Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1/21.5T8ALR.E1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO AUTOMÓVEL
RISCO ESPECÍFICO
INCÊNDIO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- O incêndio é risco próprio de um veículo, mesmo parado.
II- Ao beneficiário do seguro apenas lhe cabe alegar e provar a ocorrência do incêndio, por esse ser o facto constitutivo do seu direito de ser indemnizado nos termos da cobertura do contrato de seguro celebrado (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), não impendendo sobre si o ónus de provar a causa/origem do incêndio.
III- Por sua vez, compete à seguradora, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela Autora. No caso, alegar e provar que o incêndio da viatura proveio de causa alheia ao normal funcionamento da mesma ou por culpa do tomador do seguro ou de terceiro, ou seja, que não foi acidental.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
MTNI – MUDANÇAS E TRANSPORTES NACIONAIS E INTERNACIONAIS E SERVIÇOS LOGÍSTICOS UNIPESSOAL, LDA. intentou ação de processo comum contra CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação da Ré no pagamento de €12.923,68, acrescidos dos juros vincendos, à taxa aplicável aos juros comerciais, até integral e efetivo pagamento.
Para tanto, alega, em síntese, que a Ré celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com AA, com cobertura de danos próprios (a qual incluía o risco de incêndio), mediante o qual aquela assumiu a responsabilidade civil decorrente do veículo de matrícula ..-ZR-...
O veículo foi comprado pelo tomador do seguro à Autora, reservando-se esta a propriedade do veículo até pagamento integral.
Acrescenta que, no dia 10-07-2020, o veículo segurado incendiou-se quando estava parqueado na cidade de Almeirim, sinistro que logo foi comunicado à Ré.
Inicialmente a Ré informou que o montante máximo da indemnização seria de €13.975,00; posteriormente, comunicou-lhe que declinava a responsabilidade.
Sustenta, assim, que a Ré assumiu expressamente a cobertura de incêndio, tal como consta da apólice, e o pagamento de indemnização a terceiro lesado, tendo cobrado os respetivos prémios.
Mais alega que, como beneficiária da indemnização (uma vez que o tomador do seguro não lhe pagou a totalidade do preço), tem direito a ser ressarcida pela perda total do veículo.

Contestou a Ré aceitando a celebração do contrato de seguro, com cobertura de incêndio, raio e/ou explosão, afirmando que participado o sinistro, iniciou os habituais procedimentos de averiguação por forma a aferir da sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos causados, tendo vindo a concluir pela recusa de responsabilidade.
Mais alega que há discrepâncias nas declarações do tomador do seguro e que a descrição dos factos não é convincente, concluindo que o sinistro não ocorreu nos termos em que a Autora o descreve ou que o tomador do seguro participou à Ré, sustentando que a ocorrência do mesmo não terá tido um carácter súbito, imprevisto e aleatório, características de um normal sinistro.

Após ter sido elaborado despacho saneador e fixada a matéria de facto, procedeu-se a julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Inconformada, apelou a Autora impugnando a decisão de facto e pedindo a revogação da sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES.
«1ª – A apelante entende que a matéria de facto provada e não provada padece de erro na sua apreciação, pois, a prova gravada e a documental – relatório da GNR e dos peritos averiguadores - impõem decisão diversa quanto aos pontos de facto seguidamente indicados;
2ª – No que se refere ao ponto 12 da decisão de facto, nesta entendeu-se que “O veículo automóvel identificado em 1. Tinha à data da venda e da celebração do contrato de seguro um valor de mercado inferior a € 14.000,00.”
3ª – Contudo, na apreciação deste preciso ponto de facto, omitiu-se qualquer referência ao depoimento da testemunha AA, indicado por ambas as partes, cuja depoimento consta do registo áudio 20220517102516_2930766_2871741, minuto 26,30;
4ª – Em que a referida testemunha, a instâncias do ilustre mandatário da apelada, sobre se teria consultado o mercado, o mesmo respondeu “Sim, consultei, andei a ver por aí nalguns stands”;
5ª – E se achava o preço da viatura que adquiriu à apelante ajustado, a mesma respondeu “que estava de bom preço”;
6ª – E ainda se tinha visto viaturas semelhantes, a mesma respondeu;
vi outros modelos e os preços oscilavam entre os € 14000,00 e 15000,00”, minuto 27;
7ª – E por último, perguntado sobre a respetiva motorização, a mesma disse “entre 1600 e 1900”;
8ª – O acima referido valor, foi aquele que o segurado comunicou à apelante, e que a mesma aceitou e estabeleceu o prémio;
9ª – Alegação que por parte da apelante, constitui um autêntico venire contra factum proprium;
10ª – Pelo que, a decisão de facto no que respeita a este ponto deve merecer a respetiva alteração e ficar assente que o valor da viatura, à data da sua aquisição e celebração do contrato de seguro, era de € 14000,00 (catorze mil euros);
11ª – Outrossim, no que tange ao ponto i, da matéria de facto não provada, deu-se como não provado que; “O veículo nas circunstâncias de tempo descritas em 4. Tenha começado a soluçar, com o sinal de reserva de combustível ligado, tendo AA dirigido até às Bombas Ouro Negro, que se encontravam fechadas, após o que veículo parou na Rua A da Zona Industrial de Almeirim, não mais ligando.”
12ª – No entanto, a mesma testemunha no depoimento, gravado no mesmo ponto da ata, ao minuto 03.53, depôs que “o carro começou a engasgar e tinha acendido a luz da reserva, e pensei que se calhar tem lixo no depósito, vou meter o correio na caixa e vou à Ouro Negro meter combustível (…)”;
13ª – As mencionadas declarações proferidas em audiência de discussão e julgamento, prestou-as a testemunha, quer à GNR, quando o ouviu em sede de inquérito criminal, quer aos srs. peritos averiguadores, cfr., os documentos juntos aos autos e não impugnados;
14ª – Daí que tal factualidade deveria ter sido dada como provada, em face das declarações da testemunha produzidas nas referidas diferentes circunstâncias e constantes dos documentos acima referidos;
15ª – Pelo que, quanto a este preciso ponto de facto dado como não provado, deverão Vs. as Ex. as alterar a decisão de facto e darem-no como provado;
16ª – Em face da matéria de facto provada e cuja alteração ora se pede, não podia a Mma. Juiz “a quo” entender que a autora nada alegou ou provou para provar a ocorrência naturalística ou furtuita e aleatória do risco coberto;
17ª – Na verdade, segundo as regras do ónus da prova, art. 342º do CCiv, cabe à autora provar o risco contratualmente assumido e que despoleta a consequência indemnizatória da responsabilidade da ré/apelada e a esta provar as circunstâncias impeditivas do direito daquela;
18ª – Mas, à autora cabe esse ónus da prova do risco compreendido na apólice, dúvidas não restam que a mesma o alegou e provou, pois, foi dado como provado o incêndio da viatura, risco coberto pela apólice;
19ª – Contudo, à apelada caberia alegar e provar os factos impeditivos do direito da apelante, a saber ou que o risco previsto não ocorreu, ou por hipótese que existiram circunstância intencionais que o precipitaram, o que não está previsto na apólice, que obstassem ao carácter furtuito e aleatório do evento propulsor do risco coberto, o que nem sequer vem alegado;
20ª – Pois, a apelada limitou-se a alegar um conjunto de insinuações e dúvidas sobre a conduta do segurado e do gerente da apelante, concluindo a sua peça processual contestatória pela existência de uma “presumível simulação de sinistro”;
21ª – Vai-se até ao ponto de, na sentença recorrida, se fazer menção sobre um spray que corroboraria o juízo de intencionalidade, o qual os peritos averiguadores logo descartaram;
22ª – Bem como o questionamento das garantias exigidas no negócio celebrado, assaz comuns no tipo negocial em causa;
23ª – Ou ainda a acidente ocorrido posteriormente entre o segurado e o gerente da apelante, cujas consequências a apelada nunca questionou;
24ª – Posto isto, na sentença recorrida não se observaram as regras da distribuição do ónus da prova, designadamente à autora cabia alegar e provar o risco e fê-lo, à ré alegar e provar os factos impeditivos do direito do mesmo, o que não logrou, muito menos que tivesse existido qualquer concluiu com intenção de a prejudicar, apenas se limitando a alegar insinuações e dúvidas sobre a conduta do segurado e do gerente da autora.
Termos em que, a Mma. Juiz “a quo” fez equivocada apreciação da matéria de facto, a qual deve ser alterada por Vs. Ex.as, bem como ofendeu as regras da distribuição do ónus da prova, a que se refere o art. 342º, do Código Civil, impondo à apelante um ónus que não lhe cabe e desonerando a apelada daquele a que lhe cabia, pelo que, sempre será de entender que a apelante logrou provar o risco previsto na cobertura complementar do contrato de seguro e a apelada não logrou fazer prova dos factos impeditivos do mesmo.»

A Ré respondeu ao recurso defendendo a improcedência da impugnação da decisão de facto e a confirmação da sentença recorrida.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Impugnação da decisão de facto;
- Violação das regras sobre ónus da prova.

B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
Factos Provados:
«1. A Autora importou e vendeu, a 01.04.2020, a AA um veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 308 1.6 BlueHDI Access, com a matrícula ..-ZR-.., tendo acordado o pagamento de 14.000,00€, que seria feito em prestações de 275,00€,
2. (…) encontrando-se o veículo registado a favor de AA desde 13.04.2020, bem como uma reserva sobre o veículo a favor da Autora da mesma data.
3. AA celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º ...25, relativo ao veículo automóvel descrito em 1. e que, incluía, além do mais, a cobertura:
- “Incendio, raio e/ou explosão” – sendo o valor seguro de 14.000,00€, com a franquia de 280.00€; e
- “Condição Particular 290 MULTI-ASSISTÊNCIA VIP” que garante, entre outros, “a falta de combustível”.
4. No dia 10 de julho de 2020, AA deslocou-se a Almeirim, conduzindo o veículo descrito em 1., sendo que pouco depois da meia noite, deixou-o na Rua A da Zona Industrial de Almeirim,
5. (…) tendo contactado BB, seu amigo e legal representante da Autora, para que lhe desse boleia.
6. Durante a noite, o veículo ardeu.
7. Dois dias depois, AA voltou a Almeirim, tendo apurado que o veículo foi consumido num incêndio.
8. AA comunicou a ocorrência do incêndio à Ré, no dia 13.07.2020.
9. A 10.07.2020, AA tinha pago três prestações,
10. (…) não tendo pago mais prestações desde essa data.
11. A estimativa do custo de reparação do veículo descrito em 1. é de 62.196,56€.
12. O veículo automóvel identificado em 1. tinha à data da venda e da celebração do contrato de seguro um valor de mercado inferior a 14.000,00€.
13. Por comunicação datada de 25 de novembro de 2020, a Ré comunicou à Autora que “as múltiplas diligências levadas a cabo com vista ao apuramento das circunstâncias em que ocorreu o evento participado foram apuradas incongruências que colocam em causa a sustentabilidade das declarações prestadas sobre esta ocorrência.
Não se revestindo, a factualidade transmitida de solidez suficiente que permita validá-la no âmbito das garantias da apólice, não poderá esta Seguradora responder pelos danos reclamados e outros subjacentes ao evento reclamado”.»
Factos Não Provados:
«Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente que:
i. O veículo, nas circunstâncias de tempo descritas em 4. tenha começado a soluçar, com o sinal da reserva de combustível ligado, tendo AA dirigido até às Bombas Ouro Negro, que se encontravam fechadas, após o que veículo parou na Rua A da Zona Industrial de Almeirim, não mais ligando.
ii. O incêndio tenha sido um evento fortuito e aleatório.»

C- Do conhecimento das questões colocadas no recurso
1. A Apelante impugna a decisão de facto em relação ao facto provado 12 e à factualidade não provada sob a alínea i), pedindo que a redação daquele ponto seja alterada nos termos infra mencionados e que a factualidade da alínea i) seja dada como provada.
Alega que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento em relação a essa factualidade e indica os meios de prova que, no seu entender, determinam a procedência da impugnação.
A reapreciação da decisão de facto encontra-se sujeita aos requisitos do artigo 640.º do CPC e aos poderes conferidos à Relação nos termos do artigo 662,º do CPC, em ordem à formação de uma convicção própria, de modo a sindicar a decisão de facto proferida no sentido de averiguar se ocorreram erros de julgamento ao nível da apreciação da factualidade controvertida e aplicação das regras de direito probatório.
É nesse pressuposto que se aprecia a presente impugnação.
Sendo que, contrariamente, ao defendido pela Apelada, o modo como se encontra impugnada a decisão de facto respeita minimamente os ónus impostos ao impugnante previstos no artigo 640.º do CPC.
Vejamos, então.
Facto provado 12: «O veículo automóvel identificado em 1. tinha à data da venda e da celebração do contrato de seguro um valor de mercado inferior a 14.000,00€.»
Pretende a Apelante que seja eliminada a referência a «valor de mercado inferior», ou seja, que se dê como provado que «O veículo automóvel identificado em 1. tinha à data da venda e da celebração do contrato de seguro um valor de mercado de 14.000,00€.»
Para o efeito invoca que não foi considerado o depoimento da testemunha AA, tomador do seguro, que, aquando da aquisição da viatura, consultou o mercado e que o valor de venda de veículos semelhantes era superior, ainda que os modelos fossem outros, e que a própria seguradora aceitou celebrar o contrato de seguro como tendo o veículo um valor de mercado de €14.000,00, apesar de agora vir contrariar esse entendimento num autêntico venire contra factum proprium.
Em relação a este ponto dos factos provados, a fundamentação da decisão de facto, a propósito da análise dos depoimentos das testemunhas CC (Coordenador da equipa de peritos averiguadores que elaborou o Relatório de Averiguação Completa junto aos autos) e DD (perito averiguador que subscreveu o dito Relatório de Averiguação) e no que concerne à conclusão tirada pelas mesmas sobre a sobrevalorização do veículo no contrato de seguro, escreveu o seguinte:
«Tal conclusão foi explicada, informando que foram efetuadas pesquisas em site da especialidade e que se encontram juntas com a contestação, de onde é possível verificar veículos semelhantes (não podendo, obviamente, ter exatamente as mesmas características e uso em termos de quilometragem, mas por aproximação), do mesmo ano que o veículo em causa e alguns com menos quilómetros (tendo por referência a quilometragem indicado no certificado de inspeção de 28.11.2019), encontram-se à venda por cerca de 10.000,00€/11.000,00€. Junto com o relatório de perda total encontra-se ainda uma avaliação do valor do mercado por recurso às tabelas do Eurotax, que também indica um valor próximo dos 11.000,00€.
Cremos, assim, que a Ré conseguiu fazer prova suficiente de que o veículo seguro tinha um valor de comercial (isto é, o valor pelo qual em condições normais de mercado em que opera a seguradora seria possível adquirir veículos com as mesmas características e uso), à data da celebração do contrato de seguro, inferior ao valor de 14.000,00€ (fixado como capital seguro).»
Analisando, agora, o acervo probatório sobre a questão do valor comercial do veículo à data em que foi celebrado o contrato de seguro (abril de 2020), constata-se que a testemunha AA declarou no seu depoimento que atribuía ao veículo um valor comercial superior a €14.000,00, mas que o adquiriu por €14.000,00 (embora, incompreensivelmente, resulte do contrato de compra e venda da viatura que o valor total das prestações seja superior a esse montante), o que considerou um bom preço.
Não se estranha, assim, que testemunho de AA tenha sido, naturalmente, confirmativo do referido valor.
Todavia, também não se pode deixar de considerar que o depoimento é vago quanto refere que consultou alguns stands para aferir o preço de veículos do mesmo género e que obteve valores entre 14.000 e 15.000 euros, uma vez que não referiu quais os stands que consultou, a marca e a idade dos veículos a que reportam os referidos valores, fatores essenciais para aferir da fiabilidade da consulta que mencionou.
Donde decorre que este testemunho, por si só, não tem consistência suficiente para com base nele se estabelecer que o valor do veículo corresponde ao valor declarado pela testemunha.
Ademais, não se pode olvidar que sendo a testemunha o tomador do seguro e o comprador do veículo, tendo pago três prestações à data do sinistro, o seu depoimento tem de ser ponderado à luz do interesse que lhe advém do desfecho da ação.
Também se constata que no contrato de seguro a cobertura para o risco de incêndio (entre outros) é de €14.000.00, o que significa que a seguradora considerou que o veículo tinha esse valor pelo menos para efeitos de risco assegurado.
O facto de, no caso, a seguradora ter aceite celebrar o contrato de seguro pelo valor declarado pelo tomador do seguro (e nada indica que assim não tenha sido, ou seja, que a seguradora tenha exercido qualquer verificação sobre o valor declarado) e que, consequentemente, seja esse o valor do capital seguro para efeitos de indemnização do dano ao tempo do sinistro (cfr. artigos 128.º, 130.º, n.º 1 e 132.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16-04, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, doravante RJCS), não significa que daí resulte comprovado que esse seja efetivamente o valor comercial do veículo.
O facto que daí resulta provado é apenas que o capital seguro tem o montante de €14.000,00 e que a seguradora assumiu que o valor do interesse seguro atendível para cálculo da indemnização em caso de incêndio do veículo, tem desse valor, não sendo o mesmo manifestamente infundado (artigo 131.º, n.º 1, do RJCS).
Existe, porém, outra prova sobre o valor de mercado do veículo que não pode deixar de ser considerada.
Com a contestação foram juntos documentos que correspondem a pesquisas em sites da especialidade sobre veículos com caraterísticas semelhantes em termos de uso (quilometragem) e do mesmo ano que o veículo em causa nos autos, e que se encontravam à venda em setembro de 2020 por €10.250,00, €10.800,00 e €11.965,00.
Por outro lado, no Relatório de Averiguação Completa junto aos autos, consta o seguinte: «Efectuámos uma pesquisa pelo mercado de usados na internet (Standvirtual) e constatámos que viaturas importadas com características semelhantes ao VS estão a ser vendidas por profissionais com valores entre os 9.500€/10.000€.»
No Relatório da Perda Total, também junto com a contestação, encontra-se ainda uma avaliação do valor do mercado por recurso às tabelas do Eurotax, que também indica um valor de venda que não chega a €12.000,00 (sem IVA).
Na ponderação crítica destes elementos de prova, é inegável que estando em causa aferir o valor de mercado de um determinado veículo, as referidas consultas são um elemento a considerar, porquanto as mesmas refletem o valor que resulta da oferta e da procura de veículos usados com iguais ou semelhantes caraterísticas.
Ademais, é sabido que, não só os particulares interessados na compra como as seguradoras quando confrontadas com a necessidade de aferir do valor do veículo para efeitos de celebração do contrato de seguro ou de indemnização pela perda total, se socorrem desse tipo de sites e tabelas.
Assim sendo, ponderando criticamente a prova produzida, dela resulta que o veículo em causa tinha um valor de mercado inferior a €14.000,00, pelo que não nos merece qualquer reparo a factualidade provada que ficou a constar do ponto 12 dos factos provados, improcedendo a impugnação quanto à mesma.

Alínea i) dos factos não provados: «i. O veículo, nas circunstâncias de tempo descritas em 4. tenha começado a soluçar, com o sinal da reserva de combustível ligado, tendo AA dirigido até às Bombas Ouro Negro, que se encontravam fechadas, após o que veículo parou na Rua A da Zona Industrial de Almeirim, não mais ligando.»
Pretende a Apelante que esta matéria seja dada como provada, invocando para o efeito, e em suma, o testemunho de AA, as declarações que prestou perante a GNR e aos peritos averiguadores, tendo dito que o carro começou a engasgar e tinha acendido a luz da reserva, e pensei que se calhar tem lixo no depósito, vou meter o correio na caixa e vou à Ouro Negro meter combustível (…)”.
Na fundamentação da decisão de facto sobre esta matéria, este depoimento foi desconsiderado em termos probatórios, bem como as declarações do legal representante da Autora, confirmativas daquele, ao contrário do que sucedeu com a valoração dos depoimentos das testemunhas CC e DD.
As razões da desconsideração dos testemunhos supra referidos assenta, no essencial, na falta de explicações credíveis para o comportamento do tomador do seguro, porquanto no entender do tribunal a quo, secundando as conclusões dos peritos averiguadores, «Havia, pois, várias possibilidades na disponibilidade de AA e, ainda assim, este optou por deixar o veículo que tinha comprado há cerca de três meses e que ainda se encontrava a pagar a prestações, durante a madrugada numa zona sem movimento ou habitações nas redondezas.»
Em ordem a formar uma convicção própria e fundamentada com base na prova produzida, para além da análise da comunicação do tomador à seguradora por e-mail de 04-08-2020, da resposta da seguradora (primeiro, em 21-09-2020, a assumir a responsabilidade pelo evento e depois, em 25-11-2020, a negá-la, invocando genericamente «incongruências que colocam em causa a sustentabilidade das declarações prestadas sobre esta ocorrência»), do teor das declarações do tomador do seguro perante a GNR, em 01-10-2020, do teor das declarações do legal representante da Autora perante a GNR, em 20-10-2020, do teor do Relatório de Averiguação Completa datado de 09-11-2020, do teor do Relatório Perda Total datado de 18-09-2020, procedemos à audição da prova produzida em julgamento.
Da análise ponderada e global de toda a prova, adiantamos, desde já, que não se pode corroborar a análise da prova e as conclusões alcançadas pelo tribunal a quo.
Desde logo, não vislumbramos qualquer incongruência nas declarações prestadas pelo condutor do veículo e pelo legal representante da Autora em relação às circunstâncias que antecederam o evento relacionadas com a aquisição do veículo e realização do seguro, tendo sido dito de forma clara e sem razão para qualquer dúvida que o legal representante da Autora adquiriu o veículo, com mais dois no estrangeiro, para uso da sua empresa e que vendeu o veículo ..-ZR-.. a AA, seu amigo de infância, porque este queria comprar um veículo para uso pessoal por já ter um outro que usava no trabalho.
Combinaram o preço e forma de pagamento a prestações, reduziram o contrato a escrito com reserva de propriedade a favor da vendedora, e o legal representante da Autora para «garantia da empresa», como disse, exigiu que fosse celebrado um contrato de seguro «contra todos os riscos», que o comprador veio a celebrar com a ora Ré.
Antes do dia do evento em causa nos autos, o veículo teve um problema porque «não pegava» e foi para a oficina, tendo o legal representante da Autora assumido o pagamento do arranjo.
Quanto aos acontecimentos que antecederam o evento, a testemunha AA depôs sobre a razão de ter deixado o carro no sítio onde se incendiou.
E disse que o carro se «engasgou» e pensou que não tinha gasóleo pois o indicador da falta de combustível estava aceso. Passava já da meia noite. Dirigiu-se à bomba de gasolina onde normalmente metia combustível, dizendo que «era mais barato», mas que estava fechada. O carro andou mais uns metros e parou.
Telefonou ao amigo que o foi buscar.
Isto sucedeu na madrugada de quinta-feira para sexta-feira. Foi no sábado de manhã buscar o carro (não antes porque foi trabalhar para Lisboa) e já não o encontrou, verificando que o chão onde o tinha deixado «estava preto». Foi à GNR que o pôs a par do incêndio.
Por sua vez, em declarações de parte, o legal representante da Autora confirmou que AA o acordou e lhe pediu para o ir buscar porque o carro não andava. Não levou consigo gasóleo porque tal não lhe foi pedido e àquela hora as bombas estavam fechadas. Não chegou a ver o carro no local onde ficou parado porque AA já estava «a descer» a rua perto das bombas de gasolina. Soube do incêndio quando o amigo lhe disse.
Comparando o testemunho e depoimento com o teor das declarações prestadas perante a GNR e participação do sinistro à seguradora não vislumbramos qualquer incongruência ou falta de solidez, como menciona a Ré, que permita descredibilizá-los, sendo que a testemunha e o declarante em julgamento esclareceram todas as dúvidas que lhes foram colocadas sobre as razões porque agiram da forma descrita e não detetamos nas respostas qualquer hesitação, contradição ou incoerência.
Diga-se, ademais, que o Relatório de Averiguações entrou por considerações meramente especulativas e suspeições sem qualquer suporte fáctico sobre a alegada falta de coerência das razões que levaram ao incêndio do veículo.
A testemunha CC, responsável pela equipa de averiguadores, no seu depoimento, resumiu essas «questões estranhas», como disse, sobre a situação, elencando-as do seguinte modo:
(i) Razões para abandonar o veículo e o ter ido buscar só dois dias depois.
Esta dúvida ficou esclarecida de forma satisfatória quando a testemunha AA explicou a razão para ter ido àquela concreta bomba e ter ido buscar o carro apenas no sábado.
(ii) Relações que o tomador do seguro tinha com o vendedor do veículo.
Ficou patente que as pessoas em causa conhecem-se e são amigos desde a infância.
(iii) Sobrevalorização do veículo.
Efetivamente, em face da pesquisa de mercado que a seguradora levou a cabo depois do sinistro, o valor da venda que corresponde ao capital seguro, está acima do valor de mercado.
Só que a seguradora aceitou o valor. Não pode, coerentemente, a posteriori, quando é chamada a indemnizar um dano, questionar o valor quando antes aceitou e cobrou prémios em função desse valor. Aqui a haver falta de coerência, está do lado da seguradora.
(iv) Um mês antes o veículo teve uma avaria.
Não se percebe em que termos esta situação pode interferir com a lisura da conduta do segurado em relação aos acontecimentos que culminaram no incêndio do veículo.
(v) Posteriormente ao incêndio, o segurado ao volante de um outro veículo, sua propriedade, teve um acidente no qual interveio um veículo da Autora também seguro na Ré, tendo o legal representante da Autora assumido imediatamente a responsabilidade.
Este facto, só por si, nenhuma relevância tem para o caso dos autos, porque nenhuma relação de causa e efeito foi estabelecida entre os dois acontecimentos. Sendo que a Ré, também seguradora do veículo da Autora, não suscitou qualquer dúvida ou questão em sede própria que seria a discussão daquele sinistro, em relação à responsabilidade do seu segurado.
Em face de tudo o que vem sendo exposto, a prova produzida nos autos indicia de forma suficiente, sem dúvida de maior ou inultrapassável, que a factualidade da alínea i) dos factos não provados se encontra provada.
Nestes termos, procede a impugnação quanto a esta parte.
Consequentemente, elimina-se a alínea i) dos factos não provados que passando a constar dos factos provados.

2. Como se refere na sentença recorrida, a Autora intentou a presente ação de condenação, alegando que a Ré tem a obrigação de indemnizar os prejuízos resultantes da perda total do veículo, fruto do incêndio, que constitui a concretização de um dos riscos contratados na apólice n.º ...25, pelo que a situação se enquadra juridicamente no âmbito da responsabilidade civil contratual da seguradora perante o terceiro beneficiário, face à obrigação por ela assumida de indemnizar os prejuízos decorrentes do sinistro, nos termos previstos no RJCS, mormente no artigos 123.º e seguintes, definindo este preceito o seguro de danos como aquele que se reporta a coisas, bens materiais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.
Estabelece o artigo 128.º deste regime legal o princípio indemnizatório pelo segurador por referência ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, sendo determinada a prestação do segurador pelo valor do interesse do seguro ao tempo do sinistro (n.º 1 do artigo 130.º).
Por sua vez, os artigos 149.º a 151.º do RJCS contemplam o denominado seguro de incêndio como aquele que tem por objeto a cobertura dos danos causados pela ocorrência de incêndio do bem identificado no contrato (n.º 1 do artigo 149.º).
O artigo 150.º, n.º 1, regula o âmbito da cobertura do risco de incêndio prescrevendo que «A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por ação do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável».
E como se refere no preâmbulo do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril:
“A regulamentação do seguro de incêndio, atenta a previsão geral do seguro de danos, fica circunscrita ao âmbito e menções especiais na apólice.»
No caso em apreço, a cobertura do seguro abrangia o risco de incêndio, sendo o valor seguro de €14.000,00, com a franquia de €280.00.
A sentença recorrida analisou juridicamente as caraterísticas do contrato de seguro que não nos merecem melhor análise pelo que para ali remetemos.
Já em relação à questão do ónus da prova, não acompanhamos de todo o decidido na sentença recorrida.
Lê-se na sentença:
«(…) cabia [à Autora] alegar e demonstrar, em conformidade com as situações descritas nas cláusulas de cobertura do risco do contrato, a verificação de um evento futuro e incerto, de carácter fortuito e aleatório, que concretiza um risco abrangido pelo seguro, bem como os demais factos constitutivos do seu direito à indemnização.»
(…)
Ónus que a Autora não cumpriu.
Na verdade, resultou não provado que nas circunstâncias de tempo em que ocorreu o incêndio, o veículo tenha começado a soluçar, com o sinal da reserva de combustível ligado, tendo AA dirigido até às Bombas Ouro Negro, que se encontravam fechadas. Pouco depois, o que veículo parou na Rua A da Zona Industrial de Almeirim, não mais ligando. Resultou, igualmente, não provado que o incêndio tenha sido um evento fortuito e aleatório.
(…) no caso em apreço, nada se provou quando às circunstâncias em que ocorreu o sinistro (nomeadamente falha mecânica que pudesse conduzir ao deflagrar do fogo) de onde possa concluir-se por essa aparente aleatoriedade ou carácter fortuito do incêndio (pelo contrário, os factos instrumentais analisados na motivação de facto levam-nos à conclusão contrária).
Assim, temos de concluir pela não verificação de um sinistro coberto pela apólice de danos próprios – em concreto, um incêndio fortuito e aleatório. Com efeito, permanecendo a dúvida sobre a ocorrência do sinistro ou de que esse sinistro seja causa dos danos do veículo seguro, deve a ação ser resolvida contra si, nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil.
Neste sentido, não tendo a Autora satisfeito o ónus da prova que lhe competia, forçoso é concluir pela improcedência da ação e consequente absolvição da Ré do pedido.»
Ora, a análise que a sentença faz do ónus de prova a cargo da Autora não pode ser acolhida, porquanto ao beneficiário do seguro apenas lhe cabe alegar e provar a ocorrência do incêndio, por esse ser o facto constitutivo do seu direito de ser indemnizado nos termos da cobertura do contrato de seguro celebrado (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), não impendendo sobre si o ónus de provar a causa/origem do incêndio.
É evidente que o incêndio é a consequência de um processo causal que o precede. Mas esse iter não tem de ser provado pelo tomador do seguro.
Por sua vez, compete à seguradora, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pela Autora. No caso, alegar e provar que o incêndio da viatura proveio de causa alheia ao normal funcionamento da mesma ou por culpa do tomador do seguro ou de terceiro, ou seja, que não foi acidental.
Como se refere no Acórdão do STJ, de 19-10-2022[1]:
«Com efeito, não sendo o incêndio provocado de propósito, isto é, dolosamente, com o fito de obter essa finalidade danosa, acaba por merecer sempre o qualificativo de acidental, ainda que porventura o segurado estivesse em condições pessoais de o evitar se houvesse adoptado uma conduta muito mais previdente, zelosa e atenta, como lhe seria exigível e que descuidadamente não observou nem seguiu.»
Por outro lado, é consensual na jurisprudência que, em face das regras da experiência, o risco de um automóvel se incendiar (mesmo estacionado – cfr. artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil) se inscreve no círculo dos riscos próprios dos veículos enquanto máquinas perigosas e, assim, tidas pela lei.
Neste sentido, veja-se o que tem sido decidido em vários arestos que decidiram situações em que o veículo ou outros bens se incendiaram (quer na perspetiva de indemnização dos danos causados a terceiros quer ao próprio):

Acórdão do STJ, de 10-11-2022[2]:
«VI. Atendendo às regras de repartição do ónus da prova, cabe ao lesado alegar e provar a ocorrência do incêndio e os danos sofridos, como factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1, do C. Civil), recaindo sobre a seguradora a prova de que o incêndio não teria tido causa acidental, por se tratar se matéria impeditiva do direito invocado (art. 342.º, n.º 2, do mesmo Código).
VII. Assim, não se apurando a causa de um incêndio, deve a consequência da ausência de prova consistente funcionar contra quem tinha o ónus de demonstrar que o incêndio não foi acidental, ou seja, contra a seguradora.»

Acórdão da Relação do Porto, de 20-11-2014:
«I - O incêndio é risco próprio de um veículo parado.
II - Resultando destruído pelas chamas o estacionado ao seu lado, tal dano considera-se proveniente daquele risco, havendo lugar a responsabilidade objectiva, nos termos do artº 503º, nº 1, CC.
III - Ao autor lesado não é exigível a alegação e prova precisa e concreta da acção originariamente causadora do incêndio e da sua relação com um qualquer dos possíveis riscos específicos da máquina.
IV - Cabe ao demandado alegar e provar os factos excludentes de tal responsabilidade (artº 505, CC).»

Acórdão da Relação de Lisboa, de 07-02-2017[4]:
«À Autora cabia alegar e provar, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, que o veículo se incendiou.
Mas não tinha de alegar e provar a causa remota do incêndio.
Por sua vez, facto, cabia à Ré alegar e provar, para se exonerar da responsabilidade contratual emergente do contrato de seguro, os factos concretos que desligassem o conhecido incêndio dos riscos específicos do veículo e fossem integrantes de causa de exclusão daquela.
Como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 20.11.2014, relatado por José Amaral e inserido na referida base de dados, “as regras de repartição do ónus da prova, cujo lastro se encontra nas da experiência comum e da normalidade da vida e que modelam a sua concepção legal e aplicação jurisprudencial, para tal apontam: se um veículo estacionado na via pública se incendeia (por razões desconhecidas), o normal é que tal seja devido aos seus riscos próprios ou perigos específicos da máquina e que, portanto, a situação seja regulada pelas normas substantivas que prevêem tal evento; podendo, embora assim não ser, e, na sua origem, estar acção humana criminosa, competirá, então, a quem tal interessar, fazer a demonstração dessa realidade”.»
Lendo-se ainda neste acórdão da Relação de Lisboa, secundando o decidido no Acórdão da Relação do Porto de 20-11-2014, já citado, «(…) não é exigível ao autor que descubra, alegue e prove a razão por que o veículo seguro se incendiou” (ibidem). Uma vez provado que deflagrou um incêndio no veículo pertencente ao segurado da ora Ré, deflagração essa resultante de causa não concretamente apurada, “o acto ignífero presume-se, pois, originado ou induzido pela própria máquina, causado pelos riscos que potencialmente lhe estão associados, ainda que nada mais se saiba, ou seja, se desconheça a concreta razão tecnicamente explicativa da ocorrência, qual o concreto perigo típico consumado e de que maneira ele se despoletou e progrediu”
Defluindo da factualidade demonstrada nos autos que o veículo de matrícula ..-ZR-.. se incendiou, tem de presumir-se, na falta de prova de outra realidade, que o ato ignífero foi originado ou induzido pela própria máquina.
Acrescentando-se, ademais, que não logrou a Ré provar que o incêndio teve como causa ou origem qualquer comportamento doloso do tomador do seguro ou de terceiro.
E nem sequer se pode considerar que o tomador do seguro ao deixar o veículo na via pública para o ir buscar dois dias depois, adotou uma conduta negligente (de resto, não excluiria a responsabilidade da seguradora – cfr. artigo 150.º, n.º 1, do RJCS), pois nenhuma relação causal pode ser estabelecida entre o estacionamento do veículo num determinado sítio, mesmo sendo isolado, e o incêndio cuja causa ficou por apurar.
Cabe ainda referir que da alínea ii) dos factos não provados nada se pode retirar em termos de responsabilização pelo evento, porquanto de um facto não provado nada se extrai, nem em sentido positivo, nem em sentido negativo.
De qualquer modo, e como se referiu, à Autora competia apenas a prova da verificação do incêndio, facto esse desencadear da responsabilidade civil contratual de seguradora por via da cobertura do seguro abranger esse tipo de sinistro, o que logrou provar.
Competindo à seguradora provar que o sinistro não teve caráter aleatório, mas que foi causado por ação dolosa do tomador do seguro ou de terceiro, o que não provou.
Nem quaisquer outros factos que indiciassem uma situação de simulação de sinistro, limitando-se a alegar dúvidas sobre a conduta do segurado e do legal representante da Autora, sem as provar, ou seja, sem provar que entre eles houve um acordo simulatório com o intuito de prejudicar a seguradora.
Nestes termos, procede parcialmente a apelação, e, consequentemente, impõe-se a condenação da Ré no valor de €12.895.00, que corresponde ao valor do capital seguro (€14.000,00), menos o valor das três prestações pagas pelo tomador do seguro (3x€275,00= €13.175,00) e valor da franquia (€280,00), a que acrescem juros de mora, à taxa aplicável às operações comerciais (7%) desde a citação até efetivo e integral pagamento (artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil).

Dado o parcial decaimento, as custas nas duas instâncias ficam a cargo da Ré/Apelada na proporção do vencimento (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida, condenado a Ré a pagar à Autora a quantia de €12.895.00 (Doze mil e oitocentos e noventa e cinco euros), a que acrescem juros de mora, à taxa aplicável às operações comerciais (7%) desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 20-04-2023
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)

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[1] Proc. n.º 933/15.0T8AVR.P1.S1-A, em www.dgsi.pt, que corresponde ao AUJ n.º 9/2022, DR n.º 227, 1.ª série, de 24-11-2022.
[2] Proc. n.º 3311/16.0T8PDL.L2.S1, em www.dgsi.pt
[3] Proc. n.º 3263/12.5TBGDM.P1, em www.dgsi.pt
[4] Proc. n.º 29185/12.9T2SNT.L1.1, em www.dgsi.pt