Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
890/20.0T8EVR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ACEITAÇÃO DA HERANÇA
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I. Dentre os actos cuja validade depende de autorização do tribunal elencados no art.º 1889º do Cód. Civil , contempla-se na alínea l) o “aceitar herança, doação ou legado com encargos, ou convencionar partilha extrajudicial”.
II. Porém, os encargos da herança referidos no art.º 1889º do Cód, Civil não podem deixar de contemplar apenas as dívidas do de cujus à data da morte , não as que nascem posteriormente a esse momento, como é o caso da dívida emergente do direito de regresso previsto no artº 27º do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto, que só nasceu na esfera jurídica da seguradora com o cumprimento e que só a partir de então pode ser exercido.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO

I.RELATÓRIO

1. SEGURADORAS UNIDAS, SA. (actualmente denominada Generalis Seguros, SA), intentou a presente ação declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra AA, solteira, menor, representada por sua mãe BB, com ela residente na Rua ..., ..., alegando, em síntese:

- A Ré é filha e única herdeira de CC, falecido em .../.../2011 em consequência do acidente de viação ocorrido nessa data, ao Km. ..., no IP... em ..., em que foi interveniente o veículo de matrícula ..-..-NO conduzido por CC que circulava numa via asfaltada e em bom estado de conservação, e entrou em despiste, numa curva ligeira, invadindo a semi-faixa de rodagem contrária e embatendo no veículo automóvel de matrícula ..-..-QZ, que circulava em sentido contrário e na sua mão de trânsito, causando a morte do próprio CC, de DD e EE, bem como ferimentos nos demais ocupantes daquelas viaturas e danos na viatura QZ;

- Nesse âmbito, por força do contrato de seguro obrigatório e em consequência do decidido pelo Tribunal Judicial ... no processo n.º 39/... – ação instaurada pelos herdeiros de EE -, a autora, para a qual foi transferida a responsabilidade civil emergente da circulação do dito veículo de matrícula NO através da celebração de contrato de seguro, despendeu o montante total de € 364.545,76 a título de indemnização paga aos familiares de DD e de EE, pelos custos da assistência médica e períodos de incapacidade dos outros ocupantes dos veículo que resultaram feridos, bem como pelo valor pago pela perda do veículo QZ;

- A A. indemnizou os danos e prejuízos causados aos lesados em consequência do referido acidente de viação e nos termos do artigo 27.º do Dec. Lei 291/2007 de 21 de agosto, assiste-lhe o direito de ser reembolsada das quantias que despendeu, porquanto CC, condutor do veículo NO, foi o único culpado na eclosão do acidente e conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida;

- Com vista a ser ressarcida das quantias que despendeu, a A. instaurou contra a Ré uma ação declarativa de condenação, que correu termos pelo Juízo Central Cível e Criminal ..., Juiz ..., com o nº. 1057/17...., nessa ação, a A. pediu a condenação da Ré a pagar àquela a quantia de €364.545,76 que despendera, na qualidade de única herdeira do seu falecido pai e, nessa ação, por despacho de 02/11/2017, o Tribunal declarou que, face à não apresentação de contestação, se consideravam confessados os fatos articulados pela A., nos termos do artº. 567 nº. 1 do Cód. Proc. Civil;

- Resultando desses factos que o referido acidente ocorreu por culpa exclusiva de CC que, de dia e numa ligeira curva aberta, perdeu o domínio do veículo que conduzia, entrou em despiste, invadiu a faixa de rodagem contrária e aí foi embater no veículo QZ, que circulava em sentido contrário e dentro da sua mão de trânsito, despiste que ocorreu apenas porque o condutor circulava com os reflexos diminuídos devido às bebidas alcoólicas que havia ingerido e às substâncias psicotrópicas que havia consumido.

- A Ré aceitou expressamente a herança do seu pai, que foi partilhada, cabendo-lhe todos os bens deixados pelo falecido, entre os quais uma fração autónoma num prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ...;

Termina peticionando que a acção seja julgada procedente, por provada e, consequentemente, que a Ré, na qualidade de única herdeira de seu falecido pai, seja condenada a pagar à A. a quantia de €364.545,76, até ao limite dos bens que recebeu da herança e no caso de ainda se encontrar indivisa a herança, deve a Ré ser condenada a reconhecer o crédito da A. sobre a herança e o direito desta a ver satisfeito esse crédito, no montante de €364.545,76 (trezentos e sessenta e quatro mil quinhentos e quarenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos), restringido aos bens que receber da herança, devendo ainda a Ré ser condenada a pagar à A. juros de mora à taxa legal desde a citação e até efetivo pagamento.

Regularmente citada, veio a Ré apresentar a sua contestação, suscitando a incompetência territorial deste tribunal por considerar que a presente ação deveria correr os seus termos no tribunal da área de residência da Ré, nos termos do artigo 71.º do CPC. Suscita ainda a Ré a exceção dilatória de caso julgado da ação que correu termos neste mesmo tribunal – Juízo Central Cível e Criminal ..., com o número de processo n.º 1057/17.... – em que as partes eram as mesmas, a causa de pedir era igual e os pedidos eram também iguais. No mais, apresenta defesa por impugnação, afirmando desconhecer as concretas circunstâncias e causas do acidente e especificando que a Ré não aceitou a herança, nem a mesma foi objeto de partilha, termos em que conclui pela improcedência da presente ação.

Conheceu-se da exceção de incompetência territorial, por despacho proferido em 21 de janeiro de 2021, decisão que julgou não verificada a sobredita exceção dilatória.

Na audiência prévia foi proferido despacho saneador que conheceu e julgou verificada a exceção de caso julgado suscitada pela Ré, tendo sido determinado o prosseguimento da causa apenas para apreciação do pedido subsidiário deduzido pela Autora.

Nessa medida, a instância foi considerada válida e regular e foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Interposto recurso da decisão que julgou verificada a exceção de caso julgado, subiu o mesmo à Relação de Évora e, subsequentemente, ao Supremo Tribunal de Justiça-

Em consequência do decidido nos Acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores, foi revogado o despacho que julgou verificada a exceção de caso julgado quanto ao pedido principal e, nessa conformidade, foi determinado o prosseguimento da causa também relativamente ao pedido principal formulado pela Autora na petição inicial (“…ser a Ré, na qualidade de única herdeira de seu falecido pai, condenada a pagar à A. a quantia der 364.545,76, até ao limite dos bens que recebeu da herança”).

Realizou-se a audiência final e subsequentemente foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e, consequentemente, condenou a Ré AA, na qualidade de única herdeira de CC, a pagar à A. Generalis Seguros, SA a quantia de €364.545,76 (trezentos e sessenta e quatro mil quinhentos e quarenta e cinco euros e setenta e seis cêntimos), acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, e até ao limite dos bens que a Ré recebeu da herança do seu falecido pai.

2. É desta sentença que desaprazida recorre a Ré, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:

1. A matéria de facto do ponto 40. e ponto 41. deve ser alterada.

2. O ponto 40 da matéria de facto consta que “A Ré outorgou escritura de habilitação de herdeiros em que foi declarado que era a única herdeira de seu falecido pai.”

3. Para dar como provado esse ponto, o Tribunal a quo socorreu-se da escritura de habilitação de herdeiros junta a fls.87 e 88 verso.

4. Mas em tal documento autêntico junto pela A. não consta a Ré AA, nem a sua mãe BB como outorgantes da mesma, mas antes 3 testemunhas, e elas sim declararam que a Ré AA era a única herdeira de seu pai.

5. Ora, constando tais declarações de documento autêntico não impugnado e fazendo prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade pública ou oficial publico respetivo (neste caso, a notária) - nos termos do disposto nos arts. 369º nº1, 370º nº1, 371º nº1 e 372º nº1 (a contrario) do Código Civil .

6. Deve assim ser alterado o ponto 40. da matéria de facto para:

“Foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros em que foi declarado que era a única herdeira de seu falecido pai”

7. Igualmente deve ser alterado o ponto 41 da matéria de facto em resultou provado:

“Coube à Ré, na qualidade de herdeira de seu pai, o direito titulado por este sobre a fração autónoma com a letra ... do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...65”.

8. Ao dar como provado tal facto, o Tribunal a quo socorreu-se das declarações de parte da legal representante da Ré, a sua mãe, BB, que referiu à pergunta da M. Juiz “ Esse apartamento é da sua menina porquê?”

BB: Porque o pai da AA faleceu num acidente de trabalho e ele morava nesse apartamento e na altura ficou pago… prontos…para a única herdeira dele que é a AA.” (Cfr. gravação da sessão da audiência de 20-4-2022 – 14h53m43 às 15h04m55)

9. E ainda das certidões fiscais juntas aos autos – caderneta predial urbana e processo de participação de imposto de selo por óbito de CC.

10. Mas não obstante o facto da mãe da Ré ter referido que o apartamento “na altura ficou pago … prontos… para a única herdeira dele que é a AA”, não permite concluir, sem mais que a Ré é que titula esse bem, em termos jurídicos civis.

11. Pois a mãe da Ré também referiu a instâncias do Mandatário da A. que:

“Juiz: A senhora sabe se este apartamento é propriedade da sua filha?

BB: Não sei. Não sei. Sei que na altura ficou pago, mas não sei qual é o nome que o apartamento tem, não. “Cfr. gravação da sessão da audiência de 20-4-2022 – 14h53m43 às 15h04m55)

12. Ou seja, tal significa que a mãe da Ré também não sabe se o apartamento é titulado ou não pela Ré.

13. E quanto às certidões fiscais juntas aos autos são meros documentos fiscais que não tiram, nem dão direitos, e muito menos atribuem a titularidade do direito de propriedade do referido apartamento à Ré.

14. O artigo 12.º, n.º 1, do Código do Imposto Municipal sobre imóveis (CIMI) que “as matrizes prediais são registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos prédios e, sendo caso disso, dos usufrutuários e superficiários”. O n.º 5 do mesmo preceito legal estatui que “as inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade”.

15. Com efeito, constata-se que estes documentos constituem uma presunção para efeitos fiscais, e não para efeitos civis e, por conseguinte, não detêm importância para aferição do direito de propriedade, no âmbito do direito civil.

16. Neste sentido, temos posição igual vertida no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21/04/2023, processo n.º28/20.4T8MLG.G1, e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/02/2004, processo n.º 1202/03-3, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

17. A este propósito, e sintetizando, “os documentos tributários são isso mesmo, documentos para efeitos fiscais, não criando, nem extinguindo prédios na lei civil, como também não atribuem, nem retiram, a titularidade civil dos mesmos” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02/06/2022, processo n.º 1224/12.3TBBGC.G3, disponível em www.dgsi.pt).

18. Logo não se pode atribuir a esses documentos a força probatória que o tribunal a quo deu para declarar a titularidade do bem para a Ré.

19. Já, ao contrário das certidões fiscais, a certidão predial do prédio em causa junta aos autos não consta qualquer registo de inscrição a favor da Ré, mas sim do seu falecido pai.

20. Ou seja, o direito de propriedade do imóvel não está titulado pela Ré AA na certidão predial através de inscrição em vigor.

21. Ora, sendo a certidão predial um documento autêntico e não tendo sido invocada a sua falsidade, faz prova plena das declarações nele constando, nos termos do disposto no art. 369º nº1, 370º nº1, 370º nº1 e 372º nº1 do Código Civil.

22. Logo não poderia resultar provado que “Coube à Ré, na qualidade de herdeira de seu pai, o direito titulado por este sobre a fração autónoma com a letra ... do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...65”. (ponto 41)

23. Pelo que tal ponto 41 deve ser declarado como não provado.

24. Ao não resultar provado tal matéria, o Tribunal a quo não poderia concluir, como concluiu, que:

“Tratando-se de uma dívida da responsabilidade de CC, já falecido, caberia à herança daquele responder pelo seu pagamento, nos termos previstos nos artigos 2068º e 2071º nº2 do Código Civil ou aos seus herdeiros, caso tenha sido efetuada a partilha, na proporção da quota que lhe caberia na herança, como estabelece o artigo 2098º do Código Civil.

Neste quadro, face à factualidade acima provada, designadamente ao descrito nos factos nº4, 40 e 41, e ao abrigo do disposto no citado artigo 2098º, consideramos assistir fundamento para a Autora reclamar o pagamento da quantia peticionada à Ré, enquanto única herdeira de CC até aos limites dos bens que a demandada recebeu da herança de seu falecido pai.”

25. Pois não obstante de estar como provado que a Ré é filha e única herdeira de CC, falecido em .../.../2011 (ponto 4 da matéria de fato provada)

26. E que deve resultar provado, em função da alteração da matéria de facto já aqui referida no ponto 40, que “Foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros em que foi declarado que era a única herdeira de seu falecido pai .”

27. O certo é que não estando, como não está demonstrado (conforme já se explanou supra) que “Coube à Ré, na qualidade de herdeira de seu pai, o direito titulado por este sobre a fração autónoma com a letra ... do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...65”, não pode aplicar nesta concreta situação o disposto no art. 2068º do Código Civil.

28. Diz este artigo 2068º do Código Civil sobre a epigrafe “Responsabilidade da herança” “A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios de seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas e pelo cumprimento dos legados”

29. Mas tratando-se de uma dívida da herança, e sendo a herdeira menor, à data do óbito e do evento gerador de responsabilidade civil, este artigo tem de se interpretar à luz do disposto no artigo 1889º do referido Código Civil que diz sob a epígrafe (Actos cuja validade depende de autorização judicial):

“1. Como representantes do filho não podem os pais, sem autorização do tribunal:

… j) repudiar herança ou legado.

l) aceitar herança, doação ou legado com encargos, ou convencionar partilha extrajudicial”

30. A aceitação ou repudio da herança pelos pais em representação dos filhos menores deixada por estes, está dependente de autorização do tribunal, desde que o “de cujus” tenha deixado dívidas, está dependente de autorização do tribunal, sendo esse um processo de jurisdição voluntária, que segue a tramitação prevista no artigo 1014º do Código Processo Civil.

31. E isto acontece porque na letra da lei a expressão “encargos” contida na referida alínea l) do nº1 do artigo 1889º do Código Civil estão incluídas as dívidas da responsabilidade do autor da herança deixada à menor, a aqui Ré.

32. Ora sendo a Ré, menor à data do óbito e do evento gerador de responsabilidade civil e não tendo sequer sido alegado na Petição inicial e muito menos provado que tenha existido qualquer processo de autorização judicial e a sua aceitação expressa da herança, não poderá proceder o pedido de condenação desta na qualidade de herdeira e até aos limites da herança que esta recebeu de seu falecido pai.

33. Aliás, a mãe da menor, nas suas declarações disse por várias vezes, que não sabe se existiu qualquer processo no Ministério Publico para aceitar ou repudiar a herança ou escritura para fazer partilha, nem “nunca fui chamada, nem nada”

Patrona da Ré: oh D. BB, diga-me uma coisa: perguntar à legal representante da Ré se ela fez algum processo junto do Ministério Publico para aceitar a herança? Para repudiar uma vez que era menor à data do óbito? Ou para vender bens pela herança do pai? Juiz: Olhe sra. BB sabe se houve algum processo no Tribunal ou no Ministério Publico para relativamente ao património do sr. CC?

BB: Não. Não. Não sei, nem nunca fui chamada, nem nada.

Juiz: Nunca fui chamada enquanto representante da AA ao Ministério Público para saber se aceitava a herança? Ou não aceitava?

BB: Não, nunca me chamavam para nada.

Patrona da Ré: Houve alguma escritura de partilha da herança?

Ou inventário no Tribunal?

Juiz: A senhora sabe se houve alguma escritura?

BB: Não, não. Nunca assinei nenhum papel. Nem nunca fui chamada.

Cfr. gravação da sessão da audiência de 20-4-2022 – 14h53m43 às 15h04m55)

34. Assim, ao decidir como decidiu a douta sentença em análise violou entre outros o disposto nos arts. 369º nº1, 370ºnº1, 371ºnº1, 372º nº1 (a contrario), 1889º nº1 alinea l) do Código Civil e art.2068º do Código Civil e o art.1014º do Código Processo Civil.

Termos em que deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, devendo a douta sentença ser revogada por outra que julgue totalmente improcedente o pedido formulado contra a Ré, absolvendo-a do mesmo, com todas as consequências legais.

JUSTIÇA!

4. Contra-alegou a apelada defendendo a improcedência da apelação e a manutenção do decidido.

5. OBJECTO DO RECURSO

Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam são as seguintes:

5.1. Impugnação da matéria de facto

5.2. Reapreciação jurídica da causa: da necessidade de autorização judicial para aceitação da herança do pai da Ré e, em caso afirmativo, consequências da sua omissão.

II. FUNDAMENTAÇÃO

6. É o seguinte o quadro fáctico dado como assente na sentença:

“1. A Companhia de Seguros Tranquilidade, SA., alterou a sua denominação social para Seguradoras Unidas, SA. e subsequentemente para Generalis Seguros SA (cf. certidão permanente com o código de acesso ...80).

2. Entre a A., anteriormente designada Companhia de Seguros Tranquilidade, SA., e A..., Lda., foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº. ...03, mediante o qual a A. assumiu a responsabilidade civil por danos e prejuízos causados a terceiros pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-NO, adiante designado NO.

3. O referido contrato de seguro encontrava-se em vigor em .../.../2011.

4. A Ré é filha e única herdeira de CC, falecido em .../.../2011.

5. A A. instaurou contra a Ré uma ação declarativa de condenação, que correu termos pelo Juízo Central Cível e Criminal ..., Juiz ..., com o nº. 1057/17...., em que pediu a condenação da Ré a pagar àquela a quantia de €364.545,76, para reembolso das quantias que a companhia de seguros despendeu em consequência do acidente de viação ocorrido no dia 27.01.2011.

6. No âmbito da referida ação, por despacho de .../.../2017, face à não apresentação de contestação, consideraram-se confessados os factos articulados pela A., nos termos do artº. 567 nº. 1 do Cód. Proc. Civil, tendo sido proferida sentença, transitada em julgado em 03.09.2018, que absolveu a ora Ré do pedido, nos termos da certidão judicial apresentada nos autos a fls. 42 e seguintes e 75 e ss., cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.

7. No dia 27 de janeiro de 2011, pelas 15h15m, no IP..., ao Km. ..., no sentido ... – ..., entre as localidades de ... e ..., ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias, de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-NO, e o veículo ligeiro de mercadorias, de marca ..., modelo ..., de matrícula ..-..-QZ.

8. Nessas circunstâncias, o veículo NO circulava no IP... no sentido Sul/Norte e o veículo QZ circulava no IP... em sentido inverso, ou seja, no sentido Norte/Sul.

9. Nesse local, o IP... descreve uma curva pouco pronunciada que se apresentava à esquerda, atento o sentido de marcha ... – ....

10. Cerca do Km. ..., o NO entrou em despiste para o lado esquerdo, considerando o seu sentido de marcha, invadiu a faixa de rodagem contrária e colidiu com a frente lateral no QZ, tendo ambos os veículos ficado imobilizados na faixa de rodagem do QZ.

11. O local do embate foi na via de circulação mais à esquerda do IP..., atento o sentido de marcha .../....

12. A via, constituída por dois corredores de circulação com cerca de 3,5 metros de largura, cada um afecto ao seu sentido de marcha no local, delimitados ao centro por uma linha longitudinal contínua e nas extremidades por bermas.

13. Era asfaltada, o piso encontrava-se em bom estado de conservação e consistia numa ligeira curva com visibilidade.

14. Na data e local do acidente, chovia e o piso estava molhado.

15. À data dos factos o veículo NO era conduzido por CC no desempenho da sua atividade profissional, transitando por um itinerário definido pela sua entidade patronal e nele seguiam como passageiros, EE, DD e FF.

16. O veículo de matrícula NO pertencia a A..., Limitada.

17. O veículo QZ era conduzido por GG e transportava consigo HH.

18. CC havia ingerido bebidas alcoólicas e era portador duma taxa de alcoolemia de 0,51 g/l.

19. O referido embate ocorreu porque o condutor circulava com os reflexos diminuídos devido às bebidas alcoólicas que havia ingerido e às substâncias psicotrópicas de que era portador.

20. Em consequência do embate, o veículo ..-..-QZ sofreu estragos em toda a sua estrutura, cuja reparação ascendia a pelo menos €55.699,81.

21. O valor comercial deste veículo à data do acidente era de cerca de €8.500,00 e o valor dos salvados, após o sinistro, era de €1.001,00.

22. O veículo foi considerado perda total, dado o valor comercial e o valor da reparação, o que foi comunicado à mandatária da proprietária do veículo, por carta de 18/03/2011.

23. O veículo QZ era utilizado no exercício da atividade da sua proprietária, que ficou privado da sua utilização durante o período em que decorriam as averiguações sobre as circunstâncias, causas e responsabilidades no acidente.

24. A A. acordou com a proprietária do veículo QZ, B..., Lda., fixar a indemnização pela perda do veículo em €9.499,00, sendo €7.749,00 do valor do veículo e €1.750,00 da privação do uso, quantias que pagou àquela em 7/09/2011.

25. Em consequência do referido embate, HH, que se fazia transportar no veículo QZ, sofreu ferimentos e teve de receber assistência médica e hospitalar, no Hospital ... em ... e no Hospital ... em ..., a expensas da A., que suportou as seguintes despesas: 1 par de óculos no valor de €625,00; reembolso de despesas hospitalares, no montante de €153,70, pagamento de despesas de transporte de HH no montante de €587,95, consultas médicas no valor de €457,24, indemnização por dano biológico no montante de € 2.500,00 e pelo dano moral no valor de €1.000,00.

26. Em consequência do embate DD faleceu e a A. acordou com os herdeiros do falecido DD pagar uma indemnização de €40.000,00 pela perda do direito à vida e de €15.000,00 a título de danos morais dos herdeiros, pagamento que efetuou em 5/05/2011.

27. Ainda em consequência do embate FF teve ferimentos e esteve incapacitado para o trabalho desde a data do acidente até 30/09/2011, recebendo assistência médica e hospitalar a expensas da A., nos seguintes montantes: transportes do sinistrado €11,12; despesas de farmácia €127,68; despesas hospitalares €4.618,05; pagamento de salários €1.438,36; roupa e objetos danificados €200,00

28. Ainda em consequência do embate GG sofreu ferimentos e recebeu assistência hospitalar nos Hospitais ..., no Hospital ... em ... e no Hospital ... em ..., a expensas da A.

29. A A. suportou igualmente as seguintes despesas relativas ao GG: Despesas de farmácia €11,00; Transporte do sinistrado €2.088,05; Pagamento de salários ao sinistrado €5.669,60; Objetos danificados no acidente €330,00; consultas médicas € 782,79; indemnização por dano biológico € 15.800,00; danos morais €3.060,00

30. A Autora pagou ainda ao Hospital ... a assistência médica prestada a GG, no montante de €4.314,12.

31. Em consequência do embate, EE faleceu.

32. EE vivia em união de facto com II e deixou como seu único herdeiro o filho menor EE.

33. Em consequência deste acidente correu termos pelo Tribunal Judicial ... o processo 39/... – ação instaurada por II, por si e em representação do seu filho menor EE, contra a ora A..

34. Nessa ação a Autora foi condenada a pagar a II, €2.300,00 a título de despesas de funeral e de €25.000,00, a título de danos morais próprios, acrescendo a tais quantias juros vencidos desde a citação.

35. A Autora também foi condenada a pagar ao filho EE €90.000,00 a título de perda de alimentos e € 25.000,00 a título de danos morais próprios, acrescendo a tais quantias juros vencidos desde a citação.

36. E foi condenada a pagar a ambos os ali A.A. €70.000,00 pela perda do direito à vida do JJ e €10.000,00 a título de danos morais sofridos pelo falecido, acrescendo a tais quantias juros vencidos desde a citação.

37. Em 2013, após ser proferida sentença, a Autora pagou €134.377,10 a II, para satisfação parcial da indemnização fixada, sendo o montante de €128.300,00 de capital e €6.077,10 de juros de mora já vencidos.

38. E em 8/10/2015, a Autora pagou a II a quantia total de €121.899,00, sendo €105.907,76 de capital e €15.991,25 de juros de mora vencidos.

39. Entre .../.../2011 e 26/08/2013 no âmbito da ação pelo acidente de trabalho a A. pagou a II uma quantia mensal de €400,00, no montante total de €12.000,00.

40. A Ré outorgou escritura de habilitação de herdeiros em que foi declarado que era a única herdeira de seu falecido pai.

41. Coube à Ré, na qualidade de herdeira de seu pai, o direito titulado por este sobre a fração autónoma com a letra ..., do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...65.

*

Factos que se aditam ao abrigo do disposto no art.º 607º, nº4 CPC aqui aplicável ex vi art.º 663º, nº 2, ambos do CPC:

42. A Ré nasceu em .../.../2005 ( cfr. documento fls. 161 dos autos)

43. Correu termos no serviço de finanças de ... processo de participação de imposto de selo instaurado por óbito de CC no qual a Ré figura como cabeça de casal da herança e herdeira /beneficiária da transmissão do bem imóvel descrito e, bem assim, de quota em sociedade ( cfr. certidão de fls. 154 dos autos cujo teor se dá por reproduzido);

44. Tal processo foi iniciado em 8.4.2011 e foi participado pela Dra. KK a quem a mãe da Ré, LL, em sua representação, conferiu poderes para tal em 3.2.2011 (idem, referida certidão).

7. Do mérito do recurso

7.1. Impugnação da matéria de facto

Insurge-se a apelante contra a redacção do facto inserto no ponto 40 referindo que o mesmo não reproduz o teor da escritura de habilitação de herdeiros.

Analisando tal escritura (fls. 87vs/88) e considerando que se trata de documento autêntico ( art.º 363º, nº2 do Cód. Civil) com a força probatória estabelecida no nº1 do art.º 371º do Cód. Civil, impõe-se, efectivamente, a correcção do facto em apreço nos seguintes termos: “40. Foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros em 11.2.2011 no cartório notarial a cargo da notária MM, sito na ..., na qual foi declarado , entre outras por KK, que a Ré era a única herdeira de seu falecido pai.”.

Pretende igualmente a apelante que se elimine o facto inserto no ponto 41 (Coube à Ré, na qualidade de herdeira de seu pai, o direito titulado por este sobre a fração autónoma com a letra ..., do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...65. ) referindo que na certidão predial não é feita qualquer referência à Ré como titular do direito de propriedade sobre tal imóvel.

Desde já se diga que não estando em presença de uma acção real ( v.g. reivindicação) a prova do domínio não carece de ser efectuada nos termos exigidos para aquela , designadamente através de certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial competente comprovativa de que a aquisição do imóvel em causa se encontra inscrita a seu favor no registo predial.

De qualquer modo, não se afirma no facto que a mesma Ré é dona da fracção em apreço, i.e. que a adquiriu (por sucessão).

O que é dito é o que resulta da conjugação do facto de à data da sua morte o falecido ser dono de tal fracção (o que vem atestado por certidão), da circunstância de a Ré ser a sua única herdeira e, ainda, ao facto de residir em tal fracção com sua mãe BB desde a data do falecimento do pai ( já que anteriormente residia na Rua ... ).

Por isso, podia o Tribunal ter firmado a sua convicção sobre tal facto nos moldes em que o fez e com os quais concordamos: “ No que concerne à fração descrita no facto n.º 41 (cf. certidão do registo predial junta aos autos) que integra a herança de CC, a mãe da Ré declarou expressamente que o dito apartamento “ficou pago para a única herdeira, que é a Ré”, ali vivendo ambas, esclarecendo ainda que a Ré não repudiou a herança do pai, falecido há mais de 10 anos. Face a tais declarações, que tivemos por inteiramente verosímeis, conjugadas com o teor da certidão do serviço de finanças junta aos autos e, afigura-se ser de concluir nos moldes vertidos em 41. É certo que inexiste um documento de partilha e que a propriedade daquele imóvel também não está inscrita a favor da Ré, porém, a verdade é que já decorreram 10 anos desde a abertura da herança, que a única herdeira do falecido vive no imóvel daquele e, não impondo a lei a realização de inventário obrigatório, em regra, nessas circunstâncias o herdeiro nem sempre “oficializa” o ato partilha nem atualiza a titularidade dos bens. Nessa ótica, face à sobredita prova valorada de acordo com as regras da normalidade da vida e da experiência, tivemos por demonstrado o descrito em 41.”.

Pelo exposto improcede a pretensão da apelante de o ver eliminado.

7.2. Reapreciação jurídica da causa: da necessidade de autorização judicial para aceitação da herança do pai da Ré e, em caso afirmativo, consequências da sua omissão.

Através da presente acção pretende a Autora seguradora exercer o direito de regresso, ao abrigo do disposto no 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08 contra a Ré, filha do seu segurado, causador do acidente e no mesmo falecido.

Apesar de na contestação, a Ré ter referido, em sede de impugnação, que não havia aceitado a herança e que a partilha não havia sido feita (o que em princípio não faz sentido uma vez que o falecido pai da Ré não deixou outros herdeiros) o certo é que não retirou dessa afirmação quaisquer consequências.

Porém, fá-lo agora em sede recursória referindo que não inexistindo processo de autorização judicial para aceitação da herança, uma vez que era menor à data da morte do pai, não pode haver condenação da Ré na qualidade de herdeira.

Uma vez que na perspectiva da apelante a questão da necessidade de autorização judicial para aceitação da herança pode configurar uma condição de procedibilidade da acção e, portanto, ser reconduzível a uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso ( art.º 576º, nº2 e art.º 578º, ambos do CPC) passamos a dela conhecer por esse motivo.

Vejamos então.

A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (artigo 2031.º do Código Civil), sendo chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis, desde que tenham a necessária capacidade (artigo 2032.º, nº 1 do mesmo Código).

No caso, a Ré integra, isoladamente, a primeira classe de sucessíveis do “de cujus” (art.º 2133º a) do Cód. Civil).

Estabelece o nº1 do art.º 2050º que: “O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material”.

Como nos explica Pereira Coelho[1], o Código Civil parece ter querido consagrar a doutrina da aquisição mediante aceitação. Ora, isto significa que a aceitação se reveste de primordial importância no desenrolar do fenómeno sucessório, na medida em que só após a aceitação, e por força dela, o chamado ingressa na titularidade dos próprios bens ou direitos hereditários.

Caso não queiram aceitar a herança, deverão manifestar formalmente tal vontade através de repúdio (artigos 2062º e seguintes do C.Civil), caso em que são chamados os sucessíveis subsequentes, de harmonia com o disposto no artigo 2133.º, nº 1 do Cód.Civil.

O repúdio da herança é utilizado quando alguém quer afastar-se da sucessão a uma herança da qual não está interessado. Tal sucede por razões de ordem pessoal ou por razões de ordem material, designadamente, para evitar o cumprimento de encargos ou obrigações decorrentes dessa mesma herança.

Trata-se, portanto, de um acto pelo qual o chamado responde negativamente ao chamamento sucessório (artigo 2062º do Cód. Civil). Reconduz-se a um negócio jurídico unilateral não receptício e irrevogável (artigo 2066º do Código Civil), que tem lugar após abertura da sucessão, mas os seus efeitos retroagem a essa data, considerando-se como não chamado o sucessível que a repudia (artigo 2062º do Código Civil).

No caso, não há notícia de que a Ré (que no decurso da acção atingiu a maioridade já que nasceu em .../.../2005) a tenha repudiado.

Em contrapartida, resultou provado que:

- Foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros em que foi declarado, designadamente pela Dra. KK (a favor de quem a Legal representante da Ré, sua mãe, outorgou procuração junta a fls. 162) que a Ré era a única herdeira de seu falecido pai;

- Coube à Ré, na qualidade de herdeira de seu pai, o direito titulado por este sobre a fração autónoma com a letra ..., do prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...65;

- Correu termos no serviço de finanças de ... processo de participação de imposto de selo, instaurado por óbito de CC no qual a Ré figura como cabeça de casal da herança e herdeira /beneficiária da transmissão do bem imóvel descrito e, bem assim, de quota em sociedade (cfr. certidão de fls. 154 dos autos cujo teor se dá por reproduzido).

Ora, “ao invés do que ocorre para o repúdio, a aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser expressa (o que pressupõe a elaboração de um documento escrito, não estando sujeita à forma exigida para a alienação da herança) ou tácita (inferindo-se do comportamento do sucessível), conforme resulta da lei substantiva civil - art.º 2056º do Código Civil - importando sublinhar que o enquadramento jurídico de aceitação expressa e tácita da herança deve retirar-se a partir das noções gerais contidas no art.º 217º do Código Civil, daí que se deva entender como aceitação tácita da herança a manifestação de vontade que se deduz de simples factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

No que respeita ao critério para aferir da inequivocidade dos factos concludentes na declaração tácita, sustenta Mota Pinto, in, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, página 425 que o art.º 217º n.º1 do Código Civil “não exige que a dedução, no sentido de auto regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade”, arrimando, assim, a um critério prático e não estritamente lógico, outrossim, Rui de Alarcão, in, A confirmação dos negócios anuláveis, Volume I, página192, “há que buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial, ainda que não seja afastada a possibilidade de outro propósito” e ainda, no mesmo sentido, Manuel de Andrade, in, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1953, página 81 “aquele grau de probabilidade que baste na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões”.

A lei substantiva civil, embora não tenha estabelecido uma definição de aceitação tácita da herança, mas tendo a preocupação de conformar a necessidade de clarificar situações ligadas à consumação da sucessão e de afastar equívocos relativamente à vontade real do sucessível, não deixou de indicar actos imprecisos da intenção de vontade de quem os pratica, enquanto condutas que, na sua raiz tanto podem ter subjacente a vontade de aceitar o chamamento, como a simples intenção de não deixar perder ou deteriorar os bens da herança, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora,1998, página 93.

Decorre da lei substantiva civil, a necessidade de distinguir, na actuação do sucessível, a prática de meras providências de cariz de gestão, dos actos que indiquem, inequivocamente, ou, pelo menos, que revelem com grande probabilidade, que a administração dos bens traduz uma aceitação da herança[2].”.

Cremos, pois, que da conjugação dos assinalados factos se extrai a vontade da Ré, expressa através da sua legal representante, a sua mãe, de aceitar a herança de seu pai, especialmente da circunstância de lhe ter passado a caber a fracção que a integra, na qual passou a residir desde o óbito daquele, o que é bem revelador dessa mesma vontade.

Na verdade, a lei atribui aos pais a representação legal do filho menor, desse modo se suprindo a incapacidade de agir deste, para que aqueles, nessa qualidade, pratiquem os necessários actos jurídicos em nome do filho (art.º 1878º, n.º 1 do Cód. Civil).

É certo que este poder-dever de agir em nome do filho menor não é, no entanto, inteiramente livre, na medida em que nem sempre por eles pode ser exercido, nomeadamente estando em causa o património do filho menor.

Elenca, por seu turno, o art.º 1889º do Cód. Civil, sob a epígrafe “Actos cuja validade depende de autorização do tribunal” um conjunto de actos que os pais não podem praticar sem autorização prévia do tribunal, contemplando-se na alínea l) o “aceitar herança, doação ou legado com encargos, ou convencionar partilha extrajudicial”.

A necessidade de autorização do tribunal prende-se com a necessidade de protecção dos bens dos menores.[3]

Não está demonstrada a existência de tal autorização que, no caso, seria da competência do Ministério Público

De facto, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 272/01 de 13.10, procedeu-se à transferência da competência decisória do tribunal para o Ministério Público, designadamente em matéria de autorização para a prática de actos relativos aos menores pelos respectivos representantes.

Estabelece o nº 1 do artigo 2º do citado diploma que: “ São da competência exclusiva do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de:

a) Suprimento do consentimento, sendo a causa de pedir a menoridade, o acompanhamento ou a ausência da pessoa;

b) Autorização para a prática de atos pelo representante legal do menor ou do acompanhado, quando legalmente exigida;

c) Autorização para a alienação ou oneração de bens do ausente, quando tenha sido deferida a curadoria provisória ou definitiva;

d) Confirmação de atos praticados pelo representante do menor ou do acompanhado sem a necessária autorização.”.

Careceria a aceitação da herança do falecido CC de autorização prévia do Ministério Público?

Cremos que não.

É que os encargos da herança referidos no art.º 1889º do Cód, Civil não podem deixar de contemplar apenas as dívidas do de cujus à data da morte[4], não as que nascem posteriormente a esse momento, como é o caso da dívida emergente do direito de regresso em apreço.

Como se afirmou no acórdão desta Relação de 14.9.2023 (da mesma relatora): “Pressuposto do direito de regresso é que a seguradora haja satisfeito a indemnização ao lesado (cfr. artº 27º do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto).

De facto, o direito de regresso é um direito “ex novo”, que se constitui em virtude do pagamento de um crédito.

Sem que tal suceda, não existe direito de regresso já que este só nasce na esfera jurídica do respectivo titular com o cumprimento; só a partir de então pode ser exercido.”.

Por conseguinte, o nascimento da dívida pode ocorrer muito tempo depois da abertura da herança (e mesmo quando o herdeiro já tenha atingido a maioridade) não sendo nesse momento cogitável a obrigatoriedade de a aceitação carecer de autorização.

Aliás, nem se compreenderia a exigência legal se as dívidas não fossem as que existissem à data da abertura da herança.

Basta pensar que era necessária a autorização por via de uma dívida já existente naquele momento.

A mesma era concedida, ou não, tendo em conta o valor da herança e o da dívida.

Imagine-se que era concedida: Nesse caso, quando o direito de regresso da seguradora viesse a ser exercido, a aceitação já havia produzido os seus efeitos, sem que a dívida reclamada tivesse sido tida em conta naquela decisão.

Pelo contrário, se naquelas circunstâncias não tivesse sido concedida e, por conseguinte, não tivesse havido aceitação da herança nada mais restava à seguradora do que demandar a herança jacente!

De todo o modo, importa ainda considerar o seguinte:

Estabelece o nº1 do art.º 1893º do Cód.Civil que: “os actos praticados pelos pais em contravenção do disposto nos artigos 1889º e 1892º são anuláveis a requerimento do filho, até um ano depois de atingir a maioridade ou ser emancipado, ou, se ele entretanto falecer, a pedido dos seus herdeiros, excluídos os próprios pais responsáveis, no prazo de um ano a contar da morte do filho”.

Sempre se diga, que mesmo que se entendesse que a aceitação da herança carecia de ser autorizada, nem por isso a aceitação levada a efeito pela legal representante da menor deixava de produzir efeitos pois, como é sabido, “o acto anulável é um acto em princípio válido que pode não valer. A nulidade de um acto declara-se, reconhece-se; o acto anulável pode ser anulado ou não, conforme seja ou não exercido o direito potestativo de anulação. O acto anulável é um acto originariamente válido com a validade resolúvel embora se possa também dizer que é um acto inválido com a invalidade suspensa.[5]”.

Ademais, volvido quase um ano desde a data em que a Ré atingiu a maioridade, não há notícia de que tenha intentado qualquer acção com esse escopo, o que é igualmente revelador da sua pretensão de manter o domínio e posse do bem que lhe coube em herança.

Não pode deixar, pois, de responder, na qualidade de única herdeira do causador do acidente, pela quantia em que, por via do direito de regresso estabelecido no artº 27º do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto foi condenada a pagar à Autora (€364.545,76 acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento) e até ao limite dos bens que recebeu da herança do seu falecido pai.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, se acorda em julgar a apelação improcedente e em manter a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 25 de Janeiro de 2024

Maria João Sousa e Faro (relatora)

Francisco Xavier

Maria Amélia Ameixoeira

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[1] In Sucessões, 2ªed., 1968, pag.131

[2] Assim, Ac. STJ 10.9.2020 ( Oliveira Abreu).

[3] Neste sentido Moitinho de Almeida apud Código Civil Anotado de Abílio Neto, 11ª Ed. pag.1246.

[4] Segundo Galvão Telles, Sucessões, 2º, pag.156, nota 845, no passivo compreendem-se as dívidas do de cujus à data da morte.

[5] Carlos Ferreira de Almeida , “Invalidade, inexistência e ineficácia” Catolica Law Review , Vol. II, maio de 2017, pag.13