Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2374/21.0T8ENT.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
INSOLVÊNCIA
PARTILHA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz a nulidade da decisão a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C., afectando somente o valor intrínseco de tal decisão e sujeitando-a, consequentemente, ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso.
- O administrador de insolvência tem legitimidade, enquanto representante do interessado insolvente, para requerer a instauração de processo de inventário, quando os bens que integram o património a partilhar estão incluídos na massa insolvente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 2374/21.0T8ENT.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Massa Insolvente de (…), representada pela administradora de insolvência, veio instaurar processo de inventário para partilha dos bens que foram deixados por óbito dos progenitores da insolvente, falecidos, respectivamente, em 04/10/2001 (pai) e 10/12/1999 (mãe).
Para o efeito veio sustentar a requerente que, tendo sido declarada a insolvência daquela herdeira, por sentença transitada em julgado em 08/10/2020, a integração dos bens provenientes da partilha retroage à data de falecimento dos inventariados, integrando, assim, também, a massa insolvente, pelo que assiste ao administrador de insolvência, como substituto processual da insolvente, legitimidade para requerer a instauração do presente inventário, atento o disposto nos artigos 1085.º n.º 1, alínea a), do C.P.C. e 81.º, n.ºs 1 e 4, do CIRE.
Pela M.ma Juiz “a quo” foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o requerimento inicial, sustentando a falta de legitimidade da requerente para instaurar o presente processo de inventário.

Inconformada com tal decisão dela apelou a requerente, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1. O Despacho Liminar proferido pelo Tribunal a quo decidiu no sentido de que não assiste legitimidade à Massa Insolvente para requerer a instauração do presente processo de inventário.
2. Para o efeito, convocou ipsis verbis e de forma indiscriminada a argumentação expendida em dois acórdãos isolados e minoritários que também decidiram no sentido da ilegitimidade da Massa Insolvente para requerer inventário judicial.
3. A decisão do Tribunal a quo limitou-se a aderir as razões plasmadas naqueles acórdãos sem esclarecer devidamente as razões de facto e de direito e sem desenvolver a fundamentação jurídica que suportou a sua decisão.
4. De forma acrítica, ao final da reprodução de cada trecho citado, limitou-se a confirmar o que: "ali se conclui" ou "conforme ali se expende".
5. Modo de fundamentar que, principalmente no presente caso, frustra não somente um entendimento jurisprudencial estabilizado,
6. Como um abundante acervo legislativo existente em sentido contrário.
7. Condições que importam um ónus bastante acrescido caso o Tribunal a quo pretendesse uma alteração substancial no modo interpretativo e nos resultados alcançados nas últimas décadas quanto à matéria.
8. A questão acabou por ser decidida sem a fundamentação devida e sem elencar adequadamente os seus motivos, não cumprindo, em consequência, com o ónus imposto pelo artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa e com o dever de fundamentação das decisões judiciais prescrito no artigo 154.º do Código de Processo Civil.
9. Razões pelas quais o Despacho Liminar deve ser julgado nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
10. A Massa Insolvente de (…) instaurou a presente ação judicial porque viu frustrada as tentativas extrajudiciais de alienação do quinhão hereditário da Insolvente que se encontra apreendido no âmbito do Processo de Insolvência com o n.º 2002/20.1T8STR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Comércio de Santarém – Juiz 2.
11. A Massa Insolvente requereu o processo de inventário com o intuito de fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens.
12. Património que diz diretamente respeito à Massa Insolvente.
13. Isto porquanto o processo de inventário versa sobre a partilha de direitos de natureza patrimonial.
14. Direitos que integram a Massa Insolvente, por força do que está estatuído no artigo 46.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE): "todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.
15. E que devem ser administrados pelo Administrador Judicial por imposição legal, nos termos do CIRE e do Estatuto do Administrador Judicial.
16. Pois incumbe ao Administrador Judicial a "gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência", conforme artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro.
17. No exercício das suas funções é conferido poder ao Administrador Judicial para "desistir, confessar ou transigir, mediante concordância da comissão de credores, em qualquer processo judicial em que o insolvente, ou a massa insolvente, sejam partes", nos termos do artigo 55.º, n.º 8, do CIRE.
18. Além disto, o CIRE estabelece que o Administrador substitui o Insolvente em todas as ações pendentes (segundo o artigo 85.º, n.º 3) e assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (de acordo com o artigo 81.º, n.º 3).
19. A qualidade de substituto processual do Administrador Judicial (em representação da Massa Insolvente) só é limitada em ações de natureza pessoal.
20. Esta limitação, para além de juridicamente devida, é óbvia segundo a sua própria natureza.
21. O Insolvente não deixa de poder exercer os seus direitos e assumir as suas responsabilidades enquanto ser-pessoa.
22. Por este motivo, em ações de investigação de paternidade e divórcio, por exemplo, o Insolvente não pode ser substituído pela Massa Insolvente.
23. O caso dos autos, no entanto, é completamente diferente.
24. O inventário versa sobre direitos patrimoniais.
25. Direitos que após a declaração de insolvência são privados ao devedor insolvente e passam a ser administrados pelo Administrador Judicial.
26. Neste sentido, por todos, lê-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21.09.2006, no âmbito do Processo n.º 0634600, rel. Gonçalo Silvano, que o Administrador da Insolvência é a entidade diretamente interessada no âmbito do processo de inventário: “Quanto a esses bens a partilhar em inventário judicial (e no caso sabe-se já que o quinhão do falido está apreendido) o cabeça de casal tem uma posição de sujeito activo como herdeiro e daí que não possa deixar de ser entendido como um acto em que diz também respeito à massa insolvente, onde o cabeça de casal é o devedor (destaques nossos).
27. A questão da legitimidade da Massa Insolvente para requerer inventário judicial deve ser examinada necessariamente à luz do conceito de legitimidade processual.
28. Ora, segundo o artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o "autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar".
29. O n.º 2 do mesmo artigo aduz que o "interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação".
30. Por fim, o n.º 3 deste artigo prevê que na "falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor".
31. Em suma, legitimidade é utilidade. “O interesse [direto] significa a utilidade para o autor” (Jorge Augusto PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 9.º ed., página 102).
32. E não há dúvida de que não somente existe utilidade para a Massa Insolvente requerer a partilha do património autónomo do Insolvente.
33. Como, mais seriamente ainda, há uma concreta necessidade de partilha.
34. Haja vista a frustração da alienação extrajudicial do quinhão hereditário do Insolvente.
35. Este direito patrimonial do Insolvente se encontra apreendido no âmbito do processo de insolvência e deve ser liquidado pela Administradora Judicial.
36. Ou seja, além da legitimidade da Massa Insolvente, também se verifica o interesse processual desta, tendo em conta a sua necessidade de tutela jurídica.
37. Tendo em conta a necessidade de a Massa Insolvente alcançar a satisfação dos seus legítimos interesses, o cerceamento da possibilidade de agir violará o direito constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva.
38. Salienta-se que a legitimidade de os Administradores de Insolvência requererem inventário é uma prática jurisprudencial estabilizada e legislativamente reconhecida.
39. E a as alterações operadas pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (Regime do Inventário Notarial – que também procedeu a alterações no Código de Processo Civil) não provocaram nenhuma alteração no âmbito dos titulares do direito de ação.
40. O "novo processo de inventário" não alterou nem suprimiu o conceito de interessado direto na partilha.
41. Conceito que já vigora há pelos menos três décadas.
42. Não existindo, portanto, razão legislativa ou interpretativa suficiente para que se opere agora uma mudança radical quanto à legitimidade da Massa Insolvente.
43. Aliás, mesmo perante a égide do novo regime, a doutrina mantém-se afirmando a legitimidade da Massa Insolvente sempre que o herdeiro seja declarado insolvente.
44. Neste sentido Domingos Silva Carvalho Sá (Do Inventário – Descrever, Avaliar e Partir, 8.ªed., 2021, página 44).
45. Interpretação que vem sendo habitualmente aceite no plano jurisprudencial, conforme se vê, por todos, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.04.2010, no âmbito do Proc. n.º 144/09.3TBPNF.P1, rel. Amaral Ferreira: “Estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário”.
46. Outrossim, a legitimidade da Massa Insolvente não é conferida apenas para intervir em inventários pendentes,
47. Tal resultado interpretativo não se coaduna com os fins dos processos de inventário e de insolvência e com a própria sistematização do ordenamento jurídico em vigor.
48. Caso prospere, criará uma incongruente, injusta e contraditória regra de intervenção processual em que a Massa Insolvente não pode requerer inventário, mas poderá – se a partilha for requerida por outro (também) interessado – intervir na qualidade de requerida.
49. Ora, se o quinhão hereditário ainda não está preenchido antes do início do inventário – e por isto a massa insolvente não tem legitimidade para requerer – como poderá a Massa Insolvente substituir o insolvente caso o processo já esteja em curso se antes da partilha o quinhão também ainda não está preenchido?
50. Tal conclusão é claramente injustificável. Razão pela qual a dualidade de entendimento não deve prosperar.
51. Em suma, a legitimidade processual para requerer inventário é conferida, inter alia, aos "interessados diretos na partilha", conforme dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do Código de Processo Civil.
52. Foi o próprio legislador que estabeleceu, dentro de um só conceito, um leque mais alargado de sujeitos admitidos a requerer a partilha.
53. Para o efeito não atribuiu legitimidade apenas aos herdeiros, legatários, sucessores, credores, Ministério Público, cônjuge ou outro sujeito mais definido ou indefinido.
54. Quis, assumidamente, admitir e promover um conceito mais amplo, não redutor.
55. A Massa Insolvente tem legitimidade para que se proceda a inventário tanto por ser a natural substituta processual da Insolvente (herdeira legitimária).
56. Como por representar os legítimos interesses e direitos dos credores da Insolvente no plano da liquidação dos seus ativos, buscando – conforme legalmente estabelecido – satisfazer os créditos que lhe são devidos em decorrência das dívidas assumidas pela Insolvente.
57. Não existindo nenhuma alteração legislativa que importe a modificação da legitimidade, não se justifica a repentina alteração do seu entendimento.
58. E caso não assista legitimidade à Massa Insolvente, os processos de insolvência não poderão ser concluídos, pois os ativos nunca serão liquidados.
59. E todos os valores inerentes aos quinhões hereditários (direitos patrimoniais) dos insolventes jamais poderão ser objeto de liquidação judicial.
60. Beneficiando todos os insolventes que tenham valores a receber de herança.
61. E prejudicando os legítimos e legalmente reconhecidos interesses dos credores.
62. Motivos pelos quais, a fim de evitar graves prejuízos e de modo a reestabelecer a Justiça, não poderá prosperar o entendimento vertido no Despacho Liminar, devendo este ser revogado, dando-se prosseguimento aos termos normais do processo.
63. Termos em que, e nos melhores de direito que V.as Ex.as entendam suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o despacho liminar, ordenando-se a sua substituição por outro que julgue a requerente como parte legitima e ordenando-se o prosseguimento dos autos. Assim se fará a tão costumada Justiça.
Não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º)[3][4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerente, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se a decisão recorrida é nula, uma vez que a mesma não está fundamentada, tendo sido violado o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C.;
2º) Saber se a requerente, representada pela administradora de insolvência, na qualidade de substituta processual da insolvente, tem legitimidade para requerer a instauração do presente inventário, por força do estatuído nos artigos 1085.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C. e 81.º, n.ºs 1 e 4, do CIRE.

Apreciando, de imediato, a primeira questão recursiva – relativa à nulidade da decisão sob censura – importa dizer a tal respeito que, como é sabido, «a lei não traça um conceito de nulidade de sentença, bastando-se com a enumeração taxativa de várias hipóteses de desconformidade com a ordem jurídica que, uma vez constatadas na elaboração da sentença, arrastam à sua nulidade» – cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4.ª ed., páginas 46/47.
Esse elenco taxativo das causas de nulidade da sentença consta das alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
A alínea b) deste normativo comina a sentença de nula “quando [ela] não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas: assim o impõem, desde logo, o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o artigo 154.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Especificamente no que à sentença diz respeito, o artigo 607.º, n.º 3, do C.P.C., ao ocupar-se daquela parte da sentença que designa por “fundamentos”, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Porém, «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 2001, página 669; Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., 1985, página 687; cfr., igualmente no sentido de que «a falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito», Amâncio Ferreira, obra citada, página 48.
Por isso, «a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso» – cfr., Amâncio Ferreira, ibidem.
«Para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no n.º 3 do artigo 659.º (607.º do actual CPC), e que suportam a decisão» – cfr. Amâncio Ferreira, ibidem e Antunes Varela, obra citada, página 688.
Assim sendo, nos termos dos preceitos legais supra referidos, resulta claro que a decisão recorrida só estará ferida de nulidade se a mesma estiver total e absolutamente desprovida de fundamentação, ao nível fáctico e jurídico.
Ora – como se extrai do teor da decisão sob censura proferida pela Julgadora “a quo” – tal decisão, apesar de se poder considerar como insuficientemente fundamentada (sujeitando-se, por isso, ao risco de ser revogada ou alterada pela via recursiva), não está totalmente desprovida de fundamentação, uma vez que aí é feita referência ao facto da requerente, representada pelo administrador de insolvência, ter instaurado este processo de inventário como substituto processual da insolvente, para partilha dos bens que foram deixados por óbito dos progenitores da insolvente, muito embora tal factualidade, segundo o entendimento da Julgadora “a quo” – que remeteu para as razões aduzidas em aresto que transcreveu – não dê legitimidade à requerente para poder instaurar a presente acção.
Deste modo, forçoso é concluir que a decisão recorrida não é, de todo, nula, não se enquadrando, assim, na previsão da alínea b) do n.º 1 do citado artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Analisando agora a segunda questão recursiva – relativa à legitimidade da requerente (ou falta dela) para instaurar a presente acção de inventário – haverá que referir a tal propósito que o processo de inventário destina-se, entre outras funções, a fazer cessar a comunhão hereditária e a proceder à partilha de bens, atento o disposto no artigo 1082.º, alínea a), do Código de Processo Civil.
Ora, no que tange à partilha do património comum, de forma a não abranger somente os herdeiros ou os legatários, o legislador, desde 1994, veio conferir legitimidade processual para requerer ou intervir no inventário, na qualidade de parte principal, ao interessado directo na partilha, adoptando, assim, um conceito indeterminado ou uma definição jurídica ampla, com o firme propósito de admitir um leque mais alargado de sujeitos com legitimidade (activa) para instaurar o respectivo processo de inventário, sendo certo que tal figura – do interessado na partilha – não foi, de todo, alterada pela modificação legislativa que ocorreu com a entrada em vigor da Lei 117/2019, de 13/9, como se pode constatar, aliás, da simples leitura da alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, o artigo 30.º do Código de Processo Civil dispõe sobre o conceito de legitimidade, nos seguintes termos:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.
Desta norma resulta que o interesse, enquanto elemento definidor da legitimidade processual, vai para além do mero interesse, ainda que jurídico, na procedência ou improcedência da acção. Exige-se também que esse interesse em demandar ou contradizer seja directo, não bastando um mero interesse indirecto, reflexo ou derivado. Neste sentido, vide Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ 292, página 75.
A legitimidade é um pressuposto processual, ou seja, uma condição necessária para o juiz se ocupar do mérito da causa. Com efeito, para que o juiz possa apreciar do fundo da causa, não basta que as partes tenham personalidade judiciária, capacidade judiciária e estejam devidamente representadas. É necessário que sejam dotadas de legitimidade para aquela lide em concreto.
Por isso, afirma Antunes Varela que, ser parte legítima na acção, quer significar, “ter poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista; e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida” – cfr. Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, a páginas 128 e 129.
E Remédio Marques sustenta que a “legitimidade processual exprime a posição concreta por quem é parte numa causa perante um conflito de interesses que aí se discute e se pretende resolver” – cfr. Acção Declarativa à luz do Código Revisto, 3.ª ed., página 372.
Ora, o processo de inventário versa sobre um objeto de conteúdo eminentemente patrimonial, sendo que a requerente – Massa Insolvente de (…) – é constituída pela massa patrimonial da referida insolvente, a qual foi apreendida no âmbito do processo de insolvência, com o intuito primordial de vir a satisfazer os legítimos direitos dos seus credores.
Além disso, após a dita apreensão, recai sobre a administradora de insolvência o encargo, os poderes e as funções de administrar todos os bens e direitos, sempre com o objectivo da respectiva frutificação e a sua urgente liquidação.
Daí que, a participação de uma qualquer Massa Insolvente em processos de inventário – na qualidade de requerente e representada pelo administrador de insolvência – deve ser entendida como uma prática judicial e/ou notarial comum, sendo uma forma de liquidar património e satisfazer os interesses económicos dos credores do insolvente e uma forma de pôr fim à indivisão de um património autónomo, tal como expressamente preveem os artigos 1085.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C. e 81.º, n.ºs 1 e 4, do CIRE.
Voltando ao caso em apreço, resulta claro que a única forma de os credores da insolvente, (…), obterem o pagamento da importância que aquela lhes deve será, indubitavelmente, através da instauração do presente processo de inventário, com a consequente liquidação do património existente, resultante da partilha dos bens que foram deixados pelos progenitores da dita insolvente, após os respectivos óbitos (ocorridos em 1999 e 2001, ou seja, em data anterior à declaração de insolvência daquela).
Neste sentido, pode ver-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 15/4/2010, disponível in www.dgsi.pt, no qual, a dado passo, é afirmado o seguinte:
- (…) A falência comporta um processo colectivo, ou concursal, de pagamento aos credores, constituindo um processo de liquidação do património do falido, em benefício dos credores.
O efeito primordial da declaração de insolvência quanto ao devedor é de natureza patrimonial e reflecte-se nos seus poderes de actuação nesse domínio da sua esfera jurídica.
Prescrevia o artigo 147.º, n.º 1, do CPEREF, que a “declaração de falência priva imediatamente o falido, por si ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que o representam, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes e futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário”.
E o n.º 2 estabelecia que “O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência”.
Após a sentença declaratória da falência, os negócios jurídicos realizados pelo falido são ineficazes em relação massa, não produzem efeitos que a afectem. O falido fica numa situação de indisponibilidade quanto aos bens que integram a massa falida; sendo-lhe retirados os poderes de disposição desse bens, os actos praticados em relação a esses bens não afectam a massa falida. Os bens continuam na titularidade do falido, mas deles não pode dispor e qualquer acto praticado que lhes respeite é ineficaz.
A inibição do falido respeita aos efeitos patrimoniais relativos à falência, apenas sendo inoperante quanto às matérias de natureza pessoal e às patrimoniais a ela estranhas (Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF, 2.ª edição, página 372).
A inibição do falido (artigo 148.º) determina uma incompatibilidade da situação de falido para o exercício das actividades aí previstas, incompatibilidade destinada a salvaguardar, não os próprios interesses, mas os dos credores.
Sobre a inoponibilidade à massa falida dos negócios do falido posteriores à declaração de falência dispunha o artigo 155.º do CPEREF e sobre os actos que podem ser resolvidos em benefício da massa falida (designadamente a partilha celebrada menos de um ano antes da data da abertura do processo conducente à falência…) dispunha o artigo 156.º do mesmo Código.
Ao liquidatário judicial, com a cooperação e fiscalização da comissão de credores, cabe o encargo de preparar o pagamento das dívidas do falido à custa do produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que integram o património dele” (n.º 1 do artigo 134.º do CPEREF), que integra a massa falida.
E determina o artigo 141º do mesmo Código que “a administração dos bens que compõem a massa falida, durante o período da liquidação, compete ao liquidatário judicial”, podendo os seus actos ser impugnados por esta comissão e pelo falido (artigo 136.º) em requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na ilegalidade dos actos ou na sua inconveniência para os interesses da massa falida.
Nas incumbências ou funções do liquidatário está a de “representar a massa em juízo” – artigo 134.º, n.º 4, alínea a), do CPEREF.
Já o revogado artigo 1189.º do Código de Processo Civil, prescrevia que “a declaração de falência produz a inibição do falido para administrar e dispor de seus bens havidos ou que de futuro lhe advenham …” – n.º 1 –, passando o administrador da falência a “representar o falido para todos os efeitos, salvo quanto ao exercício dos seus direitos exclusivamente pessoais ou estranhos à falência” – n.º 3.
A declaração de falência produz a inibição do falido para administrar e dispor de seus bens havidos ou que de futuro lhe advenham. O liquidatário assumia a representação do falido para todos os efeitos, salvo os direitos exclusivamente pessoais ou os estranhos à falência.
Face ao disposto no citado artigo 147.º do CPEREF, declarada a falência, o falido fica privado por si ou, no caso de se tratar de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que a representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens, que passam a integrar a massa falida e ficar sujeitos á administração do liquidatário, assumindo o liquidatário a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.
As restrições à actuação no campo patrimonial (citado artigo 147.º) importam uma indisponibilidade relativa de bens, de os administrar e deles dispor, de modo a evitar efeitos prejudiciais em relação à massa falida.
Resulta do espírito das citadas normas que a declaração de insolvência é de natureza patrimonial que se reflecte nos poderes de actuação do falido nesse domínio da esfera jurídica e que os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador da insolvência.
Ora, o recorrente requereu processo de inventário por óbito da mãe do falido, com vista à partilha dos bens e a apurar quais os que cabem ao falido, pelo que é inquestionável que a partilha é matéria que interessa à falência, inserindo-se nos poderes de representação do falido por parte do requerente, pelo que a apelação não pode deixar de proceder.
Aliás, embora ao caso não seja aplicável o CIRE, o regime nele estabelecido não diverge substancialmente do anterior, sendo até mais desenvolvido e completo.
Na verdade, estabelece o artigo 81.º desse diploma legal, que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (n.º 1); interdita ao devedor a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo (n.º 2); que o administrador da insolvência assume todos os poderes de que o devedor fica privado bem como a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (n.ºs 1 e 3 a 5) e que são ineficazes os actos realizados pelo insolvente em contravenção ao disposto n.ºs 1 e 2 (n.º 6).
Pode, assim, concluir-se que estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário.
Assim sendo, atentas as razões e fundamentos supra explanados (nomeadamente os constantes do aresto supra transcrito), forçoso é concluir que a decisão recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, declara-se a requerente, aqui apelante, parte legítima para requerer o presente inventário, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos na 1ª instância.

***

Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela requerente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Sem custas.
Évora, 07 de Abril de 2022
Rui Machado e Mouta
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, páginas 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, n.ºs 32/33, página 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, página 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, página 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, página 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, páginas 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3.º, página 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, volume 3.º, 1972, páginas 286 e 299).