Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
249/23.8GCLGS-A.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
CRIMES DE FURTO QUALIFICADO
VALOR APROXIMADO DOS BENS FURTADOS
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Não obstante se não ter estabelecido – designadamente para efeitos de apresentação do arguido para primeiro interrogatório judicial – o valor exato dos bens furtados, o valor fixado corresponde, por aproximação, ao valor real dos mesmos, permitindo concluir, sem margem para qualquer dúvida, que tal valor é superior a uma UC, pelo que sempre se encontrará excluída a desqualificação do furto nos termos previstos no artigo 204° nº 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, ambos do CP.
II - Analisando as condutas imputadas ao recorrente – cidadão romeno e residente em Espanha, sem qualquer ligação com o território nacional – que manifestamente refletem um padrão de comportamento desvalioso – consubstanciadas na prática, em coautoria com outro indivíduo, de três crimes de furto, um simples e dois qualificados, ocorridos em três ocasiões diferentes, no curtíssimo período temporal de dois dias – é nossa convicção que os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e da tranquilidade pública que importa acautelar, justificam a coartação da liberdade do arguido, uma vez que só a privação da sua liberdade acautelará eficazmente que aquele não persista nas práticas criminosas e que não se furte à ação da justiça
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos autos de inquérito que correm termos no Juízo de Competência Genérica de …-J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o nº 249/23.8GCLGS-A foi o arguido AA, filho de BB, nascido a …1974, natural da Roménia, casado e residente em …, …, Espanha, ouvido em 1º interrogatório judicial de arguido detido, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, nos termos dos artigos 191° a 194°, 196°, 202°, nº1 alíneas a) e d) e 204° alíneas a) e e), todos do CPP, por existirem fortes indícios da prática dos seguintes crimes:

- Um crime de furto simples, desqualificado pelo valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1 e 204° nºs 1 alínea b) e 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, todos do CP;

- Um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº1, alínea b), todos do CP;

- Um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1 e 204º, nº 2, alínea e), todos do CP.

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1. O despacho que aplicou a medida de coação prisão preventiva, indica que estão indiciados facto suscetíveis de integral a prática de 3 crimes de furto.

2. Sucede que o Tribunal "a quo" considerou que uma das situações, sem indicar qual, se enquadra num furto simples, desqualificado pelo valor, e as duas outras situações, não beneficiariam desse mesmo dispositivo legal, art. 204º n.º 4 do C.P.P.

3. As informações que constam dos autos, não podem permitir a separação, sem mais de uma e outra situação, sem sequer o tribunal "a quo" indicar qual os factos indiciados considera desqualificado.

4. Analisados os factos indiciados, nenhum deles permite a qualificação do crime, devendo todos beneficiar da aplicação do referido dispositivo legal.

5. A circunstância de não se apurar o valor real, tem de concluir-se em benefício do arguido, o que exclui a qualificação.

6. É indispensável que se apure valor da coisa furtada, para efeitos de concluir sobre se o furto se deve haver como simples ou não.

7. Uma situação envolve um valor de 80€, a outra de 60€ e a última de apenas 20€.

8. No caso em apreço, a probabilidade de vir a ser aplicada uma pena de prisão efetiva, é diminuta, tendo em consideração que o arguido não tem antecedentes criminais e está social e profissionalmente inserido, contando com apoio familiar.

9. Dispõe de habitação com todas as condições necessárias.

10.Conta com apoio familiar.

11. Tem trabalho, no seu país de origem.

12.0 perigo de fuga, não obriga a permanência do arguido em território nacional, bastando que o mesmo colabore com a justiça e compareça quando interpelado.

13.A invocação do perigo de fuga, não se basta com a falta de ligação ao território nacional.

14.Sendo possível a aplicação de uma caução no valor que este tribunal julgue adequada, para compelir o arguido ao cumprimento, obviando assim o invocado perigo de fuga.

15.0 arguido está enraizado no seu meio, contando com trabalho fixo, esposa e filhos.

16.Ao manter o arguido na situação de prisão preventiva, pelos factos indiciados, estamos a aumentar os custos com a estadia do arguido, suportados pelo estado, e a diminuir a possibilidades de reinserção do arguido

17. Somente de forma excecional se aplica a prisão preventiva, o carácter de excecionalidade decorre tanto do Princípio da Liberdade, tal como se encontra consagrado no art. 27º C.R.P, como da Presunção de inocência do arguido art. 32º nº2 do mesmo diploma legal.

18.Recorrer a aplicação de medidas gravosas, como é a privação da liberdade, quando medidas mais brandas sejam suficientes, é contrariar o Princípio da Necessidade.

19.Deste modo, sempre com o devido respeito por superior opinião, não vemos razões válidas para sujeitar ao arguido a medida de prisão preventiva, até ao Julgamento, situação cuja adequação ao caso se mostra severa, há que acabar de vez de se transformar a exceção em regra.”

Termina pedindo a revogação da medida de coação de prisão preventiva, com a sua substituição por outra ou por outras medidas de coação menos gravosas.

*

O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo concluído da seguinte forma:

“Pelo exposto, e tendo em conta todo o quadro fáctico fortemente indiciado, consideramos que se mostram verificados os perigos constantes do artigo 204.º, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal que demandam a aplicação de outra medida de coação para além do TIR, sendo a prisão preventiva a medida de coação necessária e adequada às exigência cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas, pelo que, não sobejam dúvidas de que andou bem o Tribunal a quo ao proferir o despacho de aplicação daquela medida de coação, razão pela qual o presente recurso deverá ser julgado como manifestamente improcedente.

Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida, devendo o recorrente aguardar os ulteriores termos processuais, sujeito, para além do TIR, à medida de coação de prisão preventiva.”

*

O Exm.º Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber: - Determinar se estão verificados os pressupostos de aplicação da medida de coação de prisão preventiva imposta ao recorrente.

* II.II - O despacho recorrido.

Realizada o interrogatório e cumpridos os formalismos legais, foi proferido despacho com o conteúdo que passamos a transcrever:

“(…) Sem prejuízo de ulteriores diligências de investigação, nomeadamente para apurar o grau de participação dos arguidos CC e AA noutros eventuais ilícitos contra o património - considerando os Inúmeros artigos encontrados no Interior do veículos em que se faziam transportar -, dos elementos probatórios já carreados para os autos, melhor descritos supra, resultam fortemente indiciados os seguintes factos:

1. Os arguidos CC e AA delinearam, entre si, um plano no sentido de se deslocarem, no veículo automóvel, marca …, modelo …, com a matrícula …, a parques de estacionamento nas imediações de zonas de praia neste concelho de …, com o intuito de se apoderarem de objectos que se encontrassem no interior de veículos automóveis que aí se encontrassem parqueados.

2. Na execução desse mesmo plano, no dia 15.08.2023, no período compreendido entre as 17:30 e as 18:30, os arguidos CC e AA deslocaram-se ao parque de estacionamento da Praia do …, …, em ….

3. Aí chegados, abeiraram-se do veículo automóvel, marca …, modelo …, com a matrícula …, pertença de DD e, de forma não concretamente apurada, partiram o vidro da porta traseira, lado esquerdo, acedendo, desta forma, ao seu interior, de onde subtraíram o valor de € 80,00, em numerário, que se encontrava no interior de uma bolsa no banco traseiro da viatura.

4. De seguida, abandonaram o local, levando consigo a referida quantia em dinheiro, que fizeram sua.

5. Os arguidos agiram, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de se apoderarem e integrarem na sua esfera patrimonial o valor, em numerário, que se encontrava no interior no identificado veículo automóvel, o que fizeram, sem o consentimento e contra a vontade da sua legítima proprietária.

6. Ainda, na execução do aludido plano, no dia seguinte, 16.08.2023, no período compreendido entre as 17:05 e as 17:25, CC e AA deslocaram-se, ao volante do mesmo veículo automóvel, ao parque de estacionamento da Praia do …, em ….

7. Aí chegados, abeiraram-se do veículo automóvel, marca …, modelo …, com a matrícula , pertença de EE e, de forma não concretamente apurada, partiram o vidro da porta da frente, do lado direito, acedendo, desta forma, ao seu interior, de onde subtraíram os seguintes bens, objectos e valores:

Duas bolsas, uma de cor castanha e outra de cor branca, da marca …, pertença de FF, no valor aproximado de€ 200,00;

Uma mochila de praia, de cor azul com desenhos de limão, pertença de FF, no valor aproximado de€ 100,00;

Uma bolsa de cor vermelha, da marca …, contendo no seu interior dois baralhos de cartas, pertença de FF e de valor não concretamente apurado;

Um e-book reader de cor vermelha, de marca …, no valor aproximado de 200,00€ (duzentos euros);

Diversos documentos pessoais, bilhete de identidade, cartão de saúde, cartões bancários e carta de condução pertença de FF;

Um par de óculos de sol, pertença de FF, de valor não concretamente apurado;

Uma chave do veículo automóvel marca …, modelo …, com a matrícula …, no valor aproximado de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros);

Uma nota emitida pelo Banco Central Europeu, com o valor facial de 50,00€ (cinquenta euros);

Duas notas emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor facial de 10,00€ (dez euros), cada uma.

8. No valor global aproximado de € 920,00.

9. Acto contínuo, os arguidos abandonaram o local, levando com eles os identificados bens, apropriando-se dos mesmos e fazendo-o seus.

10. Os bens melhor identificados em 7. supra foram abandonados pelos arguidos no Ecoponto de papelão, sito no Largo da …, em … e recuperados pelo Núcleo de Investigação Criminal de … da GNR, na mesma data, pelas 21:00.

11. Os arguidos agiram em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de se apoderarem e integrarem na sua esfera patrimonial os objectos, bens e valores que se encontravam no interior do identificado veículo automóvel, o que fizeram, sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário.

12. Ainda, na execução do plano previamente delineado, no dia 16.08.2023, pelas 18:50, CC e AA dirigiram-se ao parque de estacionamento da Praia das …, em ….

13. Aí chegados, o arguido CC abeirou-se da Autocaravana, marca …, modelo …, com a matrícula …, pertença de GG e de HH e, de forma não concretamente apurada, partiu o vidro da janela lateral esquerda e trepou-a, logrando, desta forma, aceder ao seu interior, de onde subtraiu os seguintes bens:

Uma mochila de cor preta marca "…";

Um carregador (power bank), marca "…" e respectivos cabos;

Uns auriculares (airpods);

Um porta-moedas, de cor verde, contendo no seu interior notas emitidas pelo Banco Central Europeu;

Um saco verde contendo no seu interior auriculares;

Um livro intitulado "…";

Um espelho;

Diversos produtos de higiene;

Um par de óculos graduados;

€ 20,00, em numerário,

14. No valor global não concretamente apurado, mas seguramente superior a€ 102,00.

15. Enquanto isso, o arguido AA permaneceu junto ao veículo automóvel identificado em 1., onde ambos se faziam transportar, a vigiar as imediações, por forma a evitar que fossem visualizados e identificados por transeuntes ou autoridades.

16. Logo após, os arguidos abandonaram o local, levando com eles os referidos bens, objectos e valores, fazendo-o seus.

17. Os arguidos agiram, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de se apoderarem e integrarem na sua esfera patrimonial os objectos, bens e valores que se encontravam no interior da identificada autocaravana, bem sabendo que constituía a residência dos ofendidos e não se coibindo, para lograrem os seus intentos, de entrarem naquele espaço, da forma descrita, o que fizeram, sem o consentimento e contra a vontade dos seus legítimos proprietários.

18. Os arguidos detinham no interior do veiculo automóvel, marca …, modelo …, com a matrícula …, em que se faziam transportar, os seguintes bens e objectos:

18.1. No compartimento da porta lateral esquerda (condutor):

Uma (1) tesoura em alumínio prateada;

Um (1) par de luvas de cor pretas;

Um (1) par de luvas de cor pretas de marca …;

18.2. Debaixo do cinzeiro e na consola junto ao manipulo das mudanças (frente):

- Sessenta (60) euros em dinheiro (notas) do Banco Central Europeu;

- Um (1) telemóvel de marca … de modelo …, com o IMEl1…. IMEl2 …, nº de serie …, pertencente ao arguido AA;

18.3. Na consola da parte de trás do veículo:

- Trinta e oito euros e sessenta cêntimos (38,60 cêntimos) euros em dinheiro (várias moedas) do Banco Central Europeu;

- 18.4. No banco de trás do veículo (passageiros) e dentro de uma (1) mochila de cor preta e de marca "…":

Um (1) IPAD de cor cinzento com capa de cor azul de marca …, modelo … nº de serie …;

Um (1) porta moedas de cor verde contendo no seu interior, 35€ em notas do Banco Central Europeu e cinco euros (5€) em moedas;

Um (1) Power Bang de marca … de cor preto;

- Uma (1) caixa espelho prateada;

- Uma (1) caixa de cor azul, contendo no seu interior dois (2) fanes sem fios;

- Uma (1) bolsa de cor castanha e transparente, contendo no seu interior um par de fanes com fios;

- Vários produtos de higiene;

Uma caixa de cor amarela, contendo no seu interior um par de óculos de graduação;

18.5. No banco de trás do veículo (passageiros):

Um (1) telemóvel de marca … de modelo …, com o IMEl1… IMEl2 … pertencente ao arguido CC;

Uma (1) carteira de marca "…” e de cor preta tendo no seu inetrior:

Sessenta (60) euros em notas do Banco Central Europeu;

18.6. No interior do porta bagagens do veículo:

Uma (1) coluna de música, de marca … e de cor preta;

Um (1) Power Bang de marca … e de cor preto;

- Sacos com diversos tipos de vestuário, calçado e produtos de higiene;

Uma (1) caixa de cor preta, contendo no seu interior um par de óculos de marca …;

Uma (1) caixa, contendo no seu interior um carregador (…) 2.4 de cor branco e uma (1) pulseira dourada com pedras de cor verde e uma (1) pulseira dourada com pedras de cor de rosa;

Uma bolsa de cor preta de marca …, contendo no seu interior uma (1) cavaquinho da marca … e um par de cordas e várias palhetas;

Uma (1) bolsa de cor preta de marca … contendo no seu interior três (3) embalagens de medicação.

19. Agiram os arguidos, em todas as descritas ocasiões, de forma livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo a liberdade necessária para se determinarem de acordo com tal avaliação.

*

Os factos indiciados são susceptiveis de integrar a prática, pelos arguidos CC e AA, de:

- um crime de furto simples, desqualificado pelo valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º/1 e 204° nºs 1 alínea b) e O 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, todos do Código Penal, abstractamente punível com pena de prisão até 3 anos; um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203º/1 e 204º/1, alínea b), todos do Código Penal, abstractamente punível com pena de prisão até 5 anos; um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203º/1 e 204º/2, alínea e), todos do Código Penal, abstractamente punível com pena de prisão de 2 a 8 anos.

*

Os arguidos optaram por exercer o seu direito ao silêncio, apenas aceitando prestar declarações relativamente às suas condições pessoais e económicas, as quais não se mostram, contudo, corroboradas por quaisquer elementos ou meios de prova.

Não contestaram os factos que lhes foram comunicados, tendo-lhes sido dada a oportunidade para tal.

Assim,

Indiciam fortemente os autos que, na sequência da identificação da matrícula do veículo em que os arguidos se faziam transportar, pela proprietária do veículo com a matrícula …, furtado em 15.08.2023 na Praia do …, por esta presenciado, foram CC e AA detectados, no interior desse mesmo veículo, no dia seguinte, quando se dirigiam da praia do … em direcção à …. Nesse local abandonaram, num ecoponto, diversos artigos que veio, posteriormente, a apurar-se terem sido subtraídos nessa data, momentos antes, na Praia do ….

Os arguidos foram detidos, em flagrante delito, imediatamente após os factos praticados, em co-autoria material, no final da tarde de 16.08.2023, na Praia das …, na posse de todos os objectos subtraídos do interior de uma autocaravana.

No interior do veículo conduzido pelos arguidos foram, ademais, apreendidos inúmeros objectos, alguns dos quais de mulher, que, previsivelmente, recorrendo às regras da experiência comum e juízos de normalidade, serão provenientes de outros factos típicos e ilícitos contra o património praticados pelos arguidos neste ou noutros concelhos limítrofes.

O modus operandi utilizados nos três furtos referenciados nos autos é semelhante, sempre em parques de estacionamento de praias e mediante o recurso à quebra de vidros de veículos automóveis, sendo bastante próximo o lapso temporal em que ocorreram - em dois dias seguidos.

Em face do circunstancialismo exposto, e muito embora assente num juízo meramente indiciário, não nos suscitam quaisquer duvidas relativamente à participação de ambos os arguidos, em co-autorla material, em todos os factos em investigação nos presentes autos, introduzindo-se nos veículos identificados nos autos e deles subtraindo os bens também nos autos melhor identificados, indiciando que se dedicam, com regularidade, a tal actividade ilicita.

Ora,

Tanto quanto declararam, os arguidos, nacionais da Roménia, não possuem qualquer ligação a território nacional, residindo na Roménia e em Espanha e aqui não possuindo actividade profissional ou local de residência. Depreende-se ser intenção de ambos regressar, a breve trecho, aos países de origem ou de residência, não tendo esclarecido os concretos motivos pelos quais se encontravam em Portugal.

Não existem, pois, quaisquer perspectivas de permanecerem em território nacional e de, aqui, estabelecerem a sua vida familiar e profissional.

Os factos que, indiciariamente terão sido praticados pelos arguidos, em co-autoria, para além de graves por afectarem directamente a reserva da propriedade e a intimidade da habitação (ainda que temporária) dos ofendidos, tiveram lugar em zonas turísticas do concelho, causando alarme social entre os turistas. É bem conhecido o exponencial numero de ilícitos praticado nas praias da costa algarvia, nomeadamente em veículos estrangeiros ou presumivelmente alugados por estrangeiros que aqui se encontrem de férias.

Entre outras circunstâncias, o escasso lapso temporal em que os factos ocorreram revela a existência de um plano previamente delineado e concertado no que concerne à actuação dos arguidos, o que indicia algum nível de experiência e organização neste tipo de ilícitos.

Ademais, como referido supra, estarão em curso diligências de investigação por forma apurar a propriedade dos artigos apreendidos no veículo utilizado pelos arguidos.

Os circunstancialismos descritos levam o Tribunal a concluir pela existência de um sério e concreto perigo de fuga, já que os arguidos se mostram absolutamente desenraizados familiar, social e profissionalmente em território nacional, com o qual não possuem qualquer tipo de ligação, possuem passaporte comunitário, revelam alguma mobilidade geográfica e existe a séria probabilidade de se deslocarem, imediatamente, para a Roménia ou Espanha.

São, naturalmente, conhecedores das molduras penais bastante elevadas com que são abstractamente puníveis os crimes que lhes estão imputados, podendo, em liberdade, a qualquer momento abandonar o território português, furtando-se à acção da justiça, ao julgamento nos presentes autos e às penas que previsivelmente lhes virão a ser aplicadas em julgamento.

O declarado pelos arguidos relativamente às suas condições pessoais em parte não colhe, porquanto, beneficiando de rendimentos estáveis nos países de residência, nenhum motivo teriam para se deslocarem, até ao Algarve, não hesitando em recorrer à prática de ilícitos contra o património, por forma a obterem rendimentos para a satisfação das suas necessidades básicas.

Por outro lado, é igualmente sério o perigo de continuação da actividade criminosa pelos arguidos, demonstrando estes bastante desenvoltura na prática dos factos, o que novamente indicia profissionalismo e planeamento prévio entre ambos, sendo por demais consabido que este tipo de furtos constitui um "negócio" lucrativo, sendo uma actividade, pela sua própria natureza, propícia à sua continuação, quanto mais não seja, pela forma fácil com que o lucro é obtido.

Por ultimo, existe perigo de perturbação do inquérito e da ordem e tranquilidade públicas, nomeadamente se consideramos a zona balnear e bastante turística em que os factos foram praticados, em pleno mês de Agosto.

É, ainda, de considerar o carácter particularmente desvalioso das condutas dos arguidos, as elevadas penas concretas que previsivelmente virão a ser-lhe aplicadas em sede de julgamento, bem como o perigo de insegurança e intranquilidade públicas.

Nestes termos, entende o Tribunal que os perigos enunciados não poderão ser adequadamente acautelados através da aplicação aos arguidos de medida de coacção não detentiva da liberdade.

Assim, e embora tendo presente ser a prisão preventiva a ultima ratio, quando já não é possível o recurso a outras medidas menos gravosas, conclui-se ser esta a única medida de coacção que se mostra, 'in casu' necessária e adequada às exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade dos vários crimes que são imputados aos arguidos.

Entende-se, evidentemente, que os arguidos, por não possuírem em território nacional qualquer residência, não reúnem as condições necessárias ao cumprimento de uma medida privativa da liberdade, na habitação, mesmo que fiscalizada por meios de vigilância electrónica.

*

Face ao exposto, ponderando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade e ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 191° a 194°, 196°, 202°/1 ai. a) e d) e 204° ai. a) e e), todos do Código de Processo Penal, decide-se:

a) validar a detenção dos arguidos CC e AA, porque legalmente efectuada nos termos do disposto nos arts. 141°/1, 254°/1 a), 255° nºs 1 b) e 2, 256°/2 e 257°/2 do C.P.Penal;

b) validar a apreensão dos vários objectos indicados nos autos de apreensão supra enumerados, ao abrigo do art. 178° do C.P.Penal;

c) validar as buscas efectuadas ao veículo dos arguidos nos termos do art. 174° nºs 2, 3 e 5 b) e c), 177° nºs 2 b) e c) e 3 do C.P.Penal;

d) determinar que os arguidos aguardem os ulteriores termos do processo sujeito, para além das obrigações decorrentes dos Termos de Identidade e Residência, já prestados, à medida de coacção de prisão preventiva.

*** II.III - Apreciação do mérito do recurso

Retiramos da leitura global da motivação de recurso, com reflexo nas conclusões da mesma extraídas, que o recorrente:

A) Defende que os autos não contêm elementos que permitam considerar indiciados dois crimes de furto qualificado, propugnando que se considerem desqualificados os três crimes de furto que lhe vêm imputados.

C) Questiona a existência dos perigos a que alude artigo 204º do CPP e que sustentaram a aplicação da prisão preventiva.

D) Questiona a legalidade da aplicação da medida de coação de prisão preventiva em virtude de, na sua ótica, tal medida se revelar desadequada e desproporcional, não tendo sido respeitados os princípios estabelecidos pelo artigo 193º do CPP, revelando-se, no seu entender, adequada e suficiente a aplicação de medidas de coação menos gravosas.

Todas as questões suscitadas pelo recorrente e que acabámos de enunciar, emergem como corolários da questão central que constitui o objeto do recurso, qual seja a da verificação da existência dos pressupostos legais da medida de coação de prisão preventiva que lhe foi aplicada.

Analisemos então se lhe assiste razão.

*

A) Da qualificação dos crimes de furto.

Pretendendo pôr em causa a subsunção dos factos indiciados – factos que não questiona – constante do despacho recorrido, o recorrente afirma que aqueles não são suficientes para fazer operar a qualificação dos crimes de furto e explica as razões pelas quais, no seu entendimento, tais indícios deveriam ter conduzido à imputação ao recorrente de três crimes de furto simples, desqualificados pelo valor.

Mas não tem razão.

Com efeito, percorrido o elenco dos factos tidos como fortemente indiciados na decisão recorrida, constatamos que os mesmos integram claramente três crimes de furto previstos no artigo 203º, nº1 do CP, sendo que: - O primeiro deles se encontra desqualificado em razão do valor dos objetos furtados – o ocorrido no dia 15.08.2023, na praia do …, …, em …, consubstanciado na retirada e apropriação de objetos que se encontravam dentro de um veículo automóvel, cujo vidro os arguidos partiram para tal efeito e que se encontra descrito nos pontos 2 a 5 dos factos indiciados – considerando que tal valor ascende apenas à quantia de 80,00 €, sendo, pois, inferior a 1UC, o que, como sabemos, determina a desqualificação do furto nos termos previstos no artigo 204° nº 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, ambos do CP. - O segundo se encontra qualificado nos termos do artigo 204° nº 1, alínea b) do CP – o ocorrido no dia 16.08.2023, no parque de estacionamento da Praia do …, em …, consubstanciado na retirada e apropriação de objetos que se encontravam dentro de um veículo automóvel, cujo vidro os arguidos partiram para tal efeito e que se encontra descrito nos pontos 6 a 11 dos factos indiciados.

- O terceiro se encontra qualificado nos termos do artigo 204° nº 2, alínea e) do CP – o ocorrido no dia 16.08.2023, no parque de estacionamento da Praia das …, em …, consubstanciado na retirada e apropriação de objetos que se encontravam dentro de uma autocaravana, na qual residiam os ofendidos, cujo vidro os arguidos partiram para tal efeito e que se encontra descrito nos pontos 12 a 17 dos factos indiciados.

Na verdade, as únicas objeções que o recorrente coloca à subsunção dos factos indiciados aos crimes de furto qualificado são apenas as de que, por um lado, o tribunal não indicou concretamente quais as situações que integram os crimes de furto qualificado e qual a que se encontra desqualificada e, por outro, que o facto de não se ter apurado o valor real dos objetos furtados teria que determinar a desqualificação dos furtos, em benefício do arguido. Para tanto alegou que:

“(…) 2. o Tribunal "a quo" considerou que uma das situações, sem indicar qual, se enquadra num furto simples, desqualificado pelo valor, e as duas outras situações, não beneficiariam desse mesmo dispositivo legal, art. 204º n.º 4 do C.P.P.

3. As informações que constam dos autos, não podem permitir a separação, sem mais de uma e outra situação, sem sequer o tribunal "a quo" indicar qual os factos indiciados considera desqualificado.

4. Analisados os factos indiciados, nenhum deles permite a qualificação do crime, devendo todos beneficiar da aplicação do referido dispositivo legal.

5. A circunstância de não se apurar o valor real, tem de concluir-se em benefício do arguido, o que exclui a qualificação.

6. É indispensável que se apure valor da coisa furtada, para efeitos de concluir sobre se o furto se deve haver como simples ou não.

7. Uma situação envolve um valor de 80€, a outra de 60€ e a última de apenas 20€.”

Ora, nenhuma das identificadas objeções merece procedência.

Quanto à primeira, diremos simplesmente que, pese embora na decisão recorrida se não tenham expressamente feito corresponder a cada uma das situações as normas penais às quais as mesmas se subsumem, o certo é que tal correspondência resulta implícita, não só do cotejo da descrição factual de cada uma delas com a previsão das citadas normas penais, mas também da análise da ordem pela qual as atuações dos arguidos se encontram descritas no elenco dos factos indiciados, que coincide com a sucessão da identificação dos ilícitos penais imputados.

No que tange à segunda objeção, a mesmo revela-se de tal forma insustentada (1), que nos limitaremos a dizer que a sua improcedência é manifesta face à descrição dos factos indiciados no processo, pois que se encontra indiciariamente apurado que nas duas situações subsumidas aos crimes de furto qualificado o valor global dos bens furtados corresponde, aproximadamente, a 920,00 € e a um valor superior a 102,00 €. Não colhe, a nosso ver, a argumentação do recorrente no sentido de que o não apuramento do “valor real” dos bens deverá determinar a exclusão da qualificação. Na verdade, os valores atribuídos aos bens furtados correspondem aos seus valores reais resultantes das respetivas avaliações – valores, que, ademais, o recorrente não pôs em causa, pois que não impugnou o juízo indiciário que sustentou a sua indiciação – não se tratando, naturalmente, de nenhum valor fictício. O que se não estabeleceu ainda foi o seu valor exato, sendo certo que o valor fixado (2), por aproximação ao valor real, permite concluir, sem margem para qualquer dúvida, que em ambas as situações o valor dos bens furtados é superior a uma UC, pelo que sempre se encontrará excluída a desqualificação dos furtos nos termos previstos no artigo 204° nº 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, ambos do CP.

Estas as razões pela quais entendemos que os factos indiciados integram a prática de um crime de furto simples, desqualificado pelo valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1 e 204° nºs 1 alínea b) e 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, todos do CP; de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº1, alínea b), todos do CP e de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1 e 204º, nº 2, alínea e), todos do CP.

Não acompanhamos, pois, a análise fáctico-jurídica apresentada pelo arguido no recurso, sendo certo que, atendendo às razões acima explanadas, nenhum mérito reconhecemos à argumentação ali expendida, concretamente a atinente à alegada errada subsunção dos factos às normas penais incriminadoras.

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B) Da existência dos perigos previstos no artigo 204º do CPP e mencionados no despacho recorrido necessários à aplicação da medida de coação de prisão preventiva.

A aplicação da medida de coação de prisão preventiva pressupõe a verificação de pelo menos um dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP a saber:

«a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.»

Considerou o tribunal “a quo” encontrarem-se verificados todos os perigos previstos na norma transcrita, ou seja, perigo de fuga, perigo de continuação da atividade criminosa, perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública.

Entende o recorrente que os autos não revelam a existência dos perigos mencionados no despacho recorrido e que justificaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva.

Assentemos em que os aludidos perigos deverão encontrar-se concretizados e revestir-se de uma dimensão razoável, sob pena de se desvirtuarem as razões subjacentes à sua previsão legal, o que levaria a que pudessem ser invocados em todos os casos, sem respeito pelos princípios constitucionais que os sustentam.

Quanto ao perigo fuga, sabemos que o mesmo deverá corresponder a um perigo real e não meramente hipotético, que deverá resultar da ponderação da concreta factualidade indiciada no processo e de fatores atinentes ao arguido – como sejam a personalidade revelada e a sua situação pessoal, económica, profissional e familiar – não podendo ser deduzido com base em abstrações e generalidades. Ora, no caso dos autos, cremos que os elementos indiciados, mormente os que respeitam à situação pessoal do recorrente, se mostram suficientes para suportar a existência, em concreto, do indicado perigo de fuga. Com efeito, sabemos que o mesmo não tem qualquer relação estabelecida com o território nacional, nem no plano familiar nem no plano profissional. Em Portugal apenas se lhe conhece a atividade criminosa indiciariamente apurada nos presentes autos. De outra sorte, sabemos que tem nacionalidade romena, tem passaporte comunitário e que toda a sua vida se encontra estruturada em Espanha, onde residirá, pelo que o presente contacto com a justiça portuguesa e a perspetiva de poder vir a ser-lhe aplicada uma pena de prisão pela prática dos crimes que nos presentes autos se lhe imputam tornam provável a elaboração e a concretização de um plano de saída para o seu país de origem ou para o país em de reside, encontrando-se assim amplamente sustentado o mencionado perigo de fuga. O perigo de continuação da atividade criminosa tem em vista o juízo de prognose realizado relativamente à continuação da prática de crimes da mesma espécie e natureza dos que se indiciam no processo em que se faz a avaliação de tal perigo. Em tal juízo de prognose deverão valorizar-se a natureza e as circunstâncias relativas aos crimes que se investigam e avaliar a probabilidade da sua conexão com a atividade futura do arguido. No caso em apreço, tal como se refere na decisão sob recurso, parece-nos evidente o perigo de continuação da atividade criminosa, levando em consideração, por um lado, que não é conhecida qualquer atividade profissional estável ao recorrente e, por outro, que no curtíssimo período temporal de dois dias o mesmo desenvolveu, em coautoria com outro indivíduo, em três ocasiões diferentes, o mesmo tipo de condutas criminosas, atentando contra o património alheio, o que foi feito através de um plano previamente delineado e concertado, indiciando experiência na organização deste tipo de ilícitos.

De facto, o arguido revela uma personalidade propensa à prática dos crimes de furto, com desprezo pelas regras penais e pelos mais elementares princípios de respeito pelos valores éticos e jurídicos que regem a vida em sociedade. Acresce que nenhum elemento nos autos aponta no sentido de que o arguido propenda para alterar os seus comportamentos. Registamos que em sede de 1º interrogatório judicial o recorrente optou por se reservar no direito ao silêncio que legalmente lhe assiste no que diz respeito aos factos que lhe vinham imputados, não tendo dado qualquer sinal do qual possamos minimamente retirar a sua capacidade de autocensura. Parece-nos, assim, evidente que tais fatores contribuem para intensificar o perigo de continuação da atividade criminosa.

O perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas previsto no artigo 204.º, alínea b) in fine do CPP, deverá sustentar-se em factos dos quais seja possível inferir que a permanência do arguido em liberdade é potencialmente geradora de tal perturbação e deverá reportar-se ao previsível comportamento do arguido no futuro imediato e não ao crime por ele indiciariamente cometido, nem à reação que tal crime tenha gerado na comunidade. Com efeito, a inquietação gerada no meio social decorrente da especial relevância comunitariamente atribuída aos crimes de furto qualificado imputados ao arguido, em consequência da frequência com que os mesmos têm vindo a verificar-se na sociedade portuguesa – com especial realce para as zonas balneares onde os factos ocorreram – não são fatores sérios de perturbação da ordem e da tranquilidade pública e muito menos poderão servir como fundamento para coartar a liberdade de uma pessoa que se presume inocente.

Tal perigo terá que fundar-se em factos dos quais se possa inferir que, em concreto, a liberdade do arguido poderá ser geradora de perturbação da tranquilidade pública, sendo certo que apenas este entendimento do perigo em análise, claramente mais restritivo, se revela consentâneo com a legitimação constitucional da aplicação das medidas de coação – adstritas a fins exclusivamente processuais, tais como a garantia do bom andamento do processo e do efeito útil da decisão final e o impedimento da continuação da atividade criminosa – e impede que o mesmo assente em considerações de prevenção geral ou especial, próprias da fase da condenação.

Porém, na concreta situação dos autos, cremos que a propensão para a reiteração do mesmo padrão de condutas criminosas e a facilidade com que o arguido se determina a realizar tais ilícitos – fatores revelados pela personalidade patenteada nos factos indiciados – indicia que a sua liberdade poderá ser geradora da referida perturbação, sendo expectável que o alarme e a intranquilidade se propaguem na comunidade e potenciem um grau acentuado de perturbação da paz social, encontrando-se, pois, sustentado o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, previsto no artigo 204.º, alínea b) in fine do CPP e também considerado na decisão recorrida (3).

Já no que tange ao perigo de perturbação do inquérito, que o tribunal também entendeu verificado, afigura-se-nos que os autos não contêm, no momento atual, quaisquer factualidade que o suporte, pois que nenhum facto resultou indiciado que permita sustentar a convicção de que a permanência do arguido em liberdade acarretaria o perigo de o mesmo vir a desenvolver comportamentos que perturbassem a investigação ou que dificultassem a aquisição ou a conservação das provas. Assentamos, por isso, em que tal perigo se não verifica.

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C) Da ilegalidade da aplicação da medida de coação de prisão preventiva por preterição dos princípios consagrados no artigo 193º do CPP.

Como corolários do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no seu artigo 1.º, estabelece a Constituição da República Portuguesa, como direitos fundamentais:

- O direito à liberdade (artigo 27.º, nº 1), estatuindo que tal direito apenas poderá ser restringido na estrita medida do necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, nº 2);

- O princípio da presunção de inocência dos arguidos (artigos 32.º, nº 2.º e 27.º, nº 1.º).

As medidas de coação impostas aos arguidos em processo penal constituem, necessariamente, uma restrição à liberdade pessoal de quem a elas é sujeito, sendo que têm como finalidade assegurar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu bom andamento, quer no que concerne à execução das decisões condenatórias.

Precisamente porque a aplicação das medidas de coação implica uma restrição de direitos fundamentais, a mesma deverá revestir-se das devidas cautelas, fazendo a lei, nos artigos 191º e seguintes do CPP, uma definição rigorosa e clara dos respetivos pressupostos e estatuindo que na aplicação de tais medidas deverão observar-se os princípios da legalidade ou tipicidade, da adequação, da necessidade e da proporcionalidade.

Assim, a aplicação de qualquer medida de coação pressupõe, desde logo, a verificação de um juízo de indiciação da prática de crime, fumus comissi delicti, e visa exclusivamente satisfazer exigências cautelares estritamente processuais, que resultem da verificação de algum dos perigos previstos nas alíneas do artigo 204.º do CPP.

Em concreto, a aplicação da medida de prisão preventiva – por ser a que mais fortemente restringe a liberdade das pessoas – depende da verificação dos requisitos comuns a todas as medidas de coação, previstos no artigo 204º do CPP e ainda de requisitos específicos, estabelecidos pelo artigo 202º do CPP, sempre sem prejuízo do preenchimento das “condições gerais de aplicação”, que encontram a sua previsão no artigo 192º do CPP.

Só poderá, pois, a medida de prisão preventiva ser aplicada para acautelar as necessidades processuais se as outras medidas legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes, prevendo o artigo 202.º, nº 1.º do CPP, que a mesma só pode aplicar-se quando:

«a) Houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão com máximo superior a 5 anos;

b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;

c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;

f) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão»;

Cumulativamente, deverá ainda verificar-se pelo menos um dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP, a que acima aludimos.

*

Na sequência da promoção do Ministério Público, o Juiz de Instrução, levando em conta o quadro factológico indiciariamente apurado, concluiu que o arguido recorrente se constituiu como autor de um crime de furto simples, desqualificado pelo valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1 e 204° nºs 1 alínea b) e 4, por referência à alínea c) do artigo 202º, todos do CP, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº1, alínea b), todos do CP de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1 e 204º, nº 2, alínea e), todos do CP e entendeu que a única medida de coação adequada e suficiente para garantir as exigências cautelares na situação vertente seria a de prisão preventiva, que decidiu aplicar.

Ora o recorrente considera não se encontrar justificada a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, pugnando pela aplicação de outras medidas menos gravosas.

Vejamos se tem razão.

Para fundamentar a decisão de sujeitar o recorrente à medida de coação de prisão preventiva o tribunal recorrido teve em consideração os crimes cuja prática fortemente se indicia, nos quais se incluem os crimes de furto qualificado, que, considerando o disposto no artigo 202º, nº 1, alíneas a) e d) do CPP, consentem a aplicação de tal medida de coação. E cuidou de justificar por que razão não aplicou ao arguido outras medidas de coação menos gravosas, nomeadamente a medida de obrigação de permanência na habitação com controlo através dos meios de vigilância eletrónica, nos termos previstos no artigo 201º do CPP.

Ora, analisando as condutas imputadas ao recorrente, que manifestamente refletem um padrão de comportamento desvalioso, é nossa convicção que os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e da tranquilidade pública acima explanados que importa acautelar, justificam a coartação da liberdade do arguido uma vez que só a privação da sua liberdade acautelará eficazmente que aquele não persista nas práticas criminosas e que não se furte à ação da justiça. Nesta conformidade, concluímos que os mencionados perigos não apenas justificam a prisão preventiva – por esta se mostrar proporcional à gravidade dos crimes cometidos e à sanção que previsivelmente poderá vir a ser aplicada ao recorrente – como as razões que a fundamentam tornam claramente inadequadas, quaisquer outras medidas de coação menos gravosas. Em suma, nos termos que se deixaram expostos, consideramos que a decisão recorrida respeitou os critérios definidos na Constituição e na lei, mostrando-se a medida de coação de prisão preventiva conforme aos princípios, da adequação, da necessidade e da proporcionalidade e respeitada a natureza excecional e subsidiária da de tal medida, pelo que o recurso improcederá.

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III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter a medida de coação aplicada ao recorrente, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 9 de janeiro de 2024.

Maria Clara Figueiredo

Laura Goulart Maurício

Jorge Antunes

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1 Não logramos, aliás, compreender a alegação do recorente no sentido de que “7. Uma situação envolve um valor de 80€, a outra de 60€ e a última de apenas 20€.”, conquanto tais valores, correspondendo apenas ao numerário apreendido, ficam consideravelmente aquém do valor global atribuído ao conjunto dos bens furtados.

2 Desde logo para permitir a apresentação dos arguidos a primeiro interrogatório judicial.

3 Embora a sua verificação se não fundamente nas razões de ordem genérica consignadas na decisão.