artigo 202.º CPP), em todos esses momentos denota deveras uma mesma convicção: de se estar perante uma consistência probatória geradora de uma forte probabilidade de futura condenação do arguido. Era já assim que Figueiredo Dias (2 ) entendia o conceito no contexto do CPP de 1929: «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.» Mantendo essa posição no respeitante ao quadro normativo do atual código: «um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz (…) um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.» (3)

Germano Marques da Silva (4) exprime também a ideia de que «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos formam a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido». E idêntica exegese faz Jorge Noronha e Silveira (5), considerando dever-se ser exigente quanto à suficiência dos indícios, não bastando uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição, antes se «deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.» Sendo também este o sentido da jurisprudência, firmando o Supremo Tribunal de Justiça (6), que: «de certo modo se equivalem o conceito de “fortes indícios” usado no artigo 202.º e o de “indícios suficientes” explicitado no artigo 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.»

Daí que na fase intermédia (e facultativa) que é instrução, se tenha de aferir a existência de um lastro probatório consistente, validamente adquirido, que permita um juízo de probabilidade muito elevado de condenação em julgamento, relativamente ao concreto acontecimento penalmente relevante.

Ora, os ilícitos em referência, de recebimento ou promessa de recebimento de vantagem indevida (por um lado); ou de oferecimento ou de entrega de vantagem indevida (por outro), tutelam o bem jurídico que se vem designando por «autonomia funcional do Estado» (7) ou «da integridade do exercício das funções públicas do funcionário» (8), tendo como referência a dignidade e prestígio das funções públicas. Gizam proteger a imparcialidade, a transparência de procedimentos e a objetividade funcional dos serviços públicos, salvaguardando os interesses da comunidade.

Caracteriza-se o imputado a NM, pelo abuso da sua posição de funcionário, ao transacionar com o cargo, pondo ao serviço de interesses privados os seus poderes funcionais, designadamente por solicitação ou aceitação, direta ou indireta, de vantagem (patrimonial ou não patrimonial) indevida pelo exercício de funções públicas ou por causa delas (previsto no artigo 372.º, § 1.º CP), sendo para efeito do preenchimento do tipo legal um crime doloso, isto é, conhecimento da ilicitude da conduta e vontade de a praticar. E o imputado a JM, pela entrega ou promessa de entrega de vantagem (patrimonial ou não patrimonial) indevida a funcionário ou a terceiro por indicação ou conhecimento daquele (previsto no artigo 372.º, § 2.º CP), sendo igualmente um tipo legal doloso. A consumação do crime ocorre quando o funcionário manifesta a intenção de receber vantagem que não lhe seja devida junto de pessoa que tenha interesse no desempenho das suas funções; ou quando o agente manifesta a

intenção de dar ou prometer vantagem a funcionário no exercício das suas funções ou por causa delas ou a terceiro por indicação ou conhecimento daquele.

Conforme refere o Supremo Tribunal de Justiça (9), seguindo o entendimento de Almeida Costa: «não é necessário que a conduta prometida ou efetuada pelo empregado público pertença à esfera de competência das suas específicas atribuições ou competências, bastando a simples circunstância de a atividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do respetivo cargo, o que sucederá sempre que a realização do ato subornado caiba no âmbito “fáctico” das suas possibilidades de intervenção, isto é, dos “poderes de facto” inerentes ao exercício das correspondentes funções, a significar ser criminalmente relevante o ato subornado quando o mesmo é propiciado pelo cumprimento “normal” das atribuições legais, apesar de o agente exorbitar aqueles seus poderes.»

Para o juízo que importa realizar tem de aferir-se, pois, se os autos contêm prova indiciária da qual se possa inferir que, reproduzida em audiência, com grande probabilidade resultará na condenação dos arguidos; ou se, pelo contrário, tal como julgou o tribunal a quo, os autos não contêm prova indiciária suficiente para lograr tal condenação.

Ora a prova indiciária indicada no libelo – que naturalmente não integra a «diligência externa» de fls. 192, por as impressões e conclusões dela constantes não poderem ser valoradas em juízo, por se não integrarem nos estritos limites e cautelas exigidas pela lei (artigos 355.º e 356.º do CPP) - não demonstra os factos nele imputados aos arguidos, nomeadamente:

- que no período relevante o arguido NM tivesse qualquer poder de decisão ou de conformação de qualquer segmento do Plano Diretor Municipal de …;

- que este arguido tivesse informado o arguido JM, diretamente ou através de qualquer terceiro sobre quaisquer preconizadas alterações relativas às qualidades ou potencialidades de utilização dos solos em decorrência da aprovação do PDM de …;

- que o arguido JM tenha oferecido os veículos automóveis de marca …, com as matrículas … e …, a NM;

- nem os factos negativos relativos à não entrega por NM a JM de qualquer quantia, em dinheiro, para pagamento do veículo … e do veículo …. Neste conspecto, o que os autos documentalmente evidenciam é que o arguido JM, que também é vendedor de automóveis, emitiu faturas da venda de tais veículos a NM, as quais estão contabilisticamente registadas, nomeadamente para efeitos fiscais.

Por outro lado, as provas em que o recorrente pretende sustentar a deficiência do juízo de não pronúncia, pretensamente suscetíveis de demonstrar em juízo os factos integradores dos ilícitos imputados aos arguidos, não contribuem, na verdade, em absolutamente nada, para tal. Senão vejamos:

- dos depoimentos dos presidentes FM e LS não se retira que o arguido NM tivesse o poder de conformação ou de efetiva influência na decisão que a acusação lhe atribui;

- o depoimento de AC em matéria da transação dos automóveis entre os dois arguidos, cuja credibilidade se questiona, tem evidentes conexões com prova documental também apresentada pelos arguidos e não se mostra contrariado por qualquer outro meio probatório!

- finalmente, pretender que se valore o silêncio do arguido NM contra ele próprio é juridicamente insustentável, por frontalmente contrariar o disposto nos artigos 61.º, § 1.º, al. d) e 345.º CPP e ofender os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), do processo equitativo (artigo 20.º, § 4.º), da presunção de inocência (artigo 32.º, § 2.º) e da estrutura acusatória do processo (artigo 32.º, § 5.º), bem assim como os direitos à integridade pessoal (25.º, § 1.º), ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, § 1.º), à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, § 1.º) e à defesa (artigo 32.º, § 1.º). O que sempre seria ilegítimo, por contrariar o sentido da história e do incessante caminho do homem na busca de uma sociedade mais equilibrada e justa, redundando tal tese na negação da condição de sujeito processual com titularidade de direitos e garantias processuais, que o arguido indubitavelmente tem! (10) Do que o arguido cala não se pode extrair efeito que lhe seja desfavorável.

A tese da acusação firma-se exclusivamente nos rendimentos declarados pelo arguido NM, tidos por insuscetíveis de suportarem os custos de aquisição das viaturas de marca …i, com as matrículas … e ….

Esse é, indubitavelmente, um indício sério de anormalidade.

Mas há três circunstancias, contextualmente muito relevantes (a que se atendeu na decisão recorrida), que não podem igualmente deixar de ser ponderadas:

- a possibilidade de o arguido NM ter rendimentos não declarados, o que é plausível em razão da sua formação e da circunstância de a lei lhe não permitir o desempenho de funções privadas enquanto mantenha a qualidade de funcionário público;

- a faturação, documentada, por banda do arguido JM, das vendas das referidas viaturas ao arguido NM;

- e as testemunhas JS e JS - técnicos de contas que nessa qualidade ao longo de muitos anos prestaram serviços para JM - e da testemunha APSVC, que deram conta da realização em muitos outros casos, como neste, de compra e venda de automóveis realizadas em dinheiro.

A precária prova da prática dos factos imputados, nos termos sobreditos, conjugada com estas circunstâncias não arredará o non liquet a que necessariamente se chega, o qual não pode deixar de ser valorado a favor dos arguidos, como impõe o princípio da presunção de inocência. Este princípio, previsto no artigo 32.º, § 2.º da Constituição, consagra um dos direitos fundamentais dos cidadãos, internacionalmente reconhecido (v.g. nos artigos 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.º, § 2.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais; artigo 14.º, § 2.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), que visa, justamente, proteger as pessoas que são alvo de suspeita, garantindo que não serão julgadas culpadas enquanto não se demonstrarem, através de prova inequívoca, os factos imputados. Incumbe ao acusador, no desenvolvimento da investigação e depois no libelo, arredar esse non liquet. O que, circunstancialmente, nos termos sobreditos, não ocorre.

Em suma: por os autos não conterem um lastro probatório consistente, que permita fundar um juízo de elevada probabilidade de condenação dos arguidos em julgamento, relativamente aos concretos acontecimentos penalmente relevantes que lhes foram imputados na acusação, o processo não deverá prosseguir para julgamento.

Pelo que o recurso improcederá.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto decidimos:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente a decisão recorrida.

b) Sem custas por o recorrente estar delas isento.

Évora, 11 de janeiro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

José Proença da Costa

(assinado digitalmente)

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1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

2 Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004 (reimpressão da 1.ª edição 1974), pp. 132/133.

3 Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», pp. 20, Coimbra 2015, texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal, do Mestrado Forense da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015, 2016).

4 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 1994, pp. 182/183

5 Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pp. 171.

6 Por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/8/2018, no Proc. n.º 142/17.3JBLSB-A.S1, Cons. Nuno Gomes da Silva.

7 A. M. de Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. III, 2011, Coimbra Editora, pp. 654 ss.

8 Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pp. 880 ss.

9 Cf. acórdão de 21/3/2018, proc. 736/03.4TOPRT.P2.S1, Cons. Oliveira Mendes.

10 Sandra Oliveira e Silva, O Arguido como Meio de Prova contra si mesmo, 2018, Almedina, pp. 153 e ss.; Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, 2019, Almedina, pp. 658 ss. (anotação ao artigo 61.º CPP); Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2011 (4.ª edição), Universidade Católica Editora, pp. 187 ss. (anotação ao artigo 61.º CPP).