Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
95/14.0PTSTB.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
DESCONTO
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - A injunção “proibição de condução”, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo e integralmente cumprida, é descontada no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado aplicada na sentença. [[1]]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo nº 95/14.0PTST, da Comarca de Setúbal, foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido F como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez dos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), do CP, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 3 meses. Mais se decidiu substituir a pena de multa aplicada por admoestação, nos termos do artigo 60º do CP.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1.Por suspensão provisoria do processo foram impostas ao Recorrente o cumprimento de 2 injunções: inibição de conduzir por 3 meses e 60 horas de trabalho a favor da comunidade;

2.Com a entrega da guia de substituição da carta foi considerada cumprida a primeira injunção;

3. Contudo, por não ter cumprido, escrupulosamente, o plano traçado de trabalho, decidiu o MP revogar a suspensão e deduzir a respectiva acusação;

4. Entretanto, o Recorrente cumpriu todas as 60 horas de trabalho impostas;

5. Em sede de sentença, entendeu o Douto Tribunal a quo que não deve ser descontado, na pena de inibição, os 3 meses de inibição já cumpridos durante a suspensão provisoria do processo, nem descontado o trabalho a favor da comunidade na pena de multa;

6. Justificando que o cumprimento das injunções impostas é meramente voluntário, não sendo considerada uma verdadeira pena;

7. Posição esta que não podemos de todo aceitar e contra a qual nos insurgimos neste Recurso;

8. Porque, a proibição de conduzir veículos, em casos de suspensão provisoria do processo, é uma verdadeira pena, imposta e oponível ao Recorrente - art.º 281º, n.º 3 do CPP;

9. Pelo que, não pode a proibição de conduzir veículos, em qualquer circunstância, ser repetida, sob pena de se violar o Principio ne bis in idem - art.º 29º, n.º 5 da CRP e por terem funções de prevenção especial e geral equivalentes;

10. E, ao contrário do que defende o Douto Tribunal a quo as “prestações” já feitas não podem ser repetidas - art.º 282º, n.º 4 do CPP, referindo-se, claramente às previstas no art.º 281.º do CPP;

11. Por outro lado, há que ter em conta a amplitude que o desconto de penas pode assumir no nosso ordenamento jurídico, previsto no art.º 80º do C.P.;
12. E, se deve ser descontada a pena a prisão preventiva à pena de prisão efectiva;

13. Por maioria de razão, quem pode o mais pode o menos, deve ser descontada a inibição de conduzir e o trabalho a favor da comunidade, já cumpridos no âmbito da suspensão, nas penas ora aplicadas;

14. E se ainda assim persistir alguma dúvida, a mesma terá sempre de relevar em benefício do Recorrente à luz do Princípio Ne Bis In Idem;

15. E, por identidade de razão, tendo em conta o critério estabelecido nos artigos 48º, nº 2, e 58º, nº 3, do Código Penal, deve igualmente proceder-se ao desconto, na pena de multa, das horas de prestação de trabalho a favor da comunidade também prestadas no âmbito da suspensão provisória do processo;

16. Face ao supra exposto, decidiu mal o tribunal “a quo” ao não considerar integralmente cumpridas a pena de multa e proibição de conduzir veículos com motor, condenando "de novo" o Recorrente nas mesmas penas, já cumpridas no âmbito da suspensão provisória deste mesmo processo.

17. O douto tribunal a quo ao decidir não descontar nas penas aplicadas as injunções já cumpridas, está a condenar duplamente o Recorrente, violando o disposto no art.º 29º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa que consagra o Principio do Ne Bis In Idem e os art.º 80º do Código Penal e art.º 282º, n.º 4 e art.º 281º, n.º 3, ambos do Código Processo Penal.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da confirmação da sentença, mas já nesta Relação a Sr. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer pronunciando-se no sentido da procedência do recurso na parte relativa ao desconto da injunção “proibição de condução”, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. São os seguintes, os factos provados da sentença:

“No dia 27 de Setembro de 2014, cerca das 01h00m,o arguido conduzia o automóvel com a matrícula ---LI, na AV Jaime Rebelo em Setúbal.

2. – Submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue através de análise sanguínea apresentava uma taxa de álcool de pelo menos, 1,24 g/l, após dedução do erro máximo admissível.

3. – O arguido ingeriu bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução.

4. - Sabia que a quantia de álcool que ingerira era susceptível de lhe provocar uma TAS superior a 1,2 g/l, não obstante isso, não se absteve de conduzir, como podia e devia.

5. - Bem sabia o arguido que o exercício da condução em tais condições lhe estava proibido por lei, sendo punido como crime.

Provou-se ainda que:
6. – O arguido os factos por que vinha acusado.

7. – Trabalha como Operador de Máquinas, auferido o salário mínimo nacional, estando penhorada a quantia de € 160,00.

8. – Vive em casa do padrasto, com o mesmo, pagando metade da prestação bancária de crédito à habitação, no valor de € 125,00.

9. – Tem um filho, com 24 anos, independente.

10. – O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

11. – Nada consta no seu certificado de registo criminal.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar respeitam (a) ao desconto da injunção “proibição de condução”, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo e integralmente cumprida, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado, e (b) ao desconto, na pena de multa, das horas de prestação de trabalho a favor da comunidade também prestadas no âmbito da mesma suspensão provisória do processo.

As duas questões enunciadas, tendo embora na sua base um mesmo instituto (o do “desconto”), não são idênticas, desde logo porque transportam as diferenças retiradas dos próprios factos processuais relevantes para a decisão.

Assim, enquanto que na primeira se verificou um cumprimento integral da injunção, tal não ocorreu relativamente à segunda, diferença que se repercutirá na decisão do recurso.

(a) Do desconto da injunção “proibição de condução”, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo e integralmente cumprida, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado

A primeira questão colocada é a de saber se, uma vez cumprida integralmente a proibição do exercício de condução imposta na suspensão provisória do processo a título de injunção (pois tal cumprimento ocorreu, o que é pacífico em recurso) esse período (sofrido a título de injunção) deverá ser descontado no cumprimento da pena acessória de proibição de condução, aplicada ao arguido na sentença condenatória proferida no mesmo processo.

Fora do objecto de conhecimento fica o caso de incumprimento da injunção, pois essa não é a situação agora sub judice, o que se consigna.

Na defesa da posição do recorrente, que é a de que deve proceder-se ao “desconto”, destaca-se uma identidade material entre a injunção aplicada na suspensão provisória do processo e a pena acessória proferida na sentença.

Na primeira instância, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da confirmação da sentença, mas não aqui na Relação.

Na resposta, fê-lo invocando a falta de fundamento legal decorrente duma ausência de previsão expressa da referida injunção no art. 80º do CP (falta de previsão legal) e na ocorrência de voluntariedade do arguido na aceitação da injunção, o que retiraria a possibilidade equiparação a medida de coacção e a pena (diferente natureza da injunção).

No parecer, fê-lo por referência à jurisprudência existente em sentido contrário.

Esta questão não (nos) é nova, e decidimo-la já (nesta Relação e com as mesmas Relatora e Adjunta) em sentido favorável à pretensão do recorrente, não se vislumbrando razão para alterar a posição anterior. Passam, pois, a enunciar-se os fundamentos de tal decisão.

O art. 281º do CPP, que trata da suspensão provisória do processo, determina no nº 1 que “se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público (…) determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos: (…)”

A suspensão provisória do processo, vista inicialmente pela doutrina, na redacção do art. 281º do CPP anterior a 2007, como um desvio ao princípio da legalidade, porquanto se traduziria na faculdade do Ministério Público não deduzir acusação e num “mecanismo processual surgido sob o signo da oportunidade” (Pedro Caeiro, Legalidade e Oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente do sistema” Rev. Ministério Público 84, 2000, p. 39), é hoje uma “solução de consenso” amplamente utilizada, que prefere à “solução de conflito” desde que verificadas as respectivas condições de aplicação.

Na explicação de Pedro Caeiro, “a chamada `oportunidade´ consiste apenas num juízo sobre a verificação dos pressupostos legais da suspensão”, ou seja, traduz-se num “juízo cujo resultado constitui o Ministério Público num dever” (Pedro Caeiro, loc. cit. pp. 42-43).

O legislador de 2007 veio substituir a expressão normativa “pode o Ministério Público” por “o Ministério Público determina” e sempre que o crime “for punível com prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público … determina a suspensão do processo, uma vez verificados os pressupostos das alíneas a) a f) do art. 281º do CPP.

Também Paulo de Sousa Mendes refere que “após a revisão de 2007, o CPP impõe, excepto nos crimes em que a medida legal da pena não o admita, que o Ministério Público privilegie uma solução de consenso, em vez de uma solução de conflito. As alterações introduzidas no CPP quanto à suspensão provisória do processo clarificam a obrigatoriedade da sua aplicação quando verificados os respectivos pressupostos e requisitos” (Paulo de Sousa Mendes, Lições de Processo Penal, Almedina, 2015, p. 83).

“O dever de acusar é substituído pelo dever de suspender provisoriamente o processo” (Conde Correia, Incumprimento parcial dos prazos, injunções e regras de conduta fixados na suspensão provisória do processo”, Rev. do Ministério Público, 134, 2013, p. 50).

O Ministério Público não está dispensado de proceder a avaliação dos requisitos gerais de aplicação do instituto, bem como à sua concretização casuística. No caso presente, cumpriu esse poder-dever, aplicou o instituto, e como se tratava de processo por crime a que correspondia pena acessória de proibição de condução, a injunção proibição de condução foi obrigatoriamente determinada.

O art. 282º, nº 4, do CPP determina que o processo prossegue “se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta” ou “se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado”.

No caso sub judice, o arguido incumpriu uma das injunções aplicadas, mas respeitou integralmente a injunção “proibição de conduzir” aplicada.

O Ministério Público proferiu acusação e o arguido foi julgado e condenado em pena de multa substituída por admoestação, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses.
O art. 29º, nº 5 da CRP preceitua que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

Como tem referido o Tribunal Constitucional, a esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infracção corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.

No caso presente, o arguido não foi julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Ele beneficiou, sim, da suspensão provisória do processo, medida de diversão processual que pretende precisamente evitar o julgamento, e, neste sentido, não ocorreu violação do princípio. O arguido foi julgado por uma só vez pelo mesmo facto, e foi-o porque incumpriu uma das injunções, condição da suspensão provisória do processo.

Mas do ne bis in idem resulta também que o mesmo facto não possa ser valorado por duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

Se processualmente não se aceita que o arguido possa responder mais do que uma vez pelos mesmos factos, também materialmente, não se deve fazer corresponder à sua conduta uma mesma punição, por mais do que uma vez.

Inexiste identidade jurídica entre uma pena acessória (no caso, de proibição de condução) e uma injunção (no caso, de proibição de conduzir). Sob o ponto de vista formal, não se trata de uma aplicação duplicada da mesma punição, nada existindo, nem legal nem constitucionalmente, que impeça, nestas circunstâncias, a condenação na pena acessória. A sua aplicação decorre da lei e mostra-se correcta, como também legal e obrigatória é (foi) a aplicação precedente da injunção referida. Injunção aplicada e, no presente caso, integralmente cumprida (assim nem sempre sucedendo).

Na verdade, o Ministério Público encontra-se legalmente obrigado (desde a publicação da Lei da nº 20/2013, que alterou o art. 281º do CPP) a aplicar a injunção de proibição de condução de veículos a motor sempre que determinar a suspensão provisória do processo por determinados crimes, como sucede no caso em análise.

Refere Cláudia Matias (in A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspectivado, pp24/5, https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/.pdf): “O n.º 3 do artigo 281.º do CPP prevê que o Ministério Público tem obrigatoriamente de aplicar a injunção de proibição de condução de veículos a motor sempre que determinar a suspensão provisória do processo por crimes para os quais esteja “legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor”, ou seja, para os crimes previstos no n.º 1 do artigo 69.º do CP. Assim, sempre que tenha sido promovida a aplicação da suspensão provisória do processo num inquérito em que esteja em causa (…) um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (…) o Ministério Público terá obrigatoriamente de aplicar a injunção de proibição de conduzir veículos com motor, singular ou cumulativamente com outras injunções.

(…) Esta previsão legal surgiu porque o Ministério Público, não sendo competente para aplicar penas, nem principais, nem acessórias, não podia aplicar a pena acessória de proibição de conduzir quando entendesse ser de aplicar o instituto da suspensão provisória do processo a crimes como o do artigo 292.º do CP. Assim, se o Ministério Público aplicasse a suspensão provisória do processo, via-se o arguido livre da pena acessória de proibição de conduzir. Mas se a sua conduta constituísse uma mera contra-ordenação, porque a taxa de álcool no sangue não era igual ou superior a 1.2g/l, o arguido teria de suportar uma coima e a inibição de conduzir. Desta contradição de regimes resultava que o arguido era mais penalizado por uma contra-ordenação do que por um crime.

Também no âmbito de consulta feita pelo Parlamento, aquando da elaboração da Lei da 20/2013, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa se pronunciou no sentido da compatibilidade da cominação legal de penas acessórias, mesmo no caso de inibição de condução de veículo a motor, com a suspensão provisória do processo (cf. parecer de Fernanda Palma, Sousa Mendes, Gouveia Caires, Matos Viana e Vânia Costa Ramos).

Disse-se aí: “Se esta for a medida adequada, o julgamento apenas agravará a situação. É bom recordar que a suspensão provisória do processo é uma medida de diversão processual que apenas constitui um desvio à tramitação normal que conduziria ao julgamento. O que se evita com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta. Em tese, a inibição de condução, enquanto sanção acessória, também pode consistir numa injunção aplicada através de suspensão provisória do processo, aliás tornada efectiva mais prontamente do que se fosse aplicada como resultado de uma condenação transitada em julgado”.

A cumulação, no mesmo processo e na sequência da mesma conduta, da injunção e da pena acessória, não coloca, assim, nem problemas de legalidade nem de constitucionalidade. Essa cumulação surge até na decorrência de um comportamento processual do arguido. O arguido poderia ter evitado o julgamento e a condenação e, antes disso, a própria suspensão provisória do processo.

Mas esta constatação de “legalidade” e de “constitucionalidade” na aplicação de duas medidas (a injunção e a pena acessória) materialmente tão idênticas e tendo por base a mesma conduta criminosa, não esgota o trabalho do intérprete no sentido de procurar evitar que da vicissitude em causa decorra, se bem que indirectamente, uma compressão material do ne bis in idem. Ou seja, há que perscrutar se a lei oferece ainda resposta para que se obste a que um condenado, pela prática do mesmo facto, “cumpra” uma “proibição de condução” (sofra, sinta a mesma privação) por duas vezes.

Do que se trata é de procurar assegurar que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior” (Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166).

Daí que o princípio penal geral do “desconto” encontre previsão nos arts. 80º a 82º do CP. Este “princípio fundamental” (e, não, uma regra de excepção, que, essa sim, poderia colocar entraves à analogia) abrange “não apenas a prisão preventiva mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto(Eduardo Correia, loc. cit.).

Como se notou no acórdão TRE de 11.07.2013 (Rel. Sénio Alves), “ só há duas semelhanças entre a injunção e a pena acessória: em ambas, a arguida tem de entregar a carta e abster-se do exercício da condução”. Que, bem vistas as coisas, é o mesmo que dizer: as duas figuras são distintas, à excepção do facto de serem iguais… Em termos materiais, substantivos, de fundo, os efeitos decorrentes de uma e outra medida são rigorosamente os mesmos: o arguido entrega a sua licença de condução e abstém-se de conduzir veículos motorizados. A distinta natureza jurídica das duas figuras tem, seguramente, um interesse doutrinário relevante mas não afasta a questão de fundo: caso uma e outra sejam cumpridas, são-no da mesma forma, exigindo do arguido a mesma conduta.

(…) A injunção cumprida pela arguida teve em vista o mesmíssimo facto. E foi cumprida da mesmíssima forma como o seria a pena acessória em cujo cumprimento foi condenada. Que diferença existe, então, a impedir que se considere efectuado o cumprimento? (…) Em conclusão: a injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicada em sentença proferida na sequência da revogação daquela suspensão.”

Jescheck e Weigend pronunciam-se em sentido idêntico. Dizem estes autores, no Tatado de Derecho Penal, a pag. 845: “Si durante el processo penal el autor fue privado provisionalmente del permisso de conducir (…), entonces el tiempo transcorrido sin el mismo se abona por completo a la duración de la prohibición de conducir”

Concorda-se, também, com Pinto de Albuquerque quando refere, em anotação ao art. 80º do CP, que “o desconto é uma operação que compete ao tribunal de julgamento, na sentença condenatória” e que “a omissão da decisão sobre o desconto na sentença constitui uma nulidade do art. 379º, nº 1- al. c) do CPP, na medida em que a operação implica uma valoração do tribunal (neste sentido, Eduardo Correia in Actas CP/Eduardo Correia, 1965, 166 e 167, e Figueiredo Dias, 1993: 298 e 299, que entende que mesmo quando legalmente predeterminado, o desconto deve ser sempre mencionado na sentença)” (in P. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 2ª ed. p. 293).

É certo que inexiste uma ausência de previsão legal expressa para o desconto em causa. Nos art.s 80º a 82º (que constituem a Secção IV do Capítulo IV do Código Penal que tem a epígrafe de “Desconto”) não se encontra realmente enunciada, de modo expressão, a injunção. Ali não se encontra a “injunção de proibição de conduzir veículos com motor” prevista na lei processual penal (no art. 281º, nº 3 do CPP) como “medida obrigatoriamente oponível ao arguido” quando se trate de crimes para os quais esteja legalmente prevista a pena acessória de proibição de conduzir.

Mas o elemento literal de interpretação não é aqui decisivo. Da omissão assinalada não resulta que a intenção do legislador tenha sido a de excluir da norma e retirar do princípio geral que consagra (o princípio do desconto) a injunção em causa. Esta norma não é uma norma excepcional, que consagre uma regra ou solução de excepção, como dissemos já.

De frisar também que estamos a tratar apenas da injunção “proibição de condução”, tipo de injunção que é alvo de um tratamento legal especial, no conjunto das restantes injunções.

Com efeito, ao tratar a suspensão provisória do processo, a lei destaca-a do conjunto das restantes injunções e autonomiza-a tornando-a “obrigatoriamente oponível ao arguido” em caso de cometimento de crime a que corresponda pena acessória, de natureza “idêntica”, acrescente-se (cf. nº 2 e nº 3 do art. 281º, do CPP).

A “voluntariedade” do arguido a que se fez referência na resposta ao recurso em descrédito da posição do recorrente, encontrar-se-ia mitigada. Mas também não se percebe em que é que essa voluntariedade seria aqui decisiva.

O nº 3 do art. 281º do CPP constituiu um aditamento introduzido ao (à norma do) Código de Processo Penal em 2013 (pela Lei 20/2013) e é de redacção posterior, portanto, à última alteração ao art. 80º do Código Penal.

A história deste preceito - do art. 80º do CP - é até ilustrativa do contrário, ou seja, ilustrativa de outros esquecimentos e omissões do legislador, no passado. Senão, recorde-se o momento da criação da medida de coacção “detenção domiciliária”, com a publicação do Código de Processo Penal em 1987. Nessa ocasião, o legislador manteve inalterado o art. 80º do CP que, na versão originária, não incluía logicamente a obrigação de permanência na habitação porque esta medida não existia. Essa circunstância não impediu, porém, alguma doutrina e parte da jurisprudência (na qual nos incluímos) de considerar que a obrigação de permanência na habitação, à semelhança do que sucedia por lei expressa com a prisão preventiva, deveria ser descontada no cumprimento da pena de prisão aplicada no mesmo processo. Em artigo publicado em 1988, no âmbito das Jornadas de Direito Processual Penal organizadas pelo CEJ, após ter procedido a análise comparada das duas medidas de coacção (a então nova medida de coacção “detenção domiciliária” e a prisão preventiva), Odete Ferreira escreveu:

“Por tudo isto julgo que, quando aplicável a medida de coacção obrigação de permanência na habitação, deve fazer-se uma interpretação sistemática de harmonia com a equiparação essencial que a lei quis entre o seu regime e o da prisão preventiva. Assim (…) do mesmo modo que a prisão preventiva sofrida pelo arguido no processo em que vier a ser condenado é descontada no cumprimento da pena que lhe for aplicada, também a obrigação de permanência na habitação o deverá ser” (Jornadas de Direito Processual, o Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 180).

A ausência de consagração legal expressa da injunção em causa na previsão do art. 80º do CP não constitui, pois, argumento inequívoco que afaste a sua aplicação e que obste ao desconto no presente caso.

São conhecidos os perigos decorrentes de reformas legais plúrimas, sectoriais e a retalho. Recordem-se as palavras de Fernanda Palma, proferidas no colóquio “Crime e Castigo: Reformar as Leis Penais”, em 09.01.2012 na F.D.U.L., sobre a “necessidade de um meta-discurso apaziguador” e de um “discurso reformador global”, não devendo “substituir-se o pensamento penal global por pensamentos sectoriais, concretizados em reformas legislativas retalhadas e pontuais”.

Assim, da ausência de previsão legal expressa na secção IV do Código Penal, que, repete-se, consagra um princípio geral de desconto, não resultaria inequívoco que o legislador tenha pretendido excluir dali a injunção em análise.

Também não colheria um argumento de que, a haver desconto, o arguido ficaria então com “um crédito”, contrariando o determinado no art. 80º do CP que só permitiria o desconto “quando o facto por que” o arguido “for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.

Este segmento final, que visou obstar ao efeito referido pelo Ministério Público, é certo, rege em articulação com o segmento legal anterior, ambos aditados ao art. 80º, nº 1 na reforma de 2007. Passou-se a prever a possibilidade do desconto de medida de coacção aplicada em processo diferente e, neste caso, apenas neste caso, se passou a exigir a anterioridade temporal da prática do facto.

Ora, no caso em análise, o facto é o mesmo (o facto criminoso, diga-se, pois é só deste que se trata e só a este se liga tanto a injunção como a pena). E é precisamente esta identidade de facto, a que se faz corresponder cumulativamente uma injunção e uma pena, medidas em que é possível identificar materialmente semelhanças, que vai influir favoravelmente no sentido da solução que perfilhamos.

O sistema normativo (processual-penal), que consagra e regula a suspensão provisória do processo, pressupõe que este instrumento de consenso acautela, suficientemente, a protecção dos bens jurídicos. O que significa que as finalidades preventivas “da punição” se consideram abstractamente garantidas através da aplicação de injunções. E essas finalidades preventivas são, então, de considerar como concretamente asseguradas sempre que as injunções aplicadas se mostrem cumpridas e não ocorra motivo para que o processo prossiga (ou seja, não ocorra causa que obste ao arquivamento do inquérito).

É assim indiscutível que a injunção serve finalidades de prevenção, ou seja, finalidades que são também comuns às penas.

Já a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação servem finalidades de medida de coacção (finalidades de natureza exclusivamente cautelar).

Ora, se mesmo em relação a estas medidas (que visam outras finalidades que não as da pena, repete-se), a lei determina que se proceda ao desconto (das medidas de coacção no cumprimento da pena), desconto imposto pela mera decorrência da identidade fáctica de que decorre a privação da liberdade, como justificar então a exclusão do desconto num caso como o em análise? Num caso em que é de reconhecer tanto a identidade material das medidas (proibição de conduzir é sempre e só isso mesmo) como ainda a homologia das suas finalidades.

Por último, nem o nº 4 do art. 282º do CPP, nem o AFJ nº do STJ, nº 10/2009, obstam à aplicação do desconto no caso sub judicie.

O nº 4, do artº 282º, do CPP, que estabelece efectivamente que, caso o processo prossiga por incumprimento das injunções ou cometimento de crime no período da suspensão, “as prestações feitas não podem ser repetidas”, mantém o seu campo de aplicação.

No presente caso, evita que o arguido seja compensado pelos trinta dias de tempo de injunção que excedeu em concreto a medida de pena acessória aplicada. Evitaria também, por exemplo, a restituição de prestações feitas em caso eventual de absolvição.

O prosseguimento do processo envolve a dedução de uma acusação e o julgamento; mas não implica necessariamente a condenação do arguido que beneficiara da suspensão provisória do processo.

Também a jurisprudência fixada pelo STJ no AUJ nº 10/2009 tem base de incidência diversa. Ao estabelecer que “nos termos do artº 80º, nº 1, do CP, não é de descontar o período de detenção a que o arguido foi submetido, ao abrigo dos artigos 116º, nº 2, e 332º, nº 8, do CPP, por ter faltado à audiência de julgamento, para a qual havia sido regularmente notificado, e a que, injustificadamente, faltou”, o Supremo Tribunal nada decide e nada determina no que respeita à situação aqui em apreciação.

Trata-se, ali, de uma detenção por facto ou conduta processuais, detenção, aliás, de aplicação não exclusiva a arguido, que incide sobre testemunhas e que pode ser sofrida por todo aquele que, devidamente notificado para comparecer em tribunal, falte injustificadamente. A sua relação (a relação da detenção) não se estabelece com o facto criminoso, contrariamente ao que sucede na hipótese sub judice.

De tudo o que se deixa exposto resulta que deve proceder-se ao desconto da injunção “proibição de condução”, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo e ali devidamente cumprida, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado

(b) Do desconto, na pena de multa, das horas de prestação de trabalho a favor da comunidade prestadas no âmbito da suspensão provisória do processo

Como se começou por referir, as duas questões enunciadas, tendo embora na base o instituto do “desconto”, transportam consigo as diferenças retiradas dos factos processuais relevantes para a decisão. E assim, enquanto na primeira situação analisada ocorrera o cumprimento integral da injunção, tal não sucedeu relativamente a esta segunda, diferença que se repercute na decisão do recurso.

Como resulta do processo e foi consignado na sentença, “os autos foram suspensos provisoriamente, em 01/10/2014, pelo período de quatro meses, ao abrigo do disposto nos artigos 281º, 282º e 384º, todos do CPP com as condições de o arguido cumprir sessenta horas de trabalho socialmente útil e de se abster de conduzir veículos motorizados durante o período de três meses, entregando o seu título de condução para o efeito (fls. 27 e 31, com notificação a fls. 34 e 36).
O arguido procedeu à entrega de uma guia de substituição da carta de condução, tendo sido considerada cumprida a segunda das indicadas injunções.

Contudo, decorridos que estavam oito meses desde o início do período de suspensão provisória do processo, ou seja, estando ultrapassado em dobro o período da suspensão provisória do processo, a DGRSP informou que o arguido apenas havia cumprido vinte e oito das sessenta horas de trabalho socialmente útil (fls. 54) e foi então proferido pela digna Procuradora-Adjunta o despacho de fls. 55: “uma vez que o arguido não cumpriu a injunção determinada, segue acusação”, ou seja, declarando cessada, por incumprimento, a suspensão provisória do presente processo, determinando-se em consequência o prosseguimento dos autos, com a dedução de acusação – artigos 282º, nº 4 CPP.”

Como se vê, o arguido incumpriu esta injunção, fenecendo assim o suporte da argumentação susceptível de sustentar a posição que defende.

Da fundamentação da decisão da questão anterior resulta logo claro que a solução propugnada pressupôs (e exige) um cumprimento da injunção, o que não ocorre aqui.

Inexiste, pois, logo, base factual bastante que sustente a posição defendida pelo recorrente.

Independentemente da razoabilidade, ou irrazoabilidade, abstracto-jurídica da sua pretensão - numa vertente que já não se analisa aqui, pois as decisões dos tribunais, e em concreto os recursos, não são exercícios académicos e sim a resolução de casos concretos - o certo é que ela fica prejudicada face a um incumprimento da injunção em causa.

Improcede o recurso nesta parte, sem necessidade de mais considerandos ou desenvolvimentos.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar parcialmente procedente o recurso, ordenando-se o desconto dos 3 meses de proibição de condução de veículos motorizados cumpridos pelo arguido a título de injunção no cumprimento da pena acessória, mantendo-se a sentença na parte restante.

Sem custas.

Évora, 06.12.2016

(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

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[1] - Sumariado pela relatora.