Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
346/21.4T8LLE-A.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – A obrigação de prestação de contas recai sobre quem faça a administração de bens alheios, a qualquer título.
2 – Embora caiba legalmente ao cabeça de casal a administração dos bens da herança não lhe pode ser exigida a prestação de contas em relação a bens que não estejam de facto sob a sua administração.
3 – Verificando-se que na sequência de acordo entre os interessados algumas receitas pertencentes à herança foram destinadas às necessidades pessoais do cabeça de casal, esse acordo não afasta a obrigação da sua inclusão nas contas a prestar.
4 – Não constitui abuso de direito a conduta do interessado que anos após a vigência dessa situação e desse acordo vem requerer a prestação de contas também incluindo essa matéria.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:

Apelação n.º 346/21.4T8LLE-A.E1 (1ª Secção Cível)
*
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
Correndo os seus termos processo de inventário para partilha da herança de AA, requerido pela viúva do falecido, BB, que exerce as funções de cabeça de casal, e em que são interessadas além da referida BB as duas filhas do casal, CC e DD, veio a interessada CC requerer, por apenso, contra a cabeça de casal, sua mãe, a presente acção especial de prestação de contas.
Peticiona a requerente que se determine a prestação de contas pela cabeça de casal no período compreendido entre os anos de 2013 a 2020, discriminando as rendas recebidas e prestando informações completas sobre as contas bancárias, rendimentos e investimentos bancários, bem como as despesas com a administração da herança.
Alega a requerente que desde o falecimento de seu pai AA a cabeça de casal nunca apresentou contas aos demais interessados da herança, sendo que do acervo hereditário fazem parte vários imóveis que se encontram arrendados.
Com vista a assegurar a legitimidade, requereu a intervenção principal provocada, do lado activo, da co-herdeira DD.
Citada, respondeu a cabeça-de-casal alegando, em suma, que tendo esta acção sido instaurada como dependência do processo de inventário só está obrigada a prestar contas relativamente ao período que se iniciou com a sua nomeação para o exercício do cargo de cabeça de casal e foi ajuramentada como tal nestes autos, in casu, desde ../../2020.
Alegou ainda que a obrigação de prestar contas apenas se verifica relativamente aos bens que efectivamente administra, sendo que tem sido a própria Autora que tem vindo a administrar, de facto, os bens imóveis agora descritos nas verbas 21, 22 e 23 da relação de bens, e ela, cabeça de casal, apenas tem a administração dos armazéns descritos nas verbas 8 e 12 da mesma relação de bens, que se encontram arrendados, e do bem descrito na verba 28, através da tiragem da respectiva cortiça.
Diz ainda a cabeça de casal, no que diz respeito às rendas recebidas, que após o óbito do inventariado ficou acordado com as filhas que tais rendas ser-lhe-iam atribuídas na sua totalidade por auferir uma pensão de reforma baixa, nunca tendo tal acordo, até à data da instauração desta acção de prestação de contas, sido contestado.
Por seu lado, a interessada DD, cuja intervenção foi admitida, veio aos autos sustentar a mesma posição da cabeça de casal quanto à data a partir da qual surge a obrigação de prestar contas nestes autos, concluindo ainda que caso a cabeça de casal tenha de prestar contas as mesmas não deverão abranger as verbas 21 a 23 e essa obrigação apenas se deverá reportar ao período posterior a 22.07.2020.
Finalmente, pede a interessada DD que a própria Autora preste contas, desde 2013 até à presente data, quanto às verbas cuja administração de facto considera que tem sido exercida por ela.
Na sequência dessas posições da cabeça de casal e da interessada DD, a Autora apresentou resposta sustentando que a obrigação de prestar contas por parte da cabeça de casal se verifica desde a data do óbito do inventariado, uma vez que ficou investida nesse cargo por força da lei, e no que diz respeito às verbas cuja administração de facto lhe é atribuída dizendo que todos os actos praticados no âmbito dessa gestão o foram, única e exclusivamente, para auxiliar a cabeça-de-casal e a pedido da própria.
No mais, quanto à atribuição do produto das rendas à cabeça-de-casal nega a existência do acordo nos termos sustentados pela Ré e pela Interveniente, sustentando que nunca renunciou ao direito de exigir a prestação de contas.
Prosseguindo os autos a sua marcha, foi realizado julgamento, e foram produzidas as provas indicadas pelas partes.
Finalmente, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré, cabeça-de-casal, a prestar contas relativas à administração da herança no período compreendido entre a data do falecimento do inventariado e até 2020, com excepção das receitas geradas pelos bens descritos nas verbas 8), 12), 21), 22) e 23).
Contra esta sentença, na parte que rejeitou o seu pedido, reagiu a Autora CC através do presente recurso de apelação.
*
II – FUNDAMENTOS DO RECURSO
Fundamentando o recurso de apelação interposto, a recorrente apresenta no final das suas alegações as seguintes conclusões, que transcrevemos, para melhor compreensão das questões controvertidas:
A) O presente recurso tem como objecto a Sentença proferida em 24/06/2022 na parte em que excepciona da obrigação da Ré prestar contas as “receitas geradas pelos bens descritos nas verbas 8), 12), 21), 22) e 23)” da Relação de Bens.
B) Não existiu nenhuma concordância/acordo da Recorrente no sentido de, sem mais pressupostos, de forma incondicional, as rendas dos imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens) serem “atribuídas na sua totalidade à Ré, por esta auferir uma pensão de reforma baixa”.
C) Verifica-se um erro de julgamento do douto Tribunal a quo ao desconsiderar na matéria de facto relevante para a decisão da causa o facto alegado no ponto 41 do requerimento de resposta à Contestação apresentado em 9/06/2021 (ref.ª...78).
D) Devendo o Venerando Tribunal ad quem alterar a decisão sobre a matéria de facto proferida na Sentença recorrida, dando como provado o facto correspondente ao alegado no ponto 41 do requerimento de resposta à Contestação apresentado em 9/06/2021 (ref.ª...78), o que se requer, face às supra transcritas declarações de parte da Autora na sessão da audiência de julgamento realizada em 02/05/2022 (cfr. acta ref.ª...96), constantes do ficheiro 20220502163827_4182773_2870834 gravado na base de dados interna do Tribunal (minutos 00:02:05 a 00:02:50, e 00:21:08 a 00:22:08), e ao depoimento da testemunha EE na sessão da audiência de julgamento realizada em 20/05/2022 (cfr. acta ref.ª ...25) constante do ficheiro 20220502163827_4182773_2870834 gravado na base de dados interna do Tribunal (minutos 00:04:13 a 00:06:35, 00:15:14 a 00:16:08, 00:17:48 a 00:20:13, e 00:23:10 a 00:24:40), que em nenhum momento foram postas em causa, aditando-se à matéria assente o seguinte facto: “O acordo referido em 8 teve como pressuposto que as partilhas dos bens do Inventariado se iriam fazer nos termos acordados entre as partes, designadamente com usufruto de todos os bens a favor da Ré e divisão da propriedade de todos os imóveis a favor da ora Autora e da sua irmã, a Interveniente DD, em partes iguais”..
E) Existiu um evidente erro de julgamento do douto Tribunal a quo ao considerar provado o facto 10 da Sentença recorrida na redacção que lhe foi conferida e, também relacionado com esse facto, ao julgar não provados os factos a) e b) enunciados na Sentença recorrida.
F) Face ao teor conjugado dos documentos nº3 e nº7 da Contestação apresentada pela Ré em 17/05/2021 (ref.ª...39); do documento nº4 do requerimento de resposta apresentado em 9/06/2021 (ref.ª...78); do depoimento da testemunha EE na sessão da audiência de julgamento realizada em 20/05/2022 (cfr. acta ref.ª ...25) constante do ficheiro 20220502163827_4182773_2870834 gravado na base de dados interna do Tribunal (minutos 00:20:27 a 00:21:17); das declarações de parte da Ré BB na sessão da audiência de julgamento realizada em 02/05/2022 (cfr. acta ref.ª...96) constantes do ficheiro 20220502154558_4182773_2870834 gravado na base de dados interna do Tribunal (minutos 00:19:03 a 00:19:13); e das declarações de parte da Autora na sessão da audiência de julgamento realizada em 2/05/2022 (cfr. acta ref.ª...96) constantes do ficheiro 20220502163827_4182773_2870834 gravado na base de dados interna do Tribunal (minutos 00:18:13 a 00:18:50, 00:04:34 a 00:18:50, e 00:32:37 a 00:35:04), deverá este Venerando Tribunal ad quem alterar a decisão sobre a matéria de facto constante da Sentença recorrida, concretamente:
i) Alterar a redacção do facto provado 10 da Sentença recorrida, do mesmo sendo eliminada a referência à administração do valor das rendas pela Autora, passando consequentemente a ter a seguinte redacção: “10. A gestão das fracções autónomas referidas em 9., desde o óbito do inventariado, tem sido feita pela Autora CC, que recebe o valor das respectivas rendas.”.
ii) Remover o facto a) da matéria de facto não provada, e levar à matéria de facto assente o seguinte facto: “Os actos praticados pela Autora no âmbito da gestão das verbas 21), 22) e 23) foram, única e exclusivamente, a pedido da Ré e para auxiliá-la.”
G) Face ao teor conjugado do documento nº3 da Contestação apresentada pela Ré em 17/05/2021 (ref.ª...39); do documento nº4 do requerimento de resposta apresentado em 9/06/2021 (ref.ª...78); e das declarações de parte da Autora na sessão da audiência de julgamento realizada em 2/05/2022 (cfr. acta ref.ª...96) constantes do ficheiro 20220502163827_4182773_2870834 gravado na base de dados interna do Tribunal (minutos 00:04:34 a 00:17:34), deverá este Venerando Tribunal ad quem alterar a decisão sobre a matéria de facto constante da Sentença recorrida, removendo o facto b) da matéria de facto não provada, e levando à matéria de facto assente o seguinte facto: “É a Ré que usufrui das rendas provenientes do arrendamento das fracções referidas em 9)”.
H) As rendas dos imóveis correspondentes às verbas 8) e 12) da Relação de Bens, futuras no momento do acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida, são, inelutavelmente, frutos percebidos até à partilha, e como tal, ao abrigo do artigo 2069º alínea d) do Código Civil, fazem parte do acervo da herança do Inventariado, não pertencendo à Autora, à Ré e à Interveniente DD, mas sim, bem diferentemente, à herança indivisa do Inventariado, e como tal pelo aludido acordo não houve uma transmissão para a Ré de um direito a rendas futuras que pertencesse à Autora, à Ré e à Interveniente DD.
I) Tendo a Autora aceitado a herança do Inventariado, com efeitos desde o momento da abertura da sucessão, e sendo essa aceitação irrevogável nos termos do artigo 2061º do Código Civil, o acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida, no sentido das rendas (futuras) dos imóveis correspondentes às verbas 8) e 12) da Relação de Bens serem “atribuídas na sua totalidade à Ré”, corresponde a uma revogação parcial da aceitação da herança.
J) E assim sendo tal acordo entre as partes é manifestamente ilegal por violar o disposto no artigo 2061º do Código Civil, estando ferido com o desvalor da NULIDADE, nos termos do artigo 294º do Código Civil, por ter sido celebrado contra uma disposição legal de carácter imperativo, que se requer que seja declarada.
K) Quando assim não se entenda, tendo em conta que o efeito de tal acordo é a revogação parcial da aceitação da herança, contrariando o disposto no artigo 2061º do Código Civil, verifica-se o desvalor da NULIDADE nos termos do artigo 280º nº1 do Código Civil, que se requer que seja declarada.
L) De outra perspetiva, tendo em conta que uma herança não pode ser aceite, nem pode ser repudiada, só em parte, nem a Autora nem a Interveniente DD poderiam renunciar à parte do acervo da herança do Inventariado correspondente às rendas percebidas dos imóveis que constituem as verbas 8) e 12) da Relação de Bens, pelo que o acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida é ilegal também por violar o disposto nos artigos 2054º nº2 e 2064º nº2 ambos do Código Civil, estando ferido com o desvalor da NULIDADE, nos termos do artigo 294º do Código Civil, ou, quando assim não se entenda, nos termos do artigo 280º nº1 do mesmo diploma legal, que se requer que seja declarada.
M) O acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida corresponde a uma transmissão da Autora, e da Interveniente DD, para a Ré, de um direito de propriedade que não possuem sobre as rendas da herança, configurando uma doação de bens alheios, pelo que, também nos termos do artigo 956.º n.º1 do Código Civil o acordo está fulminado pelo desvalor da NULIDADE, o que se requer que seja declarado.
N) Sendo a possibilidade de doação de bens futuros expressamente afastada pelo artigo 942º nº1 do Código Civil, verifica-se também que o acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida sempre teria um objecto contrário à lei, estando inquinado pelo desvalor da NULIDADE nos termos do artigo 280º nº1 do Código Civil, que se requer que seja declarada.
O) Contrariamente ao que fez o Tribunal a quo na Sentença recorrida, e que configura um erro de julgamento na aplicação do direito, no caso dos autos não se podia ignorar que acordo enunciado no facto provado 8 configura uma renúncia antecipada a direitos.
P) Renúncia essa que viola o princípio imperativo da irrenunciabilidade antecipada a direitos e que, como tal, nos termos conjugados dos artigos 809º, 280º nº1 e 294º todos do Código Civil, inquina o acordo com o desvalor da NULIDADE, a qual deveria ter sido oficiosamente conhecida pelo Tribunal a quo, e se requer que seja declarada.
Q) Ao considerar preenchidos os pressupostos do instituto do abuso de direito a Sentença recorrida incorre em erro de julgamento, quer face ao julgamento da matéria de facto que deverá ser alterada nos termos propugnados no presente recurso, quer face à invalidade do acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida.
R) A Autora, com o acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida, não criou na Ré qualquer expectativa, que se possa considerar legítima, de que não iria exigir a prestação de contas relativamente às rendas dos imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens e, como tal, o exercício desse direito não é abusivo e ilegítimo.
S) Ao intentar o processo de Inventário foi a própria Ré quem inviabilizou a manutenção do acordo, e não sendo possível a manutenção do seu pressuposto fundamental por força da actuação da própria Ré, que incumpriu o acordo, tornou-se completamente legítima a actuação subsequente da Autora ao exigir da Ré que preste contas da administração que realizou.
T) A Ré sempre esteve ciente de que, como não poderia deixar de ser, ao actuar em sentido contrário ao pressuposto fundamental do acordo teria de cumprir o seu dever legal de prestar contas das rendas enquanto Cabeça de Casal e desde a data do óbito do Inventariado, legitimando a actuação da Autora no sentido de lhe exigir que preste contas.
U) Contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo em erro de julgamento, ao exigir da Ré que preste contas da administração que realizou dos imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens, e nomeadamente das rendas recebidas, a Autora i) não está a exceder, e muito menos “manifestamente” como impõe o artigo 334º do Código Civil, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; ii) nem exorbitou o exercício do direito de exigir contas à Cabeça de Casal da herança.
V) A Autora está a exercer legitimamente um direito que lhe assiste, não estando verificados os requisitos da aplicação do instituto do abuso de direito, em nenhuma das suas modalidades.
W) O acordo a que alude o facto provado 8 da Sentença recorrida, sendo um negócio jurídico que foi celebrado contra disposições legais de carácter imperativo, e cujo objecto é contrário à lei, e como tal nulo, e sendo partes no mesmo a Autora, a própria Ré, e a Interveniente DD, todas em situação de paridade e na qualidade de Interessadas na partilha da herança do Inventariado, nunca poderia configurar um comportamento relevante gerador da confiança na Ré de molde a que aquela pudesse acreditar, fundadamente, que nunca teria de prestar contas, ou que não lhe seriam exigidas, das “receitas geradas” pelos bens imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens.
X) Ao não atender à evidente nulidade do acordo entre as partes, o Tribunal a quo não teve em consideração que tal acordo é contrário a disposições legais de carácter imperativo, e tem um objecto contrário à lei, e como tal em nenhum caso se poderia considerar que é suscetível de gerar algum tipo de expectativa legítima na Ré, e muito menos quando essa expectativa seria de afastamento de um dever legal de prestar contas que lhe competia respeitar na qualidade de Cabeça de Casal.
Y) Ao reconhecer ao acordo descrito no facto provado 8 efeitos jurídicos que foram determinantes na aplicação do instituto do abuso de direito o douto Tribunal a quo incorreu num evidente erro de julgamento.
Z) A Autora nunca renunciou ao seu direito à prestação de contas da herança do Inventariado, o que sempre corresponderia a uma renúncia antecipada a direitos, que não é legalmente admissível.
AA) Apurando-se que o Cabeça de Casal administra determinado bem, e como tal está obrigado a prestar contas dessa administração, não cabe ao Tribunal, na fase “inicial (em que nos encontramos), de apuramento da obrigação de prestar contas” limitar essa prestação de contas às receitas recebidas ou às despesas realizadas.
BB)Na decisão proferida sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas não pode o Tribunal limitar a prestação de contas a alguma das vertentes dessa administração dos bens alheios, ou seja, à apresentação de receitas ou de despesas por quem administra e está obrigado a prestar contas dessa administração.
CC)As rendas que a Ré recebeu no âmbito da administração que realizou dos imóveis que constituem as verbas 8) e 12) da Relação de Bens, sendo esses rendimentos bens da herança e ao mesmo tempo receitas da sua administração, têm, necessariamente, de ser declaradas nas contas a prestar na segunda fase do processo de prestação de contas, entrando na conta-corrente como receitas.
DD) Entregando a Cabeça de Casal esses rendimentos/rendas a si própria enquanto Interessada na Partilha, e ainda que essa actuação decorra do acordo enunciado no facto provado 8 da Sentença recorrida, nas contas que vier a apresentar tais entregas de rendimentos da herança têm necessariamente de entrar como despesas, conforme decorre das disposições conjugadas do artigos 2092º e 2093º nº2 ambos do Código Civil.
EE) O Tribunal a quo não poderia, mesmo perante o acordo a que alude o facto provado 8, limitar a segunda fase do processo de prestação de contas, e antecipar a apreciação de uma questão que só aí poderia ser apreciada, tendo cometido um erro de julgamento ao, depois de decidir bem que a Ré tem de prestar contas da administração dos imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens, excetuar dessa obrigação as “receitas geradas”, porquanto, face ao disposto nos artigos 2092º e 2093º nº2 ambos do Código Civil, mesmo perante o referido acordo das partes, nas contas a apresentar a Ré tem sempre de apresentar como despesa os rendimentos da herança entregues aos herdeiros, e concretamente os rendimentos/rendas recebidas.
FF) Ainda que a administração dos bens de uma herança possa ser realizada, de facto, por alguém que não é Cabeça de Casal, do artigo 2095º do Código Civil resulta que o Cabeça de Casal, embora possa partilhar o seu dever de administração com outrem, nunca se pode desonerar por completo, transmitindo para terceiros, dos deveres legais inerentes ao exercido do cargo, e nomeadamente do dever legal de prestar contas quanto à administração de determinado bem da herança.
GG) Outra interpretação, no sentido de permitir ao Cabeça de Casal transmitir a componente patrimonial do seu cargo a um terceiro, eximindo-se do seu dever de prestar contas quanto à administração realizada por esse terceiro, seria gerador da maior incerteza, pondo em causa a segurança jurídica que se pretendeu com a norma imperativa da intransmissibilidade do cargo prevista no artigo 2095º do Código Civil.
HH) Nunca se poderia considerar que os actos de praticados pela Autora quanto aos imóveis correspondentes às verbas 21), 22) e 23) da Relação de Bens excluem a Ré do seu dever legal de prestar contas, pelo que, face ao disposto no artigo 2095º do Código Civil, o douto Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento ao excetuar da obrigação da Ré prestar contas as “receitas geradas” pelos referidos imóveis.
II) Atendendo a que deverá ser considerado provado que “Os actos praticados pela Autora no âmbito da gestão das verbas 21), 22) e 23) foram, única e exclusivamente, a pedido da Ré e para auxiliá-la”, e que “é a Ré que usufrui das rendas provenientes do arrendamento das fracções correspondentes às verbas 21) e 22) da Relação de Bens” fica patente o erro de julgamento constante da Sentença recorrida ao excetuar da obrigação da Ré prestar contas as “receitas geradas” pelos referidos imóveis.
Termos em que vem a Autora requerer a este Venerando Tribunal ad quem que a presente Apelação seja julgada totalmente procedente, proferindo-se douto Acórdão no qual:
i) seja alterada a decisão sobre a matéria de facto constante da Sentença recorrida, nos termos aqui propugnados;
ii) seja declarada a nulidade do acordo referido no facto provado 8 da Sentença recorrida, pelos termos e fundamentos que supra se enunciaram; e, em consequência e por merecer procedência também o demais que vem exposto nas alegações de apelação,
iii) seja revogada a Sentença recorrida proferida em 24/06/2022:
a) na parte em que decidiu excetuar da obrigação da Ré prestar contas as receitas geradas pelos bens imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens, e
b) na parte em que decidiu excetuar da obrigação da Ré prestar contas as receitas geradas pelos bens imóveis descritos nas verbas 21), 22) e 23) da Relação de Bens, devendo ser substituída por decisão que determine a obrigação da Ré prestar contas da administração de todos os referidos imóveis, com o que se fará a devida e costumada JUSTIÇA!”
*
III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Apresentaram contra-alegações tanto a cabeça de casal como a Interveniente DD, ambas defendendo a improcedência do recurso, tanto no que se refere à impugnação da matéria de facto como no respeitante à matéria de Direito, e pedindo em consequência a confirmação da decisão impugnada.
*
IV - DOS FACTOS
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos, declarados relevantes para a decisão da causa:
1. A Autora CC é herdeira e interessada nos autos de Inventário a que os presentes se encontram apensos, por óbito de seu pai AA, ocorrido em ../../2013.
2. Além da Autora, o inventariado deixou como herdeiras a Ré BB, com quem era casado sob o regime de comunhão geral de bens, e a Interveniente, sua filha, DD.
3. No dia 8 de Maio de 2013 foi celebrada escritura pública de habilitação de herdeiros, tendo, para o efeito, a Ré BB comparecido no Cartório Notarial, sito na Rua ..., em ..., na qual declarou, além do mais, desempenhar o cargo de cabeça de casal.
4. A Ré BB instaurou o processo de inventário, em 27 de Julho de 2020, no Cartório Notarial ... onde correu termos sob o n.º 497/20, no âmbito do qual juntou auto de juramento de fiel desempenho da sua função de cabeça de casal datado de 20 de Julho de 2020.
5. A requerimento da cabeça de casal, o processo de inventário foi remetido para tribunal por despacho de 19 de Janeiro de 2021, tendo sido distribuído a este Juízo Local Cível no dia 3 de Fevereiro de 2021.
6. A herança do inventariado é composta pelos seguintes bens:
VERBA 1: 136.719 Acções do Banco Comercial Português com o valor nominal – à data da emissão da certidão da CMVM junta aos autos – de 0,093€ com o valor total de 12.714,86€.
VERBA 2: Saldo de depósito à ordem na conta ...70 da Caixa de CRédito Agrícola Mútuo entre Tejo e Sado, CRL. que apresentava à data do óbito o saldo de 1.769,66€.
VERBA 3: Saldo de depósito à ordem na conta ...75 da Caixa de CRédito Agrícola Mútuo entre Tejo e Sado, CRL. que apresentava à data do óbito o saldo de 1.253,66€.
VERBA 4: Valores monetários depositados em conta de depósito a prazo na conta ...50 da Caixa de CRédito Agrícola Mútuo entre Tejo e Sado, CRL. com o saldo que apresentava à data do óbito e actualmente de 60.000,00€.
VERBA 5: Valores monetários depositados em conta ...40 do NOVO BANCO S.A. com o saldo que apresentava à data do óbito e atualmente de 479,64€.
VERBA 6: 6 Salvas de prata, no valor global de 820,00€.
VERBA 7: Veículo Automóvel Ligeiro marca ..., matrícula ..-..-QD, modelo ... com o valor declarado à data do óbito de 6.000,00€ e valor actual de 4.000,00€.
VERBA 8: Imóvel sito na Estrada ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17 e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...08 proveniente do artigo 3241.
VERBA 9: Imóvel correspondente à fracção ..., ... andar, sito na Av. ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...19... e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...32.
VERBA 10: Imóvel correspondente à fracção ..., estacionamento coberto e fechado, sito na Av. ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...26... e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...32.
VERBA 11: Imóvel correspondente a garagem, sito na Urbanização ... do Palácio da Justiça no ..., ... ..., correspondente ao lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...25 e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...18 proveniente do artigo ...95 da extinta freguesia ....
VERBA 12: Imóvel correspondente a armazém sito na Rua ... no ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...07 e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...76 proveniente do artigo ...58 da extinta freguesia ....
VERBA 13: Imóvel correspondente à fracção ..., ..., sito na Rua ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...09... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ...92.
VERBA 14: Imóvel Rústico sito em ..., em ..., composta por terra de pastagem com 70 ... e 28 ...; confronta a Norte com FF e outros, sul com ..., nascente com GG e poente com HH; de que a herança detém 1/6 em compropriedade, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...25 e inscrito na matriz Predial Rústica da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 15: Imóvel Rústico sito em ..., em ..., composta por terra de pastagem com 100 ... e 55 ...; confronta a norte com II e outro; sul com JJ e outros; nascente com KK e outros e poente com LL e outro; de que a herança detém 1/6 em compropriedade, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...25 e inscrito na matriz Predial Rústica da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 16: Imóvel Rústico sito em Cova ... – Tesoureiro; composto por terra de cultura, pastagem com diferentes árvores, 29 ... e 18 ...; confronta a norte com caminho, sul com Pousada ..., nascente com MM e Poente com NN e outros, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...15 e inscrito na matriz Predial Rústica da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 17: Imóvel urbano sito na Rua ..., ... ..., correspondente a uma morada de casa térrea, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...05 e inscrito na matriz Predial da Freguesia ... sob o artigo ...48.
VERBA 18: Imóvel urbano correspondente à ... A, sito na Rua ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...10... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ...67.
VERBA 19: Imóvel urbano correspondente à fracção ..., estacionamento coberto e fechado, sito na Rua ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...10... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 20: Imóvel urbano correspondente à fracção ..., estacionamento coberto e fechado, sito na Rua ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...10... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 21: Imóvel urbano correspondente à fracção ..., ... Andar., sito na Rua ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 22: Imóvel urbano correspondente à fracção ..., ... andar., sito na Rua ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 23: Imóvel urbano correspondente à fracção ..., ...., sito na Rua ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29... e inscrito na matriz Predial Urbana da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 24: Imóvel Rústico sito em ..., ..., ..., composto por terra de cultura com diferentes árvores (18 ... e 6 ...); confronta a Norte com BB, sul com OO, nascente com ribeiro e poente com caminho; descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...15 e inscrito na matriz Predial Rústica da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 25: Imóvel Rústico sito em ..., ..., destinado a pastagem; confronta a norte com PP, sul e nascente com QQ e poente com RR; descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...25 e inscrito na matriz Predial Rústica da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 26: Imóvel Rústico sito em ..., ...; composto por terra de cultura e pastagem com árvores (4 ...); confronta a norte com NN e outro, sul com SS, nascente com ribeiro e poente com TT; descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...25 e inscrito na matriz Predial Rústica da Freguesia ... sob o artigo ....
VERBA 27: Imóvel urbano, sito na Herdade ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...21 e inscrito na matriz ... na União das Freguesias de ... sob o artigo ...56.
VERBA 28: Imóvel rústico, sito na Herdade ..., ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...21 e inscrito na matriz Predial Rústica na União das Freguesias de ... sob o artigo ..., Secção EE.
7. Os armazéns que constituem as verbas 8) e 12) encontram-se arrendados.
8. Após o óbito do inventariado, em Abril de 2013, a Autora, a Interveniente, sua irmã, DD e a cabeça de casal acordaram entre si que as rendas desses dois armazéns, referidos em 7., seriam atribuídas na sua totalidade à Ré, por esta auferir uma pensão de reforma baixa.
9. Além dos dois armazéns referidos em 7., as fracções autónomas descritas nas verbas 21) e 22) também se encontram arrendadas.
10. A gestão das fracções autónomas referidas em 9., desde o óbito do inventariado, tem sido feita pela Autora CC, que recebe e administra o valor das respectivas rendas.
11. Além do referido em 10., até à data de 18 de Março de 2021 a Ré não teve acesso à fracção que constitui a verba 23, encontrando-se as chaves, até essa data, apenas na posse da Autora.
*
Na primeira instância foram ainda declarados como factos não provados os seguintes:
a) O actos praticados pela Autora no âmbito da gestão das verbas 21), 22) e 23) o foram, única e exclusivamente, a pedido da Ré e para auxiliá-la.
b) É a Ré que usufrui das rendas provenientes do arrendamento das fracções referidas em 9).
*
*
V– OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, verifica-se que as questões a apreciar traduzem-se em primeiro lugar na reapreciação do julgamento da matéria de facto nos pontos impugnados pela recorrente e em segundo lugar em decidir se a prestação de contas ordenada deve ou não abranger no seu âmbito aquilo que na decisão recorrida ficou excluído – a recorrente pretende que seja revogada a decisão recorrida na parte em que decidiu exceptuar da obrigação da Ré prestar contas as receitas geradas pelos bens imóveis descritos nas verbas 8) e 12) da Relação de Bens, e na parte em que decidiu excetuar da obrigação da Ré prestar contas as receitas geradas pelos bens imóveis descritos nas verbas 21), 22) e 23) da Relação de Bens, determinando-se a obrigação da Ré prestar contas da administração quanto a todas as receitas dos referidos imóveis.
*
VI – FUNDAMENTAÇÃO
*
A – Quanto aos factos
A apelação interposta pela Autora insurge-se antes do mais contra o decidido em matéria de facto, nos pontos que expressamente indica, em que considera que houve erro de julgamento.
A possibilidade de impugnar o julgamento da matéria de facto feito na primeira instância está consagrada no art. 640º do Código de Processo Civil, cabendo ao recorrente observar a forma e os ónus aí estatuídos.
Sendo caso disso, compete à Relação alterar a decisão proferida em matéria de facto, nos termos estabelecidos no art. 662º do mesmo CPC.
Em face do conteúdo da impugnação deduzida pela recorrente verifica-se que esta deu cabal cumprimento aos ónus que sobre ela recaíam, impondo-se a apreciação do mérito da impugnação deduzida.
Examinando o teor dessa impugnação, constata-se que a primeira das pretensões expostas pela recorrente consiste em que seja dado como provado o seguinte facto, que, segundo defende, deveria ser aditado:
- “O acordo referido em 8 teve como pressuposto que as partilhas dos bens do Inventariado se iriam fazer nos termos acordados entre as partes, designadamente com usufruto de todos os bens a favor da Ré e divisão da propriedade de todos os imóveis a favor da ora Autora e da sua irmã, a Interveniente DD, em partes iguais.”
Este facto, alegado pela recorrente no ponto 41 do seu requerimento de resposta à contestação apresentado em 9/06/2021 (ref.ª...78), destina-se na lógica da recorrente a complementar e a esclarecer o sentido do que consta do ponto 8 da matéria provada:
“8. Após o óbito do inventariado, em Abril de 2013, a Autora, a Interveniente, sua irmã, DD e a cabeça de casal acordaram entre si que as rendas desses dois armazéns, referidos em 7., seriam atribuídas na sua totalidade à Ré, por esta auferir uma pensão de reforma baixa.”
Fundamentando o que declarou provado no ponto 8 diz o julgador da primeira instância que “o mesmo assim resultou porquanto as declarações/depoimentos das próprias partes se mostrou unânime, tendo a própria Autora admitido a celebração de tal acordo, ainda que actualmente tenha mudado de ideias.”
Sublinhamos que a recorrente não contesta a realidade vertida no ponto 8 (diz que “o aludido acordo foi, por um lado, um acto de mera tolerância e um respeito da Recorrente para com a Recorrida, sua mãe, no sentido da manutenção da qualidade de vida daquela após o falecimento do Inventariado, num momento em que as relações entre ambas ainda eram as típicas e expectáveis relações entre mãe e filha”) mas defende que essa realidade só se compreende à luz do que pretende seja agora dado como provado.
Para sustentar a inclusão na matéria de facto do ponto que pretende acrescentar a recorrente invoca o teor das suas próprias declarações de parte e do depoimento da testemunha EE, seu marido, as quais transcreveu nas partes que considerou relevantes.
Todavia, verificando a prova produzida em audiência, constata-se que também foram ouvidos a este respeito a própria cabeça de casal, a Interveniente DD, e o marido desta, UU, todos integrantes do mesmo núcleo familiar onde teria ocorrido o acordo em questão.
Ora se é certo que todos confirmam a realidade do acordo mencionado no ponto 8 (as rendas provenientes dos armazéns sitos no ... ficariam com a cabeça de casal para que esta enfrentasse as dificuldades próprias da escassez da sua pensão de reforma) a verdade é que qualquer destes três, cabeça de casal, Interveniente e marido desta, negam a existência de qualquer condição ou pressuposto nos termos descritos pela recorrente.
Convém recordar a este propósito que, como aliás diz a recorrente, na época em que essa realidade se situa (2013) as relações existentes no núcleo familiar eram as normais entre mãe e filhas, ainda não se tinham degradado como ocorreu posteriormente, tal como referem as interessadas, pelo que se apresenta credível e natural em face da experiência a existência do acordo descrito em 8) sem subordinação ao condicionamento mencionado agora pela recorrente.
Tudo ponderado, afigura-se que não existe fundamento probatório para satisfazer a pretensão da recorrente. As próprias afirmações da recorrente e de seu marido a este respeito (a existência de um acordo de partilhas que teria sido condição para o facto vertido em 8) não são convincentes, apresentam-se antes como a expressão de convicções pessoais sobre o que deveria ser a partilha aqui em causa (usufruto para a mãe, propriedade dos imóveis para as filhas).
E sobretudo não existe outra confirmação quanto à existência de tal pressuposto ou condição, antes subsiste a negação expressa pelos demais Intervenientes, mais credível atentas as explicações fornecidas quanto ao bom relacionamento então existente entre todos e às necessidades que se pretendiam assegurar.
Assim, não existindo prova que imponha tal alteração à matéria de facto, conforme exige o art. 662º, n.º 1, do CPC, improcede a pretensão da recorrente neste ponto.
Prosseguindo, a recorrente propugna também a alteração no teor do ponto 10 da matéria provada.
É o seguinte o conteúdo fixado para esse ponto:
“10. A gestão das fracções autónomas referidas em 9., desde o óbito do inventariado, tem sido feita pela Autora CC, que recebe e administra o valor das respectivas rendas.”
Reporta-se este ponto às fracções autónomas sitas no Algarve, identificadas nos pontos 21 e 22 da mesma factualidade.
A recorrente pretende que seja alterada a redacção, ficando a constar que:
“10. A gestão das fracções autónomas referidas em 9., desde o óbito do inventariado, tem sido feita pela Autora CC, que recebe o valor das respectivas rendas.”
Em síntese, a recorrente defende que deve ser retirada a referência a administrar as referidas rendas, embora admita que as recebe (diz que essa gestão é feita a pedido e em nome de sua mãe).
E em ligação com esta modificação pretende que seja aqui dada como provada a factualidade que foi dada como não provada:
“a) O actos praticados pela Autora no âmbito da gestão das verbas 21), 22) e 23) o foram, única e exclusivamente, a pedido da Ré e para auxiliá-la.
b) É a Ré que usufrui das rendas provenientes do arrendamento das fracções referidas em 9).”
Em apoio destas suas pretensões, quanto à alteração do ponto 10 e quanto à prova dos factos referidos em a) e b) como não provados, invoca a recorrente as suas próprias declarações de parte, o depoimento da testemunha EE, seu marido, e ainda passagens das declarações da cabeça de casal e ainda os documentos nº3 da contestação apresentada pela Ré em 17/05/2021 (ref.ª...39) e nº4 do requerimento de resposta apresentado em 9/06/2021 (ref.ª...78).
Sobre estes pontos, e após examinados os aludidos meios de prova, conclui-se que também não assiste razão à recorrente, pelo que se impõe confirmar o julgado em primeira instância.
A versão dos factos apresentada pelo recorrente não é confirmada pela prova disponível, designadamente aquela por ela mencionada, sendo também contrariada pelos depoimentos das testemunhas moradores/inquilinos desses imóveis, VV e WW.
Assim, sobre tais matérias corroboramos inteiramente o que ficou dito pela primeira instância, em douta e convincente argumentação, que reproduzimos:
“Os factos 9. e 10. resultaram provados em face dos depoimentos/declarações das partes e depoimentos prestados pelas testemunhas VV e WW.
A Ré, de forma serena e descomprometida, referiu desconhecer se e em que condições as referidas fracções se encontram arrendadas, sendo a Autora que, desde o óbito do pai, trata desse assunto e que a mesma (cabeça-de-casal) nem tem as chaves de tais apartamentos. Facto que foi confirmado pela Interveniente, DD.
Com efeito, a própria Autora admitiu receber aquelas rendas, que lhe são entregues em numerário, sustentando, contudo, que depositava as referidas quantias em conta bancária inicialmente titulada por esta e pela irmã DD que, posteriormente (por motivos que aqui não relevam), foi encerrada, tendo, então, sido aberta a actual conta em nome da própria e da cabeça-de-casal, sendo esta última que gere e utiliza esse dinheiro.
Por seu turno, as referidas testemunhas, de forma objectiva e isenta, referiram residir nas mencionadas fracções autónomas, ou seja, ser inquilinos, e do depoimento das mesmas resultou, de forma inequívoca, que pagam as rendas à Autora e que sempre foi unicamente com esta que contactaram quando é necessário tratar qualquer assunto relacionado com o arrendado.
E, do conjunto da prova produzida resultou, também, provado que a Autora, até à data de 18 de Março de 2021, era quem tinha a chave da fracção descrita na verba 23, também sita no mesmo pRédio das demais, e que, só após insistência da cabeça-de-casal lhe disponibilizou uma cópia da chave da mesma.
Com efeito, os documentos juntos aos autos, referentes a correspondência trocada entre as partes ao longo dos últimos anos e que espelham as conversações mantidas, também corroboram tais factos.
E, pese embora a Autora sustentar que os actos de gestão que praticou (e ainda pratica, pois continua a receber as rendas) foram a pedido e para auxiliar a cabeça-de-casal a prova produzida não é isso que demonstra, antes pelo contrário, das declarações das próprias partes resultou que a Autora cortou relações e deixou de ter contacto com a Ré, sua mãe, há largos anos. Assim sendo, como e em que termos é que aqueles actos de gestão (que confessou) são a pedido da mesma e com o intuito de a auxiliar?
Por outro lado, se as rendas têm sido depositadas na conta conjunta que tem com a Ré, conforme sustentou, bastava-lhe juntar aos autos o extracto da dita conta bancária para demonstrar tais movimentos, designadamente aqueles que alega terem sido feitos pela Ré, uma vez que referiu que a mesma também tinha acesso a tal conta e utiliza os valores depositados, mas não o fez, limitando-se, apenas, a juntar o comprovativo da titularidade de conta (fls. 172).
Assim, ante a prova produzida, o Tribunal deu como provados os factos vertidos em 9.,10. e 11. e não provados os factos a) e b).”
Em conclusão, julgamos improcedente na totalidade a impugnação do julgamento da matéria de facto em apreço, pelo que se mantém inalterada a fixação dessa matéria efectuada na primeira instância.
*
B – Quanto ao Direito
Recordamos que a sentença recorrida condenou a Ré, cabeça-de-casal, a prestar contas relativas à administração da herança no período compreendido entre a data do falecimento do inventariado e até 2020, com excepção das receitas geradas pelos bens descritos nas verbas 8), 12), 21), 22) e 23).
A interessada recorrente insurge-se contra a exclusão decidida: impugna o segmento do dispositivo que excepcionou do âmbito da prestação de contas “as receitas geradas pelos bens descritos nas verbas 8), 12), 21), 22) e 23)”.
As verbas em causa, para os efeitos em discussão, integram-se em dois grupos, sendo que em cada um deles a decisão de exclusão impugnada foi determinada por diferente fundamento.
Assim as verbas referidas com o n.º 8 e n.º 12 correspondem aos seguintes imóveis da relação de bens:
- Verba n.º 8: Imóvel sito na Estrada ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...17 e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...08 proveniente do artigo 3241.
- Verba n.º 12: Imóvel correspondente a armazém sito na Rua ... no ..., ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...07 e inscrito na matriz ... da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ...76 proveniente do artigo ...58 da extinta freguesia ....
No respeitante a estas verbas, a exclusão decidida na sentença baseou-se na consideração de que havia abuso de direito por parte da Autora, ao pedir a prestação de contas nessa parte, atento o conteúdo do ponto 8 da matéria de facto:
“8 - Após o óbito do inventariado, em Abril de 2013, a Autora, a Interveniente, sua irmã, DD e a cabeça de casal acordaram entre si que as rendas desses dois armazéns, referidos em 7., seriam atribuídas na sua totalidade à Ré, por esta auferir uma pensão de reforma baixa.”
Fundamentou a sentença recorrida esse seu entendimento dizendo o seguinte:
No que diz respeito às rendas provenientes do arrendamento dos imóveis (armazéns) descritos nas verbas 8) e 12), e recebidas pela cabeça-se-casal, conforme ficou provado, após o falecimento do inventariado as três herdeiras - Autora, Ré e Interveniente – acordaram, entre si, atribuir o produto de tais rendas integralmente à cabeça-de-casal por esta auferir uma pensão de reforma baixa.
Não obstante tal acordo, celebrado em 2013, a Autora veio agora, contrariando aquele acordo, exigir a prestação de contas por parte da cabeça-de-casal, incluindo a administração de tais bens e, consequente, as receitas geradas pelos mesmos, in casu, as rendas.
Estatui o art. 334º do Código Civil que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
No respeitante às verbas n.ºs 21), 22) e 23) da relação de bens a exclusão da obrigação de prestar contas baseou-se na consideração de que estando elas a ser administradas de facto pela própria Autora/recorrente não pode a exigência de prestação de contas ser dirigida contra a cabeça de casal.
São as seguintes as verbas em causa:
- Verba n.º 21, correspondente à fracção ..., ... andar, sito na Rua ..., ...;
- Verba n.º 22 correspondente à fracção ..., ..., sito na Rua ..., ...;
- Verba n.º 23, correspondente à fracção ..., ... andar, sito na Rua ..., ....
Em relação a estas verbas, considerou a sentença recorrida que não existia obrigação da cabeça de casal prestar as contas por ela não exercer a sua administração de facto, considerando que ficou provado que a administração de facto de tais bens tem sido feita pela própria Autora.
Essa fundamentação alude aos pontos 10 e 11 da matéria de facto apurada:
“10. A gestão das fracções autónomas referidas em 9., desde o óbito do inventariado, tem sido feita pela Autora CC, que recebe e administra o valor das respectivas rendas.
11. Além do referido em 10., até à data de 18 de Março de 2021 a Ré não teve acesso à fracção que constitui a verba 23, encontrando-se as chaves, até essa data, apenas na posse da Autora.”
Tendo presente a controvérsia apresentada pelo recurso da Autora, em face da fundamentação exposta para a decisão impugnada, e perante os factos a considerar e o Direito a aplicar, impõe-se agora tomar posição, e decidir.
Diremos que, salvo o devido respeito, deve ser acolhida a argumentação constante da sentença recorrida e mantida a decisão na parte referente aos bens cuja administração de facto não tem sido exercida pela cabeça de casal (verbas 21, 22 e 23) mas não é possível acompanhar a decisão respeitante às verbas 8 e 12 (excluídas por no entender da primeira instância existir abuso de direito no pedido de prestação de contas).
Efectivamente, quanto às verbas 21, 22 e 23, verificando-se que a administração de facto tem sido exercida pela recorrente e não pela cabeça de casal, não pode a cabeça de casal nesse ponto ser onerada com a prestação de contas.
Com efeito, dispõe o art. 2079.º do Código Civil que a administração da herança, até à sua liquidação e herança, pertence ao cabeça-casal, que no caso é a Ré BB, e na sequência dessa atribuição legal estabelece o art. 2093.º, n.º 1, do Código Civil, a correspondente obrigação de prestar contas.
Porém, apesar de ser no cabeça-de-casal que recai legalmente a obrigação de prestar contas (cf. o citado art. 2093.º, n.º 1 do CC), enquanto administrador dos bens que compõem a massa da herança, tal apenas sucede se o cabeça-de-casal for o administrador de facto dos bens em causa, cabendo essa obrigação ao administrador de facto, no caso de se verificar esta circunstância.
Ou seja, a obrigação de prestação de contas recai sobre quem faça a administração de bens alheios, a qualquer título.
A este propósito, leia-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.04.2019 (processo n.º 1971/18.6T8LRA.C1, relator Falcão de Magalhães, disponível em www.dgsi.pt):
“O “administrador de facto” está obrigado a prestar contas, podendo esta obrigação ser forçada por via de uma acção especial de prestação de contas, seguindo-se o entendimento segundo o qual dos “preceitos legais que estabelecem tal obrigação [obrigação de prestar contas] extrai-se um princípio geral, já afirmado pelo Prof. Alberto dos Reis, e de que tais preceitos constituem afloramento ou revelação: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. A afirmação desse princípio geral encontra eco no disposto no art. 1014º do CPC: aí se refere que o processo de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas efectuadas por quem administra bens alheios. (…) E nem é necessário que essa administração se funde em contrato: o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte” (acórdão da Relação de Lisboa de 27-05-2010, proc. nº 1101/09.5YXLSB.L1-8, in www.dgsi.pt).”
A obrigação de prestação de contas está directamente relacionada com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido, relativamente a bens que não lhe pertencem.
Como explica o Acórdão da Relação de Guimarães de 23-04-2020 (processo n.º 2629/18.1T8VNF.G1, relator António Sobrinho, publicado em www.dgsi.pt):
“A nível jurisprudencial e doutrinal é praticamente pacífico que a administração de facto de bens obriga à prestação de contas.
Veja-se entre outros, o Acórdão do STJ de 16.06.2011, proc. 3717/05.0TVLSB.L1, in dgsi.pt.
A obrigação de prestação de contas é uma obrigação de informação que incumbe a quem trata de negócios alheios ou de negócios próprios e alheios, seja qual for a fonte da administração.
Existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artº 573º do CC).
Essa obrigação de informação decorre umas vezes da lei, outras do negócio jurídico, outras até do princípio geral de boa-fé consagrado no artº 762º, nº 2, do CC.
Relevante é, pois, o facto da administração de bens alheios, independentemente da fonte dessa actuação.
A finalidade da acção de prestação de contas é, como emerge do artº 941º, do CPC, o apuramento e aprovação das receitas cobradas e das despesas efectuadas e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.”
A este respeito, veja-se ainda o Acórdão do STJ de 16-06-2011, no processo n.º 3717/05.0TVLSB.L1, relator Tavares de Paiva (in www.dgsi.pt): “o que importa no âmbito dessa acção, em termos de obrigação de prestar contas, é quem de facto administra bens alheios, independentemente da fonte que gera essa obrigação.
Em suma, e para concluir, perfilhando a orientação exposta, entendemos que deve ser confirmada a sentença recorrida na parte em que excluiu da obrigação a cargo da cabeça de casal a prestação de contas relativamente a essas verbas (21, 22 e 23), uma vez que se provou não ser ela a fazer a respectiva administração.
Todavia, e diferentemente, não acompanhamos o decidido quanto à exclusão referente aos imóveis a que aludem as verbas 8 e 12.
Na verdade, constata-se que a sentença recorrida seguiu o entendimento defendido pela cabeça de casal e pela interessada DD, segundo as quais a ora requerente acordou que o valor das receitas provenientes dos armazéns do ... seria entregue à cabeça de casal, para sua fruição, dados os baixos rendimentos provenientes da sua reforma, e “em momento posterior, volvidos quase 8 anos, assume o comportamento totalmente contraditório com o acordo então firmado, instaurando uma ação judicial de prestação de contas contra a Recorrida, fazendo-se valer do facto daquela ser a Cabeça de Casal da herança, violando, deste modo, as legítimas expectativas geradas em torno do seu comportamento anterior”.
Nisto consistiria o abuso de direito, traduzido na violação das legítimas expectativas criadas na cabeça de casal e incorrendo no chamado venire contra factum proprium.
Como se pode ler na sentença recorrida:
“Estatui o art. 334º do Código Civil que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo. (…)
No caso em apreço, a Autora, ao dar o seu acordo quanto à atribuição do produto das rendas à cabeça-de-casal, sua mãe, nos termos que ficaram provados (e que a própria confessou), criou-lhe a expectativa, legítima, de que não iria exigir prestação de contas relativamente a tais receitas, sendo que decorreram 8 anos sem que o tenha feito.
Consequentemente, o direito a exigir a prestação de contas relativamente aos rendimentos – rendas – de tais bens (verbas 8 e 12) é manifestamente abusivo por venire contra factum proprium e, como tal, ilegítimo.”
Julgamos que, ao contrário, ao requerer a prestação de contas relativamente à administração dos bens da herança efectivamente feita pela cabeça de casal a interessada ora recorrente exerceu da forma normal e típica um direito que a lei lhe confere.
Na verdade, não estando aqui em dúvida que os imóveis em questão fazem parte da herança do inventariado, impõe-se sublinhar que as rendas geradas por eles também se integram no âmbito da herança.
Como estabelece o art. 2069º, al. d), do Código Civil, fazem parte da herança “os frutos percebidos até à partilha”.
Portanto, não se questionando a possibilidade de tais frutos serem utilizados para satisfação das necessidades da cabeça de casal, ou de outro interessado, mesmo por consenso entre todos, não pode haver dúvidas de que estamos perante bens integrantes da herança, e que terão que entrar nas operações decorrentes das regras da partilha, para que esta possa fazer-se de acordo com as normas imperativas a que deve obedecer.
Por outras palavras, e realçando o que nos parece decisivo, julgamos que o acordo referido no ponto 8 da matéria de facto não é susceptível de ser interpretado no sentido e com o alcance que lhe foi atribuído na sentença em análise (que significaria em rigor a exclusão desses valores do âmbito da herança a partilhar).
E esta conclusão mais nitidamente se perfila se atentarmos em que paralelamente a Autora/recorrente também tem vindo a administrar outros imóveis da herança, e a receber as respectivas rendas, tendo inclusivamente a outra interessada, sua irmã, referido a obrigação desta prestar contas a este respeito.
Ora se fosse assente que em relação aos frutos de uns imóveis teria que ser prestadas contas e em relação a outros tal não se verifica, ficando estes fora do âmbito da prestação de contas (e de fora da partilha) daí resultaria obviamente grave distorção nas atribuições patrimoniais correspondentes à divisão da herança do falecido.
Vem a propósito recordar que, de acordo com o disposto no art. 2101º do Código Civil, o processo de inventário pode ser instaurado a todo o tempo, não sendo susceptível de renúncia o direito a partilhar.
Esse direito de requerer inventário foi in casu exercido pela cabeça de casal, que desse modo lançou mão do procedimento judicial para fazer cessar a situação de indivisão em que se encontra a herança do seu falecido marido, sem que se lhe possa opor a circunstância de terem decorrido mais de sete anos sobre esse falecimento.
Paralelamente, também não se afigura possível afirmar que a interessada requerente da prestação de contas não pode agora requerer essa prestação de contas em relação a determinados bens apenas porque durante esses anos permitiu e autorizou que certas receitas fossem afectas a necessidades pessoais da cabeça de casal, representando agora esse requerimento um abuso de direito.
Como é evidente, mesmo a adjudicação de um bem da herança, em processo de inventário, feita por acordo entre todos os interessados, não tem por efeito subtrair esse bem da herança ao acervo hereditário.
Julgamos que o acordo descrito no ponto 8 da matéria de facto não significa nem implica a renúncia ao direito de exigir a prestação de contas. E pelo contrário, o cumprimento desse dever de prestar contas implica que sejam consideradas as receitas em causa e o destino que tiveram.
Recorde-se que, como sublinha a própria sentença recorrida, a finalidade da acção de prestação de contas é, como decorre do artigo 941.º do CPC, o de estabelecer o montante das receitas e das despesas “de modo a obter a definição de um saldo e de determinar, assim, a situação do Réu - de quite, de devedor, ou de credor - perante o titular dos interesses geridos, com apuramento do crédito para este eventualmente resultante da actuação daquele”.
A interpretação seguida na sentença quanto a esse acordo descrito no ponto 8 da matéria de facto equivale a legitimar a Ré a fazer seus esses rendimentos da herança, subtraindo os mesmos ao acervo hereditário. Ora a prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação de receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Nem se pode dizer que a cabeça de casal criou alguma expectativa legítima de que nunca lhe seriam exigidas contas desses bens da herança que recebeu e usou em seu proveito, fazendo-se a partilha sem consideração por esses valores.
As rendas dos imóveis correspondentes às verbas 8) e 12) da relação de bens são, sem dúvida, frutos percebidos até à partilha da herança, e como tal, ao abrigo do artigo 2069º alínea d) do Código Civil, fazem parte do acervo da herança do inventariado.
Assim, as rendas não pertencem à Autora, ora recorrente, nem à Ré, nem à Interveniente DD, sendo para elas bens alheios, visto que pertencem à herança do inventariado, e os direitos de cada uma em relação a tais rendas são apenas aqueles que lhes são conferidos na medida e na sua qualidade de interessadas na partilha da herança do inventariado, o que a Ré necessariamente conhece.
Concordamos, deste modo, e neste ponto, com a recorrente, quando conclui que, resultando da sentença recorrida que a Ré é a cabeça de casal e administra os imóveis que constituem as verbas 8) e 12) da relação de bens, daí resulta que ela “tem de cumprir o primeiro desiderato da prestação de contas – o de informar os restantes interessados – de forma plena, ou seja, revelando nas contas que irá apresentar quais as receitas que obteve e as despesas que realizou com a administração do património alheio” que administra.
Este objectivo só é compatível com a apresentação global das aludidas receitas e despesas: reza o art. 941º do CPC que a acção especial de prestação de contas “tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Tem sido entendido que ocorre abuso de direito “quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante” (Acórdão da Relação de Coimbra de 09-01-2017, no processo n.º 102/11.8TBALD.C2, relator Luís Cravo, in www.dgsi.pt).
Ora, assim sendo, e como resulta patente da análise do conceito, ao requerer a prestação de contas como o fez a interessada CC actuou no exercício do direito que lhe assiste, face ao disposto no art. 941º do CPC, não se vislumbrando motivo para considerar que essa actuação se integra na figura do abuso de direito, atrás descrito.
Em conclusão, julgamos não existir no caso em apreço qualquer situação de abuso de direito, como previsto no art. 334º do Código Civil, antes devendo atender-se às legítimas pretensões da requerente a esse respeito, revogando-se o decidido nesse ponto.
Em conformidade, passamos a decidir do mérito do recurso, do modo que se segue.
*
VII - DECISÃO
Por todo o exposto, julgamos parcialmente procedente a apelação, revogando a decisão recorrida na parte que, após condenar a Ré a prestar contas, refere a “excepção das receitas geradas pelos bens descritos nas verbas 8), 12)”, mantendo o restante que foi decidido.
As custas do presente recurso, atento o vencido, ficam a cargo da recorrente e das recorridas, na proporção de metade para a primeira e, solidariamente, metade para as segundas (cfr. art. 527º, n.º 1, do CPC).
*
*
Évora, 20 de Fevereiro de 2024
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso