Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
129/21.7T8SLV.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
VALORAÇÃO DA PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A valoração da prova deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação coerente da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada.
2 – As declarações de parte podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente, mas inexiste qualquer hierarquia apriorística entre este meio de prova e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada.
3 – Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.
4 – A alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.
5 – Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela Primeira Instância, em observância da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 129/21.7T8SLV.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Silves – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção declarativa com processo comum, emergente de acidente de viação, proposta por (…) contra “Crédito Agrícola Seguros Companhia de Seguros de (…), SA”, o Autor veio interpor recurso da sentença proferida.
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O Autor pedia a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia total de € 32.558,36 (trinta e dois mil, quinhentos e cinquenta e oito euros e trinta e seis cêntimos) de harmonia com a prova que viesse a ser produzida em audiência de julgamento, acrescida de juros de mora desde 16/06/2019, até efectivo e integral pagamento, bem como no pagamento de custas de parte, custas e procuradoria condigna.
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Para tanto, o Autor invocou que, no dia 18/11/2018, pelas 18h45m, na Rua do (…), em direção à (…) – (…), em Silves, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo de matrícula (…), conduzido pelo Autor e a viatura de matrícula (…), tripulada por (…).
Afirmou que esta última viatura foi responsável pela produção do acidente e que, na sequência do embate, o Autor sofreu um dano de perda total do veículo, sendo que o valor do automóvel ascendia a € 7.000,00 e os custos de montagem do equipamento de gás GPL atingem € 1.200,00, ficando impedido de utilizar o único veículo que dispunha para as suas deslocações profissionais e de lazer e do seu agregado familiar, além de ter custeado despesas relacionadas com a obtenção da certidão da participação de acidente de viação.
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Devidamente citada, a Ré contestou, impugnando a versão sobre a dinâmica do acidente de viação e os valores dos danos peticionados, concluindo pela absolvição do pedido.
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Foi proferido despacho saneador onde se afirmou a validade e regularidade da instância e se identificou o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, nos termos dos artigos 595.º e 596.º do Código de Processo Civil.
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Realizada audiência de julgamento, o Tribunal a quo julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré “Crédito Agrícola Seguros – Companhia de Seguros de (…), SA” do pedido formulado pelo Autor (…).
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O Autor não conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«1 – As questões que se debatem no presente recurso são: Reapreciação da matéria de facto e a Dinâmica do Acidente.
2 – As declarações prestadas pelo autor ora Recorrente e pela testemunha (…), pautaram-se pela contextualização assertiva, expressamente detalhadas, tudo caraterísticas próximas de um depoimento genuíno, o qual deveria ter sido valorizado adequadamente pelo Douto Tribunal.
3 – Considera-se que do depoimento testemunha (…) se retira que a iluminação publica da Rua do (…) ainda não estava ligada e que o autor circulava com as luzes acesa, pelo que deveria ter sido dado como provado as alíneas A ) B ) da matéria dada como não provada.
4 – Conforme consta da Motivação da douta sentença que ora se recorre , o veículo do A. estava estacionada e que presumia que o condutor do veiculo segurado na Recorrida vinha com as luzes desligadas.
5 – Aliás se tal condutor viesse com as luzes ligadas, a testemunha (…) não deixaria de referir tal facto.
6 – Por outro lado tanto o Recorrente como esta testemunha afiançaram que as luzes do referido condutor estavam desligadas o que face ao horário em que se deu o acidente, impedia que o veículo segurado na R. fosse visível para os outros condutores da via, uma vez que conduzia sem luzes acesas e para além disso com velocidade superior aos 50 km/h permitidos no local, pelo que a matéria E) e F) dada como não provada deveria constar da matéria dada como provada.
7 – Por outro lado , somente o A. e a testemunha (…) estavam presentes no local e presenciaram o embate, logo as declarações de parte do A. deveriam ter sido consideradas e ter dado ás mesmas o devido valor , o que não sucedeu , nem a douta sentença fundamente devidamente as razões de facto para considerar convincente as declarações de parte do A. e a tal estava obrigada.
8 – Se o douto tribunal tivesse dado a relevância devida as declarações de parte do A e valorado o depoimento da testemunha (…) teria dado como provada a dinâmica do acidente descrita pelo ora Recorrente.
9 – Aliás muito estranha que o douto tribunal tenha ignorado olimpiamente quer as declarações de um quer o depoimento da outra.
10 – Nos termos do artigo 466.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
11 – Refere Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80, afirma claramente que:
«(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova».
12 – Por nós, entendemos que a posição mais correta radica na tese mais ampla e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz.
13 – O texto do artigo 466.º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova. Se esse fosse o desiderato do legislador, o mesmo teria adotado uma formulação diversa à semelhança, por exemplo, do que se prevê no § 445.º do Código de Processo Civil Alemão.
14 – O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório. Dito de outra forma, tal equivaleria a raciocinar assim: não acredito na parte porque é parte, procurando nas declarações da mesma detalhes que corroborem a falta de objetividade da parte sempre no intuito de confirmar tal ponto de partida. A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha).
15 – As declarações de parte têm uma contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais. Note-se que o atual Código de Processo Civil preconiza que os articulados sejam minimalistas, centrando-se nos factos essenciais. Desta circunstância deriva que os factos instrumentais, cerne da contextualização do relato, não foram necessariamente trabalhados entre a parte e o mandatário para efeitos processuais. Um relato autêntico/espontâneo que faça uma contextualização pormenorizada e plausível colhe credibilidade acrescida por contraposição a um relato seco, estereotipado/cristalizado ou com recurso a generalizações.
16 – As declarações da parte podem constituir, elas próprias, uma fonte privilegiada de factos-base de presunções judiciais, lançando luz e permitindo concatenar – congruentemente – outros dados probatórios avulsos alcançados em sede de julgamento.
17 – Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas.
18 – Ora, no caso em apreço – cremos que as declarações de parte destes autos constituem um exemplo acabado de declarações que merecem credibilidade.
19 – As respostas dadas pelo autor primaram por ser claras, explicitas e fundamentadas, relatando os factos de forma cronológica e com os traços essenciais. O Autor referiu que estavam estacionados apertados perto do cemitério. Eles estavam com pessoas amigas/conhecidas, e o combinado era saírem dali para irem tomar café. Ele então começou a conduzir, para sair daquele parque, muito lentamente, e que era de noite, as luzes da iluminação (imperceptível) já estavam acesas, ele saiu lentamente, e de repente do lado esquerdo dele apareceu uma e outra viatura a conduzir em zigue-zague, com as luzes apagadas, ele já tinha imobilizado a viatura que estava a conduzir, mas mesmo assim a outra viatura veio e bateu na lateral, de lado (imperceptível). O senhor acrescenta que acredita que estava a cerca de (imperceptível) viatura dele a cerca de 1 metro lá na (imperceptível) saiu e já estava com cerca de 1 metro da viatura na (imperceptível) transversal. Que a viatura dele já estava na estrada principal a cerca de um metro e meio. Que o outro senhor vinha, nessa estrada principal, (imperceptível) rotunda pelo lado esquerdo dele (imperceptível).Após o acidente a carroçaria do carro foi toda para dentro, e no local tentaram ainda puxar para fora (imperceptível) e conseguiram ainda conduzir até ao café, pararam lá, mas que do café já não conseguiu sair porque o carro começou a perder água. E então eles chamaram o reboque (…) e a viatura foi então rebocada para o parque. O senhor disse que no café ainda tentou puxar toda aquela parte da chaparia que foi metida para dentro, ele ainda tentou conduzir para Messines, mas imediatamente percebeu que o carro começou a aquecer e foram ver o que se tava a passar, e estava a perder água. E então (imperceptível) (…) O senhor diz então que foi para casa, para (imperceptível) com os amigos, deixou lá o carro e ele acredita que o carro foi transportado / rebocado no dia seguinte. Afirmou que no momento do acidente estava névoa, estava um tempo muito nebuloso, húmido, que logo a seguir começou a chover. Então ele disse que após o acidente, o condutor da outra viatura envolvida no acidente saiu da viatura e começou a (imperceptível) as peças e pediu para ele não chamar a polícia, que lhe disse que tinha vindo de uma festa de anos, tinha tomado cerveja, estava comemorando os anos dele e da irmã, o senhor estava a comemorar 73 e a irmã 74 anos, pediu portanto ao sr. (…) para não chamar a polícia, o sr. (…) teria dito (imperceptível) eu vou chamar a polícia, porque os danos eram (impercetível). Perguntei a ele também sobre a iluminação e disse que acredita que a iluminação já estava acesa, (impercetível).
Em resposta à pergunta de qual era o valor do carro antes do acidente, o senhor começou por dizer que não sabia exatamente mas que o carro é um … (impercetível), é um veículo já antigo de coleção (impercetível), ele disse que tinha feito muitos trabalhos no carro e falou que, pelo menos, € 15.000,00 (quinze mil euros) com certeza o valor do carro. Ele acrescentou que (impercetível) (…) disse que usava na altura para vir para Portugal, vinha de Alemanha para Portugal e voltava, com esse carro que tinha cá em Portugal ele costumava usar o outro carro. Portanto é um carro que ele usava sempre para longos percursos. Disse que entretanto o carro está na Alemanha, e que na reparação que foi feita levou um eixo dianteiro e um eixo traseiro, e que mesmo assim o carro ainda não está a funcionar, e que por isso ele comprou uma outra viatura.
20 – O Recorrente disse que o carro tinha sido restaurado 4 anos antes, incluindo o seu interior.
21 – No caso concreto, em face do material probatória, documental e testemunhal angariado para os presentes autos, deveria ter constado da matéria dada como provada a seguinte matéria:
a) No dia e hora referidos em 1 a iluminação pública da Rua do (…) ainda não estava ligada.
b) O Autor acendeu as luzes.
c) O Autor certificou-se, olhando (para a sua esquerda por pretender virar para esse lado) por cima do ombro esquerdo, para se certificar de que nenhum veículo se aproximava desse mesmo lado.
d) O Autor verificou que nenhum veículo circulava no mesmo sentido de marcha que pretendia empreender.
e) O veículo (…) não era visível para os outros condutores da via, uma vez que conduzia sem luzes acesas e para além disso com velocidade superior aos 50 km/h permitidos no local.
f) Foi só depois da colisão que o (…) acendeu as luzes do seu carro, tendo depois saído do veículo e agarrou-se á frente do mesmo, cambaleando e exalando um forte cheiro a álcool.
g) O veículo (…) foi fabricado no ano de 1996, tendo sido remodelado pouco tempo antes do acidente e sido completamente recuperado.
22 – O Recorrente não é culpado.
23 – Pelo que da conduta realizada pelo segurado na R, descrita no articulado desta P.I. resulta a violação do disposto nos artigos 23.º, 24.º, 25.º, 27.º, 61.º, 145.º e segs., do Código do Estrada em vigor à data dos factos.
24 –Sendo tal comportamento ilícito, do qual resultou os danos supra descritos, constitui a responsável civil na obrigação de indemnizar o Autor, nos montantes peticionados.
Por outro lado,
25 – O acidente deveu-se à conduta descuidada do condutor do Recorrida que embateu na outra viatura quando esta estava imobilizada. Submetidos os condutores a testes para despiste de álcool (TAS), constatou-se que o condutor segurado na R. acusava 1,397 g por litro, e portanto muito superior àquela legalmente permitida, a qual é, como se sabe, de 0,4 g/l, sendo que no caso essa taxa situava-se mesmo no mais alto dos escalões legalmente estabelecidos (cfr. artigo 81.º, nºs. 1, 2, e 6, alínea a), do CE), constituindo-se mesmo como ilícito criminal (cfr. artigo 292.º do CP).
26 – E ao fazê-lo a Ré violou, desde logo, o comando estradal do citado artigo 80.º, n.º 1, do CE, que proíbe a condução sob a influência de álcool.
27 – Comando esse que visa precisamente, além do mais, zelar pela segurança rodoviária, e particularmente de todos aqueles cidadãos que circulam nas vias públicas, sabido que são os efeitos nocivos do álcool, sobretudo a acima da taxa legalmente permitida. Na verdade, está cientificamente comprovado que a ingestão de álcool diminui, na exata medida do crescendo do seu teor, a capacidade de reação e de concentração, assim como a capacidade motora e sensorial, nomeadamente a visual, provocando, uma demora na reação aos estímulos, donde influir, nessa medida, na atividade da condução de veículos, dado diminuir (adequadamente) a aptidão de quem conduz esses veículos.
28 – Desse modo, dado o elevado teor da taxa de álcool com que então circulava o condutor segurado na Ré.
29 – Imprevidência/negligência essa causada pelo elevado teor de álcool com que a ré circulava, que lhe terá retirado a necessária clarividência para evitar o acidente, assim, a ele dando causa (não sabemos se de forma exclusiva ou em concorrência de culpas com o condutor do outro veículo).
30 – Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do artigo 662.º. Os danos alegados pelos Recorrentes são compatíveis com o sinistro que se discute nos presentes autos.
31 – Nessa conformidade o Tribunal deveria ter considerado essa matéria como provada para proferir a decisão final, sendo essencial que se pronunciasse sobre a mesma, para proferir uma decisão conscienciosa, porque a tanto o Tribunal esta obrigado.
32 – Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do artigo 662.º.
33 – Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal A Quo incorreu em violação do artigos 640.º, 662.º do C.P.C..
34 – Ao não ter decido assim, violou o Mmº Juiz A quo o douto entendimento dos artigos 466.º, 640.º, 662.º do C.P.C., artigos 23.º, 24.º, 25.º, 27.º, 61.º, 81.º, nºs. 1, 2, e 6, alínea a) e 145.º do CE e artigos 389.º, 391.º e 396.º, 483.º, n.º 1, 503.º, 563.º do Código Civil.
Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido integral provimento ao recurso interposto e revogada a douta sentença, nos termos supra expendidos, assim se fazendo, tão somente, a habitual e sã».
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Foi apresentada resposta que defendeu que se devia manter a decisão recorrida.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro:
a) na fixação da matéria de facto.
b) na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados, quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil e da atribuição dos montantes indemnizatórios.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Após o julgamento e discussão da causa, com interesse para a decisão, provaram-se os seguintes factos:
1. No dia 18 de Novembro de 2018, pelas 18h45, (…) e (…) foram intervenientes num acidente de viação na Rua do (…), no sentido (…) – (…), em Silves.
2. O veículo ligeiro de passageiros da marca (…), com matrícula alemã (…), pertence ao Autor e era por si conduzido no dia e hora referido em 1.
3. À data do acidente a responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido com o veículo de matrícula (…) encontrava-se transferida para a Ré e garantida através da apólice n.º (…).
4. No referido dia e hora chovia e já tinha anoitecido.
5. A via no local onde ocorreu o embate configura uma reta, constituída por duas faixas de rodagem, atento o sentido de marcha dos veículos.
6. A faixa de rodagem tem 8,00 metros de largura e é ladeada por bermas pavimentadas.
7. A velocidade máxima permitida no local do acidente é de 50 km/h.
8. O Autor tinha o veículo (…) estacionado na berma, em frente ao (…), na Rua do (…), em Silves e pretendia ingressar no sentido rotunda do (…) – rotunda da (…).
9. Com o intuito de sair do local o Autor ligou o seu veículo e iniciou a sua marcha a fim de inverter a marcha para a sua esquerda e entrar na Rua do (…) e passar para a faixa de rodagem em direcção à Rotunda (…).
10. O veículo ligeiro de passageiros (…), segurado pela Ré, e conduzido por (…), circulava na Rua do (…), no sentido Rotunda (…) – Rotunda do (…).
11. Devido à chuva o Autor não se apercebeu da aproximação do veículo segurado na Ré.
12. Apesar da travagem feita pelo (…), a mesma revelou-se insuficiente, tendo o (…) embatido com o seu lado direito dianteiro no lado esquerdo dianteiro do (…).
13. Foi efectuado pelas autoridades competentes, um teste de pesquisa de álcool no ar expirado, tendo o Autor acusado uma TAS de 0,0g/l.
14. O teste de pesquisa de álcool realizado ao condutor do veículo segurado na Ré acusou uma TAS de pelo menos 1,397g/l (deduzido o erro máximo admissível), correspondendo a uma TAS de 1,47g/l registada.
15. O veículo (…) foi considerado pela Ré perda total.
16. O Autor comunicou os danos sofridos à (…) com o n.º de reclamação (…), em 19 de Novembro de 2018.
17. O Autor suportou as despesas de obtenção da certidão da participação de acidente de viação da GNR no montante de € 88,36.
18. O Autor, por intermédio do seu representante legal e através de carta datada de 6 de Junho de 2019, pediu à Ré que indemnizasse o Autor até 15 de Junho de 2019.
19. Através de email datado de 7 de Junho de 2019, a Ré comunicou ao Autor que não se responsabilizava pelos alegados dados.
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3.2 – Matéria de facto não provada:
Da discussão da causa e com relevância para a decisão da mesma não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente não se provou:
a) No dia e hora referidos em 1 a iluminação pública da Rua do (…) ainda não estava ligada.
b) O Autor acendeu as luzes.
c) O Autor certificou-se, olhando (para a sua esquerda por pretender virar para esse lado) por cima do ombro esquerdo, para se certificar de que nenhum veículo se aproximava desse mesmo lado.
d) o Autor verificou que nenhum veículo circulava no mesmo sentido de marcha que pretendia empreender.
e) O veículo (…) não era visível para os outros condutores da via, uma vez que conduzia sem luzes acesas e para além disso com velocidade superior aos 50 km/h permitidos no local.
f) Foi só depois da colisão que o (…) acendeu as luzes do seu carro, tendo depois saído do veículo e agarrou-se à frente do mesmo, cambaleando e exalando um forte cheiro a álcool.
g) O veículo (…) foi fabricado no ano de 1996, tendo sido remodelado pouco tempo antes do acidente e sido completamente recuperado.
h) (…) tinha sido modernizado com um sistema de gás GPL e equipado com bancos ortopédicos aquecidos.
i) (…) recebeu extras especiais tais como um sistema Alpine CD de 12 velocidades, uma transmissão automática, um sistema Euro2 retrofit, equipamento em pele e madeira, um tecto de abrir electrónico, pneus de alumínio de 6 velocidades, AHK, monitorização da pressão dos pneus, uma Câmara Dash e vista traseira, dois sistemas de navegação da Garmin e Tomtom, bem como um sistema hidráulico e controlo de nível.
j) O valor do carro ascendia a € 7.000,00.
k) Os custos da desmontagem e nova montagem do equipamento de gás GPL ascenderam a € 1.200,00.
l) O Autor ficou impedido de utilizar o único veículo de que dispunha para as suas deslocações profissionais e de lazer e do seu agregado familiar e para idas ao médico, ao banco e ao mercado desde 18 de Novembro de 2018 até 20 de Janeiro de 2021.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Modificação da matéria de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de Primeira Instância que deu como provados (e não provados) certos factos pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto «não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)»[1].
A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference –, ou seja, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.
O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, posto que, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão e as provas produzidas, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[2].
A jurisprudência mais avalizada firma o entendimento que a «prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, há-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido»[3].
Neste enquadramento jurídico-existencial, a credibilidade concreta de um meio individualizado de prova tem subjacente a aplicação de máximas de experiência comum que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade[4].
Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações de parte, a prova testemunhal e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia[5].
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O Autor pretende a alteração das respostas negativas aos factos identificados nas alíneas a)[6], b)[7], c)[8], d)[9], e)[10], f)[11] e g)[12], pretendendo que a referida matéria passe a integrar o rol dos factos provados. Fundamenta a sua discordância nas declarações de parte tomadas ao Autor e no testemunho de (…).
Neste particular, é incontroverso que o apelante tem o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, tanto no desdizer da opção tomada pelo Tribunal recorrido, como no patentear que a prova existente nos autos conduz a outra versão dos factos.
De acordo com Abrantes Geraldes deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo Tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorrecto de hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos[13].
A Meritíssima Juíza de Direito deixou consignado que «os factos não provados resultaram de nenhuma prova convincente ter sido produzida em audiência a respeito desta matéria, sendo que os depoimentos prestados em audiência e os documentos juntos aos autos, mostraram-se insuficientes para formar uma convicção segura a este respeito».
Todavia, a respeito da dinâmica do acidente, a motivação da decisão de facto contém ainda outros elementos pertinentes para a formulação do juízo de culpa que foi imputado ao próprio Autor. Com efeito, está escrito na fundamentação que «(…), militar da GNR que participou o acidente, referiu que se tratou de uma colisão entre duas viaturas, uma a circular na via e outra a sair do estacionamento para inverter a marcha, sendo que esta colidiu na que [] circulava na via».
No que se reporta ao convocado testemunho de (…), a decisão recorrida afirma que esta «referiu que estava no carro dela quando se deu o embate, não tendo saído do mesmo, uma vez que estava a chover. Mais referiu que o veículo do Autor estava aparcado junto ao seu, não tendo visto o embate, ouvindo apenas o barulho».
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O recorrente advoga que o testemunho de (…) se pautou pela contextualização assertiva e genuinidade e que o mesmo foi detalhado.
Da audição integral do seu depoimento resulta que o mesmo é sério e isento, revelando conhecimento das circunstâncias de tempo e de lugar em que ocorreu o acidente em apreciação nos autos. A testemunha reconheceu que não saiu do carro por causa da chuva, não se recorda se a iluminação pública estava ligada (mas acredita que sim), não consegui ver o embate (o carro do Autor a sair retirou a visão da estrada) e apenas ouviu o barulho e não se recordava de um conjunto de pormenores relacionados com o acidente, mas teve consciência dos danos sofridos pela viatura do Autor.
Existe assim uma total concordância entre aquilo que ficou vertido na justificação de facto e o conteúdo da prestação probatória da referida testemunha, não tendo assim o seu testemunho a susceptibilidade de alterar a decisão de facto.
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O Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil). No capítulo das declarações de parte dos legais representantes é de atender à natureza supletiva[14] e as cautelas que doutrinal[15] [16] [17] [18] e jurisprudencialmente[19] são enumeradas a este propósito, face à existência de um interesse próprio, directo e imediato na resolução da causa. Neste enquadramento, somos adeptos da tese que admite a validade da prova por declarações de parte quando a mesma se reporta essencialmente a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes»[20] [21].
Ao reconhecer os problemas associados à fiabilidade deste meio de prova, a nível doutrinal e jurisprudencial foi construída uma linha de actuação que se baseia na ideia que inexistindo outros meios de prova que minimamente corroborem a versão da parte, a mesma não devia ser valorada, sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório, evitando que as acções se decidam apenas com base nas declarações das próprias partes[22] [23] [24].
No entanto, pese embora as especificidades das declarações de parte e as cautelas anteriormente anunciadas, entendemos que as declarações de parte podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente[25], no contexto atrás referenciado de apuramento de acontecimentos do foro privado ou pessoal, como sucede neste caso.
Recorde-se que na versão apurada pelo Tribunal [factos 8 a 12] o Autor tinha o veículo KR estacionado na berma, em frente ao (…), e pretendia ingressar numa via de acesso à rotunda ali existente. E, assim, com o intuito de sair do local, o Autor iniciou a sua marcha a fim de inverter a marcha para a sua esquerda e passar para a faixa de rodagem em direcção à Rotunda (…). Neste momento, a viatura conduzida por (…) já circulava na Rua do (…), mas devido à chuva o Autor não se apercebeu da aproximação do veículo segurado na Ré. E, apesar da travagem feita pelo (…), o embate foi inevitável.
Na sua construção, o Autor diz que tomou as precauções necessárias para iniciar a marcha e que o outro veículo seguia a velocidade excessiva e com as luzes apagadas, o que motivou o embate.
Tendo a Relação reapreciado meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento[26] [27].
Neste caso, a versão do Tribunal a quo e a proposta de modificação não são verdadeiramente contraditórias ou auto-excludentes e, por conseguinte, o Autor deveria ter impugnado também a versão inscrita na matéria de facto provada, a qual é prejudicial aos seus interesses processuais. Por outras palavras, a prevalência da tese propugnada pelo Autor não eliminaria aquilo que se apurou na Primeira Instância quanto ao modo de entrada na rotunda e à causa ali impressa.
Na verdade, no plano ontológico, é possível que um condutor circule desatento e o outro possa circular em excesso de velocidade e sem luzes accionadas. Porém, caso se alterasse a decisão no sentido pretendido, ainda assim por via da manutenção do acervo factual constante dos pontos 8 a 12 dos factos provados, mesmo que se comprovasse toda a proposta da parte activa, continuaria a existir culpa do Autor e, a final, neste cenário hipotético, estar-se-ia perante uma eventual situação de concorrência de culpas.
Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela Primeira Instância, em observância da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova[28] [29].
Neste campo específico, as declarações de parte tomadas ao Autor não impressionaram e, ao longo deste depoimento, também se reconhecem sinais de algum pendor proteccionista dos seus interesses particulares e algumas incoerências de discurso que não permitem justificar cabalmente o modo como se deu o choque entre as viaturas.
E, em contraponto, na sua essência, a descrição do acidente resulta do depoimento do guarda da GNR (…), que elaborou o Auto de Participação do Acidente de Viação e que, a partir dessas duas fontes probatórias, foi possível concluir que o Autor, com o intuito de inverter a marcha para a sua esquerda, não preveniu os possíveis perigos dessa manobra, não verificando se então alguma viatura circulava. E esta falta de diligência provocou a colisão entre os dois veículos, não estando o acidente, na perspectiva factual, associado com o consumo de álcool por parte do condutor do automóvel com matrícula portuguesa.
É impressivo este testemunho quando relata que: o veículo de matrícula portuguesa circulava na via naturalmente, independentemente da taxa de álcool do seu condutor ou não e o veículo de matrícula alemã, pela trajectória, não ia seguir em direcção à rotunda do Encalhe, ia para inverter a marcha, ao tentar inverter a marcha foi colidir na outra que circulava na via.
Neste capítulo, existiram incoerências ou inconsistências nas declarações do Autor e, certamente, influenciada pela fragilidade da prova, da audição do suporte magnetofónico resulta que a Meritíssima Juíza de Direito denotou preocupação com a evolução da produção de prova e tentou obter novos elementos relacionados com a dinâmica do acidente. Na verdade, de forma recorrente, no decurso do julgamento, em particular aquando do testemunho tomado a (…), empenhou-se em obter informação sobre a identidade da pessoa que, conhecedora do idioma nacional (…), terá entabulado conversa com as autoridades policiais que se deslocaram ao local e, de igual forma, procurou apurar quem eram os sujeitos que viajavam nos veículos que se encontravam a acompanhar o Autor naquela deslocação.
A nosso ver, subjacente a esta curiosidade estava a perspectiva de accionar o disposto no artigo 526.º[30] do Código de Processo Civil, a fim de conseguir uma compreensão mais sólida dos aspectos relacionados com a produção do acidente e com a imputação do resultado ocorrido aos intervenientes no evento estradal.
Efectivamente, do confronto entre as declarações de parte e os indícios referidos pelo agente de autoridade nas suas declarações, designadamente o posicionamento das viaturas após o embate, levam este Tribunal da Relação de Évora a sufragar o entendimento perfilhado pelo Juízo de Competência Genérica de Silves.
A matéria relacionada com o estado de conservação e melhoramento introduzido no automóvel do Autor foi conflituante com os relatórios de peritagem da (…) Consulting e com o testemunho tomado ao gestor da companhia, (…) e, pelo contrário, apurou-se que a viatura do recorrente apresentava sinais de mau estado de conservação.
E, deste modo, por força das regras atinentes à distribuição do ónus da prova, face ao accionamento da disciplina inscrita nos artigos 342.º[31] do Código Civil e 414.º[32] do Código de Processo Civil, a referida demonstração não foi perfectibilizada.
Sopesados todos os argumentos esgrimidos pelas partes e a interpretação da audição de todo o suporte magnetofónico gravado e a demais prova presente nos autos, a Meritíssima Juíza de Direito estava legitimada a decidir nos termos em que o fez.
O aqui relator vem pugnando a alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova[33]. E esse lapso não existe, face à dinâmica da prova e ao confronto valorativo entre as fontes probatórias.
Em síntese, de harmonia com os melhores contributos doutrinais e jurisprudenciais a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição da prova gravada e à análise da restante prova, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os contributos probatórios impõem decisão diversa.
Deste modo, julga-se improcedente a impugnação promovida pela parte recorrente e é com base na factualidade inscrita na decisão recorrida que será realizada a operação de subsunção dos factos ao direito.
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4.2 – Da responsabilidade pela produção do acidente:
Após ter enunciado os pressuposto da responsabilidade civil por factos ilícitos, definido o conceito de dano e tratado o tema do nexo de causalidade com acerto, recorrendo ao texto da lei e a contributos doutrinais e jurisprudenciais, o julgador «a quo» afasta um cenário de culpa na produção do acidente por parte do condutor cuja responsabilidade civil se achava transferida, por via do seguro, para a Ré, sublinhando foi o Autor que violou os artigos 12.º, n.º 1[34], e 31.º, n.º 1, alínea a)[35], ambos do Código da Estrada.
Foi o Autor que, com o intuito de inverter a sua marcha para a esquerda, não foi diligente, não se tendo apercebido da presença do veículo seguro na Ré, que aí circulava, tendo embatido na outra viatura.
Quanto ao comportamento estradal do condutor do veículo cuja responsabilidade civil se achava transferida para a Ré, como se pode retirar da sentença recorrida «não se provou a que velocidade circulava, como também não se provaram quaisquer factos que permitam inferir que a velocidade que imprimia ao seu veículo era superior a 50km/h». De igual modo, não existe qualquer dado que permita «inferir que o condutor do veículo (…) circulava com as luzes desligadas».
E, em acréscimo, a circunstância do condutor do veículo cuja responsabilidade civil se encontrava transferida circular com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida não permite assacar a este a responsabilidade pela produção do evento, à míngua de qualquer factualidade que indicie uma relação de causalidade entre aquele consumo e o resultado ocorrido.
Neste enquadramento, não merece qualquer censura a afirmação que competia ao Autor provar a responsabilidade do condutor (…), e não tendo tal prova sido efectuada, não é possível imputar ao condutor de tal veículo o desrespeito pelos artigos 25.º, 27.º, 61.º e 145.º do Código da Estrada.
A conclusão que não estavam reunidos os pressupostos dos artigos 483.º e 503.º do Código Civil para efeito da imputação do incidente a título de culpa ou de risco não foi infirmada pela produção de prova e a alteração do veredicto implicava que fosse viabilizada a modificação da matéria de facto nos termos pretendidos.
Nesta ordem de ideias, resta julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se assim a decisão recorrida.
A terminar, dito de passagem, caso se demonstrasse a culpa do condutor do veículo seguro na Ré, ainda que se ficcionasse o preenchimento de todos os pressuposta da responsabilidade civil, a indemnização a arbitrar seria meramente residual, dado que não se comprovaram os factos relativos à privação de uso de veículo [facto não provado l)], assim como aqueles que estão relacionados com a transformação e a melhoria do veículo do Autor [alíneas g), h), i) e k) dos factos não provados]. E, para além disto, a prova do valor do automóvel [al. j) dos factos não provados] também não foi realizada. Na realidade, nenhum destes pontos não provados foi colocado em causa no presente recurso e o único valor líquido apurado é o que está relacionado com o custo de uma certidão [ponto 17) dos factos provados].
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V – Sumário: (…)

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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante, ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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Processei e revi.
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Évora, 11/01/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Anabela Luna de Carvalho
Eduarda Branquinho

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[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra, pág. 191.
[2] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 435-436.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência de 21/06/2016, in www.dgsi.pt.
[4] Sobre esta matéria ver, em sentido próximo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2016, in www.dgsi.pt, que realça que «a prova dos factos assenta na certeza subjectiva da sua realidade, ou seja, no elevado grau de probabilidade de verificação daquele, suficiente para as necessidades práticas da vida, distinguindo-se da verosimilhança que assenta na simples probabilidade da sua verificação».
[5] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal. Noções de Psicologia do Testemunho, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 413.
[6] (a) No dia e hora referidos em 1 a iluminação pública da Rua do (…) ainda não estava ligada.
[7] (b) O Autor acendeu as luzes.
[8] (c) O Autor certificou-se, olhando (para a sua esquerda por pretender virar para esse lado) por cima do ombro esquerdo, para se certificar de que nenhum veículo se aproximava desse mesmo lado.
[9] (d) O Autor verificou que nenhum veículo circulava no mesmo sentido de marcha que pretendia empreender.
[10] (e) O veículo (…) não era visível para os outros condutores da via, uma vez que conduzia sem luzes acesas e para além disso com velocidade superior aos 50 km/h permitidos no local.
[11] (f) Foi só depois da colisão que o (…) acendeu as luzes do seu carro, tendo depois saído do veículo e agarrou-se á frente do mesmo, cambaleando e exalando um forte cheiro a álcool.
[12] (g) O veículo (…) foi fabricado no ano de 1996, tendo sido remodelado pouco tempo antes do acidente e sido completamente recuperado.
[13] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1.º a 702.º), 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 831.
[14] Paulo Pimenta, Processo Civil, Declarativo, Almedina, 2014, pág. 357.
[15] Para José Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 278, «a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime as partes tiverem sido efectivamente ouvidas».
[16] Elisabeth Fernandez, «Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)coerência do Sistema Processual a este propósito», Julgar Especial, Prova difícil, 2014, pág. 27, pugna que, até à entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela lei n.º 41/2013, de 26/06, as razões determinantes da rejeição deste meio de prova assentavam no «receio de perjúrio; as partes têm um interesse no resultado da acção e podem ser tentadas a dar um testemunho desonesto e finalmente mesmo que as mesmas não sejam desonestas, estudos psicológicos demonstram que as pessoas têm uma maior tendência a recordar factos favoráveis do que factos desfavoráveis pelo que o depoimento delas como testemunhas nos processos em que são partes não é, por essa razão de índole psicológica, fidedigno».
[17] As Malquistas declarações de parte – “Não acredito na parte porque é parte”, em Colóquio organizado no Supremo Tribunal de Justiça, estudo disponível na página web do STJ e ainda em www.trp.pt/.../as%20malquistas%20declaraes%20de%20parte_juizdireito%20luis%20f... A sobredita visão pessimista sobre a fiabilidade do meio de prova é rebatida por Luís Filipe Sousa que defende que «(ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas de hierarquizá-los diversamente».
[18] Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, pág. 56, estudo editado na internet em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28630/.../Declaracoes%20de%20parte.pdf, nesta discórdia valorativa sobre a fiabilidade do meio de prova, diz que aquilo que é relevante é que o juiz análise «o discurso da mesma tendo sempre presente a máxima da experiência que dita a escassa fiabilidade do mesmo quanto às afirmações que a esta são favoráveis».
[19] De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/04/2014, in www.dgsi.pt. este inovador meio de prova, dirige-se primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorridas na presença das partes.
[20] Remédio Marques, «A aquisição e a Valoração Probatória dos Factos (Des)Favoráveis ao Depoente ou à Parte», Julgar, Jan-Abril, 2012, n.º 16, pág. 168.
[21] Ou, seguindo a formulação de Elisabeth Fernandez, «Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)coerência do Sistema Processual a este propósito», Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, pág. 37, o recurso a meio de prova é admissível quando se destina a apurar «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percepcionados por terceiros de forma directa»
[22] Remédio Marques, A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou a parte chamada a prestar informações ou esclarecimentos, Caderno II – O novo Processo Civil – Contributos da Doutrina no decurso do processo legislativo designadamente á luz do Anteprojecto e da Proposta de Lei n.º 133/XII, Centro de Estudos Judiciários, pág. 92.
[23] Idêntico posicionamento prático é defendido pelos juízes de Direito Paula Faria e Ana Luísa Loureiro, em Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2ª edição, pág. 395.
[24] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15/09/2014 e 20/11/2014, in www.dgsi.pt.
[25] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/04/2017, in www.dgsi.pt, que sublinha que:
«I – No que tange à função e valoração das declarações de parte, existem três teses essenciais: (i) tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da auto-suficiência das declarações de parte.
II – Para a primeira tese, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.
III – A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
IV – Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma auto-suficiente.
V – É infundada e incorrecta a postura que degrada – prematuramente – o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.
VI – É expectável que as declarações de parte primem pela coerência e pela presença de detalhes oportunistas a seu favor (autojustificação) pelo que tais características devem ser secundarizadas.
VII – Na valoração das declarações de partes, assumem especial acutilância os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas; produção inestruturada; descrição de cadeias de interacções; reprodução de conversações; existência de correcções espontâneas; segurança/assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reacção da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade
[26] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração. Artigos 1.º a 702.º), 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2023, pág. 858.
[27] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29/04/2021, de 08/04/2021 e 07/11/2019, cuja leitura pode ser realizada em www.dgsi.pt.
[28] José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, pág. 174.
[29] Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da matéria de facto, in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 609.
[30] Artigo 526.º (Inquirição por iniciativa do tribunal)
1 - Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.
2 - O depoimento só se realiza depois de decorridos cinco dias, se alguma das partes requerer a fixação de prazo para a inquirição.
[31] Artigo 342.º (Ónus da prova):
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
[32] Artigo 414.º (Princípio a observar em casos de dúvida):
A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
[33] Por todos podem ser consultados os acórdãos de 30/01/2020, 13/02/2020, 04/06/2020, 08/10/2020, 03/12/2020, 13/05/2021, 30/06/2021 e 28/10/2021, entre muitos outros disponíveis na plataforma www.dgsi.pt.
[34] Artigo 12.º (Início de marcha):
1 - Os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.
2 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300.
[35] Artigo 31.º (Cedência de passagem em certas vias ou troços):
1 - Deve sempre ceder a passagem o condutor:
a) Que saia de um parque de estacionamento, de uma zona de abastecimento de combustível ou de qualquer prédio ou caminho particular;
b) Que entre numa autoestrada ou numa via reservada a automóveis e motociclos, pelos respetivos ramais de acesso;
c) Que entre numa rotunda.
2 - Todo o condutor é obrigado a ceder a passagem aos veículos que saiam de uma passagem de nível.
3 - Quem infringir o disposto no n.º 1 é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600, salvo se se tratar do disposto na alínea b), caso em que a coima é de (euro) 250 a (euro) 1250.
4 - Quem infringir o disposto no n.º 2 é sancionado com coima de (euro) 250 a (euro) 1250.