Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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Relator: | FÁTIMA BERNARDES | ||
Descritores: | SIGILO PROFISSIONAL ADVOGADO | ||
Data do Acordão: | 06/08/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1 - Tratando-se de documentos, o n.º 3 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados apenas impede/proíbe a revelação ou junção de documentos quando, face ao seu conteúdo, daí resulte a revelação de factos sujeitos a sigilo e a consequente violação do dever de segredo. 2 - O significado da expressão “negociações” empregue nas alíneas e) e f), do artigo 92º do EOA [a que correspondia o artigo 87º da anterior versão do EOA], deve ser interpretado no sentido de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões. 3 - Assim, estará sujeita a sigilo profissional do advogado, a correspondência trocada entre mandatários, entre o mandatário e o respetivo cliente ou a parte contrária ou o respetivo representante, quando se reportem aos termos de negociações havidas ou em que hajam sido revelados factos, ao Advogado ou este deles tomou conhecimento, que pela sua natureza seja de presumir que quem os confiou ou deu a conhecer ao Advogado, tinha um interesse «objetivamente fundado», em que se mantivessem reservados e não fossem revelados. 4 - Mas já não estão estarão abrangidos pelo dever de sigilo, v.g. os factos transmitidos por um Advogado à parte contrária do cliente (acompanhada ou não de Advogado), «com natureza meramente interpelatória ou até de mero convite a negociar com o objetivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas». | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora: 1. RELATÓRIO 1.1. No âmbito dos autos de inquérito n.º 1400/19.8T9EVR-A, que tiverem origem na queixa apresentada pela sociedade (…), contra (…), foi proferido despacho, pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal, em 12/01/2021, admitindo a constituição de assistente da ofendida/queixosa e julgando nula a prova constante de fls. 25 a 34 e 84 dos autos, por violação do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados. 1.2. Inconformada com o assim decidido – declaração de nulidade da prova –, a assistente interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões: «1. O presente recurso é interposto da, aliás, mui douta decisão, a fls. …, na qual o Tribunal a quo decidiu julgar nula a prova constante de fls. 25/34 e 84 dos presentes autos, por violação do art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados. Porquanto, 2. Alega o Tribunal a quo, em suma, que, no que tange á prova documental sobredita, teria de ter sido colhida a previa anuência do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, da destinatária da prova em questão, donde, não tendo a mesma anuência sido colhida decidiu, o Tribunal recorrido, pela nulidade da prova. Contudo, 3. Com o devido respeito – que é muito – permitimo-nos discordar da douta decisão recorrida, essa sim que viola crassamente o disposto no art. 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogado, bem como o princípio inserto no art. 262.º, do Cód. Proc. Penal e o principio da descoberta da verdade material. Senão vejamos: 4. No caso dos autos, a prova documental que o Tribunal recorrido considerou nula, cfr. fls. dos autos, traduz uma carta de resposta de contraparte, a uma missiva da mandataria da empresa, onde era solicitada reunião, para dia e hora aí indicado. 5. Em resposta escrita, dirigida à mandatária da sociedade (…). a contraparte alega que não compareceria e profere afirmações que colocam em causa o bom nome da empresa, bem como a honra, bom nome e consideração do socio (…) – cfr. doc. Junto aos autos. 6. Designadamente, é alegado, pela contraparte, que a empresa não cumpre os normativos legais e, consequentemente, considerava apresentar queixa ao ACT e que o socio exercia sobre si violência física e psicológica – vd. Doc. junto aos autos. 7. A mandataria da sociedade e destinatária da carta em apreço, na sua modesta opinião, considerou que a missiva sobredita não se achava abrangida pelo sigilo profissional, a que se reporta o art. 92.º, do EOA, pois que, 8. não se enquadrava em quaisquer negociações com contraparte que hajam sido malogradas, sem prejuízo de traduzir uma ostensiva violação dos direitos das pessoas acima melhor identificados/as e ser essencial o seu uso para a defesa destes. 9. Acaso o douto Tribunal recorrido mantivesse o escopo da descoberta da verdade material (sendo a carta em questão a prova do alegado cometimento do crime denunciado), na nossa modesta opinião e por forma a ser cumprido o disposto no art. 262.º, do Cód. Proc. Penal, teria de ter oficiado à Ordem dos Advogados, no Conselho Distrital respectivo, por forma a lograr obter Parecer, sobre se o documento/carta sub judice se acha ou não a coberto do segredo de justiça. 10. Ao invés, o douto Tribunal recorrido, decidiu, que a junção da mencionada carta sem a prova de previa autorização do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, nos termos do disposto no art. 92.º, do EOA, era nula. Ademais, 11. Salvo o devido respeito por opinião diversa, foi o Tribunal recorrido quem, ao decidir como o fez, violou o disposto no art. 92.º, do EOA, pois que, 12. Somos em crer que não se pode enveredar por uma interpretação literal da norma legal ínsita no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, sob pena de termos que considerar que todo e qualquer facto – ainda que vertido em documento -, de que o Advogado tome conhecimento no exercício da sua atividade profissional e por causa desse mesmo exercício está, sempre e em qualquer circunstância, abrangido pelo dever de segredo profissional. Não foi isto que o legislador pretendeu. 13. A consagração legal do instituto jurídico-deontológico do segredo profissional teve por escopo reservar para o seu âmago apenas aqueles factos relativamente aos quais exista uma exigência de confidencialidade e de secretismo que o instituto jurídico-deontológico do sigilo profissional pressupõe. 14. Confidencialidade e secretismo estes que têm, forçosamente, que ser aferidos em função das particulares circunstâncias do caso concreto, mormente, atendendo ao teor do próprio facto; à forma como o facto chegou ao conhecimento do Advogado e às próprias circunstâncias da sua necessidade de revelação. 15. Neste contexto, tem sido defendida uma interpretação teleológica do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, que impõe e exige uma dialética constante de todos os critérios enumerados em função do caso concreto apresentado e para finalidades específicas, tal como são descritas ou invocadas pelo Advogado que requer a dispensa. 16. Em matéria de correspondência subscrita ou dirigida a Advogado, não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados ou subscrita por Advogado. Existe, sim, essa proibição quando do seu teor decorram factos abrangidos pelo dever de sigilo. 17. Ora, a norma legal aqui chamada à colação, dentro dos seus objetivos, não abrange as comunicações enviadas entre as partes, ainda que por intermédio dos seus mandatários, que se destinem exclusivamente a marcar a posição face ao destinatário, como sucede, desde logo, com a missiva sub judice. 18. Neste sentido: Ac. TRG, de 17/10/2005, Proc. n.º 1163/05-1; Ac. TRE, de 04/06/2019, Proc. n.º 950/15.0GBABF.E1; Ac. TRL, de 03/10/2018, Proc. n.º 5/11.6IDFUN.L1-3, disponíveis em www.dgsi.pt. 19. Termos em que, tendo a decisão recorrida violado, igualmente, esta disposição legal, deve a decisão em crise ser revogada, com as demais consequências legais. Contudo, V.as Ex.as decidirão fazendo a acostumada JUSTIÇA.» 1.3. O recurso foi regularmente admitido. 1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho recorrido, formulando, a final, as seguintes conclusões: «1.ª - A assistente juntou aos autos documento que se encontra abrangido pelo artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados. 2.ª - Compulsados os autos não se verifica que tenha existido prévia autorização da Ordem dos Advogados, nos termos do n.º 4 do mesmo diploma. 3.ª - Em consequência o documento n.º 3 não pode ser valorado em processo penal, pelas disposições conjugadas do n.º 5 do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados e artigo 125.º do Código do Processo Penal. 4.ª - O Tribunal a quo não violou qualquer disposição legal. Pelo que, deve ser mantida a decisão proferida nos presentes autos e negado provimento ao douto recurso, para que se faça JUSTIÇA.» 1.5. Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à posição defendida pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, na resposta que o mesmo ofereceu, concluindo no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente. 1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo a recorrente exercido o direito de resposta, reiterando que o recurso deverá ser julgado procedente. 1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.2. Despacho recorrido *** Constituição de assistente A (…) participou criminalmente contra (…), imputando-lhe que em resposta à missiva dirigida a denunciada optou por fazer afirmações que põem em causa o nome da sociedade queixa e coagindo-a a nada fazer sobre os bens solicitados. Notificada, a (…) requereu a constituição como assistente. Foi ordenado a junção dos originais das missivas referidas em 6, 7 e 8 da denúncia, o que cumpriu a fls. 77 a 85. Foi notificada a denunciante para juntar o original do documento de fls. 34 e 84, tendo a mesma ficado silente. Posteriormente, foi notificada para esclarecer e comprovar a prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo para revelar a missiva que constitui o documento a fls. 34. Foi indeferida a prorrogação de prazo, após a pronúncia do Ministério Público. Cumpre apreciar e decidir. A questão dos presentes autos fica a montante do requerimento de constituição de assistente, uma vez que foi apresentada queixa contra a denunciada pela missiva remetida à mandatária da sociedade denunciante, que consta de fls. 25/34/84. Ora, o Advogado está obrigado a guardar segredo relativamente a factos que lhe advenham através do exercício da sua actividade profissional, conforme imposição prevista pelo artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, e o artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa. O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. Prescreve o art.º 92.º do EOA que “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”. Por tal forma se convoca a nulidade da prova recolhida em violação daquele preceito e comina com a impossibilidade de tais elementos serem valorados no processo. Sem prejuízo da incumbência do Ministério Público na direcção do inquérito com a recolha e conservação da prova (art.ºs 262.º, n.º 1, 263.º e 267.º, CPP) indicada pelo ofendido, estamos perante uma nulidade resultante da proibição de prova que foi praticada no inquérito e pode ser apreciada pelo juiz de instrução. Com efeito, os documentos constantes de fls. 25/34/84 são destituídos de qualquer efeito probatório devido à violação de normas penais e deontológicas, não tendo sido requerida a prévia autorização ao Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, o que deve ser declarado nos autos. Subsequentemente, nos termos do artigo 68.º do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos, bem como as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento. Contudo, para decidir da legitimidade para intervir como assistente, a aferição do interesse protegido é feita através dos factos denunciados na participação e no requerimento para abertura da instrução e não pela prova resultante do inquérito. Ainda que se considere a violação de sigilo profissional e a respectiva responsabilidade por esse facto, em face do requerimento apresentado a sociedade requerente, invocou nele, sempre, esse estatuto e juntou prova documental que havia pago a taxa de justiça devida, encontrando-se devidamente representada por advogada, assim demonstrando-se, portanto, que reúne todos os requisitos de que dependia a sua admissão nessa qualidade, nos termos do art.º 68.º do Cód. Processo Penal, e deverá o pedido ser deferido no processo. Nos termos expostos, decido: - julgar nula a prova constante de fls. 25/34 e 84 dos presentes autos, por violação do art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados. - admitir a intervenção da requerente como assistente nos presentes autos. Notifique. Após o trânsito em julgado, extraia e remeta certidão ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados. Devolva os presentes autos ao DIAP.» 2.3. Conhecimento do recurso Atenta a postura assumida, o assunto em questão logrará ser resolvido em sede própria. Nom demais de forma alguma revejo no seu e-mail factos de que tenha conhecimento. Com os melhores cumprimentos.» 3. DECISÃO Fátima Bernardes |