Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
560/12.3TBABT-E.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PARTILHA DE BENS DO CASAL
EMPRÉSTIMO BANCÁRIO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Importando apurar se em partilhas decorrentes de divórcio por mútuo consentimento, pode um ex-cônjuge reclamar do outro ex-cônjuge, uma compensação relativa a valores que pagou a título de prestações de mútuo bancário para aquisição da casa de morada de família, impõe-se interpretar, por recurso às regras gerais de interpretação negocial, os acordos explícitos, tomados em sede de divórcio.
- Se a interpretação do acordado conduzir à conclusão de que ambos aceitaram que, até às partilhas, a utilização da casa de morada de família passasse para o ex-cônjuge marido, assumindo este em definitivo, a responsabilidade do pagamento das prestações devidas com o empréstimo pela aquisição de tal bem, tal significa que, no plano interno, na relação entre ex-cônjuges, esta responsabilidade passou a configurar uma dívida própria.
- Sendo esta também a interpretação que resulta equitativa perante a utilização da casa de morada de família pelo período de 9 anos e 3 meses, sem que a ex-cônjuge tivesse recebido qualquer contrapartida, nomeadamente uma renda, por tal utilização exclusiva pelo cotitular, sendo de supor que para benefício equivalente teve ela de suportar custos concorrentes, nomeadamente de habitação.
- No reconhecimento dessa equidade se repõe o quadro de equilíbrio imposto pela regra imperativa da metade na participação do património comum, e pela regra da imutabilidade do regime de bens.
- Essa equidade não fere tais princípios, antes os integra, à semelhança do que ocorre com o disposto artigo 1793.º do C.C. que prevê a possibilidade de bens comuns ou próprios serem afetos apenas a um dos cônjuges ou ao cônjuge não titular, atendendo a necessidades legítimas surgidas da rutura da vida em comum, e que podem interferir com o que resultaria duma partilha meramente condicionada a direitos de aquisição.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 560/12.3TBABT-E.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

Corre no Juízo de Família e Menores ... processo de inventário apenso a divórcio, para partilha de bens comuns de casal, sendo Requerente AA e Requerido BB.

Requerente e Requerido foram casados no regime de comunhão de adquiridos e ocorreu divórcio por mútuo consentimento entre ambos, transitado em julgado em 17/05/2012.

Na ata da tentativa de conciliação realizada nos autos de divórcio, constam os seguintes acordos e descrição de bens:

«(…) pela Autora e Réu foi dito que pretendem converter a presente Ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge em Ação de Divórcio por Mútuo Consentimento, apresentando os seguintes artigos:-

(…)

Destino da Casa de Morada de Família

Fica o Réu BB a viver na casa até à partilha.-

Relação de Bens Comuns do Casal

Ativo:-

- Casa de morada de família, sito na Rua ..., ... ..., ....-

- Veículo automóvel de matrícula ..-..-TQ, marca ..., ...-

Passivo:-

- Empréstimo na CGD, balcão de ..., ..., no valor de cerca de 62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros) para aquisição da casa de morada de família.-

- Empréstimo na CGD, balcão de ..., ..., no valor de cerca de 4.500,00 (quatro mil e quinhentos Euros) para aquisição de veículo automóvel.-

As despesas relativas ao empréstimo para aquisição da casa de morada de família e as despesas relativas ao empréstimo para aquisição à aquisição do veículo automóvel, ficam a cargo do cônjuge marido até às partilhas

Tais acordos foram homologados em 17/4/2012.

Em 03/09/2020 foi instaurado o presente processo de inventário.

Nomeado o Requerido como cabeça de casal, veio este em 11/10/2021 juntar relação de bens, na qual fez constar:

No Ativo:

Verba n.º 1 – Um veículo automóvel marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-TQ – € 500,00.

(…)

Verba n.º 9 – Um Prédio Urbano situado em ..., na Rua ..., União de Freguesia ... e ..., concelho ..., (…), com o valor patrimonial de € 44.500,16.

No Passivo:

Verba n.º 1 – Dívida à Caixa Geral de Depósitos, S.A. decorrente do crédito hipotecário para aquisição do prédio urbano supra identificado, com o valor de € 42.061,08.

Verba n.º 2 – Dívida à Caixa Geral de Depósitos, S.A. decorrente do crédito multiopções, agregado ao crédito à habitação, com o valor de € 7.647,45.

Verba n.º 3 – Direito de crédito do cabeça-de-casal, decorrente do pagamento à Caixa Geral de Depósitos das prestações entre 19/12/2011 e 25/03/2021[1] relativas aos créditos hipotecários para aquisição do prédio urbano melhor identificado na verba nº9 do ativo, no montante de € 8.869,82.

A Requerida reclamou, declarando não aceitar quanto ao passivo o decorrente da verba n.º 3 da Relação de Bens, como direito de crédito do Cabeça de Casal, invocando o Acordo de 17/04/2012, na parte em que refere “as despesas relativas ao empréstimo para aquisição da casa morada de família e as despesas relativas ao empréstimo do veículo automóvel ficam a cargo do cônjuge marido até às partilhas”.

Acrescenta que tal acordo decorreu do facto de o Requerido/cabeça-de-casal ter passado a viver no imóvel pertencente a ambos, sem qualquer contraprestação à Requerida, pelo que, em face do acordado a dívida de prestações bancárias, passou a ser uma dívida própria dele e não da responsabilidade de ambos os cônjuges, não podendo, por isso, ser relacionada no inventário.

O cabeça-de-casal respondeu (11/10/2021) reafirmando o anteriormente relacionado, invocando a seu favor a jurisprudência do Ac. do TRP de 11/04/2019 consultável em www.dgsi.pt.

Após a produção de prova foi em 07/03/2023 proferido Despacho Saneador, no qual se decidiu, para o que ora releva, o seguinte:

“Em sede de conferência de interessados, deve ser indicado, pelo cabeça-de-casal, o montante total com que o mesmo pagou, com dinheiro próprio, os empréstimos bancários contraídos para a aquisição da casa de morada de família e do veículo automóvel, sendo que, no mapa da partilha será abatido ao valor do património comum, o valor pago, à instituição bancária, exclusivamente com bens próprios do interessado, ficando o mesmo credor do património comum”.

Inconformada com tal decisão veio a requerida recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

1 – Na sequência da ação proposta de Inventário (Competência Exclusiva), tendo em atenção o objeto do litígio, foi promovido e decidido, tal como refere o D. Despacho Saneador, cit;

“Pelo exposto, delibera o Tribunal que, em sede de conferência de interessados, seja indicado o montante total com que o cabeça-de-casal pagou, com dinheiro próprio, os empréstimos bancários contraídos para a aquisição da casa de morada de família e do veículo automóvel, sendo que, no mapa da partilha será abatido ao valor do património comum, o valor pago, à instituição bancária, exclusivamente com bens próprios do interessado, ficando o mesmo credor do património comum.”

2 - O presente processo resultou na sequência de ação de divórcio, e em especial, do que consta do mesmo, tendo por atenção o estabelecido, no âmbito desse divórcio (req. de 24/09/2020 – ref.ª ...03) do Acordo das partes devidamente homologado e transitado em 17/05/2012, donde se retira: “ As despesas relativas ao empréstimo para aquisição da casa morada de família e as despesas relativas ao empréstimo para aquisição do veículo automóvel ficam a cargo do cônjuge marido até às partilhas”.

3 – Quer a casa morada de família, quer o veículo automóvel foram utilizados exclusivamente pelo cônjuge marido, ora recorrido, presumindo-se que os empréstimos também foram pagos por este. O cônjuge mulher não mais utilizou nem o imóvel, nem o veículo automóvel, pelo menos desde a data do divórcio, sendo que constituía o imóvel, a casa morada de família;

4 – O Acordo alcançado devidamente homologado, espelha a vontade dos interessados aquando do seu divórcio e o recorrido assumiu pagar as prestações desses empréstimos;

5 – Consideramos pois que o Cabeça de Casal (recorrido) se vinculou a assumir, ele e só ele, os encargos, não podendo agora em sede de partilha, querer vir, em contrário dessa assunção repercutir na meação da requerente parte desses encargos. Numa interpretação linear, não parece haver qualquer duvida que a assunção do pagamento dos empréstimos até às partilhas e após o divórcio, sobre bens que usa e utiliza exclusivamente, ao contrário da recorrente que não usou – nem usa – de forma alguma. Aliás, obviamente que a recorrente se também tivesse previsto a situação do pagamento do valor concedido durante esse uso exclusivo, fosse também repercutido na esfera comum, teriam ficado com o uso exclusivo do imóvel e do automóvel, até porque ficou com a guarda dos menores;

6 – O entendimento do D. Julgador resulta – com respeito – numa contradição com a obrigação formal que foi assumida, livre, voluntária e conscientemente pelo Cabeça de Casal, não deixando, na nossa interpretação, de resultar num verdadeiro enriquecimento à custa da recorrente, caso se desvirtue esse propósito;

7 - Face à Homologação do Divórcio e dos Acordos nele inseridos, obtidos entre recorrente e recorrido, e alcançados de forma livre, voluntária e consciente, o recorrido (o cônjuge marido) vinculou-se a suportar por si só as amortizações do empréstimo;

8 - E sendo certo que em nada consta nesse Acordo, ou sequer foi suscitado desde 2012, qualquer objetivo de compensação, o uso e ocupação exclusiva pelo recorrido, não pode lograr num desequilíbrio entre os cônjuges na relação ocupação exclusiva/pagamento comum, será frontalmente contra ao “negócio” formal (Acordo na ação de Divórcio) e no sentido de uma declaração que não pode ser deduzível ou presumível de uma declaração que não tem reflexos ou expressão no texto do documento (Acordo). Ou seja, não deduzir-se a existência de qualquer compensação quando, quer do texto do Acordo e do sentido da declaração não se extrai essa possibilidade ou simples dedução (vide artigos 236.º e 238.º do CC);

9 - É que de facto não podemos olvidar que o que ficou acordado era o uso e ocupação exclusiva do recorrente, que sucedeu e ainda sucede, e na sequência deste seria o recorrido a assumir o pagamento das prestações dos empréstimos concedidos a ambos os cônjuges;

10 - Tal como já havia referido no requerimento já indicado ao Tribunal recorrido que resulta de decisão jurisprudencial; Processo 2138/20.... de 24/6/21, do TR de Lisboa1;

“I.– Homologado no processo de divórcio por mútuo consentimento um acordo através do qual o direito ao uso e ocupação da casa morada de família ficou atribuído ao cabeça de casal, obrigando-se este ao pagamento das prestações em dívida ao Banco pelo empréstimo concedido na aquisição e obras sobre o imóvel em causa, haverá que considerar tal acordo de vontades no âmbito da partilha e na consideração de existência ou não de compensação operada nessa altura entre os ex-cônjuges.

II.– A contribuição para os encargos da vida familiar constitui um domínio privilegiado dos acordos entre os cônjuges sobre a orientação da vida em comum, só na ausência de acordo é que vigora plenamente a prescrição da contribuição proporcional.

III.– O pagamento de dívidas com a aquisição da casa de morada de família constitui um encargo relativo à vida familiar, cessando esta optaram os elementos do ex-casal em beneficiar um com a utilização exclusiva de tal habitação, porém, estabeleceram como contrapartida que deixaria de existir a contribuição proporcional do outro, mas sim e apenas a contribuição exclusiva de quem passaria a beneficiar da casa de morada de família.

IV.– Tal pressupõe a renúncia à compensação pelo pagamento de tais encargos, renúncia essa que não se revela excessiva, pois já não tem como subjacente a vida em comum e a eventual contribuição para os encargos da vida familiar de forma desequilibrada, mas sim e apenas a economia do cônjuge recorrente que, ao contrário da recorrida, manteve a sua habitação na casa de morada de família, suprindo tal acordo as suas necessidades com a habitação, ao contrário da recorrida que necessariamente teve de fazer face a tal necessidade por outra via”).

11 – Que tal não seria de esperar, a decisão entendida e acima mencionada sempre no âmbito desse Acórdão, tendo por atenção quer o respetivo Acordo literal, quer o Acordo de uso de ocupação exclusiva do imóvel, e respetivo automóvel, mantendo-se a recorrente arredada de utilização desses bens que são de facto comuns, mas daí também afastada das respetivas despesas e encargos, ficando apenas a serem suportadas por quem utilizava, e fruía desses bens.

E tal facto, como refere inclusive o Acórdão mencionado não evidenciou qualquer desconforto por parte do requerido pelo menos desde 17/04/2012 (Homologação do Divórcio e respetivos Acordos),

1 Vide também, Acórdão da Relação de Évora, 912/22.... de 02/03/2023.

12 – Aliás da leitura e da melhor interpretação – com respeito – dos artigos 1697.º, 1689.º, 1793.º e, em especial, 1691.º, 1676.º, 1789.º e artigos 236.º a 238.º, todos do Código Civil, revelam-se também no sentido contrário ao D. Decidido em Despacho Saneador.

13 – Além disso, sempre se recorre à coerência e aplicabilidade da justiça, no seu elevado sentido.

A final, requer que seja aquele despacho, revogado e substituído por outro que estabeleça que nada, em termos de compensação, há que relacionar ou tomar em consideração em sede de partilha sobre os pagamentos efetuados a título de prestação hipotecária suportada pelo recorrido e ora Cabeça de Casal desde a decretação do Divórcio e respetivos Acordos, até decisão final do presente processo de partilhas.

Em contra-alegações o recorrido contrapôs:

a) Este recurso deve improceder;

b) A decisão recorrida não deixa dúvidas e constitui uma decisão sábia e irrepreensível;

c) Não violou nenhuma das normas referidas pela recorrente;

d) Salienta-se que qualquer cláusula que seja incorporada em acordos anteriores à partilha que possam ferir a meação devem ser consideradas nulas e, como tal, no caso aduzido nos presentes autos – Cfr. artigo 1730.º do Código Civil. Cfr. entre outros, AC do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2019 consultável em www.dgsi.pt. (Proc. n.º 1238/16.4T8MTS.P1), onde se refere quanto à imperatividade do disposto no artigo 1730.º do Código Civil.

e) Ademais, a jurisprudência dos diversos tribunais superiores tem vindo a considerar que é no momento da partilha dos bens comuns do casal que devem ser compensados os créditos entre os cônjuges, através do direito à meação nos bens comuns do cônjuge devedor, neste sentido Ac. do TRL de 15-12-2011 (Proc. n.º 1364/08.3TBMFR.L1-1); Ac. do TRL de 06-07-2007 (Proc. n.º 3839/2006-7); Ac. do STJ de 27/04/1999 (Proc. n.º 99A133), todos pesquisáveis em www.dgsi.pt.

f) Pelo que a decisão recorrida bem andou ao ter reconhecido o crédito do recorrido à meação do valor das prestações e seguros de vida associados pagos à credora Caixa Geral de Depósitos para reembolso do mútuo contraído na constância do casamento por ambos os cônjuges, desde a data em que foi instaurada a ação do divórcio e se retrotraem os efeitos patrimoniais nos termos do disposto pelo artigo 1789.º, n.º 1, do Código Civil, de forma a poder ser levado em conta para compensação, na operação de partilha dos bens comuns do casal.

g) Aliás, ficou cabalmente demonstrado documentalmente nos autos que, desde 19.12.2011 tem sido o recorrido a pagar ao banco, com dinheiro próprio, empréstimos bancários contraídos para a aquisição da casa de morada de família e do veículo automóvel.

h) O Tribunal a quo faz uma irrepreensível análise nada lhe havendo a apontar, o que, em qualquer circunstância sempre votará o presente recurso ao insucesso, julgando-o improcedente se fará JUSTIÇA!

Deve o recurso improceder e ser mantida a decisão recorrida.


II


Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Se, depois de acordado no processo de divórcio que ficaria o cabeça de casal com o uso exclusivo da casa de morada e família e do veículo automóvel, e que o mesmo suportaria as despesas relativas aos empréstimos bancários para aquisição de tais bens até à partilha, pode este, nestas, reclamar o direito a um crédito compensatório sobre o ex-cônjuge por metade de tais montantes?


III

Fundamentos

1. De facto

A matéria de facto a ter em consideração resulta exposta no Relatório supra.

2. De direito

Importa apurar se pode o ex-cônjuge (cabeça de casal) reclamar uma compensação da ex-cônjuge, relativamente aos valores que pagou a título de prestações de mútuo bancário, no decurso de 9 anos e 3 meses, a coberto do acordo entre ambos estabelecido nos autos de divórcio por mútuo consentimento, pelo qual aquele passaria a ter o uso exclusivo da casa de morada e família e do veículo automóvel, suportando as despesas relativas aos empréstimos bancários para aquisição de tais bens, até às partilhas.

O Tribunal recorrido entendeu ter o cabeça-de-casal direito a essa compensação.

Tendo considerado estarmos perante dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges, não sendo o acordo de assunção de pagamento pelo ex-cônjuge apto a tornar a dívida comum em dívida própria deste.

A tal opor-se-ia o disposto no artigo 1730.º, n.º 1, do C.C que dispõe que “os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso”.

Tal estipulação seria ainda inoponível à instituição bancária, que, nesse acordo não participou e que, enquanto credora, teria de dar o seu consentimento para que a dívida deixasse de ser comum, para passar a ser uma dívida própria do cabeça-de-casal, o que não aconteceu.

Invocou o Tribunal recorrido, em apoio da sua posição, a fundamentação do Acórdão do TRL de 26/3/2019, Proc. n.º 2225/18.3T8LRS.L1-7, in www.dgsi.pt.

Tal acórdão contempla, contudo, situação diferente da dos presentes autos, o que importa considerar.

Na realidade factual nele contemplada não ocorreu qualquer acordo explícito de uso exclusivo da casa de morada de família por parte de um dos ex-cônjuges, apenas uma ocupação deste tolerada pelo outro ex-cônjuge, nem houve qualquer acordo entre ambos relativamente a quaisquer contrapartidas a suportar pelo ocupante, pelo uso que passou a fazer da fração.

Logo, a fundamentação de tal acórdão, com todo o respeito, pouca utilidade tem para suportar o decidido nestes.

Sendo nos acordos explícitos, tomados em sede de divórcio que importa centrar a discussão.

Vejamos o regime jurídico geral que os factos convocam.

O artigo 1688.º do C.C. estabelece que “as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento, …”

Dispõe o artigo 1689.º, n.ºs 1 e 3, do C.C. alusivo à partilha do casal e ao pagamento de dívidas entre os membros do casal, que:

«Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.

(…)

Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor».

O artigo 1697.º, n.º 1, regula as compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, ditando que:

«Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.»

O artigo 1714.º, n.º 1, estipula que:

«Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.»

Por sua vez, o artigo 1730.º, n.º 1, regula a participação dos cônjuges no património comum, estabelecendo que:

«Os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.»

Na interpretação dos acordos sobre ao utilização da casa de morada de família e uso da viatura automóvel homologado aquando do divórcio reside a divergência entre as partes.

E, é na correta interpretação dos mesmos e sua compatibilização com a regra imperativa da metade na participação do património comum, e com a regra da imutabilidade do regime de bens, que reside a questão de saber se é ou não devida a compensação do cônjuge a quem foi atribuído o uso exclusivo de tal habitação e utilização, e que assumiu arcar com as prestações bancárias a vencer, entretanto, com a respetiva aquisição.

Lê-se no estudo “A inadmissibilidade de uma ablação consentida da meação no património comum”, de Ana Filipa Morais Antunes, divulgado on-line que:

O legislador interveio manifestamente norteado pela preocupação de proteção de um cônjuge relativamente ao outro, reservando a cada um deles a respetiva meação no momento da partilha.

Previnem-se, assim, situações de facto caracterizadas por um quadro de desequilíbrio, assente em negócios ruinosos para o outro cônjuge.

Significa isto que o artigo 1730.º do Código Civil – que, reiterase, tem uma natureza essencialmente preventiva – pretende vedar distribuições desigualitárias do património comum, mesmo que assentes em estipulações dos cônjuges e, como tal, ainda que por ato voluntário e com o concurso da vontade do outro cônjuge. A regra da metade traduz, nesta medida, uma concretização do princípio da imutabilidade do regime de bens, previsto no artigo 1714.º do Código Civil – que tem justificação no quadro de relações matrimoniais assentes quer num paradigma de desigualdade, quer de igualdade efetiva de direitos e obrigações dos cônjuges.

As considerações anteriores permitem, pois, evidenciar que a regra da metade se fundamenta em interesses de ordem pública, superiores e distintos dos interesses individuais dos cônjuges»

Ora, a lei civil regula igualmente critérios de atribuição de bens próprios ou de bens comuns, a apenas um dos cônjuges, nomeadamente ao não titular, que derivam da incompatibilidade prática de perpetuar uma comunhão de vida e que obrigam a dar satisfação a necessidades legítimas surgidas da rutura da vida em comum, critérios como a necessidade de um dos cônjuges e do interesse dos filhos, e que podem interferir com o que resultaria duma partilha meramente condicionada a direitos de aquisição.

Assim, o artigo 1793.º do C.C. que dispõe:

“1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada cônjuge e o interesse dos filhos do casal”.

2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.

3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.

(sublinhado nosso)

No caso em apreciação, não foi efetuado qualquer pedido de atribuição provisória ou definitiva da casa de morada de família.

Optaram recorrente e recorrido por celebrar um acordo de Destino da Casa de Morada de Família e de utilização de viatura automóvel, e um outro de Assunção de Despesas relativas ao pagamento do empréstimos outrora contraídos para aquisição de tais bens, contemplando o ex-cônjuge marido como beneficiário da utilização dos mesmos e, simultaneamente como responsável pelas despesas de aquisição, até à partilha.

De resto, tendo a cessação do matrimónio entre o recorrente e recorrida sido operada pelo divórcio por mútuo consentimento exige a lei que as partes estejam de acordo, relativamente ao destino da casa de morada de família.

A utilização e uso acordados e a correspondente assunção de despesas perdurou por 9 anos e 3 meses.

Na interpretação do(s) acordo(s) são válidas as considerações tecidas sobre a interpretação dos contratos, destacando-se o artigo 236.º, n.º 1, do C.C. que dispõe:

«A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.»

Norma que acolhe a teoria da impressão do destinatário, de cariz objetivista, segundo a qual a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, sagaz e diligente, colocado na posição do concreto declaratário, a entenderia.

Quando estejam em causa negócios formais, importa ainda atender ao artigo 238.º, n.º 1, do CC que dispõe:

«Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso»

Nada do texto dos acordos de divórcio permite concluir que o beneficiário da utilização da casa de morada de família e automóvel visava obter compensação dos valores cujo pagamento assumira, nomeadamente aquando das partilhas.

Nenhuma outra realidade factual permite tal conclusão.

Perante tais considerações, a interpretação do acordado conduz à conclusão de que o ex-cônjuge marido assumiu para si em definitivo, a responsabilidade das despesas mencionadas no acordo, que mais não eram que as prestações de empréstimo, futuras, devidas pela aquisição de tais bens. Que no plano interno, entre ex-cônjuges, assumiu como dívida própria.

Sendo esta também a única interpretação que resulta equitativa perante o tempo de utilização e de uso dos bens (9 anos e 3 meses). Sem que a então comproprietária, tivesse recebido qualquer contrapartida, nomeadamente uma renda, por tal utilização pelo cotitular, sendo ainda de supor que para benefício equivalente teve ela de suportar custos concorrentes, nomeadamente de habitação.

No reconhecimento dessa equidade se repõe o quadro de equilíbrio imposto pela regra imperativa da metade na participação do património comum, e pela regra da imutabilidade do regime de bens.

Essa equidade não fere tais princípios, antes os integra.

Assim, atento o teor dos acordos homologados por Recorrente e Recorrido com o divórcio por mútuo consentimento, forçoso é concluir que até à partilha o ex-cônjuge, recorrido, se vinculou a suportar, por si só, e sem qualquer compensação, as amortizações dos empréstimos referidos.

Num caso idêntico, o acórdão do TRL de 24-06-2021, Proc. 2138/20.9T8PDL.L1-6, in www.dgsi.pt, decidiu no mesmo sentido:

“(…), pretender obter a compensação (em metade) do valor pago seria operar um desequilíbrio entre os cônjuges, pois além de ter ficado privado do uso e fruição do imóvel, não vê tal cedência compensada, pois nos casos em que se atribui a utilização e ocupação da casa de morada e família a um dos elementos do ex-casal poderá existir um pagamento ao outro a título compensatório.”

Não tendo o recorrido direito à compensação em discussão deve ser eliminada da Relação de bens a Verba n.º 3.

No que procede o recurso.

Síntese conclusiva: (…)


IV

Dispositivo:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida que se substitui por outra, ordenando se elimine da relação de bens a verba n.º 3 do passivo: [Direito de crédito do cabeça-de-casal, decorrente do pagamento à Caixa Geral de Depósitos das prestações entre 19/12/2011 e 25/03/2021 relativas aos créditos hipotecários para aquisição do prédio urbano melhor identificado na verba n.º 9 do ativo, no montante de € 8.869,82].

Custas pelo apelado, face ao decaimento.

Évora, 15 de junho de 2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Cristina Dá Mesquita (1ª Adjunta)

Francisco Matos (2º Adjunto)

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[1] Período de 9 anos, 3 meses e 6 dias, cfr. https://pt.calcuworld.com/calendarios/calculadora-de-tempo-entre-duas-datas/