Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
749/14.0TBSSB.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
COMPOSSE
BENS COMUNS DO CASAL
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A posse exercida por qualquer dos cônjuges sobre um bem que integra um património coletivo (um direito uno sobre um bem que é comum do casal) deve ser entendida como exercida pelos dois titulares.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 749/14.0TBSSB.E1 (2ª secção cível)


ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

(…), casada, residente na Rua (…), n.º 18, 2.º, Dto., (…), intentou contra o seu marido (…), residente na Avenida (…), Edifício (…), 4º-G, (…), procedimento cautelar, articulando factos que em seu entender são tendentes a peticionar a restituição provisória da posse à requerente, do veículo automóvel de marca (…), com a matrícula (…), nas mesmas condições de conservação e funcionamento em que lhe foi retirado, bem assim como dos bens pessoais da requerente que se encontravam no interior do mesmo, e bem ainda, a condenação do requerido em sanção pecuniária compulsória no montante de 50,00€ diários por cada dia de falta na entrega do veículo à requerente.
Procedeu-se à produção de prova indicada pela requerente e, após fixação da matéria dada como provada e não provada, foi proferida decisão pela qual se decidiu ordenar a restituição imediata do veículo à mesma, indeferindo-se a condenação do requerido no pagamento de qualquer quantia título de sanção pecuniária compulsória.
Notificado o requerido veio deduzir oposição articulando factos que em seu entender, obstam ao decretamento da providência, devendo considerar-se a oposição procedente com a consequente revogação da providência de restituição do veículo.
Procedeu-se à produção de prova indicada pelo requerido e após fixação da matéria dada como provada e não provada foi proferida decisão, pela qual se decidiu julgar procedente a oposição deduzida e, revogar a providência decretada.
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Inconformada com esta decisão, veio a requerente interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as seguintes conclusões, que se transcrevem:
A) De acordo com a douta sentença ora recorrida, foi julgada procedente a oposição, deduzida e revogada a providência, decretada.
B) Determinando o tribunal “A quo” que até ao divórcio e partilha dos bens comuns do casal seja o veículo de marca (…), matrícula (…), restituído à posse do Requerido.
C) Fundamenta o meritíssimo juiz do tribunal “A quo” a sua decisão, em síntese, no facto de, segundo o seu entendimento, a posse do Requerido ser uma posse titulada e por isso preferir à da Requerente, ora Recorrente.
D) Acrescentando que na composse é possível o recurso à ação direta, de acordo com o disposto nos artº 1286º nº 2 e 3 e 1277º do C. Civil.
E) Conclui assim que não sendo o exercício da composse possível deverá a mesma ser exercida por quem beneficia de melhor posse, o Requerido.
F) Ora, salvo o devido respeito, não pode a ora Recorrente concordar com tal entendimento, pois viola o mesmo, claramente, as mais elementares regras de direito, quer civil quer processual, sendo, inclusive, a decisão proferida contraditória, não só no seu conteúdo como quando articulada com o conteúdo da sentença anteriormente proferida, com a qual forma um todo, senão vejamos.
G) Estamos no caso vertente no âmbito de uma providência cautelar, a qual se destina a acautelar e assegurar a reparação de um direito, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 362º do C.P.C..
H) Após decretada a providência, o Requerido pode recorrer da decisão ou deduzir oposição, de acordo com o disposto no artº 372º do C.P.C..
I) De acordo com o nº 3 da supra referida disposição legal, a decisão proferida na sequência da dedução de uma oposição, pelo Requerido, constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida.
J) Por sua vez, o artigo 377º do C.P.C., dispõe que na ação de restituição provisória da posse, no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído, provisoriamente, à sua posse, alegando factos que constituam a posse, o esbulho e a violência.
K) No caso em apreço, o tribunal “A quo” decidiu na primeira decisão proferida que se encontravam reunidos todos os elementos necessários ao decretamento da restituição provisória da posse, incluindo a existência de esbulho violento, tendo, por isso, ordenado a restituição do veículo à Requerente.
L) Por sua vez, na parte da sentença, ora recorrida, a qual decretou a revogação da providência, pode ler-se a dada altura que a eventual redução ou revogação da decisão anteriormente decretada apenas se poderá basear nos meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar o fundamento da providência.
M) Ora, não tendo sido provado nenhum facto que pudesse vir a alterar a douta sentença anteriormente proferida e que decretou a providência, ordenando a restituição do veiculo automóvel à ora Recorrente, não poderia, nunca, o tribunal “A quo” decidir pela revogação da providência decretada, da forma como o fez, pois
N) Colide esta decisão com a primeiramente proferida, sem que exista nenhum facto novo que o justifique.
O) O que existe é um entendimento diferente sobre o enquadramento jurídico dos mesmos factos por parte dos dois meritíssimos juízes que intervieram no processo, o que não constitui fundamento legal para a alteração da douta decisão anteriormente proferida, pois
P) A matéria de facto provada, relevante para a decisão da causa, manteve-se inalterada após a audição das testemunhas apresentadas pelo Requerido.
Q) Tendo assim o meritíssimo juiz do tribunal “A quo” ordenado a revogação da providência decretada com base nos mesmos factos que levaram a que fosse decretada, dando assim origem a uma sentença totalmente contraditória, o que é legalmente inadmissível, como reconhece o próprio juiz nesta decisão ora proferida, de acordo com o acima já alegado.
R) Chega o tribunal “A quo” ao ponto de considerar não ter existido esbulho violento, dado que o Requerido nada danificou no veículo, isto quando a primeira decisão pugnou, com base na mesma matéria de facto provada, pela existência de esbulho violento, dado que o Requerido partiu a tranca que se encontrava colocada no veículo e que impedia a sua retirada do local.
S) Ora, temos assim, no caso em apreço, uma mesma decisão, já que a segunda constitui parte integrante da primeira, que é contraditória entre si, julgando a mesma matéria de facto de modo totalmente diferente, com um resultado totalmente oposto, facto que é legalmente inadmissível e viola as mais elementares regras do direito.
T) Assim e desde logo a douta sentença ora recorrida, na parte em que revogou a providência anteriormente decretada viola o princípio da estabilidade do direito, criando uma decisão contraditória entre si, princípio esse que subjaz ao disposto no nº 3 do artº 372º do C.P.C. e que é assim violado pela douta sentença ora recorrida.
U) Defende o meritíssimo juiz do tribunal “A quo” que a posse do Requerido é que é uma posse titulada e que por isso prefere à da ora Recorrente, isto pelo simples facto de ser o nome do Requerido que consta no título de registo de propriedade do veículo e após ter anteriormente afirmado e reconhecido que perante as disposições legais aplicáveis o veículo em causa é bem comum do casal.
V) Conclui-se assim que a douta sentença ora proferida não só contraria a proferida anteriormente como se contraria os seus próprios fundamentos e afirmações.
W) De acordo com o disposto no nº 1 do artº 1259º do C. Civil diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir.
X) Ora, como reconhece o tribunal “A quo”, Requerente e Requerido casaram no regime da comunhão de adquiridos, tendo o veículo automóvel sido adquirido na constância do matrimónio, constituindo assim um bem comum do casal.
Y) Deste modo e perante a lei tanto a posse do Requerido como a posse da Requerente, ora Recorrente, são posse tituladas e de igual valor, não justificando assim tal fundamento a revogação da providência, decretada.
Z) Também no que respeita ao fundamento do recurso à ação direta, por parte do Requerido, é a mesma totalmente destituída de sentido, no caso vertente, pois
AA) Em primeiro lugar o recurso à ação direta constitui uma possibilidade de exceção, só é legalmente possível quando tal se mostre indispensável pela impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos, normais, para evitar a inutilização prática desse direito.
BB) Como é óbvio tal não se verificava no caso vertente, pois poderia o ora Recorrido sempre ter optado, tal como fez a ora Recorrente, por recorrer aos meios judiciais para ver reconhecido o direito a que se arroga sobre o veículo automóvel, se entendia tê-lo.
CC) No caso vertente, sobre o bem em causa existe um direito de propriedade comum, o que também inviabiliza, desde logo, o recurso à ação direta, pois estando nós perante uma situação de composse existe um direito de propriedade que é partilhado por ambos e a ação direta só pode ser usada contra terceiros, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 1286º do C. Civil.
DD) Não sendo a ora Recorrente um terceiro, pois detém sobre um veículo um direito de propriedade igual ao do ora Recorrido, não faz sequer sentido em falar na figura da ação direta, no caso vertente, já que não estão reunidos todos os pressupostos que permitam a utilização da mesma por parte do ora Recorrido.
EE) Assim o que releva para a decisão da presente causa é que estamos perante um bem comum sobre o qual a Requerente tem um direito de propriedade, estando assim provado o seu direito perante o bem em causa.
FF) Tendo a ora Recorrente, aquando da separação, trazido consigo o veículo, para as suas deslocações, com o consentimento do ora Recorrido.
GG) O qual ficou com a utilização de dois veículos que são propriedade de uma sociedade cuja quota constitui bem comum do casal, para a qual o Requerido trabalha, tendo sempre utilizado tais veículos para as suas deslocações, na constância do matrimónio.
HH) Da mesma forma que a ora Recorrente, desde a aquisição do veículo em causa sempre o tem utilizado para as suas deslocações, pois vive em (…) e trabalha em (…), sendo inviável utilizar transportes públicos nas suas deslocações e não tendo outro veículo para se deslocar.
II) Tendo sido esse o motivo pelo qual foi acordado entre Recorrente e recorrido que a Recorrente utilizaria aquele veículo até à partilha do património comum.
JJ) No entanto, o ora Recorrido mudou de ideias e decidiu retirar à Recorrente o veículo automóvel.
KK) Tendo-o feito enquanto o mesmo se encontrava estacionado no parque de estacionamento da ora Recorrente, isto após partir uma tranca que a ora recorrente tinha instalado.
LL) Após a retirada do veículo a ora Recorrente instaurou a presente ação que decretou a restituição do veículo automóvel.
MM) Após várias tentativas para a recuperação do mesmo, já que o ora Recorrido sempre se furtou a todas as notificações, a ora Recorrente viu o ora Recorrido a conduzir o veículo perto do local onde reside, num atitude de claro gozo e desafio.
NN) Durante esse período que esteve sem o veículo deslocou-se para o trabalho em veículo cedido pela empresa, já que se sentiu a entidade patronal responsável pela quebra de segurança no parque de estacionamento e entendeu o desespero da ora Recorrente que ficou sem saber como se deslocar para o trabalho uma vez que não dispunha de dinheiro para adquirir outro veículo.
OO) Após recuperar o veículo verificou a ora Recorrente que o ora Recorrido havia mandado substituir o canhão da ignição do veículo, pois a chave que lhe foi entregue era diferente da que ainda tinha na sua posse, a qual experimentou e não colocou o veículo em funcionamento.
PP) Facto que denota que o ora Recorrido não só violou o acordo sobre o uso do veículo até á partilha dos bens comuns que haviam feito aquando da separação, como era sua intenção não deixar a ora Recorrente partilhar o uso do veículo, como teria direito.
QQ) Assim e perante os factos supra expostos, entende a ora Recorrente que a douta sentença ora recorrida viola as mais elementares regras de direito, criando, no âmbito dos presentes autos, uma decisão contraditória entre si, já que baseada nos mesmos factos ordena a revogação da providência, anteriormente, decretada, violando assim o sentido do disposto no nº 3 do artº 372º do C.P.C..
RR) Para além disso excede a douta sentença, na parte ora recorrida o âmbito da decisão que lhe é legalmente permitida, tendo em atenção que negou, anteriormente, o pedido formulado no âmbito do nº 1 do artº 369º do C.P.C. pela ora Recorrente, pois
SS) Acaba por decidir sobre o mérito da causa quando determina o uso exclusivo do veiculo automóvel por parte do Requerido até à partilha, isto quando no âmbito da providência só lhe é permitido decidir sobre a manutenção ou revogação da providência, decretada, pois
TT) No âmbito da presente providência a ora Recorrente só requer que lhe seja restituído, provisoriamente, o veículo automóvel, bem como os bens pessoais que se encontravam no interior do mesmo, violando assim a parte da douta sentença, ora recorrida, o disposto no artº 368º e o nº 1 do artº 609º, ambos do C.P.C..
UU) Para alem disso existindo contradições entre ambas as decisões proferidas nos presentes autos, de acordo com o disposto no nº 2 do artº 625º do C.P.C., cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, que é aquela que decretou a providência cautelar, requerida.
VV) Pelo exposto deve ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente ser alterada a douta sentença proferida, na parte ora recorrida, no sentido de manter a providência anteriormente decretada, dado estarem reunidos todos os pressupostos para o decretamento da mesma, relegando-se para a sentença a proferir na ação principal, a instaurar pela ora Recorrente, a atribuição do uso do veículo automóvel até à sua partilha.
Apreciando e decidindo

Como se sabe o objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar:
1ª – Da (não) verificação dos requisitos para o decretamento da restituição provisória de posse.
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A matéria factual dada como provada na 1ª instância antes da audição do requerido foi a seguinte:
1. A Requerente e o Requerido são casados desde 20 de Maio de 1996, no regime da comunhão de adquiridos.
2. No final de Dezembro de 2013 Requerente e Requerido separaram-se de facto.
3. Nesse momento, a Requerente, de comum acordo com o Requerido, ficou com alguns bens móveis comuns e o Requerente levou outros, para a sua atual morada.
4. De entre os bens móveis que ficaram com a Requerida constava o veículo automóvel de marca (…), com a matrícula (…), bem adquirido na pendência do casamento.
5. Esse veículo automóvel foi sempre o utilizado pela Requerente nas suas deslocações, enquanto viveram em comunhão e desde a aquisição do mesmo.
6. O Requerido utilizava dois outros veículos automóveis, um de marca (…), de matrícula (…), e outro de marca (…), propriedade de uma sociedade, cuja quota foi adquirida na pendência do casamento.
7. Para evitar que o Requerido lhe retirasse o veículo referido em 4., a Requerente adquiriu e colocou no veículo uma tranca de bloqueio que se instala no interior do mesmo e impede que o mesmo seja colocado em movimento.
8. A Requerente habita em (…) e exerce a sua atividade profissional na Central de (…), em (…).
9. A Requerente tem que ir buscar o filho menor, de ambos, que ficou a seu cargo, à escola.
10. A Requerente aufere um vencimento base no montante mensal de € 1.226,05 (mil, duzentos e vinte e seis euros e cinco cêntimos).
11. A Requerente tem que pagar, mensalmente, as seguintes despesas:
a. Renda da habitação – 400,00 euros (quatrocentos euros);
b. Àgua e luz – 120,00 euros (cento e vinte euros);
c. Internet – 42,67 euros (quarenta e dois euros e sessenta e sete cêntimos);
d. ATL do filho – 234,50 euros (duzentos e trinta e quatro euros e cinquenta cêntimos);
e. Despesas de alimentação e vestuário.
12. No final de Maio de 2014 o Requerido, partindo a tranca de segurança que se encontrava no veículo e recorrendo à segunda cópia da chave, retirou o veículo à Requerente.
13. O Requerido levou todos os pertences pessoais da Requerente que se encontravam no interior do mesmo, incluindo CD’s, dinheiro, compras de supermercado e um casaco.
Após ter sido produzida prova em sede de oposição à providência o Julgador (diverso do que inicialmente apreciou a prova na fase anterior à oposição) entendeu manter os factos aludidos em 6., 8. a 11. e 13., tendo reformulado o demais acervo factual, fazendo consignar o seguinte quadro factual:
1. Requerente e requerido estão casados desde 20 de Maio de 1996, no regime da comunhão de bens adquiridos.
2. No final de Dezembro de 2013, requerente e requerido separaram-se de facto.
3. Na pendência do casamento, requerente e requerido adquiriram o veículo automóvel marca (…), matrícula (…).
4. Requerente e requerido não requereram a dissolução o casamento por divórcio e o património comum encontra-se por partilhar.
5. Desde a data da separação de facto indicada em 2 e, até data não concretamente apurada, mas situada em final de Maio de 2014, o veículo identificado em 3 foi utilizado exclusivamente pela requerente.
6. Em data não concretamente apurada mas posterior a 30 de Março de 2014, o requerido solicitou à requerente a entrega do veículo, o que a requerente recusou.
7. Para obstar a que o requerido utilizasse o veículo automóvel, a requerente colocou uma tranca de bloqueio no mesmo.
8. No final de Maio de 2014, o requerido acedeu ao interior do veículo com as chaves que possuía e, partindo a tranca, apoderou-se do veículo levando-o consigo.
9. A requerente pretende aceder e utilizar o veículo automóvel identificado em 3.
10. O requerido[1] pretende aceder e utilizar o veículo automóvel, identificado em 3.
11. O Banco BPI cobrou ao requerido as prestações relativas à aquisição do veículo automóvel de Janeiro a Outubro de 2014, num total de 7.414,60 € (sete mil, quatrocentos e catorze euros e sessenta cêntimos).
12. O requerido pagou à (…) Seguros o pagamento do prémio de seguro referente ao veículo indicado em 3, no valor de 59,79 € mensais em Janeiro, Fevereiro e Março de 2014, num total de 179,37 € (cento e setenta e nove euros e trinta e sete cêntimos).
13. O veículo identificado em 3 encontra-se inscrito no registo em nome do requerido.
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Conhecendo da questão
Na decisão impugnada, ao contrário, do inicialmente entendido, o Julgador a quo, tendo em conta o circunstancialismo factual apurado entendeu ter o requerido sobre o bem em causa, melhor posse que a requerente, não qualificando a sua atuação de “apropriação” do veículo como sendo esbulho violento e como tal modificou a decisão que anteriormente havia sido proferida, de decretamento da providência de restituição provisória de posse.
Na determinação da restituição provisória de posse é necessário que se conclua pela verificação dos três requisitos a que alude o artº 377º do CPC, ou seja, a existência de posse, o esbulho e a violência.
A recorrente defende que não obstante a oposição os factos essenciais se mantêm, donde a existência dos aludidos requisitos se evidencia pelo que a providência deverá ser mantida.
Em nossa opinião, entendemos ser esta, também, em face da lei, a posição que se deverá ter em consideração, pois não há dúvidas que ambas as partes reconhecem que o bem em causa é um bem comum do casal, pelo que nas relações entre ambos, quanto a nós, deve reconhecer-se irrelevância ao facto do bem, sujeito a registo, se encontrar registado apenas em nome de um dos cônjuges e daí concluir-se que goza de melhor posse (por ser titulada), do que a posse detida pelo outro cônjuge.
Quanto a nós, tal construção jurídica não se poderá fazer nas relações entre cônjuges em que se assuma que o bem em causa é um bem comum do casal.
“Os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges em bloco – assim, considera-se tal comunhão um verdadeiro património coletivo, pertencente em comum a várias pessoas, mas que por elas se não reparte em quotas ideais, ao contrário da compropriedade. Não há quotas pertencendo a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em bloco a ambos.
Trata-se de uma propriedade coletiva – os cônjuges são titulares de um único direito e de um direito uno; ao contrário da compropriedade, na qual cada um dos comproprietários possui um direito distinto sobre a coisa comum (neste sentido, P. de Lima e A. Varela, Código Anotado, IV - artº1730º e Pereira Coelho, Direito de Família, II (1969), pg. 125, cit. in Ac. R.C. 26/2/91 Col.I/82).
Se a citada comunhão é de domínio, necessariamente terá de ser uma comunhão de posse – neste sentido, Pereira Coelho, op. cit., pg. 142.
Assim, a posse exercida por qualquer dos cônjuges sobre um bem que integra um património coletivo (um direito uno sobre um bem) deve ser entendida como exercida pelos dois titulares”.
O requerido deseja a posse do veículo, em função de o mesmo integrar o respetivo património comum e de estar registado em seu nome, mas “encontrando-se já o bem sob a posse e domínio de um dos cônjuges”, a requerente, que o vinha utilizando quer antes, quer depois da separação, até o requerido dele se ter apropriado, sem o consentimento desta, “não é mais possível ao tribunal promover que se subtraia a posse a um dos cônjuges para o dar ao outro.
Tal diligência seria incompatível com a natureza do património comum conjugal, que apenas poderá ser dividido na sequência de extinção da comunhão, seja por via de divórcio, seja por via de separação judicial.”[2]
Na decisão impugnada o Julgador a quo reconhece que “após a separação de facto, a requerente passou a exercer a posse pública, pacífica e de boa-fé do veículo – artigo 1260.º, 1261.º e 1262.º do Código Civil”, mas entendeu que por constar do registo que o titular do veículo é o requerido a posse deste prefere à posse da requerente, sendo-lhe lícito fazer uso da ação direta, como fez, para passar a ter a posse efetiva do veículo em causa.
Mesmo que se entendesse que o requerido detinha melhor posse que a requerente, não nos parece que no caso em apreço se pudesse justificar o recurso à ação direta que no nosso ordenamento jurídico é admitida em termos cautelosos.[3] Pois, o recurso à ação direta em defesa de um direito nos termos consignados no artº 336º do CC, só é admissível, quando for indispensável, pela impossibilidade de se recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito,[4] “constituindo um expediente de emergência, que subentende a ulterior necessidade de o agente regularizar a situação através o meios coercivos normais” devendo fazê-lo logo que possível,[5] o que não aconteceu, no caso, por parte do ora recorrido.
Não existe uma verdadeira impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios coercivos normais, quando o recurso à força própria se funda somente na duração usual de um processo judicial,[6] sendo que no caso em apreço o requerido não invocou fundamento relevante para deixar de recorrer ao uso dos meios coercivos normais ao invés de fazer uso força própria, até porque não se vislumbra que a utilização do veículo por si fosse de primordial urgência considerando a necessidade premente, até porque mesmo após a separação do casal, ocorrida em finais de Dezembro de 2013, até a data em que pela força tomou posse efetiva do mesmo, finais de Maio de 2014, vinha utilizando veículos da empresa de que era sócio, tendo tempo suficiente para, querendo, ter recorrido ao tribunal utilizando os meios coercivos normais para fazer valer o direito a que se arroga.
Por tal, tendo a recorrente a posse do veículo na altura em que dela foi privada, contra a sua vontade, do exercício da fruição do mesmo por parte do recorrido cuja conduta, como foi entendido, na decisão que concluiu a fase unilateral da providência, consubstancia uma situação de esbulho com violência, através do arrombamento de uma tranca de segurança de que o mesmo dispunha e que constituía um obstáculo para o esbulho.
Pois, no que concerne ao requisito da violência, a nosso ver e de acordo com o que consideramos ser a melhor orientação jurisprudencial e doutrinária (cfr. Acs. S.T.J. de 03/05/2000 e de 27/09/2001 disponíveis em www.dgsi.pt, bem como de 07/07/1999, este no B.M.J. 489º, 338; Ac. TRE de 12/03/1998, in C.J. tomo 2, 269; Menezes Cordeiro in A Posse - Perspectivas Dogmáticas Actuais, 142; Moitinho de Almeida “Restituição de Posse” 113; Lebre de Freitas, C.P.C. anotado vol. 2, 74; Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, Almedina, 2001, 44 e 45), é admissível que atos de força sobre as coisas possam configurar o conceito de esbulho violento, se forem um instrumento de coação sobre as pessoas, impedindo-as do exercício da posse.
Pois, como salienta Lebre de Freitas in ob. cit., é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de “contatar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador”.
Assim sendo, a requerente logrou provar, não só a existência do direito ameaçado (em termos de probabilidade e verosimilhança), o fundado receio da sua lesão como ainda o esbulho violento, pelo que entendemos não se mostrar ajustada a decisão impugnada, a qual deve ser revogada a fim de prevalecer a proferida anteriormente após conclusão da fase unilateral, procedendo, nessa medida o recurso.
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Para efeitos do n.º 7 do artº 663º do Cód. Processo Civil, em conclusão:
1- A violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas.
2 - Quando a atuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;
3 – Consubstancia esbulho violento a atuação através do arrombamento de uma tranca de segurança de que o veículo automóvel dispunha e que constituía um obstáculo para a espoliação.
4 - O recurso à ação direta em defesa de um direito nos termos consignados no artº 336º do CC, só é admissível, quando for indispensável, pela impossibilidade de se recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito.
5 - Não existe uma verdadeira impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios coercivos normais, quando o recurso à força própria se funda somente na duração usual de um processo judicial.
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DECISÂO
Pelo exposto, nos termos supra referidos, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão impugnada, mantendo-se a decisão proferida anteriormente após conclusão da fase unilateral.
Custas pelo apelado.

Évora, 12 de Março de 2015


Mata Ribeiro

Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura

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[1] - Corrigiu-se o lapso de escrita onde se aludia a “requerente” fez-se consignar “requerido”.
[2] - v. Ac. do TRG de 23/06/2004 no processo 1227/04.1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] - v. Pires de Lima e A. Varela in Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, 299.
[4] - v. Ac. do STJ de 20/04/1988 in BMJ, 376º, 366.
[5] - v. Almeida Costa in Direito das Obrigações, 11ª edição, 570.
[6] - v. Ana Taveira da Fonseca in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, 795; Acs. do TRP de 12/04/2005 e do STJ de 19/04/2012, disponíveis in www.dgsi.pt.