Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1545/12.5TBCTX-D.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. O conceito de erro manifesto a que alude o n.º 3 do art.º 130.º do CIRE deverá ser interpretado em termos latos, abrangendo a indevida inclusão/exclusão do crédito na lista apresentada, a incorrecção do montante relacionado e/ou a sua indevida qualificação.
II. Ainda que não seja alvo de impugnação, mantém-se o poder/dever do juiz de assegurar o rigor da lista, quer quanto à existência e montante do crédito, quer quanto à sua qualificação, procedendo para tal às indagações que tenha por necessárias.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1545/12.5TBCTX-D.E1

Juízo de Comércio de Santarém - Juiz 2

I. Relatório
Tendo sido declarada a insolvência nos autos principais de (…), Gestão e Investimentos Imobiliários, SA, decorrido o prazo fixado para a reclamação de créditos, veio o Sr. AJ juntar a lista dos créditos reconhecidos (não foram relacionados créditos não reconhecidos) que consta de fls. 2 autos.
Na ausência de impugnação foi proferida douta sentença, por cujos termos foi homologada “a lista dos credores reconhecidos apresentada pelo Administrador da Insolvência e julgados verificados os mesmos créditos”, a saber:
1. a favor do Banco (…) Português, SA, no valor de € 566.461,69 (quinhentos e sessenta e seis mil, quatrocentos e sessenta e um euros e sessenta e nove cêntimos);
2. a favor do requerente Condomínio do prédio sito na Rua (…), n.º 9, no valor de € 4.679,68 (quatro mil, seiscentos e setenta e nove euros e sessenta e oito cêntimos);
3. a favor da EDP, Serviço Universal, SA, no valor de € 413,79 (quatrocentos e treze euros e setenta e nove cêntimos);
4. a favor da Fazenda Nacional, o valor de € 22.725,87 (vinte e dois mil, setecentos e vinte e cinco euros e oitenta e sete cêntimos);
5. a favor da Vodafone Portugal, Comunicações SA, no valor de € 936,34 (novecentos e trinta e seis euros e trinta e quatro cêntimos);
6. a favor da ZON-TV Cabo Portugal, SA, no valor de € 1.123,53 (mil, cento e vinte e três euros e cinquenta e três cêntimos).

De seguida, procedeu-se à graduação dos créditos em concurso pela seguinte forma:
A) Para serem pagos pelo produto da venda da Verba 1 do auto de apreensão de imóveis n.º 1, datado de 21.04.14, junto no apenso A em 24.04.14:
i. Em primeiro lugar, os créditos reclamados pela Fazenda Nacional a título de IMI, constituídos menos de 12 meses antes da data do início do processo, no valor de € 309,43 (trezentos e nove euros e quarenta e três cêntimos);
ii. Em segundo lugar, a parte do crédito reclamado pelo Banco (…) Português, SA garantido por hipoteca sobre este bem, até ao limite do valor inscrito no registo;
iii. Em terceiro lugar os créditos da Fazenda Nacional decorrentes de IRC, constituídos menos de 12 meses antes da data do início do processo;
iv. Em quarto lugar, rateada e proporcionalmente, os créditos dos seguintes credores:
- Banco (…) Português, SA, referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Condomínio Rua (…), n.º 9;
- EDP – Serviço Universal, SA;
- Fazenda Nacional (representada pelo ministério Público), referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Vodafone Portugal, Comunicações, SA; e
- Zon, TV Cabo Portugal, SA.

B) Para serem pagos pelo produto da venda da Verba 2 do auto de apreensão de imóveis n.º 1, datado de 21.04.14, junto no apenso A em 24.04.14:
i. Em primeiro lugar, os créditos reclamados pela Fazenda Nacional a título de IMI, constituídos menos de 12 meses antes da data do início do processo, no valor de € 309,43 (trezentos e nove euros e quarenta e três cêntimos);
ii. Em segundo lugar, a parte do crédito reclamado pelo Banco (…) Português, SA, garantido por hipoteca sobre este bem, até ao limite do valor inscrito no registo;
iii. Em terceiro lugar os créditos da Fazenda nacional decorrentes de IRC, constituídos menos de 12 meses antes da data do início do processo;
iv. Em quarto lugar, rateada e proporcionalmente, os créditos dos seguintes credores:
- Banco (…) Português, SA, referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Condomínio Rua (…), n.º 9;
- EDP – Serviço Universal, SA;
- Fazenda Nacional (representada pelo Ministério Público), referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Vodafone Portugal, Comunicações, SA; e
- Zon, TV Cabo Portugal, SA.

C) Para serem pagos pelo produto da venda da Verba 1 do auto de apreensão de imóveis n.º 2, datado de 20.04.2016, junto no apenso A em 24.04.16:
i. Em primeiro lugar, a parte do crédito reclamado pelo Banco (…) Português, SA, garantido por hipoteca sobre este bem, até ao limite do valor inscrito no registo;
ii. Em segundo lugar os créditos da Fazenda Nacional decorrentes de IRC, constituídos menos de 12 meses antes da data do início do processo;
iii. Em terceiro lugar, rateada e proporcionalmente, os créditos dos seguintes credores:
- Banco (…) Português, SA, referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Condomínio Rua (…), n.º 9;
- EDP – Serviço Universal, SA;
- Fazenda Nacional (representada pelo ministério Público), referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Vodafone Portugal, Comunicações, SA; e
- Zon, TV Cabo Portugal, SA.

D) Para serem pagos pelo produto da venda dos bens móveis que possam vir a ser apreendidos para a massa insolvente:
i. Em primeiro lugar os créditos da Fazenda Nacional decorrentes de IRC, constituídos menos de 12 meses antes da data do início do processo;
ii. Em segundo lugar, os demais créditos do Requerente da Insolvência, Condomínio do prédio sito na Rua (…), n.º 9, relativamente à quantia correspondente a ¼ do montante reclamado e reconhecido não subordinado, num máximo de 500 Ucs (quinhentas unidades de conta);
iii. Em terceiro lugar, rateada e proporcionalmente, os créditos dos seguintes credores:
- Banco (…) Português, SA;
- Condomínio Rua (…), n.º 9, referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- EDP – Serviço Universal, SA;
- Fazenda Nacional (representada pelo Ministério Público), referente ao remanescente dos seus créditos, não graduados supra;
- Vodafone Portugal, Comunicações SA; e
- Zon, TV Cabo Portugal, SA.
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Inconformada com a decisão, apelou a insolvente “(…), gestão e investimentos imobiliários, SA”, recurso a que aderiu o seu legal representante, e, tendo desenvolvido nas alegações os fundamentos da sua discordância com o decidido, condensou-os nas seguintes conclusões:
1.ª Há erro ou lapso manifesto no reconhecimento pela sentença recorrida de um crédito do Banco (…) Português de € 566.461,69, por não corresponder a um crédito que possa dar-se como existente face à insolvente (…), S.A. dado, por um lado, se achar extinta a execução correspondente ao Proc. n.º 573/09.2YYLSB do Juízo de Execução de Lisboa – Juiz 5, em que é Exequente o Banco (…) Português e Executada (…) – Gestão e Investimentos Imobiliários, S.A., e estar ainda pendente de uma possível decisão a apreciação dos embargos contra essa execução deduzidos pela recorrente.
2.ª Patente lapso ou erro manifesto existe também na decisão recorrida quanto à decisão sobre a verificação, como reconhecido, de um “crédito” reportado ao dito Condomínio Rua (…), n.º 9, de € 4.679,68 e de que o referido “Condomínio” se “serviu”, como está já apurado nos autos, para suportar um infundamentado “pedido” de insolvência, ao invocar perante o Tribunal uma alegada “dívida” cuja existência nem se achava demonstrada e quando a demanda “executiva” foi desatendida por falta de título que sequer demostrasse a existência do alegado crédito e que, a sentença recorrida, contra tal sentença vem agora julgar “verificado”(!!!), o que, salvo sempre o devido respeito, faz não só em erro manifesto como contra o definitivamente decidido no tal processo executivo da Comarca da Grande Lisboa Noroeste.
3.ª Mas há ainda e também erro ou lapso manifesto da sentença quanto ao “reconhecimento” de tal inexistente crédito por um alegado montante de € 4.679,68 sem, por outro lado, a sentença ter tomado em consideração, não só a sentença do referido processo executivo, como ainda os pagamentos titulados pelos docs. 2 a 15, juntos aos autos principais com o requerimento de 8.02.2018 (Ref.ª 28147733) e que também invalidam o “reconhecimento” do referido “crédito” pelo referido valor, não demonstrado, de € 4.679,68 (!).
4.ª Nestes termos, e com os referidos fundamentos, se requer a V. Exas. que, no provimento do presente recurso, seja a recorrida sentença de verificação e de créditos revogada e/ou alterada, por violação do n.º 1 do artigo 50º/CIRE e no sentido de que:
(a) Não deverá ser reconhecido ou julgado verificado o referido “crédito” do Condomínio da Rua (…), em Lisboa, por falta de título que o valide, designadamente executivo, conforme sentença certificada pelo Doc. 14 junto aos autos.
(b) Não deverá ser reconhecido como actual ou existente, mas apenas como condicional (artigo 50º/1/CIRE) o crédito de € 566.461,69 reconhecido ao Banco (…) Português, por não corresponder a um crédito que possa dar-se já como existente face à insolvente (…), S.A. dado por, por um lado, se achar extinta a execução correspondente ao Processo n.º 573/09.2YYLSB do Juízo de Execução de Lisboa – Juiz 5, e, por outro lado, não estarem decididos os embargos,
(c) E deverá também dar-se cumprimento, na sentença recorrida, e face à interposição do presente recurso, ao disposto no n.º 1 do artigo 180.º/CIRE.
Contra alegou o Banco (…) P, SA, pugnando pela manutenção do decidido no que respeita ao crédito por si reclamado.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
i. Indagar da correcta qualificação do crédito reconhecido ao Banco (…) P, SA;
ii. Decidir sobre a existência e montante do crédito reconhecido ao requerente Condomínio.
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II. Fundamentação
Com relevo para a decisão, atentos os documentos juntos aos autos, encontra-se assente a seguinte factualidade:
1. O reclamante Banco e a (…), SA outorgaram Escritura de Hipoteca mediante a qual esta constituiu hipoteca voluntária genérica a favor do Banco sobre a fracção C do prédio urbano da freguesia do Lumiar, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo … (verba n.º 1 do Auto de Apreensão).
2. A aludida hipoteca voluntária genérica sobre o imóvel identificado em 1., com todas as suas construções ou benfeitorias, edificadas ou a edificar, destinou-se à garantia do pagamento pontual das responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade perante o Banco (…) P, até ao limite de € 175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) em capital, em euros ou em divisas, provenientes de um financiamento sob a forma de empréstimo.
3. A mesma hipoteca voluntária genérica ficou ainda a garantir o pagamento e liquidação dos respectivos juros à taxa de 8,125% ao ano, sendo acrescida de 2% na mora, conforme resulta do teor da escritura pública de hipoteca cuja cópia consta de fls. 49 a 51 e cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.
4. A aludida hipoteca voluntária encontra-se registada a favor do banco pela inscrição com a AP. (…), de 2004/04/01, garantindo o capital de € 175.000,00, despesas no montante de € 3.500,00, tudo no máximo assegurado de € 231.656,25 (doc. cuja cópia consta de fls. 52 a 54).
5. Entre a (…), SA e o Banco P foi outorgada em 30 de Novembro de 2005 escritura denominada de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca, mediante a qual aquela, na qualidade de compradora, ora Recorrente constituiu hipoteca voluntária genérica, a favor do Banco Recorrido, sobre a fracção designada pela letra B do prédio urbano sito em São Sebastião da Pedreira, descrito na CRP de Lisboa sob o nº … e inscrita na matriz sob o artigo (…), cujo 1/10 consiste na verba nº 2 do Auto de Apreensão (doc. cuja cópia consta de fls. 55 a 58 dos autos).
6. A hipoteca voluntária genérica sobre o imóvel identificado no ponto anterior, com todas as suas construções ou benfeitorias, edificadas ou a edificar, destinou-se à garantia do pagamento pontual das responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade, ora Recorrente, perante o Banco, ora credor Recorrida, até ao limite de € 175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) em capital, em euros ou em divisas, provenientes de um financiamento de igual montante, feito no referido dia.
7. A mesma hipoteca voluntária genérica ficou ainda a garantir o pagamento e liquidação dos respectivos juros à taxa de 6,75% ao ano, sendo acrescida de 2% na mora, conforme resulta do teor da escritura pública de hipoteca cuja cópia consta de fls. 55 a 58, aqui se dando por reproduzido quanto ao mais o seu teor.
8. A hipoteca voluntária a que aludem os pontos anteriores encontra-se registada a favor do Banco P pela inscrição com a AP. (…) de 2005/11/08, convertida em definitiva pela Ap. (…) de 2005/12/13, garantindo o capital de € 175.000,00, despesas no montante de € 7.000,00, tudo no máximo assegurado de € 238.437,50 (doc. cuja cópia consta de fls. 59 a 61).
9. Encontram-se em poder do credor reclamante Banco P 3 (três) livranças:
a) No valor de € 201.562,79, emitida em 30/11/2005 e vencida em 16/06/2008, subscrita pela … (doc. de fls. 62);
b) No valor de € 163.345,03, emitida em 12/04/2004 e vencida em 16/06/2008, subscrita pela (…), SA (doc. de fls. 63);
c) No valor de € 91.445,05, emitida em 02/08/2005 e vencida em 16/06/2008, subscrita pela (…), SA (doc. de fs. 64).
10. A (…), SA é titular da conta de depósitos à ordem n º (…), a qual, à data da declaração de insolvência, apresentava um saldo devedor no montante de € 18.626,00 (dezoito mil, seiscentos e vinte e seis euros), conforme consta do extracto cuja cópia se encontra a fls. 65, aqui se dando pro reproduzido o seu teor.
11. O Banco, SA instaurou contra a (…) processo de execução que correu termos na comarca de Lisboa sob o nº 573/09.2YYLSB, dando à execução os títulos identificados no ponto 9.
12. A execução veio a ser julgada extinta ao abrigo do preceituado no 794.º, n.º 4, o que determinou a extinção por impossibilidade superveniente da lide dos embargos que pela executada haviam sido deduzidos, o que foi decretado por despacho proferido em 20 de Março de 2007 (doc. de fls. 25 a 40).
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De Direito
A apelante dissente da sentença proferida no que respeita aos créditos reconhecidos aos credores Banco P, SA e Condomínio do prédio sito na Rua (…), n.º 9, em Lisboa, sustentando que o primeiro só podia ter sido reconhecido como crédito condicional, questionando a existência e montante do último, sendo certo que, conforme consta da decisão foi objecto de impugnaçãoapelada, a relação de créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador não .
A fase da verificação dos créditos inicia-se, conforme resulta do disposto no art.º 128.º do CIRE[1], com a reclamação, dispondo a propósito o art.º 128.º que, declarada a insolvência, devem os credores reclamar a verificação dos seus créditos. Ao administrador de insolvência cabe elaborar e apresentar uma lista dos créditos por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, consoante prevê o art.º 129.º, listas que podem ser alvo de impugnações nos termos previstos pelo art.º 130.º.
Dispõe, por seu turno, o n.º 3 deste último preceito que “Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.
O normativo em causa suscitou, conforme é sabido, controvérsia quanto à amplitude dos poderes que, nesta sede, podem ser exercidos pelo juiz. Assim, enquanto uns defendiam interpretação literal do preceito, restringindo a intervenção oficiosa do juiz aos casos em que a lista apresentada pelo administrador revelasse um erro -nessa medida manifesto ou aparente- de facto ou de direito na qualificação e/ou quantificação dos créditos, não lhe cabendo pois realizar quaisquer indagações oficiosas tendentes a confirmar a natureza, montante e qualidade dos créditos relacionados e não impugnados, não faltou quem entendesse que “o juiz não deve abrir mão dos poderes inquisitórios, enquanto garante da legalidade, devendo acautelar uma correcta verificação e graduação dos créditos, com respeito pelos pressupostos formais e substanciais”. Tal solução, defendida por doutrina autorizada, foi a acolhida pelo STJ, que vem defendendo de forma persistente uma interpretação ampla do “conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode [deve, dizemos nós], solicitar ao administrador os elementos de que necessite, fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades”[2].
Isso mesmo reiterou o STJ no recentíssimo aresto de 17/4/2018[3], sustentando que se “deve interpretar em termos amplos o conceito de erro manifesto constante da norma do n.º 3 do artigo 130º, não o limitando ao simples lapso material ou ao erro formal decorrente de qualquer incongruência que a lista de créditos apresente; constituirá também erro manifesto o que assumir natureza substancial, ou seja, aquele que respeitar à indevida inclusão/exclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades”.
Deste modo, e tal como aí também se considerou, “Mesmo que não haja impugnação por banda de qualquer interessado, o juiz pode e deve filtrar a menção do crédito constante da lista apresentada pelo administrador da insolvência, apreciando as suas características, procedendo à sua qualificação jurídica e aferindo se as garantias referidas pelo administrador se mostram conformes com as regras de Direito aplicável”.
Em conclusão, e retornando ao caso que nos ocupa, pese embora a lista apresentada não tenha sido objecto de impugnação nem por isso estava a Mm.ª juíza isentada de proceder ao controlo da mesma, podendo para tal atender “a todos os elementos constantes do processo ou proceder até à sua indagação oficiosa, tanto por aplicação do art.º 11 do CIRE (princípio da oficiosidade), como por força das normas do Código de Processo Civil, nomeadamente, as dos art.ºs 6.º, 7.º e 590.º do CPC, ou seja, princípio do inquisitório e princípio da aquisição processual”[4] .
Feitos tais tabelares esclarecimentos, e no que respeita ao crédito do BCP, que os recorrentes pretendem dever ser reconhecido apenas como condicional, uma vez que estariam pendentes embargos deduzidos à execução instaurada pelo credor, nem é rigoroso que a acção se encontre ainda pendente – conforme resultou demonstrado, foi declarada extinta a instância por impossibilidade superveniente face à extinção da execução –, nem tal constituiria fundamento para a pretendida qualificação. Vejamos:
Nos termos do art.º 50.º do CIRE, consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respectivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico, sendo havidos como créditos sob condição suspensiva os elencados no n.º 2, embora se não trate de uma enumeração taxativa.
Face à definição legal, fácil se torna concluir que o crédito reclamado pelo Banco P se encontra constituído e não tem a sua eficácia sujeita à verificação de qualquer acontecimento futuro e incerto, donde não se lhe aplicar o art.º 50.º, encontrando-se portanto correctamente reconhecido e qualificado como crédito garantido nos termos em que o foi na decisão apelada.
Já quanto ao crédito do Condomínio, requerente da insolvência, foi o mesmo reconhecido pelo Sr. Administrador pelo montante de € 4.679,68, valor reclamado no processo executivo que pelo credor foi instaurado contra a insolvente – correspondendo € 3.636,82 à dívida de capital e € 1.042,86 a título de juros – e que foi objecto de indeferimento liminar com fundamento na falta de título executivo.
Impondo-se esclarecer previamente a apelante de que, ao invés do que parece pressupor, o reconhecimento de um crédito (qualquer crédito) em processo insolvencial não está dependente da existência de título executivo, faz-se todavia notar que o montante reclamado no processo executivo e reconhecido pelo Sr. Administrador não é rigorosamente igual ao mencionado pelo credor na missiva endereçada à insolvente em 10 de Outubro de 2012, numa tentativa de cobrança extra judicial, e que totaliza € 3.686,46 (cf. fls. 189), aí se discriminando as quotas em atraso. Este último é o valor indicado pelo apelado condomínio no seu requerimento inicial (estando em causa apenas a fracção C, correspondente ao 1.º, D.º), mas como se vê dos documentos que a agora apelante juntou aos autos principais em 8/2/2018, encontrando-se portanto ao dispor da Mm.ª juíza aquando da prolação da sentença ora impugnada, encontram-se a fls. 131 e 133 declarações da Loja do Condomínio atestando o pagamento das quotas relativas ao ano de 2008 e 1.º trimestre de 2009, as quais constam como estando em dívida na relação apresentada pelo credor e que o Sr. Administrador terá acolhido. Desconhece este tribunal se tais documentos, apresentados no processo pela apelante, foram ou não impugnados e se o Sr. Administrador a eles teve acesso aquando da análise da documentação que lhe foi presente, aspectos que naturalmente importa esclarecer, sob pena de a sentença ter acolhido erro cometido pelo Sr. Administrador no apuramento do crédito do requerente da insolvência.
Atento o exposto, e não estando este Tribunal de recurso, pelos motivos indicados, em condições de fixar o valor do crédito impugnado, outra solução não resta senão proceder à anulação parcial da decisão, para que a Mm.ª juíza, em face da documentação junta pela apelante e a que se fez referência, proceda às indagações necessárias, designadamente e se tal se mostrar necessário junto do Sr. Administrador, em ordem a apurar o crédito do apelado Condomínio (art.º 662.º, n.º 2, al. c) e n.º 3, al. c), do CPC).
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em anular parcialmente a sentença impugnada, anulação circunscrita ao montante do crédito reconhecido ao reclamante Condomínio, devendo a Mm.ª juíza proceder às necessárias indagações tendo em conta o supra exposto e a documentação junta aos autos pela apelante.
Custas a determinar a final.
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Sumário:
i. O conceito de erro manifesto a que alude o n.º 3 do art.º 130.º do CIRE deverá ser interpretado em termos latos, abrangendo a indevida inclusão/exclusão do crédito na lista apresentada, a incorrecção do montante relacionado e/ou a sua indevida qualificação.
ii. Ainda que não seja alvo de impugnação, mantém-se o poder/dever do juiz de assegurar o rigor da lista, quer quanto à existência e montante do crédito, quer quanto à sua qualificação, procedendo para tal às indagações que tenha por necessárias.
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Évora, 08 de Novembro de 2018
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho
José Manuel Barata

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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Assim, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2.ª edição, pág. 555.
Na defesa de uma interpretação ampla, escreveu-se no acórdão do STJ de 30/9/2014, processo n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1, acessível em www.dgsi.pt:
“I A ausência de impugnação da lista definitiva de créditos não implica sem mais a produção de uma sentença homologatória «cega» por um eventual efeito cominatório pleno.
II O artigo 130º, n.º 3, do CIRE conjugado com os princípios processuais gerais que conferem ao juiz poderes de gestão e de direcção do processo, permite e impõem que este afira da bondade formal e substancial dos créditos constantes da lista apresentada pelo Administrador de Insolvência.
III O conceito de «erro manifesto» a que alude o mencionado normativo não se reduz apenas à categoria do mero erro formal, podendo abranger razões ligadas à substância dos créditos em apreço o que poderá ser objecto de censura por parte do Tribunal mesmo que os aludidos créditos não tenham sido objecto de qualquer impugnação, acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] No processo 4247/11.6TBBRG-B.G1-A.S3, acessível em www.dgsi.pt
[4] Cf. Acórdão do TRC de 23/9/2014, proferido no processo 528/13.2TBFND-C.C1, na esteira dos arestos do STJ de 6/7/2011, Revista n.º 897/06.0TBOBR-B.C1.S1, 6.ª Secção, e de 23/1/2014, processo n.º 1938/06.7TBCTB-E.C1.S1, também em www.dgsi.pt.